Resumos
Neste artigo, objetiva-se investigar as práticas corporais/atividades físicas e os discursos produzidos pelos usuários do Programa Academia da Cidade em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, em sua articulação com o cuidado integral na Atenção Primária à Saúde. Realizou-se uma pesquisa qualitativa ancorada no estudo de casos múltiplos com triangulação de métodos, envolvendo observação participante e entrevistas semiestruturadas. Buscamos aproximações com a perspectiva da subjetivação em Michel Foucault. Nas duas unidades pesquisadas constatou-se a presença não apenas da forma hegemônica de produção de cuidados em saúde, representada pela noção de atividade física, mas outras que se aproximaram da noção de práticas corporais. Tal fato contribuiu para se assumir a dupla e imbricada noção atribuída às ações produtoras de cuidados em saúde como práticas corporais/atividades físicas. Ambas se constituíram legítimas na produção de subjetividades dos usuários.
Palavras-chave Exercício físico; Atenção Primária à Saúde; Integralidade em saúde
This article investigates the bodily practices/physical activity and discources produced by participants in the City Gym Program in Belo Horizonte, Brazil in relation to comprehensive primary health care. We conducted a qualitative study anchored in multiple case studies using participant observation and semi-structured interviews and drawing on the concept of subjectivation proposed by Michel Foucault. In the two gyms included in this study, the findings reveal the presence of the hegemonic approach to health care, represented by the notion of physical activity, and other approaches that resemble the concept of bodily practices. This contributed to the adoption of a dual interwined notion of health care as bodily practices/physical activity. Both approaches were legitimate in the production of subjectivities of program participants.
Keywords Physical exercise; Primary health care; Comprehensive health care
El objetivo de este artículo es investigar las prácticas corporales /actividades físicas y los discursos producidos por los usuarios del Programa Gimnasio de la Ciudad en Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais, Brasil, en su articulación con el cuidado integral en la Atención Primaria de la Salud. Se realizó una investigación cualitativa anclada en el estudio de casos múltiples con triangulación de métodos, envolviendo observación participante y entrevistas semiestructuradas. Buscamos aproximaciones con la perspectiva de la subjetivación en Michel Foucault. En las dos unidades investigadas se constató la presencia no solo de la forma hegemónica de producción de cuidados de salud, representada por la noción de actividad física, sino también otras que se aproximaron de la noción de prácticas corporales. Tal hecho contribuyó para asumir la doble y superpuesta noción atribuida a las acciones productoras de cuidados de salud como prácticas corporales/actividades físicas. Ambas se constituyeron como legítimas en la producción de subjetividades de los usuarios.
Palabras clave Ejercicio físico; Atención Primaria de la Salud; Integralidad en salud
Introdução
O Programa Academia da Cidade (PAC) tornou-se política pública da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte (SMSA) em 2006, com espaços específicos para desenvolvimento de práticas corporais/atividades físicas (PC/AF) – esportes, ginásticas, danças, lutas, jogos etc. –, na perspectiva da prevenção de doenças e da promoção da saúde. Vinculado às Unidades Básicas de Saúde (UBS), iniciou com unidade-piloto e hoje se insere em todos os nove distritos sanitários dessa capital.
As atividades do PAC são conduzidas, prioritariamente, por profissionais de Educação Física (PEF), mas as usuárias(c) são acompanhadas pelas equipes do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf). Os temas da alimentação e do tabagismo também são contemplados no programa1.
Estudos sobre o PAC em Belo Horizonte apontam avanços significativos em termos de efetividade na produção de cuidados em saúde na perspectiva das PC/AF, alimentação saudável, entre outros2-4. Seus procedimentos metodológicos se amparam em amostragens mais ampliadas, contemplando uma ou mais unidades do programa em diferentes regiões da capital.
Documento da Organização Mundial da Saúde (OMS)5 se constitui em referência internacional à agenda da Promoção da Saúde (PS), com o propósito de enfrentamento das Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) e diminuição de seus agravos. No Brasil, destaca-se o documento da Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS)6,7. Nele, as PC/AF são um dos eixos prioritários nas ações produtoras de cuidados em saúde.
A noção de atividade física utilizada pela OMS tem base biomédica e epidemiológica, associada a um modelo fitness8, com seu imperativo de saúde atrelado ao estilo de vida ativo. Tal perspectiva, frequentemente, reduz o sujeito a objeto e prioriza aspectos quantitativos e individuais em detrimento da busca pelo significado das ações humanas9.
