Open-access O impacto da Covid-19 em grupos marginalizados: contribuições da interseccionalidade como perspectiva teórico-política

The impact of Covid-19 on marginalized groups: the contribution of Intersectionality as theoretical and political perspective

El impacto de la Covid-19 en grupos marginalizados: contribuciones de la interseccionalidad como perspectiva teórico-política

Resumos

A pandemia de Covid-19 traz desafios aos governos e às sociedades. Os efeitos da pandemia nas regiões marcadas por extrema desigualdade social e nas populações com maior vulnerabilidade e precariedade das condições de vida são deletérios, o que demanda referenciais teórico-metodológicos para compreender seus impactos e construir estratégias para enfrentá-la. Nesse ensaio crítico, aborda-se a interconexão de marcadores sociais da diferença na produção das desigualdades que atingem os grupos sociais já marginalizados – como usuários de drogas em situação de rua, trabalhadoras sexuais, trabalhadoras domésticas e jovens LGBTQIA+ – e analisam-se as potencialidades da perspectiva interseccional nas análises e na construção política do enfrentamento do problema.

Palavras-chave Infecções por coronavírus; Interseccionalidade; Pessoas em situação de rua; Trabalhadoras sexuais; Minorias sexuais e de gênero


The Covid-19 pandemic poses a number of challenges to governments and society. The pandemic has detrimental effects on regions characterized by deep social inequality and the most vulnerable populations, leading to the need for theoretical and methodological frameworks to help understand its impacts and build strategies to address them. This critical essay addresses the interconnection between social markers of the difference in the production of the inequalities that affect marginalized social groups, such as homeless drug users, sex workers, domestic workers and the young LGBTQIA+ community, and analyzes the strengths of the intersectional perspective for the analysis of problems and construction of policies to tackle them.

Keywords Coronavirus infections; Intersectionality; The homeless; Sex workers; Sexual and gender minorities


La pandemia de Covid-19 presenta desafíos a los gobiernos y a las sociedades. Los efectos de la pandemia en regiones señaladas por extrema desigualdad social y en las poblaciones con mayor vulnerabilidad y precariedad de las condiciones de vida son perniciosos, lo que demanda factores referenciales teórico-metodológicos para comprender sus impactos y construir estrategias para enfrentarla. En este ensayo crítico se abordan la interconexión de marcadores sociales de la diferencia en la producción de las desigualdades que afectan a los grupos sociales ya marginalizados, como usuarios de drogas en situación de vivir en la calle, trabajadoras sexuales, trabajadoras domésticas y jóvenes LGBTQIA+, y se analizan las potencialidades de la perspectiva interseccional en los análisis y en la construcción política del enfrentamiento del problema.

Palabras clave Infecciones por coronavirus; Interseccionalidad; Personas en situación de vivir en la calle; Trabajadoras sexuales; Minorías sexuales y de género


Introdução

Em dezembro de 2019, o mundo tomou conhecimento de casos de uma síndrome gripal na cidade de Wuhan, interior da China. Os casos até então notificados relacionavam-se à infecção por um novo coronavírus, o SARS-CoV-21. Em 11 de março de 2020, já com mais de 118 mil casos notificados no mundo e 4.291 mortes, a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretou a situação de pandemia global da Covid-19 – doença causada pelo novo vírus. Desde então, o mundo acompanha um quadro sanitário dramático seguido de crise econômica e social.

A vulnerabilidade à Covid-19 só pode ser compreendida à luz dos contextos históricos-sociais2. Todos são suscetíveis à infecção pelo SARS-CoV-2, mas as possibilidades de se proteger da exposição ao vírus, bem como das consequências sociais negativas da pandemia, não são igualitárias, mas sim mediadas pelas condições de vida e de acesso a bens, serviços e direitos sociais3.

No Brasil, temos uma cidadania hierarquizada: uma pequena parcela da população é privilegiada no acesso aos recursos sociais, jurídicos, econômicos e simbólicos. A diferenciação e desigualdade se reproduzem no espaço público e privado4. Em situações de emergência como a pandemia, as políticas de proteção ou contenção nunca são de aplicação universal, como bem observa Santos5. Elas são seletivas e voltadas à proteção dos corpos socialmente valorizados e necessários para a economia.

