Open-access Coordenação do cuidado: uma análise por meio da experiência de médicos da Atenção Primária à Saúde

Care coordination: an analysis based on the experiences of primary care doctors

Coordinación del cuidado: un análisis a partir de la experiencia de médicos de la Atención Primaria de la Salud

Resumo

O objetivo é analisar a experiência de médicos da Atenção Primária à Saúde (APS) sobre conhecimento, uso e reflexões para melhoria da coordenação do cuidado. Foi realizado estudo transversal com utilização do COORDENA-BR com médicos da APS, em Niterói/RJ/BR. Os profissionais reconheciam a importância da coordenação, ainda que não ocorresse, e confiavam nas habilidades clínicas dos médicos da Atenção Especializada (AE). Não havia indicação de seguimento e reconhecimento da centralidade da APS pelos pares da AE. O envio da referência, o recebimento do resumo de alta hospitalar e o uso de protocolos foram recorrentes, o recebimento da contrarreferência não. Não eram realizadas sessões clínicas compartilhadas e os médicos da APS não consultavam os especialistas para esclarecimento de dúvidas. Os resultados expressam a insuficiência de condições tecnológicas, organizacionais e de valores para que a APS assuma a coordenação do cuidado no SUS.

Atenção primária à saúde; Coordenação do cuidado; Integração de sistemas; Niterói

Abstract

The aim of this study was to explore the experiences of primary care doctors regarding the use of knowledge and reflection to improve care coordination. We conducted a cross-sectional study with primary care doctors in Niterói, Rio de Janeiro using the COORDENA-BR questionnaire. The doctors recognized the importance of coordination, although it did not occur, and trusted the clinical skills of specialty doctors. There was no indication that their peers in specialty care recognized and promoted the centrality of primary care. Referrals, receipt of hospital discharge summaries and use of protocols were common; counter-referrals to primary services was not common. Clinical sharing sessions were not held and primary care doctors did not consult specialists to clear up doubts. The findings reveal that the coordination of care under Brazil’s public health system by primary care services is hampered by lack of technological resources, organization, and values.

Primary health care; Care coordination; System integration; Niterói

Resumen

El objetivo es analizar la experiencia de médicos de la Atención Primaria de la Salud (APS) sobre conocimiento, uso y reflexiones para la mejora de la coordinación del cuidado. Se realizó un estudio transversal con utilización del COORDENA-BR con médicos de la APS, en Niterói (Estado de Río de Janeiro, Brasil). Los profesionales reconocían la importancia de la coordinación, aunque no ocurriera, y confiaban en las habilidades clínicas de los médicos de la Atención Especializada (AE). No había indicación de seguimiento y reconocimiento de la centralidad de la APS por los pares de la AE. Fueron recurrentes el envío de la referencia, el recibo del resumen de alta hospitalaria y el uso de protocolos, pero no el uso de la contra-referencia. No se realizaban sesiones clínicas compartidas y los médicos de la APS no consultaban a los especialistas para aclarar dudas. Los resultados expresan la insuficiencia de condiciones tecnológicas, organizacionales y de valores para que la APS asuma la coordinación del cuidado en el SUS.

Atención Primaria de la Salud; Coordinación del cuidado; Integración de sistemas; Niterói

Introdução

Pessoas com doenças crônicas e em situação de maior vulnerabilidade social necessitam de mais cuidados, demandam serviços com maior frequência e concomitantes, em diferentes especialidades e níveis de atenção1 , 2 . A coordenação do cuidado representa uma das funções estratégicas dos sistemas de saúde na medida em que permite que os pontos de atenção possam operar de forma conectada e interdependente2 . Quando desenvolvida – entre profissionais da Atenção Primária à Saúde (APS) e de outros pontos da rede –, o usuário pode ter acesso aos cuidados necessários, em tempo oportuno e de forma contínua. Argumenta-se que o respeito aos saberes e expectativas dos usuários deve ser parte das estratégias de coordenação2 a serem desenvolvidas com qualidade aceitável, humanizada e com responsabilidade sanitária e econômica3 .