Na PNPS brasileira, esse modelo se associa à noção de práticas corporais, classificadas em esportes, danças, jogos e brincadeiras, lutas, ginásticas, entre outras. Porém, sua construção histórica em diferentes contextos socioculturais sofreu, ao longo do tempo, transformações em seus sentidos e significados10. Na PNPS6, práticas corporais e atividade física apresentam-se lado a lado, separadas por uma barra (“/”), o que pode ser interpretado como um avanço na forma de considerar diferentes sentidos e significados do movimento humano para os sujeitos e seus usos nas práticas e ações em saúde.
No “Glossário temático: promoção da saúde”, há uma definição mais precisa dos dois conceitos. O termo atividade física vincula-se à perspectiva epidemiológica, aos efeitos de programas de atividade física sobre determinadas doenças e fatores de risco. A noção de práticas corporais é definida como:
[...] expressões individuais ou coletivas do movimento corporal, advindo do conhecimento e da experiência em torno do jogo, da dança, do esporte, da luta, da ginástica, construídas de modo sistemático (na escola) ou não sistemático (tempo livre/lazer)11. (p. 28)
Apresenta, portanto, foco mais amplo, envolvendo não somente o indivíduo, mas o conjunto de seus contextos experienciais.
O foco dessa perspectiva, de base epidemiológica, relaciona-se às DCNT, como diabetes, alguns tipos de câncer, doença cardiovascular e hipertensão. Mudanças nos estilos de vida dos sujeitos pertencentes aos grupos de risco (sedentários, obesos, hipertensos, diabéticos) têm sido, constantemente, a tônica principal dos programas de PC/AF12,13. Maciel et al.14 identificaram a hegemonia do discurso biomédico de PEF e usuárias no âmbito da PS no PAC em Belo Horizonte.
Todavia, dados do Ministério da Saúde (MS) apontam que apenas 14,9% dos adultos de capitais brasileiras praticam atividade física em seu tempo livre15. As DCNT e seus determinantes (sedentarismo, alimentação não saudável, tabagismo) caminham ao lado das narrativas em prol da atividade física como principal fator de cura desses males contemporâneos.
Nesse contexto, o cuidado integral na Atenção Primária à Saude (APS) tem se constituído um importante desafio nas práticas e serviços em saúde pública no país16. O cuidado integral, princípio estruturante do Sistema Único de Saúde (SUS) e requisito básico para a afirmação da cidadania, pressupõe considerar várias dimensões do processo saúde-doença, não se restringindo apenas à doença como eixo de intervenção. Requer outras atitudes dos profissionais de saúde a fim de qualificar a escuta, a interpretação de outros sentidos, intenções, desejos, presentes na fala dos sujeitos17.
Relacionar PC/AF e saúde demanda estabelecer diálogos com o campo epistemológico que tem sustentado historicamente sua legitimidade social – caso das ciências biológicas e das ciências humanas e sociais, como se indica na PNPS. Reconhecer os saberes que os sujeitos historicamente mobilizam em suas experiências com tais práticas se constitui legítimo em função de sua representatividade cultural, identitária, estética, ética e lúdica. Torna-se, portanto, desafiador dialogar com essas dimensões no intuito de refletir sobre os discursos produzidos nesse entrelaçamento.
As PC/AF podem ser compreendidas não como dicotomia antagonista, ou seja, do “ou”; e sim do diálogo possível entre si, do “e”, tal como pensado por Deleuze e Guattari18; do entrelaçamento entre macropolítica (de base quantitativa e epidemiológica) e micropolítica (de base singular e acontecimental).
Boa parte da literatura internacional sobre atividade física tem por foco a avaliação quantitativa de seus resultados, segmenta-se na análise de impactos em diferentes etapas da vida, além de o conceito de PS enfatizar a prevenção de doenças crônico-degenerativas, ancorado na ideia de fator de risco19. Por outro lado, uma literatura crítica de base foucaultiana aponta o crescimento da ação estatal por meio de dispositivo governamental alicerçado nos estilos de vida individuais. Mayes20 cita a multideterminação social da qual a escolha individual é apenas uma resultante, sugerindo um aprofundamento analítico nessa orientação focada na dimensão individualizada da ideia de estilo de vida.
Trabalhamos com a noção de subjetivação, com base em Foucault, em processos pelos quais se constituem subjetividades, considerando-se que o sujeito tem um processo de constituição, uma história, não é originário ou essencial; o sujeito se constitui de formas distintas, em diferentes instâncias, relações, ao longo de sua existência21.
