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A dinâmica das violências na separação compulsória de mães e filhos em situação de vulnerabilidade

The dynamics of violence in the compulsory separation of mothers from children in situations of vulnerability

La dinámica de las violencias en la separación obligatoria de madres e hijos en situación de vulnerabilidad

Resumos

Este artigo analisa dinâmicas inseridas no processo de separação compulsória de mães e filhos em situação de vulnerabilidade em Belo Horizonte. Trata-se de um exercício cartográfico que pretendeu captar regimes de verdade, práticas de dominação e estratégias de governo para controle da vida de mulheres, em sua maioria, pobres e negras. Foram fontes utilizadas: narrativas de mulheres em situação de vulnerabilidade e trabalhadores da saúde; entrevistas com atores estratégicos; análise documental; e diários de campo. Foram identificados movimentos indutores de segregação inseridos no cotidiano de serviços públicos e outros espaços sociais. Foi possível analisar a relação entre as segregações de determinada produção de mundo e interrogar certezas sobre possibilidades de vida e a produção da maternidade. Esse percurso constituiu oportunidade para dar visibilidade às estratégias de sobrevivência destas mulheres e provocar reflexões sobre a produção de territórios acolhedores para essas pessoas.

Palavras-chave
Política pública; Vulnerabilidade social; Maternidades; Direitos humanos


This article analyzes the dynamics of the process of compulsory separation of mothers from children in situations of vulnerability in Belo Horizonte, Brazil. We conducted a cartographic study to capture regimes of truth, practices of domination, and government strategies to control the lives of these women, who were predominantly poor and black. We used the following techniques: narratives of women in situations of vulnerability and health workers; interviews with key actors; document analysis; field diaries. We identified drivers of segregation embedded in everyday practices in health services and other social settings. It was possible to analyze the segregations determined by a hegemonic way of producing the world and to question certainties about the possibilities of life and motherhood. The findings shed light on the survival strategies used by these women and prompt reflection on the production of welcoming spaces for these people.

Keywords
Public policy; Social vulnerability; Maternity hospitals; Human rights


Este artículo analiza dinámicas inseridas en el proceso de separación obligatoria de madres e hijos en situación de vulnerabilidad en Belo Horizonte. Se trata de un ejercicio cartográfico que pretendió captar regímenes de verdad, prácticas de dominación y estrategias de gobierno para el control de la vida de mujeres, en su mayoría pobres y negras. Las fuentes utilizadas fueron: narrativas de mujeres en situación de vulnerabilidad y trabajadores de la salud, entrevistas con actores estratégicos, análisis documental, diarios de campo. Se identificaron movimientos inductores de segregación inseridos en el cotidiano de servicios públicos y otros espacios sociales. Fue posible analizar la relación entre las segregaciones de determinada producción de mundo e interrogar certezas sobre posibilidades de vida y la producción de la maternidad. Ese recorrido constituyó una oportunidad para dar visibilidad a las estrategias de supervivencia de esas mujeres y provocar reflexiones sobre la producción de territorios acogedores para ellas.

Palabras clave
Política pública; Vulnerabilidad social; Maternidades; Derechos humanos


Introdução

Intervenções de afastamento compulsório de mães e filhos acompanham a história do Brasil desde o período colonial e perduram nos dias atuais reiterando violências, especialmente em relação às vidas de mulheres em situação de vulnerabilidade11 Carajá AF. Diário Cartográfico das mães que perdem seus filhos e filhas pelas mães do Estado: paisagens que se repetem [dissertação]. Belo Horizonte: Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais; 2019.. Nos dias atuais, mulheres conhecidas como mães órfãs têm perdido seus filhos de forma compulsória para o Estado, devido à concepção de ofertarem risco em decorrência de circunstâncias como trajetória de vida nas ruas, uso de álcool e outras drogas, ausência de pré-natal ou negligência/violência22 Souza CMB, Pontes MG, Jorge AO, Moebus RN, Almeida DES. Mães órfãs: o direito à maternidade e a judicialização das vidas em situação de vulnerabilidade. Saude Redes. 2018; 4 Suppl 1:27-36.,33 Jorge AO, Merhy EE, Pontes MG. Introduzindo a pesquisa: uma trajetória de encontros. Saude Redes. 2018; 4 Suppl 1:9-26.. Várias dessas foram meninas também separadas de suas mães e famílias e que, a partir da adolescência, vivenciaram gestações consecutivas com repetidas perdas dos filhos44 Silva RA. Reforma psiquiátrica e redução de danos: um encontro intempestivo e decidido na construção política da clínica para sujeitos que se drogam [dissertação]. Belo Horizonte: Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais; 2015..