Reconhecida como atributo essencial da APS4 , para que a coordenação do cuidado possa acontecer, um conjunto de elementos são necessários, inclusive aqueles relacionados aos demais níveis assistenciais5 . Por meio da coordenação, busca-se assegurar o trânsito seguro e confiável dos usuários pelo sistema de saúde, desde os processos de referência até a troca de conhecimentos e informações clínicas entre os vários profissionais, o que exige definição de competências e responsabilidades entre os serviços que compõem as Redes de Atenção à Saúde (RAS)5 .

Quando um usuário é conduzido a um ponto de atenção de forma equivocada ou desnecessária, considera-se que houve problemas na identificação das necessidades e/ou falhas na comunicação6 . O crescente número de pessoas com agravos crônicos sob responsabilidade sanitária da APS aumenta a necessidade de cuidados promocionais, preventivos, de vigilância em saúde e fortalecimento de seu escopo de práticas. Ao mesmo tempo, amplifica a importância da relação coerente e contínua entre os níveis assistenciais7 .

Esforços para a organização dos pontos das RAS, integrados e integrais, podem beneficiar um conjunto de atores que orbitam os sistemas de saúde, entre os quais os profissionais, pela oportunidade de apoio e aprendizado mútuo8 . Um modelo transmural integrado exige compartilhamento de informações entre especialistas e clínicos gerais para garantir a continuidade do cuidado. Nesse sentido, é dependente de uma comunicação eficaz e eficiente, facilitada em sistemas com a função de gatekeeper obrigatória7 , como no caso brasileiro, por meio da Estratégia Saúde da Família (ESF).

Em sistemas públicos universais, a integração entre níveis assistenciais, além de conduzir a melhores resultados em saúde, colabora para o fortalecimento da função de gatekeeping e alinhamento dos processos de trabalho9 . Por conseguinte, a integração e a comunicação são um aspecto crucial para o desenvolvimento de uma cultura de grupo ao facilitar o desenvolvimento de um senso compartilhado de atuação entre as equipes e incentivar o exercício da colaboração interprofissional10 .

O curso seguido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) nos últimos trinta anos, com todos os limites e resultados bem-sucedidos, reflete desafios que também são globais, entre os quais a necessidade de coordenação do cuidado5 . O objetivo deste artigo é analisar a experiência de médicos da APS em relação ao conhecimento, ao uso e a reflexões para melhoria da coordenação entre níveis assistenciais. Este trabalho enfoca a coordenação vertical11 , ou seja, aquela que envolve a integração entre os níveis da RAS, mais especificamente entre médicos da APS e da atenção especializada (AE).

Metodologia

Foi realizado estudo transversal com médicos que atuavam no Programa Médico de Família (PMF) nas sete regionais de saúde do município de Niterói/RJ/BR. Privilegiou-se a avaliação da coordenação entre níveis de atenção – APS e AE – na percepção e na experiência de médicos da APS com base na aplicação do instrumento COORDENA-BR®c.

O cenário do estudo foi Niterói/RJ, município de médio porte com 515.317 habitantes, pioneiro na reformulação da APS no Brasil. Na década de 1990, inspirado no modelo cubano de assistência, implementou o PMF12 . Atualmente, a rede de APS está composta por 43 módulos de PMF nos parâmetros de equipes de Saúde da Família, três Unidades Básicas de Saúde (UBS) tradicionais. Havia sete Policlínicas Regionais, principal referência de especialidades para a APS, que também operavam com equipes básicas que atendiam à parcela da população fora de abrangência das unidades de PMF13 .

Para coleta de dados foi utilizado o questionário COORDENA-BR®, adaptado, traduzido para o português e validado. O instrumento baseia-se no modelo teórico para análise da coordenação entre níveis assistenciais desenvolvido por Vázquez et al .14 e Vargas et al .15 , composto por questões fechadas e abertas. O questionário foi digitalizado utilizando-se o software KoboTollbox 1.4.8®, disponível em tablets , marca Samsung®. Para aplicação, foram realizadas entrevistas presenciais nos respectivos locais de trabalho dos médicos – módulos do PMF – com duração média de 25 minutos. As questões abertas foram registradas em diários de campo e identificadas por respondente para posterior categorização.

Embora se trate de instrumento validado e utilizado em outros cenários, foi realizado pré-teste com um médico do PMF, com vistas a observar as pequenas adequações em função das especificidades da rede de saúde do município de Niterói.