Há um duplo sentido à subjetivação em Foucault. Inicialmente, o autor observava a subjetivação como prática de coerção, de objetificação. Posteriormente, investigou esse processo também como “cuidado de si”: um modo de relação consigo por meio de práticas que permitem constituir-se como sujeito de sua própria existência22.
Foucault23 define o ocupar-se consigo como referido à posição do sujeito em relação ao que o rodeia, aos objetos de que dispõe, aos outros com os quais se relaciona, ao seu corpo, enfim, a ele mesmo. A subjetivação é:
[...] indissociável de um trabalho que sujeitos individuais e coletivos realizam sobre si mesmos, a partir de elementos que compõem seu ambiente cultural, social e institucional24. (p. 18)
Parte considerável do que se produz em termos de práticas e ações na APS reflete, em certa medida, uma perspectiva hegemônica e macropolítica da saúde, na qual predomina uma forma binária, classificatória, de elaboração de intervenções25. Entretanto, alguns elementos que compõem essa dimensão macro se apresentam diluídos e ressignificados no plano dos encontros constituintes da micropolítica, dimensão que opera no detalhe, em seu caráter imprevisível, bem como por ruídos, linhas de fuga, as quais estão entrelaçadas à dimensão macro, produzindo novos processos de subjetivação.
O objetivo desta pesquisa foi investigar as PC/AF e os discursos produzidos pelas usuárias do PAC em Belo Horizonte, em sua articulação com o cuidado integral na APS. Destacamos sua relevância no diálogo estabelecido com o campo das ciências humanas e sociais, perspectiva que considera as PC/AF construções sociais, bem como ações produtoras de cuidados em saúde. Outro elemento se refere ao protagonismo e à visibilidade conferidos aos sujeitos entrevistados, os quais vêm se constituindo como coautores dessa política pública.
Metodologia
Trabalhamos com triangulação de métodos: observação participante e entrevistas semiestruturadas com usuárias do PAC26. Realizamos estudo de casos múltiplos, o qual permitiu a busca de informações por meio de diversos olhares sobre uma realidade27. Tal realidade se evidenciou aqui, na perspectiva das unidades pesquisadas.
Na observação participante, o pesquisador coleta dados por meio de sua inserção no cotidiano do grupo, organização que estuda, além de instaurar conversas com alguns ou todos os participantes dessa organização, buscando interpretar ações, práticas, narrativas dos sujeitos pesquisados28.
Duas unidades foram investigadas: a unidade-piloto e uma mais recente, cujo processo de articulação das ações no âmbito do cuidado integral na APS se encontrava mais avançado, segundo os técnicos da SMSA. As informações a respeito do funcionamento, das características e demais especificidades do PAC foram se delineando no decorrer do processo de pesquisa. Tal perspectiva se iniciou após a aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa da SMSA do município.
Utilizamos a “amostra por aprofundamento-contraste”, cuja finalidade teórica se baseia na “comparação” de duas instituições com características diferentes29. Como contraste, três categorias foram analisadas nas unidades pesquisadas: sentido e modos de uso das PC/AF; discursos produzidos pelas usuárias a respeito do PAC; limites e possibilidades de articulação das PC/AF no PAC com as demais ações do cuidado integral na APS. Essas categorias se estruturaram pela relação dedutiva em consonância com os objetivos desta pesquisa30.
Entre 13/06 e 13/12/2016, contabilizamos aproximadamente 120 horas de observações: de 13/06 a 06/09 na Unidade 1 e de 17/08 a 13/12 na Unidade 2, com frequência de três a quatro dias por semana e quatro horas diárias em média nas unidades. O “diário de campo” – caderno de registro – configurou-se importante dispositivo de produção textual das observações, representando o cotidiano das aulas nas duas unidades do PAC.
Não seguimos, a priori, um roteiro estruturado de observação. Com base nas primeiras visitas às unidades, direcionamos nosso olhar a alguns elementos presentes na dinâmica das aulas: 1) espaços utilizados, materiais, temas; 2) diálogos estabelecidos entre usuárias e entre elas e os PEF, antes, durante e após as práticas; 3) metodologia utilizada nas aulas; 4) intervenções dos sujeitos envolvidos; 5) outras práticas distintas do enredo proposto das aulas.
O preenchimento do diário de campo ocorreu durante e no fim das aulas, no interior das unidades, com o registro de questões, problematizações e demais apontamentos reflexivos emergentes para subsidiar nossas análises.
Entrevistamos 37 usuárias nas duas unidades. As entrevistas foram devidamente agendadas no decorrer das observações, durante as aulas, e realizadas, posteriormente, nos espaços disponíveis das unidades.