Em Belo Horizonte (BH), foram instituídas normatizações entre 2014 e 2016 que facilitaram a retirada de bebês de maternidades pelas mãos do Estado e sem consentimento materno. A Recomendação n. 05/2014 da 23ª Promotoria de Justiça da Infância e Juventude Cível em Belo Horizonte (PJIJCBH) foi dirigida aos médicos, diretores, gerentes e outros responsáveis pelas maternidades e indicava o encaminhamento de recém-nascidos à Vara Cível da Infância e Juventude de BH (VCIJBH) nos casos de negligência, maus-tratos ou em que a mãe fosse usuária de drogas55 Minas Gerais (Estado). Recomendação nº 5/PLIJCBH/MPMG, de 16 de Junho de 2014. Recomendação aos médicos, profissionais de saúde, diretores, gerentes e responsáveis por maternidades e estabelecimentos de saúde. Belo Horizonte: Ministério Público do Estado de Minas Gerais; 2014.. A Recomendação n. 06/2014/PJIJCBH foi encaminhada aos médicos, agentes comunitários de saúde, gerentes e outros responsáveis pela Atenção Básica no município de BH66 Minas Gerais (Estado). Recomendação nº 6/PLIJCBH/MPMG, de 6 de Agosto de 2014. Recomendação aos médicos, profissionais de saúde, Agentes Comunitários de Saúde, gerentes e responsáveis por Unidades Básicas de Saúde. Belo Horizonte: Ministério Público do Estado de Minas Gerais; 2014.. Ela orientou o encaminhamento das crianças à VCIJBH nos casos de mães com interesse em entregar seus filhos para adoção, casos de denúncias de maus-tratos, usuárias de drogas e mães que não fizeram pré-natal. A Portaria n. 03/VCIJBH/2016 dispunha sobre procedimentos para encaminhamento de recém-nascidos à VCIJBH nos casos de suspeita de uma situação de risco para aplicação de medidas de proteção e, caso os profissionais não acionassem esse órgão em 48 horas, eram criminalizados77 Minas Gerais (Estado). Portaria nº 3/VCIJBH, de 22 de Julho de 2016. Dispõe sobre o procedimento para encaminhamento de crianças recém-nascidas e dos genitores ao Juízo da Infância e da Juventude, assim como, oitiva destes, nos casos de graves suspeitas de situação de risco, e sobre o procedimento para aplicação de medidas de proteção. Belo Horizonte: Tribunal de Justiça de Minas Gerais; 2016..

O uso dessas normativas como dispositivos de criminalização constituiu estratégia de governo para ofuscar a responsabilidade do Estado de proporcionar condições de vida dignas às famílias. Nesse cenário, tentativas de controle sobre a vida de mulheres em situação de vulnerabilidade foram reforçadas88 Franco TB. Fobia de Estado e a resistência ao recolhimento compulsório de bebês. Saude Redes. 2018; 4 Suppl 1:85-98.,99 Alves AO. “Quem tem direito a querer ter/ser mãe?” Dinâmica entre gestão, instâncias e ação política em Belo Horizonte (MG) [dissertação]. Campinas (SP): Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas; 2020..

O termo vulnerabilidade remete a momentos de fragilidade nas trajetórias individuais e coletivas das pessoas1010 Routti C, Massa VC, Peres MFT. Vulnerabilidade e violência: uma nova concepção de risco para o estudo dos homicídios de jovens. Interface (Botucatu). 2011; 15(37):377-389. Doi: https://doi.org/10.1590/S1414-32832011005000004.
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e considera múltiplos aspectos da vida social, incluindo relações estabelecidas entre o corpo social e as diversas instituições1111 Ayres JRCM, Calazans GJ, Saletti Filho HC, França Júnior I. Risco, vulnerabilidade e práticas de prevenção e promoção da saúde. In: Campos GWS, Bonfin JRA, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. 2a ed. São Paulo: Editora Hucitec; 2012..

Impedir que mulheres em condições de vulnerabilidade vivenciem a experiência de mãe e filho remete a uma violência com marcas irreparáveis na vida dessas pessoas22 Souza CMB, Pontes MG, Jorge AO, Moebus RN, Almeida DES. Mães órfãs: o direito à maternidade e a judicialização das vidas em situação de vulnerabilidade. Saude Redes. 2018; 4 Suppl 1:27-36.. Melo1212 Melo EM. Podemos prevenir a violência? In: Melo EM. Podemos prevenir a violência: teorias e práticas. Brasília: Organização Pan-americana de Saúde, OMS; 2010. p. 1-24. conceitua violência como qualquer situação na qual há perda de reconhecimento mútuo por parte dos sujeitos, de forma que estes são suplantados à condição de objeto por intermédio de um mecanismo de coerção, como o uso de poder e força física.

Este artigo analisa dinâmicas relacionais que envolvem a separação compulsória de mães e filhos em situação de vulnerabilidade em BH. Ele compreende uma seleção de aspectos que contribuíram para os movimentos indutores da separação de mães e filhos e analisa a relação entre as ações de segregação, seus efeitos e a produção de determinada concepção de mundo1313 Pontes MG. Mães órfãs: produzindo novos olhares a partir de modos de existência e resistência singulares [dissertação]. Belo Horizonte: Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais; 2019..

Narrativas de sujeitos tocados pelas situações de separação de mãe e filho nos convidam a visibilizar regimes de verdade, práticas de dominação e estratégias de governo às quais essas mulheres têm sido submetidas. São evidências de tentativas incessantes de controle sobre a vida do outro e sobre a sociedade, conforme descrito por Foucault1414 Foucault M. Segurança, território e população. Brandão E, tradutor. São Paulo: Martins Fontes; 2008.. Nessa trajetória, buscamos favorecer a produção de diálogos centrados na defesa da vida em todas as suas manifestações e colaborar com a articulação de políticas públicas que garantam a integralidade do cuidado e o direito à maternidade segura e plena.

Métodos

As contribuições apresentadas neste artigo se inserem no âmbito do Observatório de Políticas e Cuidado em Saúde da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e constitui parte das investigações que foram conduzidas durante a produção da dissertação de Pontes1313 Pontes MG. Mães órfãs: produzindo novos olhares a partir de modos de existência e resistência singulares [dissertação]. Belo Horizonte: Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais; 2019., na linha de pesquisa Mães Órfãs.

