Em fins de 2020, chegou aos cinemas – e logo em seguida à Netflix – o longa-metragem produzido no Estados Unidos Pieces of Woman, de roteiro e produção do casal húngaro Katá Weber e Kornél Mundruczó. Baseado em uma história real vivida pelos próprios cineastas, o filme traz à tona o luto gestacional, uma morte fetal, uma mulher psiquicamente aos pedaços e o julgamento de uma midwife legalmente certificada. Discorre também sobre temas críticos, pouco explorados e complexos: o abalo emocional diante da morte de um bebê ao nascer; a assistência profissional prestada e a responsabilidade pela escolha de um parto em casa na atualidade.
As primeiras cenas do filme propositadamente não têm cortes. Não passaram por edição e recebem o nome de “uma sequência só”. Trata-se do trabalho de parto experimentado pelo casal em casa e com o apoio de uma parteira – Eva. Dores, insegurança diante do desconhecido, um homem tentando amparar a esposa, uma mulher sentindo-se sozinha, enjoada, arrotando e surpresa diante da intensidade da experiência compõem as primeiras cenas. Vemo-nos diante de um close de sua mão, pendente para fora da banheira, que anuncia o mistério ou prenúncio do que viria. Uma mulher sem experiência de parto. Tudo parecia caminhar bem, a parteira auscultava o bebê com frequência e fez mais de um exame de toque para saber os centímetros de dilatação e posição do bebê. Enquanto arrumava o quarto para o nascimento em si, escuta um som gutural, considerado um indicador de aproximação do período expulsivo.
Eva vai até Martha e lhe sugere caminhar ao quarto. A parturiente se deita sobre a cama e a parteira decide checar mais uma vez os batimentos cardíacos do bebê. Algo a incomoda. Somos expostos à bolsa da parteira, com equipamentos; ao estetoscópio presente em seu pescoço; e ao sonar próprio para monitorar o coração do bebê. Eva diz para Sean, marido de Martha, que se o coração desacelerar novamente, precisarão transferir Martha ao hospital. O marido comenta com Martha, mas ela se recusa a ir ao hospital e diz que o bebê nascerá em casa. Eva usa novamente o sonar e dessa vez diz para Martha: “O bebê precisa nascer agora! Quando vier a contração, empurre”.
Martha empurra e empurra. Vê-se a cabeça do bebê. Pouco depois Yvette nasce, bem, saudável, rosada e chora. É posta no colo da mãe, Sean tira algumas fotos. Estão todos ao redor da criança; quando Eva a vê pelo espelho, a percebe arroxeada. Imediatamente vai até o bebê e passa a lhe fazer uma massagem cardíaca. Pede a Sean que consiga ajuda naquele momento: “Agora!”. O marido sai correndo de bermudas e descalço na direção da rua repleta de neve e se coloca diante de um caminhão de bombeiros.
O parto termina ali e imediatamente somos lançados a algum tempo depois, diante das imagens de uma ponte ainda a ser construída e com o anúncio da data daquele dia. Tem-se a sensação de que o filme jogará luz sobre a segurança do parto domiciliar na atualidade e sobre a capacidade profissional da enfermeira obstétrica ou obstetriz. Nos últimos vinte anos temos assistido no Brasil e no mundo ao crescimento do número de partos domiciliares planejados (PDP), majoritariamente entre as camadas médias da sociedade; bem como a uma onda crítica ao paradigma cesarista vigente, que nos torna recordistas mundiais nessa prática, a despeito das recomendações da Organização Mundial de Saúde. Para além da alteração do espaço para parir e nascer, vemo-nos também diante de novas figuras nas cenas de parto, desestabilizando a ideia de que o parto seria per si um “ato médico”.
Na última década, a Fundação Osvaldo Cruz empreendeu uma primorosa investigação1, ouvindo quase 24 mil mulheres, e alguns de seus resultados foram: o desejo feminino de um parto natural; a persistência de práticas negadas, como episiotomia, por exemplo; a prevalência de violência obstétrica entre mulheres pobres e pretas; e maus-tratos, agressões verbais e prática indiscriminada de cesáreas. Se avançamos em importantes pontos – como a criação do Programa Rede Cegonha2, do Programa Hospital Amigo da Criança3 e Política Nacional de Assistência à Saúde da Mulher4 –, pode-se perceber que o parto em casa adquiriu significados diversos, a depender da origem de seu enunciado. Para as mulheres de camadas médias, tornou-se um “refúgio” e uma proteção contra a violência obstétrica. Para a obstetriz e a enfermeira obstétrica, tornou-se um espaço de atuação profissional independente, tal como ocorre na Inglaterra, Alemanha e Holanda. Para os médicos contrários ao ato, tornou-se uma afronta ao seu conhecimento e a sua prática e, portanto, algo perigoso que colocaria em risco a vida da mulher e do bebê5.