Nosso roteiro de entrevistas semiestruturadas abordou: tempo que frequenta o PAC; demais atividades cotidianas; o que pensa sobre as ações do PAC; como se sente/se percebe, antes, durante e após as práticas do PAC; o que mais tem feito por sua saúde.
Utilizamos a Análise do Discurso de Fairclough31 pela relação entre as condições de enunciação e os conteúdos do enunciado. Essa análise contempla a dimensão tridimensional do discurso, envolvendo o texto em si, as práticas discursivas e a análise da prática social da qual o discurso é parte – neste caso, a formulação de políticas governamentais de saúde. Fairclough31 reconhece essas dimensões como inevitavelmente superpostas. Utilizamos o critério de saturação empírica quanto à coleta de dados referentes às observações e entrevistas.
Este estudo se constitui recorte de tese de doutorado, intitulada “Práticas Corporais/Atividades Físicas e Cuidado Integral no Programa Academia da Cidade em Belo Horizonte-MG”, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pesquisa aprovada pelo CEP dessa instituição, CAAE 52627416.1.3001.5140, parecer: 1.508.009. A pesquisa não recebeu financiamento. Um dos autores recebeu bolsa Capes/Prosup.
Descrição geral das duas unidades
A Unidade 1 acolhia usuárias que integraram as primeiras intervenções em saúde nesse equipamento, em 2006. Congrega uma população com Índice de Vulnerabilidade em Saúde32 (IVS) muito elevado, situando-se em uma área cujas condições urbanas de infraestrutura se apresentaram problemáticas, limitações em termos de equipamentos públicos e privados de lazer, entre outros.
Na Unidade 2, inaugurada em 2012, o trabalho vem se constituindo na interface com todo o processo de construção de legitimidade do PAC como estratégia de produção de cuidados em saúde no município. Com IVS médio e elevado risco, localiza-se em área mais privilegiada em termos de infraestrutura urbana.
A adesão ao PAC se dava por encaminhamento dos Centros de Saúde (CS), via médicos, demais profissionais das equipes de Saúde daFamília (eSF), equipe do Nasf e demanda espontânea.
As turmas dividiam-se em quatro subgrupos, conforme classificação de risco e protocolo do PAC: subgrupos A1 e A2, usuárias que não apresentavam restrições ao exercício físico; B1 e B2, algumas restrições e cuidados por meio dos seguintes acometimentos: artrose, osteoporose, hipertensão, AVC, diabetes, infarto, entre outros.
A composição das turmas nas unidades apresentou similaridades referentes à classificação de risco utilizada. Havia a predominância de mulheres, em torno de 90%, e maioria de idosas. Quanto ao espaço, na Unidade 1 as PC/AF ocorriam na “sala de atividades” e no entorno, com a caminhada/corrida. A Unidade 2 contava com espaço ampliado (galpão), somando-se ao canteiro central em frente para a caminhada e corrida.
Ambas as unidades funcionavam de segunda a sábado, das 7 às 11 horas, tempo de uma hora por aula, com dois PEF em cada unidade. Na Unidade 1, seis turmas distribuídas em duas configurações de frequência ao longo da semana: 2ª, 4ª e 6ª; e 3ª, 5ª e sábado. Na Unidade 2, oito turmas, quatro em cada um dos respectivos grupos. A frequência aos sábados apresentou-se reduzida nessas unidades. O contingente por turma na Unidade 1 variou de seis a 27 usuárias; na Unidade 2, de 28 a 45.
O maior contingente de usuárias na Unidade 2 demandou ampliação do número de aulas, intensificando os processos de trabalho dos respectivos PEF: 31 aulas semanais. Cada turma era dividida considerando-se dois espaços utilizados: o galpão e o canteiro central da avenida. No fim da primeira metade do tempo da aula, ocorria a troca dos grupos nesses espaços.
Na Unidade 2 era comum a presença de estagiários de cursos da área da Saúde vinculados a universidades públicas e privadas. Havia uma auxiliar de serviços gerais que, além de outras atribuições, acompanhava usuárias com problemas de locomoção para atravessarem do galpão ao canteiro central, e vice-versa, durante a troca de grupos.
As aulas seguiam protocolos do PAC em relação ao tema: a) aula motivacional: atividades rítmicas/danças, entre outras práticas de cunho aeróbico/circuito aeróbico, as quais aconteciam na primeira metade da aula; b) aula de carga/força: exercícios físicos localizados com sobrecarga (pesos, caneleiras, bastões com ou sem pesos), para membros superiores e inferiores na primeira metade da aula ou circuito de carga/força.
