Resumos
A discussão sobre as repercussões das relações de gênero na vida das mulheres foi temática de uma atividade teórico-prática sobre técnicas e métodos de pesquisa nas Ciências Sociais de uma disciplina de pós-graduação em Saúde Coletiva. Adotou-se, como referencial teórico, a perspectiva de gênero como decorrente do posicionamento socio-histórico, no qual a experiência de ser mulher se constrói. O trabalho tem como objetivo relatar a experiência de execução dessa atividade como parte da trajetória acadêmica das mestrandas envolvidas. Por meio da articulação entre teoria e prática, pôde-se vivenciar o passo a passo da escolha, da elaboração e da descrição metodológica na produção do trabalho. O exercício de reflexividade esteve presente, localizando as estudantes diante do seu objeto de investigação. A atividade permitiu imersão na temática e reconhecimento do seu caráter político, histórico e social como agente de consolidação ou reformulação das práticas vigentes.
Palavras-chave
Identidade de gênero; Universidades; Educação em saúde; Ciências Sociais
The discussion surrounding the impact of gender relations on the life of women was the theme of a theoretical and practical activity on social science research techniques and methods as part of a module of a master’s degree in public health. We adopted the gender perspective, drawing on the social and historical positioning of gender relations to construct the experience of being a woman. This article recounts the development of this activity as part of the academic trajectory of the master’s students involved. Through the articulation between theory and practice, it was possible to experience the different steps of the choice, elaboration and description of the methodology in the production of the work. Reflexivity was present, situating the students before the object of investigation. The activity enabled the students to immerse themselves in the topic and recognize its political, historic and social natures as an agent of the consolidation or reformulation of current practices.
Keywords
Gender identity; Universities; Health education; Social sciences
La discusión sobre las repercusiones de las relaciones de género en la vida de las mujeres fue la temática de una actividad teórico-práctica sobre técnicas y métodos de investigación en las ciencias sociales de una asignatura de postgrado en salud colectiva. Se adoptó como referencial teórico la perspectiva de género como proveniente del posicionamiento sociohistórico, en el cual se construye la experiencia de ser mujer. El objetivo del trabajo es relatar la experiencia de realización de esa actividad como parte de la trayectoria académica de las alumnas de maestría involucradas. Por medio de la articulación entre teoría y práctica es posible vivir el paso a paso de la elección, elaboración y descripción metodológica en la producción del trabajo. Estuvo presente el ejercicio de reflexividad, localizando a las alumnas ante su objeto de investigación. La actividad permitió una inmersión en la temática y reconocimiento de su carácter político, histórico y social como agente de consolidación o reformulación de las prácticas vigentes.
Palabras clave
Identidad de género; Universidades; Educación en salud; Ciencias sociales
Introdução
As discussões sobre gênero têm assumido destaque considerando sua estreita relação com os direitos humanos e sua relevância para a compreensão das práticas sociais11 Saffioti HIB. Gênero patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; 2004.. Os estudos sobre as relações entre mulheres e homens vêm contribuindo para a reflexão sobre as desigualdades de gênero em diversas instâncias sociais, decorrentes da adoção de papéis socialmente predefinidos de acordo com o sexo22 Scott J. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Educ Real. 1995; 20(2):71-99..
Essa temática central foi norteadora para o desenvolvimento de uma atividade teórico-prática sobre as principais técnicas e métodos de pesquisa nas Ciências Sociais aplicadas em Saúde, tendo como objeto as desigualdades de gênero no contexto da universidade. Neste trabalho, adotou-se a perspectiva de gênero como fruto de uma construção social, pela qual os papéis, comportamentos e estereótipos associados ao feminino e ao masculino são construídos com base nas interações interpessoais e nos processos de socialização22 Scott J. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Educ Real. 1995; 20(2):71-99..
Acreditamos ser válida a compreensão da existência de diferenças entre mulheres e homens, entretanto não há plausibilidade na sustentação das desigualdades construídas socialmente com justificativas biológicas, visto que essa associação contribui para a perpetuação e a naturalização das iniquidades existentes na sociedade brasileira33 Barreto A. A mulher no ensino superior: distribuição e representatividade. Cad GEA. 2014; (6):52.. Apesar de gênero não ser a única categoria para se pensar a noção do feminino, o conceito, pensado dentro dos estudos feministas, é importante para refutar a naturalização das diferenças sexuais44 Haraway D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cad Pagu. 2004; (5):7-41..
