Open-access O transtorno de espectro autista e as experiências narrativas de mulheres no Instagram

Autism spectrum disorder and the narrative experiences of women on Instagram

El trastorno de espectro autista y las experiencias narrativas de mujeres en Instagram

Resumo

O presente artigo parte do objetivo de analisar como se dá o compartilhamento de experiências pessoais on-line de mulheres autistas no Instagram. Nossa perspectiva teórica e de análise tem como abordagem as representações sociais que são sustentadas pelas influências sociais da comunicação. Como corpus selecionamos três perfis de mulheres no espectro autista no Instagram que compartilham suas experiências: “autiefeelings”, “autista_adulta” e “euautista_”, assim como a recepção e a interação geradas nos comentários. Os procedimentos metodológicos incluem as Representações Sociais, a Análise do Conteúdo imagético e a Análise do Discurso. Os resultados demonstram uma presença da ótica da neurodiversidade, visão que enxerga os desenvolvimentos neurológicos atípicos como diferenças naturais, além de estar representada uma variedade de expressões emocionais e representações sintomáticas. Nos comentários, foi vista uma presença de identificações primária e secundária com as postagens.

Representação social; Transtorno de espectro autista; Mulheres autistas; Comunidades participativas

Abstract

The aim of the present article was to analyze how autistic women share their personal online experiences on Instagram drawing on the theory of social representations, which are sustained by social media influence. The corpus consisted of the Instagram profiles of three women on the autism spectrum, which they used to share their experiences (“autiefeelings”, “autista_adulta”, and “euautista_”), and the reception of and interaction generated by the comments. The following methodological procedures were used: social representations, image content analysis, and discourse analysis. The results reveal the presence of the perspective of neurodiversity, which views atypical neurological development and states as normal, and a variety of emotional expressions and symptom representations. The comments demonstrated both primary and secondary identification with posts.

Social representation; Autism spectrum disorder; Autistic women; Participatory communities

Resumen

Este artículo parte del objetivo de analizar cómo se comparten experiencias personales online de mujeres autistas en Instagram. Nuestra perspectiva teórica y de análisis utiliza como abordaje las representaciones sociales sostenidas por las influencias sociales de la comunicación. Como corpus seleccionamos tres perfiles de mujeres en el espectro autista en Instagram que comparten sus experiencias: “autiefeelings”, “autista_adulta” y “euautista_”, así como la recepción e interacción generada en los comentarios. Los procedimientos metodológicos incluyen las Representaciones Sociales, el Análisis del Contenido de la Imagen y el Análisis del Discurso. Los resultados demuestran una presencia de la óptica de la neurodiversidad, visión que mira los desarrollos neurológicos atípicos como diferencias naturales, además de estar representadas una variedad de expresiones emocionales y representaciones sintomáticas. En los comentarios, se vio una presencia de identificación primaria y secundaria.

Representación social; Trastorno de espectro autista; Mujeres autistas; Comunidades participativas

Introdução

As representações sociais1 - 3 são definidas como um sistema de valores e práticas estruturantes da concepção de um grupo sobre um tema, e essas representações têm como fontes formativas instituições e mídias sociais4 , entre outras. A formação de comunidades participativas on-line – comunidades que se formam mediante um tema ou assunto5 - 7 – tem contribuído para a propagação de experiências pessoais de mulheres no espectro autista.

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é um transtorno com déficits compartilhados nas capacidades de interação e comunicação social8 , 9 . Por anos, o TEA tem uma disparidade considerável entre a quantidade de diagnósticos de homens e a de mulheres, e atualmente se tem a possibilidade de um fenótipo feminino como alternativa de explicar essa disparidade10 .

Nosso objetivo é analisar como se dá o compartilhamento de experiências pessoais on-line de mulheres autistas no Instagram e como ele contribui com a representação social de mulheres autistas. Foram selecionados três perfis no Instagram: “autiefeelings”, “autista_adulta” e “euautista_”. A pesquisa busca como objetivos específicos analisar esses perfis de mulheres autistas e a recepção e a interação com eles por meio de comentários entre maio e julho de 2020.