Em relação às aulas, no âmbito das PC/AF vivenciadas, em ambas as unidades havia aproximações com o modelo biomédico e o fitness8, comumente veiculado em academias privadas de ginástica, entre outros. Esse modelo se constituiu predominante tanto nos relatos dos profissionais quanto na estrutura das aulas.
Sentidos e modos de uso das PC/AF nas unidades pesquisadas
A respeito das aulas observadas, constatamos distintas percepções e comportamentos das usuárias quanto à realização das práticas em ambos os temas, motivacional e carga, conforme registro em nosso diário de campo:
[...] A seriedade era predominante em boa parte do grupo na execução desses exercícios, salvo nos momentos de brincadeiras de algumas usuárias. Houve queixas a respeito do cansaço, além de dores em diferentes partes do corpo.
(Notas do pesquisador, aula de carga, Unidade 1)
[...] Algumas usuárias combinavam movimentos semelhantes ao samba; outras, além de executarem os exercícios ritmados, cantavam as músicas, ampliando-se o clima de alegria presente nesta aula.
(Notas do pesquisador, aula motivacional, Unidade 1)
[...] Algumas usuárias realizavam os exercícios e dançavam ao mesmo tempo, o que faziam também nos breves intervalos para a troca das estações do circuito. Diferentes músicas na aula contribuíam para proporcionar um clima mais descontraído ao ambiente.
(Notas do pesquisador, circuito de carga, Unidade 2)
O formato de aula motivacional descrito na Unidade 1 não se evidenciou com frequência durante as observações, predominando o modelo similar ao descrito na aula de carga. Na Unidade 2, o circuito se efetivou como forma de organização na maioria das aulas, independentemente do tema.
A sisudez observada nos semblantes das usuárias durante o primeiro momento das aulas de carga, com ou sem o uso da música, associa-se ao predomínio de uma tecnologia mais estruturada (leve-dura) na produção de cuidados em saúde33. “[...] tecnologia não vinculada apenas a equipamento tecnológico, mas a um certo saber fazer e a um ir fazendo, que inclusive dão sentido ao que será ou não ‘a razão instrumental’ do equipamento” (p. 34).
Nos intervalos, brincadeiras alegravam o ambiente, bem como diferentes demandas aos PEF. Na continuidade das aulas, ainda no primeiro momento presenciamos, algumas vezes, a interrupção total ou temporária por parte de algumas usuárias na Unidade 1, devido a cansaço, mal-estar, entre outros, além de significativa diminuição de intensidade conferida às práticas.
Uma particularidade da Unidade 2 eram as orientações pontuais dos PEF na execução dos exercícios, os quais implicavam as usuárias quanto à postura e à execução corretas dos movimentos, além de instigá-las na compreensão daquilo que faziam. Segundo um desses profissionais, era “uma forma de provocar a atenção do grupo naquilo que está sendo feito”.
O segundo momento, denominado caminhada/corrida, configurava-se em ambas as unidades como espaço/tempo de diálogos concomitante à caminhada. Temas recorrentes eram questões familiares, receitas culinárias, futebol, condições de saúde, dietas.
Na Unidade 1, o uso dos equipamentos da Academia a Céu Aberto, de forma “não autorizada”, ocorria com certa frequência por algumas usuárias durante a caminhada. Na Unidade 2, no canteiro central da avenida, havia bancos de madeira sombreados por árvores onde algumas usuárias corriqueiramente conversavam entre si em substituição à caminhada.
O encerramento – roda do bom-dia – configurava-se em agradecimentos, contação de casos, informes, lembretes de aniversários e reforço sobre manutenção de um estilo de vida ativo e saudável: “não fiquem dormindo muito... some não... cuidado com a alimentação...”. Em seguida, davam as mãos, contavam de um a três balançando os braços e proferiam “bom dia!”, seguido de palmas.
Nas aulas observadas, constatamos similaridades, em ambas as unidades, em dois momentos distintos. O primeiro, mais formalizado, com o protagonismo do PEF. Fundamentava-se na repetição coletiva e concatenada de movimentos. Mesmo assim, havia usos diversos por parte de usuárias da Unidade 2, dissonantes da rigidez metodológica nas ações. Diferentemente do protocolo estruturado da aula, no caso das práticas empreendidas por elas, “não se trata de pensar práticas de liberdade na ausência ou recusa de normas, mas no uso autônomo das mesmas”24 (p. 14).