Estudos realizados em instituições de ensino superior apontam a existência de padrões de desigualdades33 Barreto A. A mulher no ensino superior: distribuição e representatividade. Cad GEA. 2014; (6):52.,55 Velho L, León E. A construção social da produção científica por mulheres. Cad Pagu. 2012; (10):309-44.,66 Farber SG, Verdinelli MA, Ramezanali M. A universidade está contribuindo para a igualdade de gênero? Um olhar sobre a percepção dos docentes de pós-graduação. Rev Gest Univ Am Lat. 2012; 5(4):116-40.. As docentes concentram-se em determinadas áreas do conhecimento, caracterizando o que se denomina de concentração horizontal77 Moschkovich M, Almeida AMF. Desigualdades de gênero na carreira acadêmica no Brasil. Dados. 2015; 58(3):749-89.. Em contrapartida, elas estão em menor proporção nas posições mais altas da carreira, aquelas associadas aos melhores salários, ao maior prestígio acadêmico e ao poder universitário, a chamada concentração vertical77 Moschkovich M, Almeida AMF. Desigualdades de gênero na carreira acadêmica no Brasil. Dados. 2015; 58(3):749-89..
Uma publicação realizada com base no levantamento dos dados do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), de 2016, expressa as iniquidades existentes entre a distribuição de estudantes na educação superior88 Barros SCV, Mourão L. Panorama da participação feminina na educação superior, no mercado de trabalho e na sociedade. Psicol Soc. 2018; 30:e174090. Doi: https://doi.org/10.1590/1807-0310/2018v30174090.
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. Ainda que as mulheres sejam a maioria no ensino superior, elas ocupam áreas de menor reconhecimento social e são a minoria nos cursos tradicionalmente associados aos altos salários e à maior notoriedade, como nas áreas da Engenharia e das Ciências Exatas e da Terra. Nessas áreas, especificamente, a diferença percentual entre gêneros é mais acentuada. Enquanto 14,3% dos currículos cadastrados são referentes a mulheres, 30,3% são correspondentes aos homens. Observa-se ainda que, quando ocupam esses espaços, as mulheres recebem menos do que os homens, revelando que a diferença salarial continua a ser uma problemática vivenciada por diferentes grupos de mulheres no Brasil88 Barros SCV, Mourão L. Panorama da participação feminina na educação superior, no mercado de trabalho e na sociedade. Psicol Soc. 2018; 30:e174090. Doi: https://doi.org/10.1590/1807-0310/2018v30174090.
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A universidade, como instituição social, também é um ambiente que cria, transmite e dissemina conhecimentos, ao mesmo tempo em que reflete aspectos da realidade social, denunciando ou antecipando mudanças que nela ocorrem99 Chauí M. Seminário: Universidade: por que e como reformar? Brasília: Ministério da Educação; 2003.. Na academia, o uso do termo “gênero” é aberto, terreno de múltiplas formulações políticas e teóricas pensadas como elemento de reflexão sobre o próprio conhecimento científico ali produzido44 Haraway D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cad Pagu. 2004; (5):7-41.,1010 Hooks B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2013..
Nesse sentido, falar em gênero remete, portanto, a um conjunto de práticas sociais criadas e criadoras de assimetrias não só do que é entendido como feminino e masculino, mas também de dimensões políticas e de poder22 Scott J. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Educ Real. 1995; 20(2):71-99.. Discutir a temática das relações de gênero, como um exercício de investigação metodológica em espaços públicos de ensino superior, reforça a importância e o compromisso das universidades em oferecer, à sociedade, profissionais, acadêmicas e acadêmicos sensibilizados para uma atuação cidadã, comprometidos com o fortalecimento dos direitos e das liberdades fundamentais1111 Brasil. Ministério da Educação. Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos [Internet]. Brasília: Ministério da Educação; 2006 [citado 28 Maio 2020]. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/dados/pp/edh/br/pnedh2/pnedh_2.pdf
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Em face disso, o presente trabalho tem como objetivo relatar a experiência de elaboração e execução de uma atividade teórico-prática sobre a percepção das relações de gênero na vida das docentes de um instituto de Saúde Coletiva, como parte da trajetória acadêmica das mestrandas.