No filme, desde a cena da ambulância, somos remetidos a um futuro próximo. Martha ainda sangra, expelindo restos de parto pela vagina, e seus seios vazam o leite que sua filha não pôde mamar, tendo retornado rapidamente ao trabalho, sob o pretexto: “minha licença acabou”. Para estancar o leite, aplica um saco congelado de ervilhas verdes em seus seios quando chega em casa e, para coletar o sangue uterino do pós-parto, ainda usa calcinhas absorventes geriátricas. Depois da necropsia de Yvette, o legista afirma como causa mortis a “falta de oxigenação”. O pai o interpela sobre a responsabilidade e negligência da parteira, mas a mãe praticamente nada diz. A avó materna, Lili, começa a pressionar o casal e mais especificamente a filha para que processem Eva, a parteira. Martha se recusa a procurar uma advogada ou mesmo discutir o assunto; mal consegue dar conta de si mesma e perambula procurando por seus “pedaços”.
Enquanto isso, sozinha, tenta germinar algumas sementes de maçã, sua fruta preferida. Por muitos dias, nada de novo acontece. O processo de germinação parece não dar certo. O casal se separa. Entre Martha e sua mãe, uma mulher controladora, a tensão se acirra notadamente. Lili exige que a filha reaja, que “diga algo”, que exija de Eva a responsabilidade que lhe cabe.
Enquanto alguns procuram por reparação penal e moral, Martha desmonta o quarto de sua filha. Tem-se a impressão de um tempo em suspensão, a casa torna-se suja, desleixada, pilhas de louça para lavar e repleta de restos de comida. Todas as plantas aparecem mortas. Martha aparece sozinha. Poucos ainda são os trabalhos teóricos e pesquisas empíricas, nas Ciências Sociais e Ciências da Saúde em geral, sobre perda ou luto gestacional, assim como sobre a depressão pós-parto. O mais habitual é encontrarmos leituras bastante fisiologistas e hormonais6 sobre o puerpério, considerado psíquica e corporalmente uma fase subliminar na vida da mulher. No campo dos estudos sobre pós-parto, dois estudos antropológicos recentes7,8 destacam um outro olhar e outros significados para esse momento, entendendo-o muito mais à luz de aspectos políticos, sociais e econômicos. Mas um bebê morto sempre figura uma fatalidade. Não se conta com essa possibilidade, considerando ser esse o começo da vida. Eis aqui então uma contribuição importante do longa-metragem em questão, haja vista que o cinema também opera como linguagem para o ensino nas Ciências da Saúde e Ciências Sociais.
Para além disso, trata-se no caso em tela da morte de um bebê que nasce em casa, em uma modalidade de parto contemporânea, bastante diversa de quando as mulheres não tinham opção de escolher, a não ser parir em casa. Esse modelo de assistência, como já mencionado, consiste em um parto planejado com uma série de requisitos, que desalojam e estendem as noções modernas de local e de tempo do nascer e do parir; bem como de responsabilização da mulher e do casal pelos riscos assumidos em tal modalidade de parto.
Nesse sentido, se, em seu início, o longa poderia sugerir uma crítica rasa ao modelo do parto domiciliar planejado, com o passar de suas tomadas nos damos conta de que, na realidade, a obra amplia o debate para a corresponsabilização de paciente e profissional da saúde. Martha não versa expressamente sobre esse assunto, mas nele somos postos de maneira sutil. Na Corte em que a parteira era julgada, reconhece que esta auscultou o bebê várias vezes, que lhe informou do ocorrido todo o tempo e que, inclusive, chegou a sugerir a ida ao hospital antes do nascimento de Yvette. Mas que ela mesma se recusou e disse que sua filha nasceria em casa.