Já no segundo momento, estabelecia-se maior protagonismo das usuárias. Observamos um reordenamento no saber-fazer nas aulas, de uma tecnologia leve-dura a uma tecnologia leve, na qual se instaurara certa diluição de alguns elementos formais. As diferentes maneiras pelas quais algumas usuárias se exercitavam davam outro acento à aula, favorecendo novos processos de subjetivação33.
A existência de dois momentos distintos no âmbito das PC/AF nas aulas observadas nos aproxima do entendimento foucaultiano de uma “coexistência conjunta”24, de práticas de sujeição, “pela extração da verdade que lhe é imposta”34 (p. 243), aqui demonstradas na primeira metade da aula; bem como as práticas de si, caracterizadas, no momento da caminhada/corrida. Havia um tipo próprio de relação com normas extraídas da cultura, tanto na subjetivação assujeitada quanto na autônoma 24.
Diferentes sentidos e modos de uso foram evidenciados pelos sujeitos em ambas as unidades como formas legítimas de constituírem suas subjetividades atreladas aos cuidados em saúde. As propostas formalizadas de trabalho podiam desencadear outros usos e processos por parte das usuárias.
Os discursos produzidos pelas usuárias sobre o PAC
A pergunta norteadora das entrevistas abordou “os motivos que as levaram a participar do PAC”. Quase unanimidade das respostas, em ambas as unidades, versou sobre promover saúde, prevenir doenças, sedentarismo, alterações nos exames, indicação médica. Formulações próximas do discurso biomédico centradas na ideia de risco35.
Essas discursividades contribuem para a produção de subjetividades, a construção dos sistemas de conhecimento e crença e identidades sociais, e a ampliação das relações sociais entre os sujeitos34.
[...] prevenção e saúde...eu acho que o exercício é muito bom para a saúde.
(U1, Unidade 1)
[...] eu vim pra cá porque eu tava meio preguiçoso, para melhorar a saúde, a condição de vida.
(U20, Unidade 1)
[...] precisa fazer algum exercício... porque a gente fica muito sedentário, parado, sem fazer nada... vai se acomodando demais.
(U2, Unidade 1)
[...] eu acho que foi uma boa... tenho dores assim que incomodam... mas com ginástica acho que melhora um pouco...
(U3, Unidade 2)
[...] o primeiro deles foi a minha obesidade... problema no joelho... eu fui, assim... quase obrigada a procurar uma atividade...
(U6, Unidade 2)
Na Unidade 1, somente duas usuárias mencionaram a realização de outras práticas ao longo de suas histórias de vida (Grupo de idosos e Futebol). Sete usuárias na Unidade 2 mencionaram PC/AF anteriores. Isso pode ser entendido pelo perfil de maior vulnerabilidade da Unidade 1 e, portanto, menor acesso a práticas de autocuidado.
[...] os dias que às vezes eu não posso vir por um motivo ou outro, pelo trabalho, eu costumo ir até a avenida fazer caminhada... também.
(U1, Unidade 2)
[...] depois que eu fiquei sabendo que escada não era ruim para mim... aí eu subo escada, desço...
(U18, Unidade 1)
[...] tô largando o cigarro... apesar que aperta tem hora... eu vou lá dou dois traguinhos só e deixo pra lá, entendeu? Depois que eu comecei a fazer... a vontade tá sumindo...
(U20, Unidade 1)
[...] tenho procurado controlar um pouco a questão de estresse... assim... procurar além da atividade de lazer da academia... fazer outras atividades de lazer... e trabalhando também a questão da alimentação... seguir uma alimentação mais balanceada...
(U8, Unidade 2)
Percebemos que o PAC tem contribuído para estimular o acesso a outras práticas no âmbito da produção de saúde. A maioria das usuárias é consciente sobre pautas da PS, como as mudanças em seus estilos de vida. Desse modo, a saúde pública tem proporcionado um conjunto de repertórios interpretativos para que os indivíduos neles se apoiem em seu trabalho de produção de subjetividade36.
Mudanças na alimentação e percepções de melhorias nas condições de saúde reforçam a parceria entre PC/AF e alimentação saudável quanto aos cuidados em saúde, além de representarem duas das prioridades de enfrentamento às DCNT, enfatizadas hegemonicamente no documento da OMS5 e na PNPS6,7. Lupton destaca uma instigante questão a respeito: “até que ponto os discursos oficiais de manutenção da saúde e responsabilidade pessoal são aceitos e assumidos pelos indivíduos na construção da subjetividade e nas práticas da vida cotidiana?”36 (p. 23).
[...] tenho notado nesses quatro meses que eu estou aqui... muita diferença... no corpo, no sono... até para alimentar a gente alimentava muito mal... eu nunca... não tinha costume de comer frutas... agora já somos obrigados praticamente... o corpo já pede...