A cartografia, enquanto ferramenta metodológica, foi selecionada para a abordagem do tema, por se tratar de um modo de rever concepções e dar visibilidade a enunciados sociais à medida que se dedica a acompanhar processos complexos. Trata-se de um modo de romper com olhares mais superficiais acerca de determinadas situações e mergulhar nas intensidades que a heterogeneidade dos encontros humanos é capaz de produzir1515 Romangnoli RC. A cartografia e a relação pesquisa e vida. Psicol Soc. 2009; 21(2):166-173.,1616 Ferigato SH, Carvalho SR. Pesquisa qualitativa, cartografia e saúde: conexões. Interface (Botucatu). 2011; 15(38):662-675. Doi: https://doi.org/10.1590/S1414-32832011005000037.
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. Rolnik1717 Rolnik S. Cartografia sentimental. 2a ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS; 2016. apresentou a produção cartográfica como um modo de expressar movimentos que correspondem a transformações nas formas de se ver e estar no mundo. Nesse processo, o ato de escrever insere-se no método de investigação e vai dando forma a inquietações, lembranças de encontros, lugares e afetos, de maneira que o pesquisador, posto em análise, desloque-se do local instituído de elaboração do conhecimento1818 Bertussi DB, Feurwerker LCM, Merhy EE. Viagem cartográfica: pelos trilhos e desvios. In: Feuerwerker LCM, Bertussi DC, Merhy EE, organizadores. Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes. Rio de Janeiro: Editora Hexis; 2016. p. 48-61. v.1. (Coleção Políticas e Cuidado em Saúde)..

Foi considerada para a produção deste exercício cartográfico uma multiplicidade de fontes: duas narrativas de mulheres separadas dos filhos e duas de trabalhadores da saúde que acompanharam as separações; e 19 entrevistas com atores estratégicos, sendo dez trabalhadores do Sistema Único de Saúde (SUS) de BH (de Nível Central, maternidades, Unidades Básicas e Consultório de Rua), três gestores de maternidades, um representante do Conselho Municipal de Saúde (CMSBH), um representante da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, dois representantes do Conselho Tutelar, um representante do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) e uma professora universitária ligada ao movimento feminista. Também foi realizada análise documental incluindo atas de reuniões cedidas pela Diretoria de Prevenção Social ao Crime e à Violência da Secretaria de Segurança e Prevenção de BH, normativas do Ministério Público (MP) e Poder Judiciário e, ainda, o diário de campo da pesquisadora.

As narrativas foram relatos de experiência produzidos a partir de falas livres dos atores convidados a discorrer sobre suas experiências de vida em relação à separação de mãe e filho, sem grandes interferências da pesquisadora. As entrevistas, por sua vez, foram conduzidas a partir de um roteiro previamente elaborado pelos pesquisadores e não guardavam a mesma liberdade das narrativas. Narrativas e entrevistas, produzidas entre setembro de 2017 e janeiro de 2019, foram audiogravadas, transcritas e, nesse processo, preservadas as formas de linguagem dos atores. Todos esses contatos foram precedidos de explicação sobre a pesquisa, a possibilidade de participarem voluntariamente e a assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido com a garantia do sigilo e confidencialidade. A pesquisa foi aprovada pelos Comitê de Ética em Pesquisa (COEP) da UFRJ, Secretaria Municipal de Saúde de BH e UFMG sob os números CEP 1756736/2014, CEP 1847486/2016 e CEP 2264660/2017, respectivamente.

Resultados e discussão

A situação de abrigamento compulsório de recém-nascidos de mães usuárias de drogas ou em situação de rua aparecia, ao longo do período analisado, como rotina em maternidades públicas de BH. As ações da Promotoria de Infância e Juventude Cível de Belo Horizonte (PIJCBH) e da VCIJBH ao manifestarem um caráter punitivo para essas mães atendiam a interesses de alguns gestores e trabalhadores. Esses atores se sentiam amparados ao perceber nas ações do MP e do Poder Judiciário formas de facilitar e padronizar seu trabalho. Outros atores, entretanto, sentiam-se pressionados e amedrontados diante das imposições. Os interesses alinhados à visão punitiva, protocolar e discriminatória emaranhavam-se ao cotidiano dos serviços.

Uma justificativa comum para a separação de mãe e filho, tanto nas narrativas quanto nas entrevistas e em espaços de discussão sobre o tema mães órfãs, refere-se à impossibilidade de uma mulher em situação de vulnerabilidade criar seus filhos. A condição de vida nas ruas e/ou a existência de um lar considerado precário, bem como o uso de drogas ou a pobreza em si, foram utilizados para fundamentar a necessidade de segregação.

Se chegar numa casa e tiver fogão a lenha é pra retirar o bebê imediatamente.

(Representante do CMDCA ao ouvir um promotor de Justiça)

Então, eu acho que os valores são esses assim, de definir grupos, quem pode e quem não pode. E ao que me consta não é isonômico, eles não fizeram isso em maternidades particulares, só das maternidades públicas.

(Trabalhador do Centro de Saúde 1)

Na maternidade falaram assim: “Mas a gente não sabe se ela vai continuar abstinente. Uma vez usuária de drogas, sempre usuária de drogas”.