A metodologia utiliza-se da Análise de Conteúdo11 a fim de coletar o material de análise e organizá-lo; da Análise Crítica do Discurso12 - 14 para analisar os interdiscursos contidos nas postagens e nos comentários; e da teoria das Representações Sociais1 , 2 para cumprir o objetivo de melhor compreender esses compartilhamentos de experiências sociais.

Representações do autismo: do Transtorno Global do Desenvolvimento ao TEA

As representações sociais são concepções mutáveis e contextuais1 , 2 do mundo que guiam e nomeiam os aspectos da realidade perceptível para um grupo ou sociedade. Para Jodelet2 , essas concepções “constroem, para esse grupo, uma visão consensual da realidade [...] que pode entrar em conflito com a de outros grupos, é um guia para as ações e trocas cotidianas” (p. 4).

Para conceituar o autismo, primeiro devemos pensá-lo por uma perspectiva histórica. O autismo foi descrito pela primeira vez na década de 1940 com base em duas fontes independentes: Leo Kanner e Hans Asperger8 , 9 . Pela concepção de Kanner, vemos descritas principalmente as características da resistência à mudança, dos comportamentos repetitivos e do isolamento social⁸. Asperger, diferentemente de Kanner, “pensava na condição mais como um traço de personalidade do que como um transtorno do desenvolvimento”8 (p. 8).

Santos e Santos15 comentam as concepções de Kanner que influenciaram teorias psicanalíticas subsequentes com metáforas que remetem a um vazio psíquico, tais como “tomada desligada”. Desde então, os critérios de diagnóstico sofreram mudanças e atualmente ele é definido pela American Psychiatric Association (APA)16 como um transtorno do desenvolvimento com diferentes níveis de gravidade para o qual não há cura.

Aydos17 ressalta que, no Brasil, o autismo se torna o centro de disputas políticas, principalmente quanto a seu status de deficiência, o que afeta sua inserção em políticas públicas como cotas enquanto pesquisas acadêmicas se voltam à análise de movimentos ativistas. Ora identidade, ora deficiência, disputas relativas a esses embates “têm efeitos práticos e simbólicos na vida e na construção de subjetividades das pessoas”17 (p. 101).

No Brasil, Lopes18 afirma que o autismo se tornou um tema político na década de 1980 com as primeiras associações de familiares de autistas, como a Associação de Amigos do Autista de São Paulo (AMA-SP) e a Associação Terapêutica e Educacional para Crianças Autistas (Asteca). Algumas das principais motivações para a criação das associações incluem a dificuldade de encontrar apoio profissional e institucional, e o questionamento do conceito das “mães-geladeiras” no discurso médico – o termo foi inspirado pela interpretação psicanalítica de que o autismo é causado pela falta de afeto na convivência, o que acaba por culpabilizar a família, em especial as mães1 ⁸. Novas medidas políticas e legislativas representaram conquistas, como a Lei Berenice Piana17 , 18 que reconhece o TEA como deficiência para fins legais, e também medidas que asseguravam direitos relativos à educação.

Na década de 1990, houve o surgimento do conceito de “neurodiversidade”. O termo foi cunhado em 1999 pela socióloga Judy Singer, e de acordo com Ortega19:

o conceito neurodiversidade tenta salientar que a conexão neurológica (neurological wiring) atípica (ou neurodivergente) não é, como vimos, uma doença a ser tratada e se for possível curada. (p. 72)

Segundo Judy Singer20 , o conceito de neurodiversidade está inserido pelo princípio da biodiversidade, reconhecendo uma variabilidade em populações biológicas que é natural e valiosa. Neurodiveratípica (ou neurodivergente) nãosidade abrange essa variabilidade nas formas neurológicas humanas, e o princípio de que características anteriormente classificadas como anormais ou impedimentos são traços e experiências do próprio ser, sem os quais não se constituiria como tal20 .

No entanto, mesmo depois de grandes avanços na compreensão sobre o tema, as imagens mentais do isolamento de Kanner ainda influenciam representações populares e científicas15 . Em uma pesquisa de Campbell21 , a aceitação do autismo estava mais presente em indivíduos que já tinham contato prévio, seja pela socialização seja de exposição a séries e filmes.