(U3, Unidade 1)
[...] além dos exercícios físicos, estou tentando... melhorar... a condição alimentar... cortei o açúcar... cortei gordura... cortei o sal... depois que eu fiquei sabendo que estou com os rins funcionando só setenta por cento... aí eu passei a beber água forçado...
(U4, Unidade 2)
[...] juntamente com a alimentação... também controlada... aqui também eu tive umas aulas sobre isso e tudo... me ajudou muito...
(U4, Unidade 1)
[...] alimentação... tem que mudar... eu senti que a saúde vai melhorando a partir do momento que você muda sua maneira de alimentar...
(U13, Unidade 1)
As mudanças em questão remetem ao elemento formador como constituinte do processo de subjetivação, possui elementos de coerção e de uso mais autônomo das normas. É evidente sua dimensão corretiva, que se estabelece sobre um fundo de determinados hábitos que necessitam ser modificados23.
As melhorias nas condições de saúde reforçam o entendimento foucaultiano quanto ao cuidado de si, à intensificação das relações sociais, cujo destaque é a figura do outro. As práticas de si passam a integrar um conjunto de relações sociais diversas nos planos institucional e coletivo37.
Os relatos seguintes indicam que as relações com o PAC transcendem os efeitos meramente biológicos sobre o corpo, outros sentidos e usos do equipamento:
[...] eu me sinto bem não só pela atividade, mas pelo convívio... acho superimportante... esse convívio, ele me faz bem...
(U1, Unidade 1)
[...] fico feliz de vir aqui... é o momento pra me alegrar... conversar... os amigos... as colegas também... a gente sorri... é ótimo...
(U10, Unidade 2)
[...] e mais do que a atividade física eu considero a socialização... a interação com outras pessoas... você estabelece laços de amizade... esse relacionamento... esse comprometimento com as pessoas... eu acho assim indispensável pra minha vida.
(U11, Unidade 2)
[...] quando eu chego aqui eu esqueço... distraio... faço meus exercícios... saio daqui renovada.
(U7, Unidade 2)
O cuidado de si corresponde ao sujeito de ações, cujo modo de ser é autoconstituído em exercícios ou práticas que o transformam continuamente37. Também é compreendido como conjunto de práticas e experiências a se constituírem na relação com o outro, elaboradas para a transformação de si mesmo24.
Constatamos limitações na execução das PC/AF, como contraponto ao discurso linear que atribui ao exercício físico a ideia de saúde. Como relatamos anteriormente, algumas usuárias abandonavam as aulas durante a realização das práticas alegando indisposição, cansaço ou algo semelhante. Tais enunciados suscitam tensionar o modelo metodológico de PC/AF predominante nas unidades, o qual se sustenta de forma hegemônica no viés biomédico concomitante ao fitness.
Os discursos produzidos pelas usuárias e resumidamente elencados neste estudo evidenciam o PAC como espaço significativo de produção de subjetividades associadas aos cuidados em saúde. Os usos que fazem da academia, para além das PC/AF, reforçam a importância desse equipamento para o cotidiano desses sujeitos. Se em um primeiro momento o discurso da aquisição de saúde via exercício físico aparece como prerrogativa legítima para “estar ali”, tal perspectiva se dissolve em outras apropriações que se estabelecem com o programa.
Os sujeitos foram entrevistados nos ambientes das unidades. Nesse sentido, no âmbito dessa produção discursiva, há duas perspectivas contextuais: o contexto situacional de um enunciado e o contexto verbal (sua posição em relação a enunciados que o precedem e o seguem)31. Tal dimensão deve ser também considerada tanto em relação à forma da constituição dos discursos quanto à sua interpretação nesta pesquisa.
Limites e possibilidades de articulação das práticas no PAC com ações de cuidado
Diferenças entre os respectivos IVS das unidades constituíram-se fatores de limitação e possibilidades de integralidade dos cuidados em saúde. Nos relatos da gestão, complexas demandas de saúde concernentes às precárias condições de vida de um contingente significativo da população configuraram-se um dos aspectos limitadores ao cuidado integral. Também há a sobrecarga de trabalho dos profissionais do Nasf na Unidade 1.
O desconhecimento do PAC e do Nasf quanto às intervenções no âmbito das práticas e ações de cuidados em saúde, a limitação de abrangência da Unidade 1 na comunidade, entre outros, constituíram-se fatores problemáticos à expansão do cuidado integral no território adscrito.
Contudo, a ampliação de ações com o Cras local configurou-se promissora, com grupos de idosas, excursões, parcerias com outras secretarias do município.