O contexto da atividade
A experiência relatada nesta produção é fruto do desenvolvimento de uma atividade acadêmica proposta pelo componente curricular “Métodos Não Estruturados da Pesquisa Social em Saúde I”, oferecido pelo Programa de Pós-Graduação do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC - UFBA), no período de agosto a setembro de 2018. Trata-se de um componente curricular obrigatório para discentes da área de concentração de Ciências Sociais em Saúde do curso do mestrado em saúde comunitária, podendo também ser cursado por estudantes de outros programas de pós-graduação da universidade.
De acordo com a ementa, o objetivo da disciplina é proporcionar a reflexão crítica sobre os principais métodos, as técnicas e os procedimentos de investigação e análise de dados não estruturados ou semiestruturados nas Ciências Sociais aplicáveis à pesquisa em Saúde Coletiva. As atividades propostas pela disciplina envolveram abordagens teóricas e empíricas. As referências utilizadas versavam sobre autores da área das Ciências Sociais, no entanto, trabalhos produzidos por pesquisadoras do campo da Saúde Coletiva também estavam entre os referenciais adotados. Ressaltamos que a disciplina se refere ao primeiro componente curricular sobre os métodos qualitativos da pesquisa, dentro de uma matriz curricular do programa da pós-graduação, que contém disciplinas subsequentes sobre as distintas abordagens teórico-metodológicas das pesquisas sociais em saúde.
As aulas teóricas, com o formato de seminários semanais, contaram com a participação de estudantes por meio de apresentações e discussões dos textos previamente definidos. O exercício empírico foi incentivado por meio da elaboração dos aspectos metodológicos dos projetos de pesquisa de cada estudante e por essa atividade acadêmica, realizada em grupo, subsídio deste relato de experiência. Essa atividade empírica, em equipe, teve como ponto de partida a discussão e a escolha, em sala de aula, do tema a ser abordado pela turma durante o exercício prático para a produção de dados inéditos. Definiu-se, portanto, o tema “Repercussão das relações de gênero no cotidiano das mulheres de uma unidade de ensino superior”.
A turma foi dividida em grupos formados pela intersecção entre os diferentes vínculos estabelecidos pelas mulheres com a unidade de ensino do ISC – UFBA (discentes, servidoras técnico-administrativas ou docentes) e as estratégias para a produção dos dados (entrevista narrativa, entrevista semiestruturada ou grupo focal). O interesse e a afinidade com a entrevista semiestruturada, assim como a inquietação em torno do cruzamento entre gênero e docência, proporcionaram o encontro de quatro mulheres, à época mestrandas, que compuseram este grupo de trabalho com trajetórias de vida, acadêmicas e profissionais distintas, que, naquela atividade, compartilharam um mesmo objeto de estudo.
As estudantes tiveram três semanas para a construção do projeto, cujo objetivo principal foi compreender como as docentes que atuam no ISC – UFBA percebiam as repercussões das relações de gênero em suas vidas acadêmicas, profissionais e pessoais. Os objetivos específicos visavam identificar como as docentes compreendiam as relações de gênero na estruturação da carreira acadêmica e como os fatores organizacionais da atividade acadêmica interferem na vida familiar e social. Durante esse período, reuniões semanais ocorreram com os professores responsáveis pela disciplina para o suporte na elaboração de cada etapa.
Para atingir os objetivos delimitados pela equipe, realizou-se previamente um levantamento bibliográfico sobre a docência feminina, especialmente em instituições de ensino superior, com ênfase nas questões de gênero e nos aspectos institucionais e individuais que atravessam essa prática profissional. Os critérios de inclusão para a participação nessa atividade foram, portanto, ser do gênero feminino, docente do ISC e aceitar as condições propostas pelo termo de consentimento livre e esclarecido, documento construído em coletividade com a turma, garantindo que os dados produzidos fossem usados exclusivamente para fins acadêmicos em sala de aula. Todo o processo da construção da atividade envolveu também a participação nas aulas teóricas e a leitura do material de referência proposto sobre técnicas de produção e análise de dados.
A identificação das possíveis participantes foi feita na secretaria do ISC por meio de uma lista contendo os nomes dos docentes e das docentes do instituto e seus respectivos contatos. O convite foi realizado virtualmente, por e-mail e por mensagem de texto, no aplicativo WhatsApp. No total, cinco professoras foram acionadas. Por questões de disponibilidade e conveniência, as entrevistas foram realizadas com três docentes de distintas áreas de concentração da Saúde Coletiva, nas dependências do instituto, em suas respectivas salas.