Pieces of Woman9, portanto, explora a possibilidade de uma relação mais horizontal entre pacientes e profissionais de saúde nas tomadas de decisões que envolvem os seus itinerários terapêuticos. O modelo biomédico moderno tem sido há décadas duramente criticado por sua distância, hierarquia e arrogância, bem como por seu apego cego à tecnologia e à medicalização10, que por consequência o distanciaram do “caráter oculto da saúde”11, que envolveria o apalpar e a escuta atenta. No campo da assistência ao parto no Brasil, contamos com as Casas de Parto que são coordenadas pela equipe de Enfermagem e funcionam como espaços mais horizontais de gestão dos serviços, já que não contam com médicos e as costumeiras hierarquias de classe. São também um modelo para o qual há muita expectativa, sobretudo porque esse é um dos pontos que dá carne à própria ideia de parto humanizado12. No entanto, em que pese ser esse o seu objetivo, alguns trabalhos13,14 já nos sugerem que também existe distanciamento entre profissionais e parturientes e a desconsideração do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) – uma ferramenta bioética que pode ser aplicada aos procedimentos médicos e de saúde que busca evitar danos e proteger o direito de escolha dos pacientes diante de profissionais, tratamentos e linhas de cuidado.
Martha decide comparecer ao tribunal em que Eva, a parteira, seria julgada. Ela havia sido arrolada como testemunha. O advogado de defesa lhe pergunta se sua filha havia nascido bem? Se Yvette havia chorado? Se ela pôde carregar a menina nos braços? Ela responde que sim para todas as questões. Faz-se uma pausa. Ela é dispensada. Mas Martha retorna a Corte e pede o direito de se pronunciar novamente. Ela então diz, aberta e francamente, que não acredita na culpa de Eva, diz ter sido feito todo o possível e que não há reparação para a morte de sua filha. Segundo suas palavras, sua filha não teria nascido e permanecido tão pouco tempo no mundo para exigir algum tipo de reparação. Enquanto pronuncia tais palavras, encara atentamente sua mãe no auditório. Ela fala, sua mãe se emociona e assim algo, entre ambas, parece adquirir um outro tom. Eva cai no choro e respira profundamente. Dali em diante, a ponte surge finalizada, conectando duas margens e talvez duas ou mais pessoas da trama.
Para encerrar, gostaria de me deter a outra premissa importante que o filme também explora: todo parto, em si, é um flerte com a morte. Depois de duas décadas pesquisando leituras femininas e de profissionais de saúde, em geral, sobre partos, convenço-me diariamente disso, pois nunca se sabe, efetivamente, o desfecho de um parto. Para não nos vermos às voltas com a morte, passamos enquanto sociedade moderna a empregar a cesárea como o escudo que, em tese, “evita negligência”. Muitas são as tentativas humanas de controle da vida, em seu começo e fim15,16. Com o desenvolvimento da tecnologia, busca-se cada vez mais o prolongamento a vida, por vezes de maneira desenfreada, de modo muito diferente do que se via antes do “nascimento do hospital” e da “medicina social”, quando a morte era compreendida como destino e integrada ao cotidiano de uma sociedade pré-moderna em que não contávamos com uma noção de hospital moderno organizado e dotado de uma ideia de cura17.
Nesse sentido, também os nascimentos passaram a ser muito controlados, diante dos interesses econômicos naqueles que nasciam e seriam, no contexto das nações modernas, “o povo da nação”. Acontece que, em que pese todos os esforços no sentido de controlar e proteger o momento dos partos, a segurança total não existe, dada a intensidade do nascimento e de tudo o que ele envolve física e emocionalmente, tanto para a mulher quanto para a criança, seja nos partos totalmente controlados ou nos partos domiciliares atuais e sem intervenções externas.
Bataille18, ao escrever sobre a “experiência interior”, coloca-nos justamente diante desses acontecimentos da vida que conjugam os seus extremos, morte-vida, sagrado-profano e humano-animal. Para o filósofo, essa ambiguidade compõe essa experiência que nos assola, que nos iguala aos bichos irracionais e nos afeta como nenhuma outra. O parto me parece ser uma dessas “experiências interiores”, liminares e incertas, ainda que queiramos negar tal condição com cesáreas agendadas, médicos cirurgiões e hospitais paramentados. Pieces of Woman9 nos coloca diante dessa singularidade do nascer e do parir e sua protagonista parece sentir essa singularidade na pele, compartilhando riscos e compreendendo a nossa pequenez enquanto seres humanos. Por tudo isso, o longa-metragem nos brinda com cenas, situações e dilemas muito bons para repensarmos assistência profissional, corresponsabilização e luto gestacional no campo da saúde, importantes para o campo dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres em todo o mundo, mas talvez mais importantes ainda para suas emoções e afetos.