Passados meses desde as notificações dos primeiros casos em diversos países, as medidas de distanciamento físico seguem preconizadas, com impactos econômicos, sociais e de saúde. No Brasil, são inúmeros os desafios nesse sentido, em um contexto de governança pública caracterizado pela égide neoliberal, crescente negligência do Estado, negacionismo das evidências científicas nas tomadas de decisão política, disseminação de notícias falsas e congelamento do financiamento da Saúde Pública6.

Para populações marginalizadas e com dificuldades no acesso aos direitos humanos e sociais básicos, tal quadro se torna um problema ainda mais sério7. No plano das experiências concretas e cotidianas na vida das pessoas, a possibilidade de se permanecer em casa o máximo possível evidencia diferenças e desigualdades expressas em diversos níveis: quem de fato pôde permanecer em casa, sem que isso trouxesse impactos substanciais em sua renda e trabalho? Quais foram as respostas construídas para aqueles em situação de rua, por exemplo, e que não possuem casa? Quais os efeitos e impactos psicossociais das situações de quarentena, distanciamento físico e isolamento?

A experiência social diante dessa pandemia agudiza e expressa profundas desigualdades sociais em diversos níveis8-10 e com impactos diferenciados, que podem ser considerados a partir de uma ordem geopolítica global.

Boaventura Santos analisa que as medidas de quarentena e distanciamento físico afetam de forma diferenciada determinados grupos sociais. Tais grupos têm em comum uma situação social de vulnerabilidade, que precede à pandemia e é agravada por esta, e compõe o que este autor denomina de Sul. O Sul, nessa perspectiva, não designa um espaço geográfico, mas sim uma metáfora do sofrimento humano injusto por resultar de exploração capitalista e discriminações racial, sexual e de gênero5.

Ao refletir sobre a situação desses coletivos sociais, Santos5 seleciona alguns para ilustrar e aprofundar suas questões: as mulheres; os trabalhadores precários, informais e os considerados autônomos; os sem abrigo/populações de rua; os trabalhadores da rua; os moradores das periferias pobres das cidades – que moram em favelas, casas barreadas, caniços, entre outros –; os internados em campos para refugiados, imigrantes indocumentados ou populações deslocadas internamente; as pessoas com deficiência; e os idosos.

A partir de suas colocações, poderíamos nos perguntar: o que as reflexões que o autor aponta revelam de semelhanças e particularidades entre esses coletivos? Se tomarmos o coletivo “populações de rua”, quais poderiam ser as diferenças, por exemplo, entre homens e mulheres vivendo nessa situação? E entre as próprias mulheres, quais marcadores sociais e condições poderiam circunscrever diferentes situações de vulnerabilidade e de acesso a possibilidades de enfrentamento dessas situações?

Embora se reconheça que as desigualdades de classe social são decisivas para determinar os impactos da Covid-19, é fundamental notar que, na intersecção entre este e outros marcadores sociais da diferença – como gênero, raça/cor, geração e sexualidade –, visibilizam-se contextos, circunscritos a determinados segmentos sociais, e a reprodução de desigualdades, opressões e impactos específicos.

Considerando a articulação dos marcadores sociais na produção dos processos sociais de dominação e opressão e seus impactos no processo saúde-adoecimento, a interseccionalidade tem sido alçada como abordagem teórico-metodológica promissora nas análises que interrogam a dinâmica e a complexidade das interações dos marcadores sociais nos níveis individual, institucional e estrutural11.

Neste artigo, busca-se discutir a articulação de marcadores sociais da diferença e desigualdades potencializadas pela pandemia em grupos socialmente marginalizados de uma perspectiva interseccional aplicada à saúde12,13.

Para situar a reflexão proposta nesse ensaio teórico, elegemos o contexto do município de São Paulo e quatro grupos socialmente marginalizados: trabalhadoras domésticas, usuários de drogas em situação de rua, trabalhadoras sexuais cisgênero da região central da cidade e jovens LGBTQIA+ que vivem com os pais ou responsáveis. Essa opção se deu principalmente em função das experiências anteriores das autoras em pesquisas e/ou militância junto a esses segmentos. Adotamos, ainda, um recorte temático ao escolhermos tratar especificamente de questões relacionadas ao trabalho e à moradia. A partir de informações levantadas em fontes secundárias, tais como jornais de grande circulação e páginas de organizações sociais na internet, esses temas destacam-se como de grande relevância para analisar as experiências concretas desses sujeitos durante a pandemia.