Foram realizadas 51 entrevistas de 69 possíveis (médicos em atuação nas equipes de PMF agosto/2021 segundo informações disponibilizadas pela gestão municipal), entre os meses de agosto/2021 e julho/2022. O critério de inclusão foi atuação mínima de três meses na equipe de PMF no mês anterior à realização das entrevistas. A escolha justificou-se por serem os profissionais mais diretamente envolvidos nas ações de coordenação e com maior relação com os demais especialistas, uma vez que as referências eram feitas quase exclusivamente pelos médicos da APS. A aplicação dos questionários foi previamente agendada diretamente com os envolvidos, que assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

É importante destacar que, no período de realização do estudo, em função da pandemia de Covid-19 e do concurso público realizado pela Fundação gestora da APS no município, muitas equipes se encontravam em vacância de médicos. No período da coleta, alguns profissionais foram contratados, contudo não incluídos no estudo por não atenderem ao critério de atuação mínima de 3 meses na equipe.

O modelo teórico desenvolvido por Vázquez et al. 14 e Vargas et al. 15 foi utilizado para análise da coordenação entre níveis assistenciais. O questionário, que reflete categorias da coordenação e guiou a apresentação dos resultados, está dividido em seis blocos: 1) experiência de coordenação da informação e da gestão da clínica entre níveis assistenciais (coerência/consistência da atenção, seguimento, acessibilidade entre níveis); 2) fatores de interação dos profissionais relacionados à coordenação entre níveis; 3) conhecimento e uso dos mecanismos de coordenação; 4) sugestões para a melhoria da coordenação; 5) fatores organizacionais, laborais e atitudes relacionados à coordenação entre níveis; 6) perfil dos entrevistados. Este artigo analisa as dimensões 1, 3, 4. Variáveis dos blocos 5 e 6 foram utilizadas para apresentar a caracterização dos participantes do estudo.

Foi realizada análise descritiva das variáveis por meio de frequências absolutas (n) e relativas (%). O instrumento COORDENA-BR® é composto por questões abertas e fechadas com alternativas de resposta dispostas em uma escala Likert, questões dicotômicas (sim/não) e outras com múltiplas alternativas de resposta. Algumas variáveis de interesse foram categorizadas para melhor compreensão dos resultados. As questões abertas foram registradas no momento da entrevista e agregadas conforme análise temática.

Este estudo fez parte de um projeto mais amplo intitulado: “Coordenação e continuidade dos cuidados entre APS e AE no município de Niterói”, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Ciências Humanas, sob parecer n. 4.456.756 e CAAE 34986920.8.0000.8160, com anuência do município.

Resultados

Características da amostra

Dos 51 médicos da APS participantes, a maioria era do sexo feminino (63%). Concentravam-se na faixa etária de 35 a 49 anos (45%) e apenas dois eram estrangeiros. A maioria possuía alguma especialidade médica, sendo a mais frequente Medicina de Família e Comunidade. A totalidade possuía vínculos precários ou temporários. A carga horária de trabalho, em sua grande parte, era de 32 horas, e uma parcela expressiva mantinha vínculo com o setor privado (42%). Quase metade dos entrevistados (47%) tinha de 12 a 47 meses de experiência no PMF no qual atuavam no momento da entrevista ( Tabela 1 ).

Tabela 1
Caracterização dos participantes da pesquisa, Niterói/RJ, Brasil, 2022.

Coordenação da informação e da gestão da clínica entre níveis assistenciais na experiência dos médicos da APS

A maioria dos médicos da APS (90%) afirmou não trocar informações com os especialistas sobre os atendimentos de usuários em comum, embora todos considerassem de grande importância ( Tabela 2 ). A totalidade encaminhava os usuários ao especialista quando necessário, 80% estavam de acordo com os tratamentos prescritos pelos colegas da AE e poucos mencionaram repetir os exames (18%). A maioria (74,5%) não percebia contradições ou duplicações nos tratamentos entre os níveis ( Tabela 2 ).

Tabela 2
Experiência de médicos da Atenção Primária à Saúde sobre a coordenação entre níveis assistenciais, Niterói/RJ, Brasil, 2022.