Para nortear as entrevistas e a produção de dados, a equipe construiu um roteiro semiestruturado com cinco questões subjetivas. As perguntas norteadoras para a entrevista foram elaboradas com o intuito de abranger os domínios pessoal, acadêmico e profissional das docentes e possibilitar a inferência acerca do conteúdo das mensagens proferidas. As entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas integralmente pela equipe.
A análise de conteúdo de Laurence Bardin1212 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2010. foi a estratégia escolhida para trabalhar o material produzido. A opção por esse tipo de análise deu-se a partir da questão-problema delimitada, da teorização sobre os pontos-chave e do alinhamento aos objetivos propostos. A pré-análise dos relatos registrados foi desenvolvida por meio do cumprimento de etapas sem, contudo, ater-se aos procedimentos quantitativos sugeridos por essa abordagem. Nessa etapa, foi realizada uma leitura flutuante das transcrições, e os achados foram organizados em dois grandes temas. Com base nos temas centrais, foram estabelecidas categorias, algumas pensadas previamente, outras reformuladas de acordo com as informações que emergiram da narrativa das professoras. Ademais, as discussões sustentadas pela produção científica sobre o tema subsidiaram a pré-análise dos dados produzidos.
Ao final do componente curricular, foi produzida e entregue aos professores da disciplina uma produção escrita com os resultados preliminares da análise de dados, sendo realizada uma apresentação oral sobre os resultados. Durante a exposição em sala de aula, professores e estudantes discutiram as diferenças e as particularidades dos outros perfis de entrevistadas (discentes, servidoras técnico-administrativas e funcionárias terceirizadas), outras técnicas metodológicas utilizadas pelas demais equipes (grupo focal e entrevista narrativa) e as experiências da execução dessa atividade.
Por se tratar de uma atividade teórico-prática integrada a um componente curricular, não houve submissão ao Comitê de Ética em Pesquisa. Assim, os dados produzidos durante as entrevistas não foram expostos neste texto. Optamos por dar ênfase aos conhecimentos e às experiências gerados por essa atividade.
Aprendizados construídos
Pela articulação teórico-prática com uma técnica de pesquisa em saúde, pôde-se vivenciar o passo a passo da escolha, da elaboração e da descrição de uma metodologia na produção de um trabalho científico, sendo possível alimentar o processo contínuo de construção do conhecimento que, até então, estava centralizado em aprofundamentos teóricos. Tratou-se, portanto, do primeiro contato mais concreto das discentes com a temática de gênero e com as contribuições feministas para investigações nas Ciências Sociais aplicáveis à pesquisa em Saúde Coletiva.
As entrevistas com as professoras permitiram o acesso a distintas realidades do trabalho feminino no universo da pós-graduação em Saúde Coletiva. Foram marcantes, nos relatos, os desafios enfrentados pelas mulheres para manter uma organização entre as atividades profissionais com as demandas pessoais e familiares na estruturação da vida docente. Os aspectos envolvendo a divisão sexual do trabalho também puderam ser discutidos.
A aplicação prática da técnica metodológica discutida nas aulas teóricas atuou como uma pequena amostra dos percalços e da riqueza da atividade de campo. No processo de enfrentamento das dificuldades, surgiram dúvidas que se tornaram a força motriz para o aprofundamento teórico, os debates entre a equipe e o aprimoramento do espírito de cooperação necessário para o bom desenvolvimento de trabalho em grupo. Durante a atividade, foram feitos movimentos de aproximação e distanciamento do objeto de estudo, atrelados às reflexões sobre as influências das nossas trajetórias de vida ao longo do desenvolvimento do trabalho. Cabe destacar a composição heterogênea do grupo, aspecto importante da análise crítica deste relato de experiência que traz marcas da nossa cultura, nossa sociedade e nossa posição de gênero1313 Furlin N. A categoria de experiência na teoria feminista. Estud Fem. 2012; 20(3):955-72. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2012000300025.