Por muito tempo, os índices de três a quatro homens para cada mulher22 , 23 sugeriam o autismo ser uma condição masculina, noção que passou a ser questionada por pesquisas de diferenciação relativamente recentes10 , 22 . Essas pesquisas foram resultado de análises em grupos focais que se identificam com o gênero feminino; no entanto, aqui nos centramos nessas diferenciações de “gênero” como definido por Scott24: gênero é uma construção que orienta relações sociais e, por conseguinte, relações de poder em diversas áreas sociais. Não é fixa e equivalente ao corpo masculino ou feminino, mas uma cognição baseada neles.

Uma das teorias prevalentes para a diferenciação no diagnóstico entre gêneros está na possibilidade de um fenótipo feminino do autismo que não se adequaria às conceptualizações clássicas de TEA, formadas por meio de estudos aplicados em uma amostragem majoritariamente masculina20 . Quando se trata de gênero24 , trabalhamos com o argumento de que se fez uma exclusão tanto de indivíduos e de suas experiências quanto da cognição e mesmo possibilidade de uma mulher no espectro autista.

Algumas das diferenças percebidas por profissionais da área incluem maior tendência a socialização10 e maior propensão a “camuflar” ou “mascarar” sintomas10,25, processo que pode ser descrito como “esconder comportamentos que podem ser vistos como socialmente inaceitáveis”25 (p. 690). Tais diferenças de comportamento não são comportamentos necessariamente inerentes e binários a camuflagem ou tendência à socialização, estando mais presentes em alguns homens, assim como menos presentes em algumas mulheres25 .

Neurodiversidade em redes sociais on-line

As redes sociais são assim chamadas por representarem visualmente cadeias complexas de ligação entre indivíduos em uma coletividade. De acordo com Recuero26 , dentro de seus grupos, cada indivíduo é um produto e produtor de interações, influenciando e sendo influenciado. A abordagem mostrou-se compatível com estudos sobre a cibercultura, tendo as redes sociais como conceito se tornado uma forma popular de designar plataformas que facilitam a interação entre perfis de usuários.

Comunidades on-line são formadas ao redor de temas de interesse mútuo, ou com o intuito de estabelecer e fortalecer laços afetivos5 , 6 . A produção e o compartilhamento de conteúdos de interesse comum em redes sociais são inseridos como contribuições para o grupo6 , 27 . Esse compartilhamento, seja de imagens, valores seja de símbolos, promove o estreitamento de laços e constrói sentidos comuns26 .

Segundo Jaarsma e Welin28 , o movimento da neurodiversidade, inspirado nesse conceito, foi desenvolvido na internet nos anos de 1990 majoritariamente por pessoas no espectro autista. A possibilidade de comunicação entre membros autistas on-line permitiu a construção de suas próprias narrativas de experiências, como também abertura para um universo até então majoritariamente reconhecido por discursos externos, como o biomédico e o de familiares. Sendo a internet um meio acomodante para sintomas como dificuldades na comunicação não verbal e ritmos atípicos de conversação, o próprio funcionamento de fóruns e redes sociais on-line pode ter sido um fator para a formação do movimento29 .

Também há contradições e críticas sobre o movimento. Membros da comunidade são mais comumente identificados como autistas de “alto funcionamento” e persistem os conflitos entre a centralização do TEA como deficiência que necessita de políticas públicas e identidade autista17 , 28 . Aydos17 nota que membros do movimento, ao se aproximarem da Neurociência para constituir o rótulo de neurodiverso, reproduzem certos discursos biomédicos, assim como constroem a narrativa ao redor de “traços” do autismo. Apesar disso, esse autor também ressalta que os membros se afastam desses discursos ao reafirmar características positivas e humanizar o autismo, assim como ao apresentá-lo dentro de uma lógica “não hierárquica e não patologizante”17 (p. 104).

A rede social on-line Instagram é um dos aplicativos mais populares atualmente, sendo o Brasil o segundo país com maior número de usuários em fevereiro de 202330 . Segundo Weidlich31 , a criação do Instagram teve a finalidade de facilitar o compartilhamento e a personalização de imagens.

Ao seguir um outro perfil, suas postagens são atualizadas na interface do usuário que pode curtir ou comentar31 . Dentro da rede social on-line Instagram, temos alguns perfis com o objetivo de discutir assuntos particulares de sua vida, dentre eles mulheres no espectro autista.