Neste ensaio teórico, buscamos levantar questões e reflexões que possam subsidiar futuras investigações empíricas e contextualizadas, que analisem políticas e práticas e evidenciem exemplos particulares concretos que mostrem a complexidade e o aprofundamento de desigualdades e processos de marginalização, que podem ter sido escancarados no curso da pandemia, bem como estratégias de enfrentamento e resistência tecidas e articuladas por grupos e movimentos sociais. Com isso, pretendemos contribuir para amplificar o debate sobre a produção de análises culturalmente e ético-politicamente informadas pelo referencial da interseccionalidade.

Com o devido cuidado para não abordar os grupos aqui situados de forma homogênea e atomizada, pretende-se neste ensaio refletir sobre o impacto da pandemia a partir de situações concretas e particulares. Com isso, consideramos possível a reflexão sobre novas situações de desrespeito aos direitos e à dignidade de pessoas nesse contexto pandêmico, bem como agravamentos de suas condições sociais articulados às estruturas de poder e às instituições governamentais que não os contemplam em suas especificidades nos quase inexistentes planos de enfrentamento da pandemia.

Diferenças, desigualdades e interseccionalidade: situando posições sociais frente à Covid-19

O termo “interseccionalidade” foi cunhado por Kimberlé Crenshaw, em 1989, com o objetivo de denunciar a invisibilidade jurídica das múltiplas formas de opressão, em um contexto específico de violações de direitos vivenciadas por mulheres negras. Nos últimos anos, a perspectiva foi ganhando força na análise de desigualdades e opressões concretas e imbricadas, bem como em questões de justiça social, poder e governo, sendo considerada um instrumento de luta política14-16.

O referencial teórico-político da interseccionalidade agrupa diferentes abordagens teórico-metodológicas que visam apreender a articulação de múltiplas diferenças e desigualdades dos marcadores sociais, os quais atuam de forma dinâmica, fluida e flexível a partir de contextos históricos particulares, em relações de poder situacionais e segundo processos estruturais de opressão e privilégios17. Nesse sentido, as análises interseccionais buscam ser sensíveis às diferenças que (re)produzem desigualdades em contextos específicos sem, necessariamente, exigir uma análise que abarque todos e quaisquer marcadores sociais. Enquanto algumas autoras defendem a necessária articulação de gênero, classe e raça nas pesquisas e ações políticas embasadas pela interseccionalidade18, outros consideram que não é preciso, necessariamente, a análise de vários marcadores em toda e qualquer análise social, mas sim considerar aqueles que se mostram relevantes contextualmente19. Ademais, algumas autoras apontam para a necessária distinção entre categorias de diferenciação e sistemas de discriminação, ou, em outras palavras, entre diferença e desigualdade. Os marcadores, assim, não são vistos apenas como formas de categorização limitantes e determinantes, mas oferecem também recursos e potência17,19.

No atual cenário de agravamento das condições de vida em decorrência da pandemia, figuram sujeitos cujos corpos estão mais expostos, particularmente, em razão das condições desiguais de suas existências20. A partir da leitura interseccional das condições de vida de grupos e coletivos sociais vivenciando situações de injustiça social, é necessário tanto se deslocar da obrigatoriedade de trabalhar com marcadores predefinidos quanto buscar compreender a dinâmica destes nas análises de situações concretas, para não supor de antemão a preeminência de uma categoria sobre as demais. Mais do que apontar quais seriam os grupos mais excluídos ou estimular uma competição por políticas e recursos estatais14, destaca-se a importância de se refletir sobre como, em certas situações, as diferenças e particularidades visibilizadas remetem à desigualdade, opressão e/ou exploração, bem como a formas de agência política e possibilidades de enfrentamento das questões suscitadas17. Em outras palavras, a perspectiva interseccional possibilita não apenas enxergar as experiências de vida concretas de determinados coletivos, mas também articulá-las às estruturas de poder que (re)produzem e intensificam opressões nas relações entre afetos; subjetividades; contextos; e relações sociais e políticas21.

Trabalho: particularismos e transversalidades entre domésticas e profissionais do sexo

O trabalho é um direito a ser assegurado e é fundamental nas diversas formas de inserção social dos sujeitos. A sua precarização, desencadeada por inúmeros processos e intensificada mundialmente no contexto neoliberal, provoca impactos na vida social e formação identitária dos sujeitos e coletivos22.