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, tornando-se peculiar e também única por acreditarmos na indissociabilidade entre o contexto social, no qual estamos inseridas, e a produção dos saberes1414 Furlin N. A experiência da intersubjetividade na pesquisa feminista: perspectivas metodológicas. Educ Pesqui. 2015; 41(4):913-30. Doi: https://doi.org/10.1590/s1517-9702201506129687.
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As integrantes deste relato possuem formações diferentes em saúde, sendo uma enfermeira e três fisioterapeutas, que trabalham com temas distintos e não abordam perspectivas teóricas de gênero em suas pesquisas individuais. Duas discentes eram vinculadas ao ISC; outras duas, ao Programa de Pós-Graduação em Processos Interativos dos Órgãos e Sistemas do Instituto de Ciências da Saúde (ICS) da UFBA. Com base nesse exercício e nos debates em sala de aula, foi possível olhar com criticidade social e política para as problemáticas discutidas nos nossos projetos individuais. A perspectiva de gênero foi, inclusive, posteriormente integrada ao projeto de pesquisa de dissertação de uma das autoras.
Discorrer sobre uma atividade de campo com docentes, dentro de uma instituição de ensino superior, subsidiou ponderações teórico-analíticas valiosas sobre a produção de pesquisa científica em Ciências Sociais em Saúde para o nosso processo de formação acadêmica. Nesse quesito, o ambiente de formação universitária transformou-se em campo de pesquisa, e as docentes, facilitadoras do aprendizado, assumiram papel de entrevistadas que compartilharam seu cotidiano por meio de narrativas, produto do seu processo subjetivo de reflexão, e também contribuíram para estreitar a distância entre a prática e o conhecimento.
A vivência da reflexividade na pesquisa
A possibilidade de se discutir, em uma disciplina de pós-graduação em saúde, a necessidade do caminhar conjunto entre as abordagens teóricas e as realidades práticas vivenciadas foi um caminho para despertar, nas estudantes, a importância do exercício da reflexividade. Afinal, as relações criadas entre as pesquisadoras, as participantes e a problemática investigada influenciaram o resultado final do trabalho apresentado em sala, sendo, inclusive, este relato de experiência um produto dessa interação.
O reconhecimento da dimensão da reflexividade deu-se por meio da discussão sobre a pesquisa sociológica na perspectiva de Bourdieu1515 Bourdieu P, Chamboredon J-C, Passeron J-C. A profissão de sociólogo: preliminares epistemológicas. 3a ed. Petrópolis: Vozes; 1999. Primeira parte - a ruptura; p. 23-44.. No entanto, a reflexão não se limitou a um momento formativo em sala de aula, envolvendo um trabalho aberto, contínuo e participativo que ressignificou nossas relações da vida social e os achados da nossa atividade. O exercício de tornar a si mesmo como objeto de análise e parte do trabalho de investigação nesse processo compreende, também, assumir um comprometimento com os dados produzidos, visto que corremos o risco de fazer inferências sobre os fatos de acordo com as estruturas operantes do meio em que vivemos. Por esses termos, reforçamos que a “neutralidade” do investigador perante o objeto investigado, mais do que nunca, precisa ser pensada, analisada e debatida nos espaços de formação acadêmica, sob o risco de se reproduzir as assimetrias de poder, as desigualdades de gênero e a estrutura do patriarcado e do racismo da nossa sociedade.
Nesse ínterim, entre a posição e o olhar dos diferentes pesquisadores e pesquisadoras e seus objetos de pesquisa, tanto quem investiga quanto quem é investigado são participantes e estão ativamente engajados na produção do conhecimento, sendo fundamentais, dentro dos processos da pesquisa científica, as indagações sobre os procedimentos empregados, as relações estabelecidas e os contextos de vida das pessoas envolvidas1616 Minayo MCS, Deslandes SF, Gomes R, Neto OC. Ciência, técnica e arte: o desafio da pesquisa social. In: Minayo MCS, organizador. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 21a ed. Lisboa: Vozes; 2002. p. 9-30.. Essa reflexão, para além de ser um método de vigilância da pesquisa em Ciências Sociais, implica também a prática ética do fazer pesquisa envolvendo seres humanos1717 Oliveira SR, Piccinini VC. Validade e reflexividade na pesquisa qualitativa. Cad EBAPEBR. 2009; 7(1):88-98. Doi: https://doi.org/10.1590/S1679-39512009000100007.