Segundo Pacheco e Onocko-Campos32 , a “narrativa” é um termo visto como instrumento de acesso às experiências vividas pelos sujeitos em um contexto linguístico e temporal. A divisão entre os dois estaria onde termina a vida, ou a “experiência”, e se inicia a narrativa ou o ato de “contar”. De acordo com Scott33 , analisar a diferença com base na experiência não indica uma explicitação objetiva de uma realidade vivida, pois sua natureza é construída e relacional. Ela não deve ser entendida como fato da existência da diferença, mas sim como vivência e processo de construção e narração do ser.

Os três perfis selecionados para serem analisados foram “autiefeelings”, “autista_adulta” e “euautista_”, pelas características em comum de serem administrados por mulheres no espectro autista, que compartilham experiências pessoais e têm mais de mil seguidores. As donas dos três perfis foram contatadas e concordaram na inclusão de seus conteúdos na pesquisa.

A metodologia de pesquisa

Os conteúdos analisados foram as imagens e os textos que compõem as postagens dos três perfis, coletados pela ferramenta “Scraping de comentários Instagram”34 , e os comentários deixados por outros perfis, entre 1º de maio e 31 de julho de 2020. A coleta foi realizada no último dia de julho, sendo considerados apenas os comentários postados até então.

Foi observado que as usuárias tinham postagens frequentes desde sua criação, perfis personalizados que engajavam seguidores na sessão de comentários frequentemente e de maneira variada, não sendo compatíveis com social bots pela definição de Lêu et al .35 . Os autores identificaram 22 características de bots , que incluem a idade da conta, a proporção entre seguidores e o engajamento, entre outras.

Para categorizar os conteúdos, utilizamos a Análise de Conteúdo (AC)11 e o método de codificação visual de Rose36 . A AC engloba diversos instrumentos metodológicos que podem ser aplicados por meio da inferência. O primeiro passo adotado foi a “categorização”, processo que tem como finalidade diferenciar elementos mediante indicadores e agrupá-los11 .

Criamos três subcategorias: as “Expressões emocionais”, a fim de se analisar a carga emocional ou subjetiva; as “Teorias representativas de formação”, categoria utilizada por Santos e Santos15 separada entre três teorias de representações sociais sobre a formação do TEA; e as “Representações sintomáticas”.

A teoria orgânica relaciona-se com a representação da “desconexão cerebral”. Os autores a comparam com a metáfora da “tomada desligada” de Kanner, em que o indivíduo autista é um ser impenetrável.

A teoria relacional se refere à compreensão de uma condição originada na infância, principalmente na relação entre a criança e a família. Aqui remete às “mães-geladeiras”.

A teoria cognitiva reporta a uma variedade na cognição: nas formas de compreender e interagir com o mundo. Os autores relacionam essa compreensão do autismo ao conceito de neurodiversidade, por se aproximar da visão do TEA como identidade social.

Pelas “Representações sintomáticas”, avaliamos as dificuldades relativas às características identificáveis das TEA que, segundo a APA16 , seriam: dificuldades na interação social, nas habilidades de comunicação, com alterações sensoriais e interesses ou padrões de atividade repetitivos e/ou restritos.

Levando-se em conta que a aceitação do autismo está mais presente em pessoas que já têm exposição prévia21 , as duas subcategorias dos comentários são: “Identificação”, dividida entre identificação pessoal e secundária, ou seja, em relação a outras pessoas conhecidas, ou ausência de identificação; e “Posicionamento”, podendo ser favorável, neutro ou desfavorável. Para analisar as imagens, recorremos ao método de codificação visual de Rose36 , que tem como finalidade identificar temas-chave no conteúdo imagético.

Utilizamos a Análise Crítica do Discurso (ACD)12 - 14 na análise da amostragem de cada categoria selecionada. A ACD pode ser considerada uma perspectiva teórica que busca identificar e articular os discursos pela análise da língua, sendo transdisciplinar12 . A linguagem e o discurso aqui são compreendidos como práticas sociais, o que sugere contextualização histórica, social e identitária.

Dentro do método de codificação visual36 , os indicadores foram selecionados após se analisar a frequência de elementos visuais em palavras-chave descritas. O objetivo foi mapear o relacionamento entre palavras-chave tematicamente relacionadas. Foram considerados elementos como cores, formas e associações metafóricas.