(Narrativa de trabalhadora do Consultório de Rua)

Além da pobreza e do uso de drogas, a questão do racismo perpassa de maneira acentuada pelas entrevistas. Em geral, são mulheres pobres, usuárias de drogas e negras que perdem seus filhos. Alguns entrevistados escancaram a existência de interseccionalidade entre essas discriminações:

Então, será que é a droga, acho que tem... ou é também a pobreza, é o fato de ser negro? Então acho que... tem todo nesse bojo aí um preconceito de classe, um preconceito racial.

[...]

É arbitrário, é autoritário e pra um grupo que não tem voz, não tem nome, tem cor e não tem endereço.

(Trabalhador do Centro de Saúde 1)

A defesa de uma concepção tradicional de família também acompanha os julgamentos sofridos por essas mulheres. Uma dificuldade de reconhecimento da diversidade familiar existente e a culpabilização da mãe pela condição de vida1919 Rosato CM. A vida das mulheres infames: genealogia da moral de mulheres usuárias de drogas e/ou em situação de rua [tese]. Recife: Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco; 2018. produzem a suposição de que mães em situação de vulnerabilidade não conseguem cuidar de seus filhos.

Então assim, a minha ideia é de que tenha surgido baseado nesse ideal de família, de sociedade, de mãe, que é muito diferente das mães de classe média... qual mãe de classe média, tem várias alcoólatras, usuárias de substâncias ilícitas, será que essas mães tiveram seus filhos retirados?

(Trabalhador de Centro de Saúde 1)

E tem toda uma concepção de família por trás disso, concepção de núcleos, de doença que passa por osmose de um pro outro, né, tem toda uma ideologia, vamos dizer assim, né, que faz com que o profissional pense daquela maneira.

(Trabalhador de Centro de Saúde 2)

Uma contradição encontrada nas entrevistas refere-se à questão familiar incutida no discurso de quem defende as normativas de segregação. Se, por um lado, defendem um ideal tradicional de família com presença de mãe, pai e crianças, em outro momento, estabelecem a separação de pai e mãe como regra para que a mãe possa ficar com seu filho em abrigo.

E o pai e a mãe queriam estar juntos. Aí eles queriam, estavam com uma proposta para essa criança, deles ficarem num lugar, junto, os três, que não era pra separar os três. Porque a mãe não queria ficar longe do pai, do companheiro dela, né? Ela falava assim “eu não separo do meu companheiro, e não é agora que nós vão separar”. E a proposta das políticas foi separar. E ela se recusou. E eles tiraram o filho dela.

(Trabalhador 1 da Secretaria Municipal de Saúde)

Nesse contexto, a idealização de uma maternidade vinculada ao modelo hegemônico de família é perpassada por construções vivenciadas pelas mães em situação de vulnerabilidade.

Ela cuida da bebê de uma forma tão... Mas é o jeitinho dela de ser mãe. Às vezes ela é meio doidinha. Às vezes ela esquece a mamadeira, às vezes a bebezinha dela fica um pouco assadinha... Aí ela me manda às vezes notícias assim, “Oh, flor, acabei de ir no Centro de Saúde porque eu assei minha bebê”.

[...]

Não tem o jeito certo, né? De ser mãe ou de você cuidar, ou... é isso. É o que ela dá conta, né.

(Narrativa de uma trabalhadora do Consultório de Rua)

Não tivemos sequer a oportunidade de ir com o Zion pra casa. Segundo a sentença, minha mãe apresenta instabilidade emocional, mental e financeira, meu tio [80 anos] passou da idade, e que minha família é desestruturada e que não demonstramos interesse em assumir a guarda do meu filho. (Narrativa da mãe 1)

Os movimentos registrados ao longo deste exercício cartográfico trouxeram pistas de que a invisibilidade dos contextos econômicos, sociais e culturais que envolvem as vidas de mulheres em situação de vulnerabilidade servem a uma razão de mundo na qual as vidas de uns valem mais do que as de outros.

Nesse contexto, a separação compulsória de mães e filhos corresponde a um exercício de poder que despotencializa existências e tenta dirigir a vida no formato neoliberal estrito. A culpabilização individual pela pobreza, a idealização da inferioridade feminina e o racismo estão ligados ao desenvolvimento do sistema capitalista e, por conseguinte, ao liberalismo, ao neoliberalismo e à forma de pensamento que os acompanhou. Nesse cenário, preceitos do pensamento liberal como a estipulação de um direito dito natural, da liberdade comercial e da propriedade privada, que simbolizam uma igualdade fictícia, contribuíram para a produção de um aparelho social excludente e degradante2020 Mbembe A. Crítica da razão negra. Lança M, tradutor. Lisboa: Antígona; 2014..

Springer2121 Springer KW. The race and class privilege of motherhood: the New York Times presentations of pregnant drug-using women. Sociol Forum. 2010; 25(3):476-498. e Silva44 Silva RA. Reforma psiquiátrica e redução de danos: um encontro intempestivo e decidido na construção política da clínica para sujeitos que se drogam [dissertação]. Belo Horizonte: Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais; 2015. denunciaram na elaboração desse estereótipo a montagem de uma defesa que alivia a sociedade e o governo de suas responsabilidades perante os problemas sociais e colabora com a produção de um discurso conveniente à racionalidade neoliberal.