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A própria opção pela temática de gênero para a realização de uma atividade de pesquisa, no curso da pós-graduação, não se deu de forma neutra ou descompromissada. Vivíamos um período de disputas eleitorais de 2018, ataque às universidades e acirramento dos discursos de violência e ódio direcionados a grupos específicos, inclusive às mulheres. A composição da classe era majoritariamente feminina e algumas discentes já possuíam conhecimento prévio sobre a temática de gênero. Optar por essa discussão tornou-se, portanto, um caminho para repensar a necessidade de dialogar e produzir saberes entre mulheres com distintas trajetórias de vida e diferentes vínculos em um instituto acadêmico e, ao mesmo tempo, resgatar o protagonismo das cientistas na pesquisa brasileira.
A investigação sobre o tema em específico foi impulsionada também pelo reconhecimento do papel social das universidades públicas com a democracia, para além da formação profissional direcionada ao mercado de trabalho. As evidências das assimetrias nas relações de poder entre homens e mulheres, dentro de espaços institucionais1818 Olinto G. Inclusão das mulheres nas carreiras de ciência e tecnologia no Brasil. Inclusão Soc. 2012; 5(1):68-77., e das desigualdades estruturantes da sociedade brasileira que segregam, discriminam e excluem indivíduos que dela fazem parte, inviabilizam a construção de um país democrático de direito1919 Ianni O. Dialética das relações raciais. Estud Av. 2004; 18(50):21-30. Doi: https://doi.org/10.1590/S0103-40142004000100003.
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. Além disso, consideramos que o campo da Saúde Coletiva, ainda que reconheça criticamente as repercussões dos determinantes sociais nos processos de saúde-doença, como um campo de práticas, não está isento da (re)produção das discriminações de gênero vivenciadas pelas mulheres em seu cotidiano.
Potencialidades da atividade
Ao longo do processo de análise dos dados produzidos, outras categorias não predeterminadas surgiram. Houve a possibilidade de incluí-las, demonstrando a necessidade de revisão dos elementos metodológicos e a adaptação à realidade estudada, devido às inter-relações de distintos objetos que surgiram ao longo da pesquisa, e que estavam associados com a problemática estudada, adicionando novos desfechos. Constatamos, nessas interações, que incluir novas categorias não se resume à adição de novos resultados, mas um exercício de categorizações decorrentes da produção coletiva feita no encontro entre as entrevistadoras, as entrevistadas e as narrativas ali construídas.
A atividade proporcionou também uma aproximação com abordagens interseccionais e ampliou o cenário das investigações sobre as relações de gênero, permitindo refletir sobre as questões étnico-raciais e classes sociais relacionadas às atividades cotidianas das mulheres. Ainda que a abordagem interseccional não tenha sido o foco do exercício em questão, desconsiderar a associação dessas múltiplas cargas de opressão pode invisibilizar os comportamentos discriminatórios constituintes das dinâmicas sociais, com destaque para as diferentes situações vivenciadas pelas mulheres e em especial as mulheres negras2020 Crenshaw K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estud Fem. 2002; 10(1):171-88. Doi: https://doi.org/10.1590/S0104-026X2002000100011.
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, a natureza perversa do racismo e seus impactos nos processos de saúde, doença e morte.
Como nem todas tinham experiências prévias com os métodos de pesquisa em Ciências Sociais e vinham de abordagens quantitativas, transitar por métodos não estruturados e suas técnicas de produção de dados abriu um campo de possibilidades, não reduzindo a objetividade científica apenas a representações matemático-estatísticas. Registrar as falas das participantes, reconhecer o valor do indivíduo e o grupo ao qual pertence proveu às pesquisadoras vinculadas a outro programa de pós-graduação mais uma ferramenta de pesquisa e a construção de novos saberes. Implicou também reconhecer o caráter histórico, social e político existente nas perspectivas teóricas dos nossos trabalhos e considerá-lo agente de consolidação ou reformulação das práticas vigentes.
Considerações finais
A experiência com essa proposta formativa estimulou uma consciência crítica e reflexiva do uso da pesquisa das Ciências Sociais em Saúde como um instrumento de formação dos diferentes pesquisadores e pesquisadoras capazes de compreender os seus objetos de pesquisa e os sujeitos envolvidos em contextos inter-relacionais. As condições subjetivas e materiais fazem parte do “fazer pesquisa” e estão imbricadas com as escolhas temáticas e metodológicas adotadas. Dessa forma, a execução da atividade concretizou, para as estudantes, a possibilidade da produção de conhecimento atrelada à valorização da intersubjetividade como elemento fundamental da pesquisa em Ciências Sociais.