Na AC relativa às legendas das postagens, as Expressões emocionais e Representações sintomáticas tiveram uma seleção de indicadores exploratória. Os indicadores da categoria “Teorias representativas de formação” ( Quadro 1 ) foram retirados do artigo de Santos e Santos15 ; no entanto, foram encontradas palavras frequentes e relacionadas em postagens que continham os indicadores selecionados.

Quadro 1
Teorias representativas de formação, Brasil, 2020

Resultados e discussões

Os resultados serão discutidos na ordem das etapas explicadas acima, separados entre a análise das postagens e suas categorias, a análise dos comentários e suas categorias, e a análise dos discursos. No total, os conteúdos coletados foram 75 postagens e 809 comentários.

Análise das postagens

Foi utilizada a Análise de Conteúdo11 segundo a técnica de categorização. Para cada subcategoria, temos indicadores que serão apresentados por grupos de associações.

A teoria cognitiva esteve presente em 79% da amostragem, sendo a mais frequente. As palavras mais encontradas no conjunto de legendas foram relacionadas à neurodiversidade, contabilizando 127 menções. Percebemos, portanto, uma preferência demarcada por expressões relacionadas à teoria cognitiva pelos perfis.

Os indicadores das outras duas categorias foram escolhidos por meio de um processo de associação entre partes do título de cada categoria e palavras que se repetiam. A categoria “Expressão emocional” ( Quadro 2 ) teve suas subcategorias escolhidas também por associação com a temática e com o objetivo de pesquisa. Temos uma frequência maior de emoções negativas ou desfavoráveis encontradas nos indicadores.

Quadro 2
Expressão emocional, Brasil, 2020

A subcategoria mais presente em “Representações sintomáticas” ( Quadro 3 ) foi “dificuldades nas habilidades de comunicação”, com 29 menções, ou presente em 32% das postagens. As categorias que mais coincidiram foram alterações sensoriais com interesses restritos, 12 vezes (32%).

Quadro 3
Representações sintomáticas, Brasil, 2020

Já as palavras-chave encontradas no conteúdo imagético demonstraram uma diversidade entre os perfis selecionados. No primeiro perfil, “autiefeelings”, temos 57 fotos. Algumas das palavras a ele relacionadas nas várias imagens incluem coração, infância, comunicação, felicidade, colorido e dor. Quanto à Representação sintomática, temos 12 exemplos de dificuldades nas habilidades de comunicação, dez exemplos de dificuldades na interação social e de alterações sensoriais, e cinco exemplos de interesses ou padrões de atividade repetitivos e/ou restritos.

Todas as imagens são ilustrações feitas pela autora do perfil, com exceção de uma fotografia. São frequentes as palavras referentes a representações da infância, de afetividade, de comunicação (ou dificuldade de comunicação), com expressivo conteúdo emocional. Assim, identificamos que há uma rede de associações de sentimentos com cores, especialmente o colorido ou arco-íris, que ora está relacionado a elementos de alegria, ora a diversidade ou neurodiversidade.

Já o segundo perfil, “autista_adulta”, tem como algumas palavras mais frequentemente presentes formalidade, tristeza, envelhecido e máscara. Há uma variação maior entre ilustrações e fotografias. O conteúdo é feito por montagens e mesclado entre o imagético e o escrito, que complementam um ao outro. Dentro das Representações sintomáticas, temos seis exemplos de dificuldades nas habilidades de comunicação e na interação social, e um exemplo de interesses ou padrões de atividade repetitivos e/ou restritos em 11 postagens.

Observamos um tom mais sóbrio até mesmo na logomarca que representa o perfil, uma vetorização no formato de um cérebro, além de representações de locais de trabalho e de estudo. Temos também uma predominância de conteúdo retratando sentimentos de tristeza, solidão e cansaço. Se complementados pelo conteúdo textual, é constatada uma associação entre esses sentimentos e as interações sociais de cunho negativo, como expressões de preconceito ou incompreensão. Além disso, temos a representação de máscaras ou pinturas faciais, o que pode ter uma relação com o ato de mascarar, que significa copiar comportamentos “neurotípicos” ou esconder comportamentos “neurodivergentes”25 .