É essa a leitura de mundo que colaborou para a promulgação das Recomendações n. 05 e 06/2014 e da Portaria n. 03/2016. Imaginava-se que, se alguma mãe em situação de vulnerabilidade algum dia produziu alguma violência contra um filho, então, em outro momento, esta ou outra mãe que vivesse situação semelhante poderia produzir violência. A Portaria n. 03/2016 determinou o encaminhamento de recém-nascidos para a Vara Cível da Infância e Juventude quando houvesse a simples suspeita de situação de risco. Essa suposição justificaria a separação. O Poder Judiciário, portanto, resolveria preventivamente a situação de qualquer possibilidade de violência imaginada, entregando recém-nascidos para abrigos. Sem mãe, sem família.

Pelo meu conhecimento essa Portaria inaugurou alguma modalidade de regulamentação, de acolhimento cautelar que é essa ideia da prevenção, acolhimento preventivo. No processo a gente chama essas medidas preventivas de cautelar.

(Representante da Defensoria Pública)

Tal sequência de ideias relaciona-se a um conceito limitado de risco, baseado em uma associação causal entre eventos. Há, contudo, contradições até mesmo dentro dessa perspectiva. É retirado o direito de essas mulheres serem mães antes mesmo delas viverem a maternidade. Além disso, insere-se nesse discurso a lógica de responsabilização individual dos pais sobre a determinação do futuro dos filhos e a definição de uma política intervencionista sobre os mais pobres para tentar garantir o cuidado e proteção das crianças em um modelo estabelecido para a classe média da atualidade2222 Martin C, Leloup X. La parentalisation du social. Lien Soc Polit. 2022; (85):5-18..

Nas entrevistas, algumas das falas mostram essa perspectiva:

A justificativa que eles usaram?! Que o bebê tem risco. Eles partiam também da premissa de que o serviço de saúde não funciona.

(Trabalhador 3 da Secretaria Municipal de Saúde)

[...] então assim, colocou em risco a vida do nascituro, né... então é... o valor que eu vejo muito nessa Portaria foi a proteção integral à criança.

(Representante do Conselho Tutelar 1)

Garantir aí a, conforme tá na Portaria descrito, evitar que crianças fiquem na questão do risco direto, né? Os valores da questão de manter aí a integridade física da criança, né?

(Representante do Conselho Tutelar 2)

Diante das dificuldades vivenciadas por gestantes na condição de uso de álcool e outros drogas e em situação de rua, a possibilidade de conseguir evitar o abrigamento no prazo de 48 horas determinado pela Portaria n. 3/2016 era quase nula. Como comprovar que algum parente se responsabilizaria pelo recém-nascido se muitas vezes não há proximidade? E, se a proximidade existe, como esses parentes conseguiriam comprovar no tempo estipulado todas as exigências do MP?

Gente, ela pariu mas não conseguiu registrar o neném porque ela não tem documentos. É uma criança, eu nunca tinha visto isso, mas é uma criança que até agora... esse é um dos casos que eu acho mais graves [...] está sem nome de mãe, porque a mãe não tem documento. E olha como é absurdo, e o pai... o pai também é usuário. O pai tem documento, o pai quis registrar, mas aí o pai que diz que é pai, a mãe é mãe, todo mundo... mas não pode registrar porque não tem documento, o pai que diz que é pai não pode registrar porque a vó levantou uma suspeita se ele é pai mesmo.

[...]

Tá abrigada e aí... a irmã do pai que já tava tudo organizado pra ela ser a família extensa, ela não pode por que? Se o pai não é pai, não é o irmão dela, ela não é a família extensa. Gente, é não querer, não é?

(Trabalhador do Centro de Saúde 3)

O excesso de burocracia e o prazo insuficiente para levantar possibilidades de manutenção dos recém-nascidos com as famílias biológicas são apenas duas das estratégias utilizadas para dificultar a viabilidade de filhos ficarem com suas mães em caso de vulnerabilidade. Os bebês, rapidamente abrigados após o nascimento, têm negado seu direito ao vínculo familiar. Sofrem a privação de conhecerem a família biológica, de conhecerem as circunstâncias de sua concepção e de viverem próximos àqueles que lhe concederam a vida.

Hoje estamos no dia 10, tem mais de uma semana que essa mãe não vê o filho que ficou nove meses na barriga dela. Isso não é alienação parental? Impedir o convívio? Pra mim isso caracteriza perfeitamente o que tá na lei da alienação parental.

(Representante da Defensoria Pública)

Nesse processo, qualquer vínculo que estivesse sendo produzido entre a mãe e os profissionais da saúde acabava sendo desfeito. Um trabalhador de nível central denunciou:

Fere, compromete a relação de credibilidade de confiança e até de investimento nela como uma possibilidade de um futuro melhor via apoio da Saúde, porque elas vão ser incriminadas, tachadas, julgadas, condenadas, sem direito a um processo adequado de escuta, sem oferta.

(Trabalhador 2 da Secretaria Municipal de Saúde)

Outras questões muito recorrentes nas falas dos entrevistados dizem respeito a uma avaliação de ineficiência do SUS por parte do MP e do Poder Judiciário e à ideia de salvação da criança em detrimento da mãe.

E aí eles trouxeram isso como uma justificativa de “passa pra cá, passa pra Justiça porque aqui a gente vai organizar. Porque vocês não estão dando conta de se organizarem”.

(Trabalhador da maternidade 1)

Por que muitos até contesta a questão do direito da mulher, de tá com o filho porque não foi construído, embora que o direito da criança e do adolescente ele é prioritário, né?