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Carneiro RG. Pieces of a Woman: partos domiciliares, luto gestacional e assistência profissional. Interface (Botucatu). 2022; 26: e210393 https://doi.org/10.1590/interface.210393
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Financiamento
Publicação vinculada ao projeto de pesquisa “Entre mães que viram avós e filhas que viram mães: parentesco, geração e mothering”, financiado pelo CNPq com bolsa produtividade no Processo n. 315744/2020-0.
Referências
- 1 Fundação Oswaldo Cruz. Nascer no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2014.
- 2 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.459, de 24 de Junho de 2011. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS - a Rede Cegonha. Diário Oficial da União. 24 Jun 2011.
- 3 Brasil. Ministério da Saúde. Fundo das Nações Unidas para a Infância. Iniciativa Hospital Amigo da Criança: revista, atualizada e ampliada para o cuidado integrado : Módulo 4 : Autoavaliação e monitoramento do Hospital. Brasília: Ministério da Saúde; 2010.
- 4 Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher: princípios e diretrizes. Brasília: Ministério da Saúde; 2004.
- 5 Carneiro RG. Em casa é mais seguro!: o olhar do refúgio, do privilégio e da política pública. In: Rodrigues AP, Nucci MF, Teixeira LA, Silva LF. Medicalização do parto: saberes e práticas. Rio de Janeiro: Hucitec; 2020. p. 35-48.
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6 Rodhen F. O império dos hormônios e a construção da diferença entre os sexos. Hist Cienc Saude Manguinhos. 2008; 15 Suppl:133-152. Doi: https://doi.org/10.1590/S0104-59702008000500007.
» https://doi.org/10.1590/S0104-59702008000500007 - 7 Silva MPM. Significados da maternidade: um olhar antropológico sobre a experiência do pós-parto [dissertação]. São Paulo: Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP; 2016.
- 8 Cronemberg L, Franch M. Ser mãe é padecer no paraíso? Narrativas de depressão pós-parto. João Pessoa: Editora UFPB; 2020.
- 9 Pieces of woman [filme]. Roteiro: Katá Weber. Direção: Kornel Mundruczó. Produtor: Martin Scorsese, Kevin Turen. Estados Unidos: Bron Studios; 2020.
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10 Camargo Jr KR. Medicalização, farmacologização e imperialismo sanitário. Cad Saude Publica. 2013; 29(5):844-846. Doi: https://doi.org/10.1590/S0102-311X2013000500002.
» https://doi.org/10.1590/S0102-311X2013000500002 - 11 Gadamer HG. O caráter oculto da saúde. Petrópolis: Editora Vozes; 2006.
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12 Diniz CSG. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento. Cienc Saude Colet. 2005; 10(3):627-637. Doi: https://doi.org/10.1590/S1413-81232005000300019.
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13 Giacomini SM, Hirsch ON. Parto “natural” e/ou “humanizado”? Uma reflexão a partir da classe. Estud Fem. 2020; 28(1):e57704. Doi: https://doi.org/10.1590/1806-9584-2020v28n157704.
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14 Mendonça S. Uma análise das denúncias a uma Maternidade pública humanizada: dilemas da humanização. Secul XXI Rev Cienc Soc. 2014; 4(2):217-241. Doi: https://doi.org/10.5902/2236672517044.
» https://doi.org/10.5902/2236672517044 - 15 Foucault M. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes; 2010.
- 16 Agamben G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG; 2002.
- 17 Foucault M. O nascimento do hospital. In: Foucault M. Microfísica do poder. São Paulo: Editora Graal; 2003. p. 170-189.
- 18 Bataille G. A experiência interior: seguida de método de meditação e postscriptum. Belo Horizonte: Autêntica; 2016.
Editado por
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EditorAntonio Pithon CyrinoEditora associadaMariana Arantes Nasser
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Jun 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
21 Jun 2021 -
Aceito
25 Fev 2022