O terceiro perfil, “euautista_”, tem como palavras-chave mais frequentes feminilidade e mulheres, assim como sorriso. Quanto às Representações sintomáticas, não se encontrou nenhuma representação visual de sintomas nas sete postagens.

A identidade de mulher autista foi uma das protagonistas das representações imagéticas do perfil, o que reforça a tendência já existente da busca pela identidade feminina autista, que se dá tanto na desassociação fixa do conceito de autismo com o de masculinidade, quanto em melhor compreensão da experiência feminina, da historicidade desse indivíduo em meio a seu contexto. Percebemos também uma predominância de expressões emocionais alegres. De forma geral, encontramos um ponto importante de conexão entre os três perfis: um foco na neurodiversidade e na identificação como autista.

Análise dos comentários

Um total de 809 comentários foram categorizados dentro de “Posicionamento” ( Quadro 4 ) e “Identificação”, sendo as subcategorias do primeiro favorável, desfavorável e neutro. Os indicadores de posicionamento mais comuns foram “Lindo” (37 vezes), “Bom/Boa” (31 vezes), “Perfeito” (27 vezes), “Obrigado” (26 vezes) e “(Me) ajuda/ajudou” (22 vezes).

Quadro 4
Posicionamento, Brasil, 2020

Foram encontrados 464 comentários positivos (57%) e 345 comentários neutros (43%). No entanto, não houve nenhum comentário negativo. Isso pode se dar desde a possibilidade de deletar comentários negativos até a inclinação de quem procura esse tipo de conteúdo já ter identificação prévia com a temática.

As subcategorias de “Identificação” ( Quadro 5 ) indicaram presença de identificação primária (pessoal, própria) e de identificação secundária (de conhecidos). Nesse caso, buscamos identificação com a autora das postagens e/ou com a mensagem textual escrita e/ou imagética, não necessariamente com o TEA.

Quadro 5
Identificação, Brasil, 2020

Ressaltamos que há uma dificuldade em estabelecer indicadores para identificação, pois alguns comentários têm a finalidade principal de contar experiências pessoais similares à experiência da postagem. Nem sempre se identificam palavras que explicitam ser uma experiência compartilhada.

Análise dos discursos

Identificamos neurodiversidade como indicador que mais se repete, sendo a subcategoria Teoria cognitiva aquela com maior representação. Com esses dados, tomamos a noção de neurodiversidade e de identidade autista como um dos aspectos centrais do debate. Os textos serão identificados pelos nomes de usuários e data de postagem.

Exercitar a empatia é olhar além do que a gente acha. Sendo assim, pensar que eu sofro por ser autista não é ter empatia, mas sim estar preso à bolha de preconceito que a sociedade hipócrita impõe. Eu não sofro por ser autista, eu sofro por não ser aceita como sou. Autismo não é doença, autismo não é um erro. Mais conscientização e menos preconceito é o que precisamos37 . (autista_adulta, 8 de julho)

Aqui, temos presente o discurso da empatia como valor central para a compreensão (“achar”) e a visão (“olhar”) do autismo e da pessoa autista. Como vemos em Scott33 , a constituição do ser pela experiência, como a compreende e relata discursivamente, é central para sua consideração de instrumento analítico. O ato de olhar é o primeiro passo para entender e comunicar a experiência, e o tema da invisibilização desde já aparece. A expressão emocional “sofrer”, apesar de ser uma indicação negativa, está aqui expressa dentro de julgamento externo pelo qual a pessoa se tornaria visível, mas não compreendida, o que se opõe ao valor da empatia e da aceitação.

Temos o autismo opondo “erro” ou “doença” associado a “preconceito”. Está presente um discurso da “conscientização” do tema como resolução do problema “preconceito”, e o discurso da empatia, da conexão emocional, como aproximação com o sujeito autista. Está presente a vontade de ser visto de outra forma além da “preconceituosa”, indicando que a visibilidade por si só não é o bastante. Essas interações estão presentes também no exemplo seguinte.

É por meio do laudo que vamos pesquisando, tirando nossas dúvidas e finalmente conseguimos olhar para trás e assimilar o passado e o presente.