(Trabalhador da maternidade 1)

Na falta de resposta das políticas públicas, a gente opta por salvar o bebê. Porque não tem política para a mulher que usa droga. Como se não tivesse o CERSAM, se não tivesse a Rede de Saúde Mental. “Então a gente opta por salvar o bebê”. E a partir das suas concepções do que é “salvar o bebê”.

(Trabalhador 1 da Secretaria Municipal de Saúde referindo-se a uma promotora que justificava o emprego das normativas)

Nessa perspectiva, a mãe é reduzida a um corpo cujo valor é menor que aquele que ela carrega(ou) no ventre e o sistema de saúde não atenderia em determinadas condições de qualidade do SUS. Vale perguntar: condições para quem? E o que seria essa ineficiência? Em algum momento ela levaria em conta a voz dessas mães? E por que não contribuir para a melhoria dos serviços em vez de retirar filhos de suas mães?

Cabe ressaltar que uma das pessoas entrevistadas argumenta que há serviços disponíveis no SUS que nem são acionados.

Porque se é uma pessoa que precisa de uma abordagem psiquiátrica, psicológica ou de um apoio para um usuário de droga que acionasse esse tipo de serviço porque ninguém acionava. Eles só enxergam o bebê, a mulher não é vista. O prontuário dessa moça que eu acompanho está o tempo todo escrito assim: CID – mãe usuária de droga ou gestante usuária de droga. Não sai um encaminhamento.

(Trabalhador 3 da Secretaria Municipal de Saúde)

Em 2013 e 2014, ocorreram várias reuniões com a presença do MP, Conselho Tutelar e maternidades para discutir as medidas de separação compulsória de mães usuárias de drogas de seus filhos. Nesses encontros, aparece a ideia de produzir um questionário a ser respondido pela mãe quando tivesse contato com o serviço de saúde. De acordo com pessoas entrevistadas que acompanharam essas reuniões, esse questionário serviria como uma forma de a mulher admitir o uso de drogas e, assim, estaria justificada a retirada de seu filho quando nascesse.

Então era uma coisa assim que a mãe corria o risco de se autodenunciar ali. Não tinha nenhum interesse no cuidado com essa mulher, a gente vê claramente isso. Era identificar, assim “usou droga, não tem capacidade protetiva, óbvio”. Era uma conclusão óbvia essa, assim, uma coisa absurda.

[...]

A proposta do questionário era uma coisa completamente sem ética, né. Cê tava convidando a mulher a autorizar, ela autorizar, uma autodelação, ali, pra ela perder o filho. Então. Desvirtuando o lugar da maternidade que é um lugar de cuidado, né?

(Trabalhador 1 da Secretaria Municipal de Saúde)

Uma reflexão relevante acerca dos discursos em defesa da regulamentação de ações de separação compulsória de mães e filhos em situação de vulnerabilidade aparece na fala de uma professora da Faculdade de Enfermagem da UFMG:

Entendo que a Portaria n. 3 institui aos serviços de saúde um lugar contraditório. Dá um poder aos serviços de saúde exacerbado. Diz pra eles, especialmente às maternidades: “Você agora pode, pode denunciar, vocês têm agora a obrigação de nos apontar quem são as mulheres que não fizeram o pré-natal, que apresenta alguma negligência, que usa álcool e outras drogas”. Isso aproxima muito os serviços de saúde ao poder de polícia.

[...]

Os profissionais da Atenção Primária à Saúde que percebem esse processo de saúde e doença e o processo de vida das pessoas como um processo mais complexo se sentiram inclusive destituídos de poder a partir dessa Portaria.

(Professora universitária)

Profissionais passaram a ser responsabilizados judicialmente por não colaborarem com os planos do MP e do Poder Judiciário. Relatórios de assistentes sociais, médicos e psicólogos passaram a ser cobrados com o intuito de verificar o cumprimento de uma ordem. Os relatórios “técnicos” serviam para ratificar uma conduta preestabelecida sem perspectiva de cuidado. Um dos trabalhadores entrevistados, ao comentar a Portaria n. 03/2016, apontou:

Ela deforma uma concepção que o serviço tem de cuidado à saúde e uma linha de condução que é sempre a precedência da manutenção da unidade familiar.

[...]

Contraria toda uma concepção de cuidado de saúde, principalmente da criança e do neonato. Então ele traz uma deformação quando ele coloca a precedência de uma suposta segurança e impõe a retirada, sem maior avaliação do contexto familiar e social dessa guarda e transfere para instituições de abrigamento o cuidado da criança. Então isso altera toda uma concepção de como deve ser o processo ideal de crescimento e desenvolvimento de uma criança.

(Trabalhador 1 da Secretaria Municipal de Saúde)

O MP e o Poder Judiciário utilizam descrições estáticas de um momento de fragilidade das vidas das pessoas para promover a criminalização destas e providenciar a separação dos filhos de suas mães biológicas para sempre. Não há qualquer medida que ampare a mãe ou outros membros da família. Diante dessa situação, para um grupo de trabalhadores, gestores e professores, os movimentos realizados para afastar mãe e filho foram acompanhados de uma inconsistência técnico-científica. A justificativa de fornecer melhores condições de desenvolvimento para bebês que cresceriam afastados de suas mães por serem pobres e/ou usuárias de drogas, para muitos entrevistados, não é válida. Em uma das entrevistas realizadas, esse ponto torna-se explícito:

Na verdade, qualquer cuidado em saúde implica numa aproximação da mãe, a não ser que ele esteja num risco de sofrer violência, por exemplo. Ainda assim, se tiver o risco de sofrer violência, tem uma outra defesa que são dos cuidadores primários. No contexto familiar envolve cheiro, voz parecida… afastar da família seria o último recurso, numa ausência total de recursos.