No Brasil, a perda de direitos pelos trabalhadores avançava, antes da pandemia, em função da lógica neoliberal assumida pelo Estado. Momentos cruciais foram a aprovação da Lei n. 13.467/2017 e da Emenda Constitucional 03/2019, relacionadas, respectivamente, ao fim de direitos garantidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e aos acordos entre Estado e empresários para mudar as regras de aposentadoria para parcela significativa da população.

Além disso, a pandemia de Covid-19 é o maior evento a atingir a economia brasileira desde que essas mudanças entraram em vigor, e dados de junho de 2020, da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios emergencial23, já demonstram que 18,6 milhões de pessoas não procuraram trabalho por conta da pandemia diretamente ou por falta de vagas na localidade em que vivem.

A Rede de Políticas Públicas e Sociedade Covid-19, que monitora as políticas públicas e as respostas sociais à pandemia no Brasil, avaliou que 23,8 milhões (25%) dos trabalhadores brasileiros estão nos segmentos mais vulneráveis aos impactos econômicos da pandemia. As restrições à circulação, a falta de postos de emprego e o Auxílio Financeiro Emergencial (AE), estipulado pela Lei n. 13.998 de 2 de abril de 2020, teriam levado desempregados a desistirem de procurar nova ocupação. No entanto, as parcelas do AE são insuficientes para cobrir os custos de vida da maioria das famílias dos beneficiários. Ademais, ao obrigar o cadastro via internet e por celular para solicitar o benefício, o Estado ignora 7,4 milhões de pessoas elegíveis que não vivem em domicílios com acesso à internet24.

Por essas e outras razões, parte dos 38 milhões de trabalhadores informais do país enfrenta a crise em condições ainda mais precárias – são pessoas que contam exclusivamente com seu trabalho como meio de subsistência e não acessam as políticas de renda24. Esses trabalhadores precisam escolher entre se exporem ao Covid-19, com suas potenciais consequências de adoecimento e transmissão a outras pessoas, ou ficarem sem ocupação e benefícios25.

Entre o universo de trabalhadores em ocupações precárias, correndo o risco de ficar sem renda nesse momento, elencamos duas categorias profissionais, exercidas majoritariamente por mulheres, considerando-se a heterogeneidade interna que as constitui: empregadas domésticas e trabalhadoras sexuais. Apoiadas em uma análise que leve em consideração a articulação de diferenças e desigualdades que podem circunscrever as experiências e relações concretas, nesse recorte específico do mundo do trabalho, é possível levantar questões que possam inspirar o desenvolvimento de investigações empíricas e apontar para demandas de políticas sociais que levem em conta os particularismos e as similitudes que as atravessam.

Para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), trabalhador doméstico é a pessoa que presta serviço doméstico remunerado em dinheiro ou em benefícios, em uma ou mais unidades domiciliares. A ocupação é representada por 94,5% de mulheres, em sua maioria pretas e pardas (62%); de baixa escolaridade (43%); e com idade entre quarenta e sessenta anos (64%)26. Entre as diaristas, 42,7% são chefes de família e a imensa maioria não contribui para a previdência social por falta de recursos mínimos para a sobrevivência e, assim, não conta com auxílio-doença, auxílio-desemprego ou aposentadoria. Em 2018, 41,2% das diaristas ficaram sem vínculo empregatício, tendência em crescimento devido à crise econômica27.

Segundo a BBC News Brasil, um estudo realizado pelo Instituto Locomotiva, em meados do mês de abril, revela que 39% dos empregadores de diaristas dispensaram-nas sem pagamento, e 23% dos empregadores de diaristas e 39% de mensalistas afirmaram que suas funcionárias continuam trabalhando normalmente, mesmo durante o período de distanciamento físico. Esse quadro indica que muitas trabalhadoras domésticas estão sem renda e sem condições de atender às necessidades básicas de suas famílias. Há ainda as que estão atuando e precisam se deslocar pela cidade em transportes públicos, colocando em risco a si mesmas, seus familiares e seus empregadores.