Entendemos que a formação na pesquisa em saúde com visão crítica sobre os determinantes sociais apresenta-se como uma ferramenta relevante diante das relações das desigualdades de gênero em seus contextos diversos. Afinal, as discriminações de gênero relacionadas a tantas outras identidades sociais existentes – como raça, etnia, classe, orientação sexual, geração – criam iniquidades e interferem nos desfechos em saúde individual e coletivamente.
Assim, como pesquisadoras, reconhecemos que as abordagens teórico-metodológicas não estão isentas de produzir, perpetuar ou mesmo negligenciar os múltiplos processos discriminatórios que, no contexto brasileiro, se estruturam e são estruturados, historicamente, nas nossas relações sociais. Salientamos que não estamos eximidas da responsabilidade de construir ou desconstruir preconceitos, mas atentas à possibilidade de reconhecer que outras realidades possam compor o mundo em que vivemos, com oportunidades iguais para todas as pessoas.
Agradecimentos
Às docentes do Instituto de Saúde Coletiva (ISC-UFBA) que participaram deste exercício de investigação pelo diálogo generoso, aos professores da disciplina e colegas de turma pelos debates e pelas reflexões em sala de aula.
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Santos TQ, Santana RCS, Barbosa RSS, Souza SC, Iriart JAB. Discussões de gênero na formação de pesquisadores em saúde: um relato de experiência. Interface (Botucatu). 2021; 25: e200529 https://doi.org/10.1590/interface.200529
Referências
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1Saffioti HIB. Gênero patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; 2004.
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2Scott J. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Educ Real. 1995; 20(2):71-99.
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3Barreto A. A mulher no ensino superior: distribuição e representatividade. Cad GEA. 2014; (6):52.
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4Haraway D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cad Pagu. 2004; (5):7-41.
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5Velho L, León E. A construção social da produção científica por mulheres. Cad Pagu. 2012; (10):309-44.
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6Farber SG, Verdinelli MA, Ramezanali M. A universidade está contribuindo para a igualdade de gênero? Um olhar sobre a percepção dos docentes de pós-graduação. Rev Gest Univ Am Lat. 2012; 5(4):116-40.
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7Moschkovich M, Almeida AMF. Desigualdades de gênero na carreira acadêmica no Brasil. Dados. 2015; 58(3):749-89.
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8Barros SCV, Mourão L. Panorama da participação feminina na educação superior, no mercado de trabalho e na sociedade. Psicol Soc. 2018; 30:e174090. Doi: https://doi.org/10.1590/1807-0310/2018v30174090.
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9Chauí M. Seminário: Universidade: por que e como reformar? Brasília: Ministério da Educação; 2003.
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10Hooks B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: WMF Martins Fontes; 2013.
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11Brasil. Ministério da Educação. Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos [Internet]. Brasília: Ministério da Educação; 2006 [citado 28 Maio 2020]. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/dados/pp/edh/br/pnedh2/pnedh_2.pdf
» http://www.dhnet.org.br/dados/pp/edh/br/pnedh2/pnedh_2.pdf -
12Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2010.
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13Furlin N. A categoria de experiência na teoria feminista. Estud Fem. 2012; 20(3):955-72. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2012000300025.
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14Furlin N. A experiência da intersubjetividade na pesquisa feminista: perspectivas metodológicas. Educ Pesqui. 2015; 41(4):913-30. Doi: https://doi.org/10.1590/s1517-9702201506129687.
» https://doi.org/10.1590/s1517-9702201506129687 -
15Bourdieu P, Chamboredon J-C, Passeron J-C. A profissão de sociólogo: preliminares epistemológicas. 3a ed. Petrópolis: Vozes; 1999. Primeira parte - a ruptura; p. 23-44.
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16Minayo MCS, Deslandes SF, Gomes R, Neto OC. Ciência, técnica e arte: o desafio da pesquisa social. In: Minayo MCS, organizador. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 21a ed. Lisboa: Vozes; 2002. p. 9-30.
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Editado por
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
23 Jul 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
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Recebido
27 Jul 2020 -
Aceito
12 Abr 2021