Por consequência disso, visualizamos cada momento que não volta mais e entendemos finalmente o motivo de tudo ter sido tão diferente do considerado “padrão de normalidade”. Se o laudo viesse mais cedo Somente nesta hora é que surge a chance de se encontrar, se entender, se respeitar sem culpa, sem cobranças extremas38 . (autista_adulta, 1 de junho)

Aqui, percebemos o discurso da existência de um “padrão de normalidade”. O trecho é retirado de uma postagem sobre a importância do laudo diagnóstico; logo, esse é percebido como meio de autoconhecimento atual e restrospectivo (“olhar para trás”, “assimilar o passado e o presente”). Esse autoconhecimento implica também uma autoaceitação (“se encontrar”, “se entender”, “se respeitar”) em relação a cobranças internas (“cobranças extremas”) e externas (“padrão de normalidade”).

Continuo “não conseguindo” (entre aspas pq faço, mas me é muito custoso em muitos termos) trabalhar..; não do jeito que gostaria... não me mantenho financeiramente e acho que todas (ou quase) as etapas do meu trabalho me causam um nível altíssimo de ansiedade. Percebi que na verdade pode ser porque, de novo, ou ainda, tento seguir o “padrão”. Um padrão que não é o meu39 . (autiefeelings, 30 de junho)

Novamente temos expressões emocionais negativas relacionadas a um padrão. “Seguir um padrão que não é o meu” indica existir uma divergência desse padrão ou da “normalidade”. A aceitação de um padrão divergente do normativo é uma ação que se opõe ao “causar ansiedade”, trazendo emoções positivas.

Uma nova questão apresentada é a dificuldade no ambiente de trabalho, aqui em razão do custo emocional (“custoso”, “ansiedade”), o que afeta sua vida financeira. Atualmente, há uma obrigatoriedade de cotas para a contratação de pessoas com deficiência em instituições públicas e privadas. No entanto, ainda há uma ausência de oportunidades, assim como uma escassez de políticas de incentivo40 ; e mesmo conquistadas as oportunidades, ainda se encontram diversas barreiras no ambiente de trabalho17 . Os comentários também implicam possíveis soluções.

Mesmo às vezes passando por crises intensas, sentimento de inapropiação social, e mesmo com todas as limitações que apresentei na infância, hoje sou muito feliz por conseguir conquistar o que tenho hoje, como: alguns amigos, formação acadêmica, e uma família. Isso pra mim é tudo Me orgulho pelo simples fato de saber que por algum motivo maior, ou até mesmo por um propósito maior, eu seria mais feliz sendo quem eu sou, com autismo, e isso basta pra mim!41 (euautista_, 18 de junho)

Aqui, vemos o discurso relativo à autoaceitação (“orgulho”) como um fator atenuante para o “sentimento de inapropriação social” e as “crises intensas”, sendo o “orgulho” parte constitutiva do discurso da neurodiversidade. A autodeclaração de participante de um grupo estigmatizado constitui um “ coming out ””, que literalmente traduzido significa “sair” ou “aparecer”, sendo uma afirmação que “permite um deslocamento do discurso dominante da dependência e anormalidade para a celebração da diferença”19 (p. 69).

Retomamos o primeiro trecho demonstrado para falar das problemáticas relativas a conflitos externos. “Conscientização” e “empatia” são discursos presentes como soluções. A inserção em uma comunidade de apoio também se torna uma forma de auxílio a conflitos derivados das dificuldades que surgem com sintomas ou situações desconfortáveis e/ou preconceituosas.

No entanto, a resolução do problema deverá vir por uma assistência combinada e societal, o que inclui medidas de auxílio no trabalho17 , 40 , na família, como relatado em legendas e comentários (a seguir), e uma mudança político-social por meio de deslocamentos discursivos19 . Na academia, identificamos também a iniciativa de se encontrar um “fenótipo autista feminino”10 para a melhora dos métodos de diagnóstico de mulheres no espectro, diminuindo os riscos de diagnóstico errôneo ou tardio.

Identificamos a própria atividade dos perfis, como reivindicar um lugar de fala, trabalhando ativamente para a conscientização mediante uma visão primária. O ato de narrar a própria experiência por meio da produção de imagens e textos escritos sobre o tema são compartilhamentos recebidos como contribuições ao grupo tanto em cunho informativo quanto pessoal e afetivo.