Percentual expressivo de médicos da APS referiu que o especialista não encaminhava o usuário para consulta de acompanhamento (43%). Ainda assim, a maioria reportou que tal consulta ocorria (71%), mesmo sem a recomendação dos médicos da AE (80%). Na mesma direção, grande parte dos médicos da APS (84%) não consultava os especialistas sobre dúvidas relacionadas ao seguimento ( Tabela 2 ).

A acessibilidade entre níveis foi um aspecto crítico, na medida em que os tempos de espera para consulta na AE foram considerados longos, o que não se repetiu em relação à consulta na APS na percepção dos médicos ( Tabela 2 ).

Por fim, os médicos da APS não percebiam articulação do cuidado prestado aos usuários pelos médicos da AE ( Tabela 2 ).

Nas questões abertas sobre as razões para repetição dos exames, os profissionais mencionaram diversos aspectos, entre os quais os mais frequentes foram: retenção dos exames no outro nível de atenção, principalmente exames laboratoriais, acarretando falta de acesso aos resultados; quando os resultados vinham com alteração e era necessária confirmação para acompanhamento; resultado dúbio, insuficiente, sem laudo, laudo vencido, inconsistência técnica, dúvida no diagnóstico; discrepância entre os sinais clínicos e laboratoriais; por não saber o motivo pelo qual foi pedido o exame; e o longo tempo entre o pedido do exame e a realização.

Conhecimento e utilização dos mecanismos de coordenação entre níveis assistenciais

A quase totalidade dos entrevistados indicou a utilização de formulário de referência, resumo de alta hospitalar e protocolos compartilhados entre níveis. Entretanto, nenhum reportou sessões clínicas entre APS e AE. Pouco mais da metade (67%) indicou existência de telefone institucional ( Tabela 3 ).

Tabela 3
Existência e frequência de utilização dos instrumentos de coordenação entre níveis assistenciais, médicos da Atenção Primária à Saúde, Niterói/RJ, Brasil, 2022.

Em relação à frequência de utilização dos instrumentos, embora todos os médicos da APS tenham referido envio do formulário de referência, o recebimento da contrarreferência era baixo ou inexistente (88%). Ao contrário, o recebimento do resumo de alta hospitalar era alto (80%), assim como o uso de protocolos ( Tabela 3 ).

Não havia dificuldades para o uso da referência para 76,5% dos médicos da APS. Em relação à contrarreferência, na quase totalidade das avaliações, o usuário se responsabilizava pelo trânsito do documento. As informações mais frequentes eram referentes a diagnóstico, tratamento e exames, porém não recebidas em tempo oportuno para a tomada de decisão ( Tabela 4 ).

Tabela 4
Características da utilização dos mecanismos de coordenação entre níveis assistenciais, médicos da Atenção Primária à Saúde, Niterói/RJ, Brasil, 2022.

A quase totalidade dos médicos da APS reportou receber o resumo de alta pelo próprio usuário (98%), em tempo oportuno para a tomada de decisão (84%) e sem dificuldades para utilizá-lo (86%) ( Tabela 4 ). Em relação às informações mais frequentes, as mais citadas foram: motivo da internação, diagnóstico e tratamento farmacológico.

A maioria dos médicos da APS seguia as recomendações dos protocolos (98%) e não encontrava dificuldades para utilizá-los (87%).

Um conjunto de perguntas abertas buscou qualificar as informações acerca da finalidade e das dificuldades para a utilização dos mecanismos de coordenação, cujas respostas foram agrupadas por meio da análise temática no Quadro 1 . Asteriscos destacam as respostas mais frequentes.

Quadro 1
Finalidade e dificuldades para a utilização dos mecanismos de coordenação dos cuidados, médicos da Atenção Primária à Saúde, Niterói/RJ, Brasil, 2022.

Reflexões e sugestões para melhoria da articulação entre níveis assistenciais

Por meio das perguntas abertas, foi possível que os médicos expressassem sugestões para a melhoria da coordenação do cuidado, agrupadas pela análise temática. As mais citadas se referiram à necessidade de informatização da rede e dos prontuários, somados à sensibilização ou/e à capacitação dos especialistas com relação ao preenchimento da contrarreferência. De todo modo, a maior parte das sugestões demandavam ações e atividades conjuntas entre médicos da APS e AE que pudessem melhorar a comunicação e sensibilizar os demais níveis quanto à função do PMF na RAS ( Quadro 2 ).