A pouca adesão aos grupos e outras ações promocionais na APS no CS 1 pôde ser constatada nas entrevistas com as usuárias. Apenas nove afirmaram pertencer a algum grupo do Nasf ou frequentar ações agregadas ao CS; desse total, elas mencionaram participação em ações vinculadas ou não à APS: igreja, consultas médicas, controle no CS.
Para Scherer et al.38, a complexidade da construção do trabalho coletivo em saúde, como a produção do cuidado nos encontros entre um coletivo de profissionais e usuários, atrela-se: à relação entre sujeitos individuais e coletivos; à história das profissões de saúde e seu exercício no cenário do trabalho coletivo institucionalizado; ao jogo político e econômico que delimita o cenário das situações de trabalho.
A efetividade das práticas grupais na APS vincula-se a arranjos como o perfil da equipe de profissionais, as características da população adscrita, a dimensão microcultural do respectivo território de abrangência, entre outros39.
Na Unidade 2, a construção de parcerias com universidades congregou articulações entre ações do PAC e outras da APS. O gerente do CS 2 envolvia-se em iniciativas com a integralidade no território: visitas às aulas na unidade; disponibilidade na acolhida a estagiários; apoio a iniciativas que priorizem o atendimento coletivo. Em nossas visitas ao CS 2, o gestor se posicionava solícito para viabilizar o trabalho da pesquisa. Tal envolvimento se deu a despeito das inúmeras e complexas demandas cotidianas no CS, entre outras limitações impostas aos processos de trabalho nesse equipamento.
Nas visitas ao CS, bem como na Unidade 2, era corriqueira a presença de estagiários em intervenções, reuniões, com participação dos PEF e demais profissionais da saúde envolvidos. Ações preventivas e promocionais foram realizadas com frequência concomitante às aulas nessa unidade: saúde bucal e saúde do idoso com residentes de Terapia Ocupacional da UFMG.
Na unidade havia um calendário de ações de PS que contava com um tema abordado em cada mês. No CS 2, essas ações tinham continuidade com outros estagiários e profissionais da residência multiprofissional, além do Nasf, o que ampliava as demandas de trabalho de um dos PEF.
As articulações visando ao cuidado integral entre o PAC e demais ações da APS encontram-se em processo de construção no território adscrito ao CS1, com avanços importantes no Cras local. Na Unidade 2, tal perspectiva vem se consolidando de forma significativa em detrimento da construção de importantes vínculos entre a gestão do CS2 e os demais profissionais de saúde.
Considerações finais
Nesta pesquisa, observamos a presença tanto de uma forma hegemônica e legitimada de produção de cuidados em saúde, representada pela noção de atividade física, quanto outras, instauradas pelas usuárias, que se aproximavam da noção de práticas corporais. Tal fato contribuiu para se assumir a dupla e imbricada noção atribuída às ações de cuidados em saúde, PC/AF, que, ainda que apresentem distinções em relação aos sentidos que as orientam, mostraram forte conexão.
A ampliação do repertório de PC/AF, para além das que foram legitimadas nas unidades, sugere diálogos mais próximos com a cultura local, com destaque à incorporação de brincadeiras, danças populares, jogos, o que possibilita contemplar outras dimensões do humano, que se somam às de viés biomédico. Essa perspectiva reforça a necessidade de maior aproximação e diálogo da APS com o território.
Tal proposta demandaria a instauração de mudanças mais incisivas no programa que implicariam transformações nos processos de trabalho, bem como na formação continuada dos profissionais envolvidos, com destaque ao protagonismo excessivo na condução das ações produtoras de cuidados em saúde nas unidades. Isso pode suscitar reflexões em relação à formação em saúde em sua dimensão dialógica com o SUS, perspectiva não contemplada em função dos limites deste estudo.
Por fim, reiteramos que o contingenciamento de recursos financeiros no setor da saúde municipal se constituiu fator limitador da continuidade mais efetiva do cuidado integral em ambas as unidades pesquisadas. Tal questão tende a precarizar os processos de trabalho dos profissionais, com considerável ampliação da demanda de atribuições à APS e significativos prejuízos à qualidade dos serviços de saúde nesse setor.
Agradecimentos
Ao IFMG Campus Betim pela concessão de licença para a realização do doturorado.
Aos sujeitos da pesquisa: profissionais de saúde da SMSA de Belo Horizonte e usuários(as)do Programa Academia da Cidade.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
21 Jun 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
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Recebido
24 Nov 2020 -
Aceito
20 Abr 2021