(Professora universitária)

Vários entrevistados revelaram o sofrimento das mães, familiares, trabalhadores e gestores envolvidos com a situação de separação compulsória:

E vão falando isso pra ela, o juiz vai decidir... e um belo dia o juiz decide, suspende o poder familiar e manda pra família substituta, aí que ela vê que não podia ter ficado esperando. Só que aí já é tarde, juridicamente pouca coisa a gente vai conseguir fazer pra reverter essa situação, nesse pé aí já está consolidado.

(Representante da Defensoria Pública)

Ela disse que fazia uso de álcool, ela perdeu essa menininha, e nunca mais... e agora ela já foi pra adoção. E foi porque agora ela perdeu, realmente, completamente a condição de ser mãe dessa neném, porque o alcoolismo, que não a impedia de ser mãe dos outros dois, a impediu depois da perda dessa neném, de ser mãe mesmo. E hoje ela é uma paciente em acompanhamento no AD, está grávida de novo, muito mal, não está bem, tá muito mal, ela não... a filhinha dela que já era a filha que ela cuidava, matriculada na UMEI, com tudo, cartão de vacina em dia, foi retirada dela.

[...]

O que antes era completamente possível hoje está muito difícil.

(Trabalhador do Centro de Saúde 3)

Muitas delas engravidam de novo pra colocar dentro de si aquilo que ela perdeu.

(Trabalhador do Centro de Saúde 2)

Esta separação forçada gera problemas de saúde físicos e psíquicos, sofrimento e angústia tanto para a mãe quanto para o bebê.

(Representante do CMSBH)

[...] é assim de serem feridas no mais íntimo da sua dignidade, dos seus direitos fundamentais, que é de ser mãe, de criar esses filhos, né?

(Trabalhador do Centro de Saúde 1)

O desamparo chega a uma situação tão grave que o próprio desejo é suprimido dessas pessoas:

Porque às vezes elas nem veem isso, às vezes elas não demonstram desejo porque elas nem imaginam que isso seja possível, né?

(Trabalhador do Centro de Saúde 1)

Nesse contexto, o abrigamento é apontado como uma solução que transfere para outra instância um “problema” e imputa a ideia de que a decisão não é da mãe. A participação dela não é nem cogitada nesses casos. Em ata da 37ª reunião ordinária da Comissão de Direitos Humanos e Defesa do Consumidor da Câmara Municipal de BH, foram apresentados dados de 177 pedidos de abrigamento de crianças entre 0 e 1 ano, em 2014, em BH. Destes pedidos, 90% são confirmados para abrigamento, demonstrando a expressividade do encaminhamento para adoção em detrimento da construção de possibilidade de integração desses bebês às suas famílias biológicas. Nessa mesma reunião aparece a denúncia de que a PIJCBH, embora tenha o discurso de defesa dos bebês, tem impedido crianças de serem amamentadas e receberem cuidados da mãe biológica.

Em reunião do CMDCA de BH em 2014, também houve manifestação contrária à destituição do poder familiar à revelia e sem defesa por parte da promotoria. Os participantes cobraram melhorias na disponibilização dos dados quantitativos sobre mães em situação de vulnerabilidade e bebês abrigados.

Apesar dessas manifestações, a postura dos representantes da PJIJCBH para produção de uma rede de atendimento para famílias vulnerabilizadas consistiu em afirmar que “mães drogadas” não podem ficar com as crianças após o nascimento, que BH não tem estrutura para receber mulheres para tratamento e que, se a mãe procurar tratamento de alguma forma deve ser estipulado um prazo para avaliação da possibilidade de ela ficar com o bebê. Essa promotoria teve um papel fundamental na não implementação da rede de atendimento às famílias, principalmente por não concordar com a possibilidade de mães e filhos ficarem juntos. A principal justificativa é o aumento da probabilidade de crianças crescerem convivendo com drogas. Não há, por parte da promotoria, nenhum parecer no sentido de acolher mãe, crianças e família extensa. A perspectiva é apenas institucionalizar as crianças.

As mães são, então, penalizadas por imperfeições da rede e, na perspectiva de alguns profissionais, o máximo que se pode fazer é dizer para as mães e famílias: sinto muito! Enquanto isso, avolumam-se casos de bebês saindo das maternidades em sacolas, mães fazendo uso de escadas de incêndio para escapar, mães procurando outros municípios para realização dos partos. Os discursos polarizados dificultam a efetivação de políticas públicas que possam fornecer condições para mãe e filho viverem como sujeitos plenos22 Souza CMB, Pontes MG, Jorge AO, Moebus RN, Almeida DES. Mães órfãs: o direito à maternidade e a judicialização das vidas em situação de vulnerabilidade. Saude Redes. 2018; 4 Suppl 1:27-36..

As pistas da marginalização, do racismo, do higienismo, da judicialização, do medo, do autoritarismo, e de um modelo de saúde ainda protocolar e centrado na figura do médico se sobressaem aos direitos de uma mãe ser mãe e ficar com seus filhos. Um trabalhador de um CS, após anunciar a situação de violação de direitos às quais mulheres em situação de rua estão submetidas, explicou:

Se você for fazer uma escuta assim, o que o sujeito humano quer de imediato? Ele quer não sofrer. Então alguma coisa que angustia você quer dar uma resposta pra resolver a sua angústia. Isso acontece com qualquer profissional não preparado, né? Então eu nomearia isso de, vamos dizer assim, de acabar com o mal-estar.