Quadro 2
Sugestões para melhoria da coordenação entre níveis assistenciais, médicos da Atenção Primária à Saúde, Niterói/RJ, Brasil, 2022.

Discussão

A coordenação do cuidado, em sinergia com o acesso (porta de entrada), a integralidade, a longitudinalidade, a centralidade na família, nos territórios e na cultura, compõe a imagem objetivo de uma APS forte, “coração” do sistema de saúde16 , capaz de direcioná-la aos princípios inclusivos do SUS. Embora tenham sido eleitos os médicos, busca-se refletir sobre a coordenação como um atributo dos sistemas, das equipes e dos profissionais de saúde comprometidos com o trabalho em redes.

Os resultados indicam que os médicos reconhecem a importância da coordenação da informação clínica, ainda que ela não aconteça. Reafirma-se a ausência de coordenação de mão dupla, ou seja, na percepção dos profissionais da APS, os médicos da AE parecem não reconhecer a importância do cuidado longitudinal e sua práxis é vista com desconfiança, não sendo a recíproca verdadeira7 , 17 . Embora a interação entre os profissionais evite encaminhamentos desnecessários18 , a ausência de relação entre médicos da APS e AE é uma evidência deste estudo.

Um achado positivo é a indicação de alto grau de coerência da atenção, o que é um indicativo de disposição às medidas pró-coordenação14 , 15 . Ainda que a coesão tenha sido percebida, as causas para repetição de exames sinalizam problemas de fluxo informacional na RAS. Na medida em que a rede não é informatizada, os resultados dos exames, por vezes, se perdem, não chegam em tempo, resultando em novas solicitações. Como parte do mesmo problema, a referência ainda é conduzida pelo usuário, assim como a alta hospitalar e a contrarreferência. Em um município urbano, com longa trajetória de APS, cabe refletir sobre as barreiras que se colocam à completa informatização das UBS. As políticas e inciativas federais, em alguns contextos municipais e estaduais, parecem exercer baixa influência e despertam pouco interesse na implantação planejada e sistematizada de tecnologias19 . Esse é um tema a ser aprofundado por outros estudos com vistas a identificar obstáculos à ampla informatização e conexão da RAS em municípios com perfil semelhante.

No caso estudado, interroga-se sobre as razões que levam à manutenção da pobre comunicação entre profissionais de saúde, que colabora para um conjunto de desfechos negativos no processo assistencial7 . Vários dispositivos que podem estimular a comunicação mútua e melhorar o relacionamento entre os profissionais são sinérgicos às tecnologias leves20 . Entre os quais, se destacam as sessões clínicas compartilhadas, matriciamento, elaboração conjunta do Projeto Terapêutico Singular, realização de consultas compartilhadas entre Nasf e equipes APS, grupos de trabalho entre APS, AE e gestão5 , 17 que, complementarmente, podem ser operados por tecnologias digitais.

Ainda que a comunicação seja um aspecto crítico da formação dos profissionais, argumenta-se que essa é uma habilidade essencial do cuidar em saúde21 e que há espaços para melhorias impulsionadas pelas gestões municipais em sinergia com os trabalhadores da saúde. A implementação de processos participativos que incentivem a coordenação é lenta e gradual e exige apoio institucional, investimentos e consideração das especificidades locais para consolidação das mudanças22 .

Longos tempos de espera para as atenções especializadas e hospitalares são um problema mundial, agravado pela Covid-19, e ameaçam a legitimidade dos sistemas públicos de saúde23 . Nesse sentido, a coordenação do cuidado pela APS teria também, como um de seus objetivos, estreitar as relações com os serviços e profissionais responsáveis pela retaguarda terapêutica. O objetivo é viabilizar o acesso mais rápido e oportuno aos procedimentos diagnósticos24 , ainda que não resolva todos os desafios da insuficiente provisão de AE25 .