De acordo com Ribeiro42 , “pensamos lugar de fala como refutar a historiografia tradicional e a hierarquização de saberes consequente da hierarquia social” (p. 36), existindo uma negação de certos espaços para grupos de minorias, frequentemente alvos de construções discursivas hegemônicas. A retomada de um lugar de fala não se refere apenas à fala, mas ao direito de existência e autoidentificação.

Para melhor analisar a interação nos perfis escolhidos, selecionamos alguns dos comentários por categoria. Vimos uma identificação primária (própria) e secundária (de conhecidos) de uma parcela dos perfis, o que reforça a ideia de compreensão e conscientização como fatores favoráveis na aceitação de indivíduos autistas.

De acordo com o conceito de experiência de Scott33 , a experiência nos leva à possibilidade de estabelecimento de vínculos não apenas no relato dos fatos. O relato se estende ao passado pelo qual o indivíduo se constituiu, e a identificação de similaridades do público em relação a esse passado se aprofunda em uma rede de associações e vínculos subjetivos: se a experiência constitui o ser, os desafios e alegrias compartilhados pelos perfis os aproximam do público pelo que há neles de humanidade.

Que postagem linda!!! É assim mesmo! Meu filho foi diagnosticado agora e parece estar bem consigo mesmo! Aliviado pela oportunidade de encontrar respostas para aquilo tudo que só era angústia!38 (claudia_mendes2, 2020)

A identificação secundária foi principalmente em relação a filhos e netos de ambos os gêneros, indicando um envolvimento familiar. Observamos uma expressão emocional positiva (“estar bem consigo mesmo”) e o processo de diagnóstico como “oportunidade de encontrar respostas” e como possível resolução de dificuldades (“angústias”). Aqui retomamos a importância do diagnóstico e do fato de as pesquisas que constituíram vários dos métodos de diagnóstico serem concebidas por uma amostragem majoritariamente masculina20 .

Por fim, foi estabelecido que há uma preferência dos perfis por expressões da Teoria cognitiva e aspectos relativos ao movimento pela neurodiversidade. Além disso, foi identificada, por meio da Análise Crítica do Discurso, uma ligação entre as expressões emocionais negativas e os discursos da não aceitação, assim como expressões emocionais positivas com valores como “compreensão” e “empatia”, e também com apoio de um grupo ou comunidade, ideia reforçada pelos comentários.

Considerações finais

Foi cumprido o objetivo de analisar como o compartilhamento de experiências pessoais on-line de mulheres autistas no Instagram auxilia na representação social de mulheres neurodivergentes. Com base na ótica da neurodiversidade, que apresenta conexões neurológicas atípicas como diferenças naturais e individuais que devem ser respeitadas, afastando-se portanto da visão do autismo como doença e vivência masculinizada, esses perfis buscam no Instagram uma plataforma de autoexpressão sobre suas experiências pessoais de mulheres autistas, compartilhando experiências que geram uma identificação com alguns dos leitores, promovendo conexões afetivas e humanizando o autismo.

Os conteúdos são imagéticos e textuais pessoais sobre experiências que vão desde narrações sobre acontecimentos de sua vida até reivindicações e comentários sobre assuntos relevantes ao autismo, seja referentes aos sintomas e como afetam suas vidas, seja em relação à visão externa sobre pessoas autistas e os efeitos dessas imagens mentais e preconceitos.

A análise do engajamento com o público se deu mediante comentários, tendo sido encontrados vários que indicavam uma identificação primária e/ou secundária. Os comentários incluem expressões de gratidão e identificação com as experiências e a participação do debate pelo compartilhamento de suas próprias experiências.

Algumas das maiores motivações para a execução deste trabalho foram as nossas próprias experiências no processo de diagnóstico e acesso a uma comunidade on-line que compartilhava experiências pessoais, auxiliando em nosso processo de aprendizagem sobre o TEA. Com este artigo, esperamos ter contribuído com a discussão por meio de uma visão interna e participante de pessoa neurodivergente.

Referências

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  • Financiamento
    Programa de Apoio à Pós-graduação da Amazônia Legal (PDPG - Amazônia Legal).

Editado por

  • Editora. Rosamaria Giatti Carneiro
  • Editora associada. Priscila Barroso

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    07 Jul 2022
  • Aceito
    15 Fev 2023
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