Se os dados do IBGE apontam para maior presença de mulheres negras e de baixa escolaridade nessa categoria profissional, investigações empíricas e interseccionais poderiam ajudar a compreender os efeitos desses marcadores articulados, em termos de poder, nas experiências concretas e cotidianas dessas mulheres, considerando-se também as especificidades locorregionais brasileiras. Tal análise é fundamental para se escapar de generalizações sobre o que seria o universo que compõe o contingente de mulheres que exercem trabalho doméstico e pode apoiar a implementação de políticas e programas específicos, visando à construção de respostas mais efetivas às suas necessidades e demandas sociais e trabalhistas no contexto da pandemia.

Quanto às trabalhadoras sexuais cisgênero, a diminuição de renda com a eclosão da pandemia atingiu praticamente todos os grupos em maior ou menor intensidade28-30, seja pela diminuição no número de clientes ou pela impossibilidade de elas irem trabalhar.

A imensa heterogeneidade dos contextos de trabalho e das condições de vida das mulheres que vivem da prostituição no Brasil inspira a necessidade de análises circunscritas a contextos específicos. Na presente discussão, destacamos a situação das mulheres que exercem o trabalho sexual na região da Luz, no município de São Paulo, historicamente marcada pela prostituição de rua ou pela presença de estabelecimentos com condições precárias de trabalho31,32.

Já no início do período de distanciamento físico em São Paulo, que durou de março a julho de 2020, uma reportagem publicada pelo jornal Folha de São Paulo33 chamou a atenção para os impactos que as restrições impostas trouxeram para as trabalhadoras sexuais dessa região, em termos da insegurança gerada pelo esvaziamento das ruas, do fechamento das casas e prédios de prostituição e dos parques públicos – como o Parque da Luz, bastante conhecido como local de prostituição de mulheres acima de quarenta anos. Além disso, os novos pontos estabelecidos nas ruas em frente aos prédios, ou nas ruas ao invés dos parques, têm provocado a reorganização das relações de poder no circuito da prostituição, trazendo questões que repercutem para além do período da pandemia.

Muitas mulheres passaram a trabalhar no entorno do parque ou em frente aos locais onde já trabalhavam, mesmo se expondo ao vírus e a todas as formas de violência associadas ao contexto de escassez de clientes - desde pressões para cobrar valores mais baixos até disputas com colegas por determinados pontos nas ruas.

Algumas trabalhadoras sexuais mais idosas, que às vezes também trabalham como empregadas domésticas diaristas para compensar o baixo rendimento na prostituição, foram afetadas duplamente, pois essas vagas passaram a ser mais concorridas devido à alta do desemprego.

Em contrapartida, associações e grupos autônomos de trabalhadoras sexuais organizaram ações imediatas para distribuir cestas básicas, máscaras, álcool em gel e cartilhas com orientações sobre prevenção à Covid-1934, mas os impactos sobre a vida dessas mulheres ainda demandam respostas e articulações de proteção social por parte do Estado.

Certamente, as vulnerabilidades específicas e as potencialidades de enfrentamento da situação a médio e longo prazos variam em função do lugar ocupado socialmente por essas mulheres. Classe social, raça/cor, geração e escolaridade são marcadores sociais relevantes para compreender esse lugar e empreender análises mais aprofundadas sobre o contexto.

Por fim, embora não seja o objetivo aprofundar o debate acerca das mulheres trans, vale ressaltar como identidades e orientações sexuais não normativas produzem diferentes formas e níveis de opressão e segregação social em contextos de prostituição, que certamente são agravados no contexto de pandemia. Essas mulheres estão sujeitas a relações mais precárias de trabalho e maior violência, em virtude da discriminação e inconformidade face aos padrões hegemônicos binários impostos pelas normas socialmente estabelecidas para os gêneros e sexualidades.

Direito à moradia digna e segura na pandemia: usuários de drogas em situação de rua e jovens LGBTQIA+

O direito à moradia digna foi estabelecido em 1948 pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e ratificado no Brasil pela Constituição Federal de 1988. Entretanto, no país há inúmeras expressões de violação desse direito, haja vista a expressiva quantidade de pessoas que vivem em situação de rua, ou de populações que moram em condições precárias.

O distanciamento físico para conter a transmissão do vírus foi adotado na maioria dos países afetados pela pandemia35, visando à proteção individual, à desaceleração do contágio da população e evitar a consequente insuficiência dos leitos hospitalares. Entretanto, o apelo para ficar em casa, medida sanitária preconizada nesse momento, traz à tona a situação daqueles sem moradia estável, que só encontram como resposta do poder público o abrigamento coletivo ou a institucionalização. Além disso, mesmo entre quem tem o direito à moradia parcialmente assegurado, nem todos encontram segurança em suas casas.