Embora a comunicação face a face entre os profissionais de saúde seja a mais recomendada, a modalidade escrita constitui o meio mais usual7 . O resultado deste e outros estudos5 , 26 , 27 indica ser alto o envio da referência, e residual a contrarreferência, que, além do mais, quando enviada, não é recebida em tempo oportuno e não responde ao motivo da referência, indicando problemas de quantidade e qualidade.

Os médicos da APS elencam a falta de conhecimento pelos pares em relação à sua função na RAS e desconhecimento da necessidade de acompanhamento longitudinal nos territórios, problemas identificados por vários estudos. A sobrecarga assistencial também é uma barreira às ações de coordenação na APS e na AE, e carece de ações gerenciais e incentivos institucionais para que possa ser desenvolvida27 .

De toda forma, destaca-se a alta frequência de recebimento do resumo de alta, indicando que esse instrumento parece estar institucionalizado na atenção hospitalar, como também encontrado em outras realidades27 , 28 . Esse é um achado relevante na medida em que, mesmo em uma rede que não conta com prontuário integrado e informatizado, o resumo de alta parece ser um instrumento acessível. Interessante observar que tal padrão não é observado em relação à contrarreferência dos serviços de AE que atuam no mesmo espaço regional, como no caso analisado.

Telefones e aplicativos móveis são usados para acompanhamento dos usuários com agravos crônicos em diversos cenários29 . O uso de tais tecnologias, intensificado com a pandemia de Covid-19, mostra a premente necessidade de desenvolvimento de soluções tecnológicas. Os aplicativos gerenciados e monitorados pelos profissionais de saúde permitem acompanhar grupos de pacientes em um tempo significativamente menor se comparado ao telefone móvel30 . Nesse sentido, parecem urgentes os investimentos para que os profissionais tenham dispositivos móveis institucionais com planos de dados como parte de seu instrumental de trabalho.

As sugestões apresentadas para a melhoria da articulação entre os níveis ratificam o reconhecimento da necessidade de colaboração interprofissional; porém, mais que isso, expressam a insuficiência de condições tecnológicas, organizacionais e relacionadas aos valores e representações da APS no sistema de saúde. As ausências se expressam, entre outros fatores, na indisponibilidade de tecnologias de informação (prontuários informatizados) e de comunicação básicas e conhecidas (por exemplo, a contrarreferência), bem como na insuficiência de políticas (inclusive educacionais) e recursos compatíveis com a centralidade que a APS deveria ocupar no SUS. De toda forma, há reconhecimento da relevância do contato interprofissional como facilitador da coordenação, sendo esse um campo que necessita de recursos e valorização das gestões da saúde.

Como limitação, a investigação não abrangeu outros atores (gestores, usuários e profissionais da AE) e fontes que pudessem precisar a implementação e a utilização dos mecanismos de coordenação na RAS. Um dos desafios para a realização de estudos que envolvam médicos é a adesão e a disponibilidade para participação, exigindo repetidos retornos do pesquisador aos serviços de saúde.

Considerações finais

Ainda que os esforços para enfrentar a oferta de cuidados fragmentados possam ser do tipo bottom up ou top down , focados na APS ou nos demais níveis assistenciais, argumenta-se a necessidade urgente de introdução, indução e efetivo uso de tecnologias (velhas e novas) que promovam respostas coordenadas aos problemas de saúde, com melhor eficiência, qualidade e segurança. Por fim, este estudo se soma ao conjunto de evidências que reafirmam serem as RAS, integradas e integrais, uma das bases de sustentação de sistemas universais de saúde, sendo necessários esforços intencionais para direcionar ações e recursos à promoção da coordenação do cuidado, um de seus pilares.

Agradecimentos

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo apoio por meio de Bolsa de Produtividade em Pesquisa (PQ) à Almeida PF.

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  • Financiamento: O estudo “Coordenação e continuidade dos cuidados entre APS e AE no município de Niterói” foi financiado por meio do Edital do Programa de Desenvolvimento de Projetos Aplicados (PDPA), parceria da Prefeitura Municipal de Niterói-RJ e Universidade Federal Fluminense.

Editado por

  • Editor: Antonio Pithon Cyrino
    Editora associada: Aylene Emilia Moraes Bousquat

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Dez 2022
  • Aceito
    08 Maio 2023
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