(Trabalhador do Centro de Saúde 2)

As ações de segregação são conduzidas como mecanismos de tortura que, ao empregar o Outro como objeto, despreza sua dor a ponto de conduzi-la com indiferença2323 Zizek S. Teme o teu próximo como a ti mesmo! In: Zizek S. Violência. São Paulo: Boitempo; 2014.. Mulheres cujas vidas não interessam ao modo hegemônico de produzir mundo são consideradas descartáveis. Seus filhos, no entanto, são entendidos como valiosos para a satisfação de desejos de quem contribui para manutenção desse modelo excludente de sociedade. Uma ordem punitiva previamente estabelecida tenta sufocar possibilidades de mudanças nas vidas de mulheres marginalizadas impondo, dessa forma, uma condição de violência não menos brutal do que a violência que se diz pretender erradicar.

Cabe considerar que, nesse percurso, a recusa de atores do MP e do Poder Judiciário em serem entrevistados representou a perda de oportunidades valiosas de aproximação com modos de pensar que interferem profundamente no contexto de vida de mães e filhos em situação vulnerável. A dificuldade de diálogo ofuscou leituras de mundo e experiências; e impediu a produção de discursos relevantes. Ouvi-los significava percorrer caminhos preciosos para a busca de uma compreensão de uma situação muito complexa. Contudo, o silêncio sugeriu tensões e determinou um rumo para essa cartografia.

Considerações finais

Este artigo procurou dar visibilidade a modos de existência resistentes, que desafiam tentativas de extermínio de vidas não inseridas nos interesses do capital. No percurso de análise, as narrativas e entrevistas colocaram em xeque a percepção de que o Estado violador poderia ser responsável pela segregação sem um consentimento enraizado no cotidiano dos serviços e espaços sociais. Ações violentas contra mulheres e crianças em situações de vulnerabilidade, muitas vezes, não são visíveis aos registros valorativos da sociedade. Diluem-se nas histórias cotidianas da vida e não nos impressiona. São concebidos como contos de passagem que penetram o cotidiano sem ganhar espaço, sem afetar nossa memória. As legislações descritas neste exercício apenas legitimam nossas ideias fantasiosas e, muitas vezes, preconceituosas das pessoas; e podem produzir um apagamento dos múltiplos sentidos que a maternidade e a paternidade podem ter para o ser humano. Investir em diálogos acerca da situação das mães órfãs nos serviços e espaços sociais constitui, dessa forma, conquista cotidiana capaz de potencializar a produção de novos aparatos políticos que possam redesenhar ações de proteção para essas mulheres e seus filhos.

Cabe considerar que as concepções contrárias aos filhos e mães permanecerem juntos foram concebidas como formas de poder e de saber potentes no que tange às interferências que provocaram sobre as vidas das mães, filhos, trabalhadores e gestores envolvidos com a situação. Assim, as experimentações desse exercício cartográfico trouxeram algumas feridas expostas no corpo da sociedade. Nem o Poder Judiciário, nem o setor de saúde conseguem abranger todas as dimensões que circunscrevem essa situação de segregação. Novas leituras dos acontecimentos nas vidas dessas mulheres e de seus filhos tornam-se necessárias para ampliar possibilidades de superar as fraturas nas ofertas de cuidado, desenvolver alternativas de assistência e minimizar as desigualdades sociais que envolvem essa situação.

Vários discursos, prescrições e descrições superficiais levaram mulheres a serem julgadas por incapacidade sem, ao menos, ser concedida a elas alguma oportunidade para que pudessem construir um modo de serem mães. Vale repensar que a impossibilidade de apreender a existência dos sujeitos não nos exime do compromisso de tentar impedir as rupturas desastrosas provocadas pela separação compulsória de mães e filhos.

Os tensionamentos continuam. O reconhecimento das experiências e as problematizações compartilhadas afetam as ações institucionais tanto no SUS quanto no Poder Judiciário. A trama que foi se tornando visível ao longo do processo de escrita deste trabalho perpassou o entendimento de que acontecimentos sociais são misturados às relações de dominação e às inúmeras subjetividades que permitem a reinvenção do capitalismo.

Escutar os ruídos que a situação das mães órfãs provocou nas instituições e nas vidas de mães e filhos convida-nos a cruzar fronteiras que contribuam para escaparmos da captura dos julgamentos meramente morais e preconceituosos. É possível produzir territórios mais acolhedores e potentes para mulheres e crianças inventarem modos de viverem juntos, abrindo a possibilidade de desconstruir atitudes e visões políticas que conduzem à banalidade da vida, e reinventar oportunidades de encontros que façam transbordar afetividades e sujeitos em toda sua potência de vida.

Agradecimentos

Ao Programa de Pós-Graduação em Promoção da Saúde e Prevenção da Violência – Faculdade de Medicina – UFMG.

  • Pontes MG, Braga LS, Jorge AO. A dinâmica das violências na separação compulsória de mães e filhos em situação de vulnerabilidade. Interface (Botucatu). 2022; 26: e210511 https://doi.org/10.1590/interface.210511

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Editado por

Editora
Ana Flávia Pires Lucas D’Oliveira
Editora associada
Carolina Siqueira Mendonça

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    19 Ago 2021
  • Aceito
    20 Maio 2022
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