Na análise de impactos psicossociais articulados a questões relativas à moradia, destacamos aqui dois grupos: usuários de drogas em situação de rua e jovens LGBTQIA. Esse destaque não significa que consideramos que estes sejam mais vulneráveis, mas que a reflexão sobre suas situações concretas, situações de vida e moradia, apoiada em uma lente interseccional, pode ajudar a complexificar discursos e práticas de atenção psicossocial, considerando-se a importância de construção de respostas abrangentes que contemplem demandas singulares de indivíduos e coletivos.

São múltiplas e complexas as relações que se podem estabelecer entre usos de substâncias psicoativas, vulnerabilidade social e os impactos sanitários e sociais da pandemia do coronavírus. Em diversos países, tem-se considerado a importância de se garantir o cuidado integral às pessoas que usam drogas nesse momento, elencados entre os grupos populacionais que podem apresentar maior vulnerabilidade à infecção e ao adoecimento pelo novo coronavírus por uma série de fatores e agravos à saúde que podem estar associados ao uso de drogas. Além disso, trata-se de uma população marginalizada, estigmatizada e que encontra maiores barreiras ao acesso e permanência nos serviços de saúde9,36.

Mas “pessoas que usam drogas” não constituem um grupo social homogêneo. Nesse sentido, apontamos aqui para a visibilização de uma população que se reconhece na articulação entre usos de drogas e situação de vulnerabilidade e desfiliação social, particularmente aqueles que se encontram em situação de rua e que se mostram especialmente vulneráveis aos impactos da pandemia. Enquanto se propagam nas redes sociais recomendações para atendimentos remotos (via contato telefônico, recursos da internet ou aplicativos no celular) com profissionais especializados de saúde mental, além do estímulo para a adoção de estilos de vida saudável e práticas que auxiliem a aliviar o estresse e a fissura, como pressupostos para o cuidado com população usuária de drogas em tempos de crise, parece-nos fundamental apontar para a realidade desse grupo específico. Os reflexos da pandemia nas condições concretas de vida e saúde dessa população – somadas a outras dimensões importantes como a desfiliação social, inserção precária no mercado de trabalho e redes sociais fragilizadas – acentuam desigualdades existentes em suas experiências cotidianas, em suas relações sociais e no acesso a direitos fundamentais.

Ainda que a heterogeneidade seja bastante característica neste grupo social, é possível apontar para uma sobreposição de marcadores de diferença, desigualdade e exclusão social quando comparado com os dados da população brasileira geral. Esses marcadores estão presentes e interseccionados nas experiências de vida da maioria das pessoas que transitam e moram nas ruas, posicionando-as em lugares sociais de desqualificação e marginalização. Na intersecção entre estar em situação de rua e fazer uso de drogas, evidencia-se essa população marginalizada socialmente, seja por pertencer aos circuitos de trânsito e moradia nas ruas, seja pelas condições de trabalho nas franjas entre os legalismos e ilegalismos urbanos e, por isso, é inserida no circuito prisional37-39.

No Brasil, na contramão de diretrizes internacionais, há um crescente e massivo investimento para manutenção das comunidades terapêuticas, compreendidas como entidades privadas e sem fins lucrativos que se propõem a acolher pessoas com problemas associados ao uso ou dependência de substâncias psicoativas, em caráter voluntário, em regime residencial transitório40. Todavia, é bastante questionável essa priorização em detrimento da expansão dos serviços comunitários de atenção psicossocial e há extensas denúncias de violação de direitos humanos na situação das pessoas institucionalizadas nesses estabelecimentos, além de problemas sanitários bastante evidentes e que podem ser fatores de risco adicionais para o contágio e o adoecimento41.

Questionar a segregação e o encaminhamento das pessoas para instituições fechadas, nesse momento, é defender a vida e a dignidade humana. As desigualdades já presentes em suas experiências cotidianas podem se aprofundar ainda mais nesse contexto, especialmente se levarmos em conta que a institucionalização como resposta estatal prioritária acentua sua permanência em um circuito de exclusão e estigmatização. Assim, parece fundamental – especialmente nesse contexto – defender abordagens que privilegiem o acesso à moradia e a outros direitos fundamentais para se pensar o cuidado para essa população.

Porém, se parece fundamental defender a formulação de políticas e programas que assegurem o direito à moradia, também é importante considerar os impactos do distanciamento físico e das restrições de circulação para aqueles cujas dinâmicas internas e relacionais em suas casas podem se configurar como fatores de risco – e não de proteção – para sofrimento psíquico e violência. Se há uma preocupação quanto aos impactos psicossociais para a toda a população, com estudos apontando para aumento de sintomas ansiosos, depressivos e de consumo de álcool e outras drogas na população em geral, ressalta-se a necessária compreensão desses impactos sobre grupos específicos e a necessária construção de abordagens que contemplem suas necessidades e especificidades42-45.

Nesse contexto, daremos ênfase aqui aos efeitos das experiências de quarentena, do distanciamento físico e das restrições de circulação nos espaços habituais de trabalho, lazer e sociabilidade entre a população LGBTQIA+. Considerando a importância do cuidado em se evitar generalizações ao agrupar as distintas experiências que podem compor esse grupo, a reflexão sobre situações que podem ser vivenciadas nesse contexto pode ajudar a evidenciar a forma como a pandemia acentuou vulnerabilidades já existentes e experiências de marginalização, sofrimento e injustiças.

Resultados preliminares de uma pesquisa nacional realizada pelo coletivo #VoteLGBT sobre os efeitos da crise do coronavírus sobre as pessoas LGBTQIA+ mostram que esse segmento apresenta maiores índices de desemprego e problemas de saúde mental quando comparados ao restante da população46. No mesmo estudo, 10% dos LGBTQIA+ citaram problemas no convívio familiar e, desses, um em cada dois tem entre 15 e 24 anos, chamando a atenção para esse recorte geracional. É importante destacar também que, no Brasil, registrou-se um significativo aumento de violência doméstica esse ano, ressaltando-se os índices de violência contra mulheres e pessoas LGBTQIA+47,48.

Há de se considerar que a rua e os espaços públicos são historicamente lugares potenciais para sociabilidade, encontros, trocas afetivas e consolidação de identidades na população LGBTQIA+. Com frequência, não é no espaço doméstico ou familiar que gays, lésbicas, pessoas trans, queers e não binárias encontram acolhimento49,50.

A necessidade de permanecer no espaço privado traz à tona disputas relativas às hierarquias de gênero e sexualidade, expressas no binarismo e na heterossexualidade, e pode desencadear o adoecimento da população LGBTQIA+: o estranhamento com as pessoas que dividem a mesma moradia, os processos de invisibilização de suas demandas ou mesmo violências explícitas são questões que podem chegar a motivar tentativas de suicídio45.

Outro aspecto importante é que as famílias constituem lócus importante na disputa em torno da ordem cis-hetero normativa. Ou seja, sujeitos cujas performances de gênero não se alinham aos valores hegemônicos correspondentes a seu sexo biológico, para além da orientação sexual, são comumente expostos à retaliação e violência.

A intersecção de gênero e sexualidade com geração evidencia, portanto, uma particularidade possivelmente vivenciada entre os jovens: sua baixa autonomia financeira, mas também a dependência emocional perante os adultos com quem moram. A dependência emocional se expressa em diversas facetas, tais como a “saída do armário”, um mecanismo que regula a vida de gays e lésbicas48,51 e que se reedita em diferentes situações, tanto como momento de revelação da orientação sexual quanto nas diversas situações cotidianas em que se faz necessário relembrar-se enquanto sujeito “desviante”. O contexto de convivência forçada dentro de casa pode ser uma dessas situações.

O distanciamento físico está associado ao aumento dos casos de ansiedade, depressão e estigma na população jovem LGBTQIA+52. Soma-se a isso a dificuldade de acionar as redes de apoio comunitário e social durante a pandemia e a falta de conexão de internet ou de privacidade dentro do próprio domicílio. Considerando-se que a população LGBTQIA+ sobreviveu criando comunidades e redes de suporte, parece possível afirmar que o distanciamento físico atinge outro nível de impacto sobre essas pessoas53.

Ao refletirmos sobre as especificidades vivenciadas por esse grupo, acentuando-se diferenças e desigualdades quando em comparação com a população em geral, também se mostra importante que tais questões possam ser aprofundadas a partir de análises interseccionais. Quais seriam as diferenças que, articuladas às opressões produzidas pela cis-heteronormatividade, podem produzir impactos diferenciados nas experiências e subjetividades de indivíduos e coletivos? Ao buscar se aproximar de histórias de vida e do cotidiano desses jovens, situações concretas e contextualizadas relacionalmente podem ser visibilizadas: quais as diferenças que podem ser percebidas e vividas entre as diferentes configurações familiares e entre jovens com diferentes graus de escolaridade? E entre mulheres brancas e negras? Sem a obrigatoriedade de se utilizar uma lista predefinida de marcadores obrigatórios a serem incluídos, a interseccionalidade deve ser compreendida como uma pergunta em aberto, atenta às produções e configurações de diferenciações sociais e de desigualdades, com a preocupação de sempre contextualizá-las cultural e historicamente15-19.

Considerações finais

Apesar de esforços retóricos governamentais e de setores hegemônicos da sociedade brasileira afirmarem “todos estamos juntos nisso” ou “estamos no mesmo barco”, buscando retratar uma ação democrática do vírus sobre os grupos populacionais, há diferenças substantivas nesse processo. Os impactos socioeconômicos da pandemia se sobrepõem às desigualdades e discriminações estruturalmente existentes em nossa realidade54. Sob uma perspectiva histórica, o estudo de outras situações epidêmicas ocorridas no mundo já ensinou que a tensão social gerada pelas epidemias torna visíveis estruturas latentes e pode revelar como o poder e privilégio de alguns grupos sociais os fazem se sobrepor a outros55.

As diferenças e desigualdades sobre as quais refletimos visibilizam a necessidade de enfrentamento conjunto dos sistemas de opressão, que estruturam e atravessam identidades, experiências e relações sociais. Se determinados grupos já sofriam situações de estigmatização, marginalização e exclusão, a pandemia agudizou esses processos e escancarou necessidades de saúde e sociais. Nesse sentido, parece fundamental afirmar a necessidade de formulação de políticas públicas a fim de assegurar o acesso a direitos fundamentais, a despeito do fundamental desenvolvimento de diversas experiências locais, redes de solidariedade e agenciamentos micropolíticos de resistência e enfrentamento à pandemia. Portanto, as reflexões sobre as condições de vida das pessoas desde uma perspectiva interseccional evidenciam situações e contextos que demandam ações múltiplas, integradas e intersetoriais de forma a enfrentar as iniquidades e desigualdades sociais.

As análises interseccionais configuram um conjunto teórico-político que reúne uma importante diversidade de interpretações e de formulações crescentes no interior da Saúde Coletiva13. Tal diversidade estimula debates e requer a necessidade de explicitar as perguntas feitas às realidades complexas, atravessadas por estruturas de poder e dominação, mas também por resistências e lutas políticas por reconhecimento e direitos. Nesse sentido, diferentes abordagens teórico-políticas interseccionais apresentam potencial para a compreensão e o enfrentamento das desigualdades historicamente construídas.

As particularidades dos grupos socialmente marginalizados que sofrem os efeitos decorrentes da pandemia demandam medidas de proteção à vida, mas sem que o enfrentamento de uma opressão identificada incida sobre o fortalecimento de outra. Para tanto, as desigualdades não podem ser enfrentadas de forma compartimentalizada ou hierarquizada, mas sim a partir da compreensão de como se interconectam e articulam, em um determinado contexto específico.

  • Marques ALM, Sorentino IS, Rodrigues JL, Machin R, Oliveira E, Couto MT. O impacto da Covid-19 em grupos marginalizados: contribuições da interseccionalidade como perspectiva teórico-política. Interface (Botucatu). 2021; 25(Supl. 1): e200712 https://doi.org/10.1590/Interface.200712
  • Errata
    No artigo O impacto da Covid-19 em grupos marginalizados: contribuições da interseccionalidade como perspectiva teórico-política, com número DOI: 10.1590/Interface.200712, publicado no periódico Interface – Comunicação, Saúde, Educação, 2021; 25(Supl.1): e200712:
    Onde se lia:
    Isa da Silva Sorentino(b)
    Leia-se:
    Isa da Silva Sorrentino(b)

Referências

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Editado por

  • Editora
    Denise Martin
    Editora associada
    Elaine Reis Brandão

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    9 Out 2020
  • Aceito
    19 Fev 2021
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