Open-access Entre ouvidos e palavras: um ensaio sobre medicina narrativa, redes sociais e humanização na Atenção Primária à Saúde

In between hearings and words: an essay on narrative medicine, social media, and humanization in Primary Health Care

Entre oídos y palabras: un ensayo sobre medicina narrativa, redes sociales y la humanización en la atención primaria de la salud

Este ensaio almejou refletir sobre a relação entre medicina narrativa, redes sociais e humanização a partir da utilização, por um dos autores, das redes sociais para compartilhamentos de histórias vivenciadas no contexto da Atenção Primária à Saúde. Questões acerca dos modelos de atenção em saúde vigentes, da escuta e da narrativa como dispositivos de humanização do cuidado e da emergência das redes sociais como potencializadoras da prática de saúde humanizada surgiram como importantes pontos a serem analisados à luz da literatura vigente. Ao fim, foram compartilhados apontamentos para utilização da medicina narrativa como ferramenta para uma prática humanizadora.

Medicina narrativa; Humanização da assistência; Redes sociais


Abstract

This essay reflects on the relationship between narrative medicine, social media, and humanization based on the use of social media by one of the authors to share experiences in the context of primary health care. Questions about prevailing health care models, listening, and narrative as dispositives of the humanization of care and the emergence of social media as drivers of humanized health practices arose as important points that need to be analyzed in the light of current literature. In the conclusion we present some considerations relating to the use of narrative medicine as a tool for promoting humanizing practices.

narrative medicine; humanization of care; social networks

Resumen

El objetivo de este ensayo fue reflexionar sobre la relación entre la medicina narrativa, las redes sociales y la humanización, a partir de la utilización, por parte de uno de los autores, de las redes sociales para compartición de historias vividas en el contexto de la Atención Primaria de la Salud. Surgieron preguntas sobre los modelos de atención de salud vigentes, de la escucha y de la narrativa como dispositivos de humanización del cuidado y de la emergencia de las redes sociales como potenciadoras de la práctica de salud humanizada como puntos importantes a analizar a la luz de la literatura vigente. Al final, se compartieron observaciones para la utilización de la medicina narrativa como herramienta para una práctica humanizadora.

medicina narrativa; humanización de la asistencia; redes sociales

Ponto de partida

A prática assistencial na Atenção Primária à Saúde (APS) tem potencial para mobilizar as habilidades de escuta e escrita dos profissionais de Saúde, especialmente considerando sentimentos prementes, como sobrecargas emocionais e relações transferenciais em relação às pessoas, sejam pacientes ou outros trabalhadores. A criação do perfil Ouvindo Gente, na rede social Instagram, em 2017, por um dos autores deste ensaio, foi um exemplo dessa prática. No perfil, são compartilhadas narrativas em texto de encontros clínicos e vivências na APS. Os relatos, escritos em primeira pessoa, que incluem adaptações e nomes fictícios para preservar o sigilo das identidades, constituem-se representações de diálogos de um médico com pacientes e acompanhantes.

A vivência do processo de escrita para o blog fez emergir questionamentos sobre o uso das redes sociais como uma ferramenta para o uso da medicina narrativa (MN) e o potencial desta última para a construção de uma prática humanizada. Desse modo, os autores buscaram compreender a relação entre MN, redes sociais e humanização. O ponto de partida desse percurso foi o levantamento de questões acerca dos modelos de atenção em saúde vigentes, da escuta e da narrativa como dispositivos de humanização do cuidado e da emergência das redes sociais e das tecnologias como potencializadoras da prática de saúde humanizada. Essas questões foram colocadas à luz da literatura vigente e as reflexões construídas pelos autores são apresentadas neste ensaio, que se propõe a refletir sobre MN, redes sociais e humanização.

A medicina narrativa enquanto uma forma de ouvir e agir

O uso das redes sociais para o compartilhamento de histórias relacionadas ao cuidado em saúde é um fenômeno recente e Cenci1 avalia que esse fato, atrelado à transição do cuidado biomédico para uma abordagem centrada no indivíduo e à modificação na relação entre médico e paciente, que passa a ser menos hierárquica e mais coparticipativa, indica um aumento de interesse pela MN. Contudo, é importante ressaltar que o mero compartilhamento de histórias não é equivalente à MN definida por Charon2. Segundo a autora, MN é “a prática clínica fortificada com competência narrativa para reconhecer, absorver, interpretar e honrar as suas histórias e a dos outros”2 (p. 1897). A MN, de acordo com consenso proposto pelo Italian Health Institute3, é uma metodologia clínico-assistencial fundamentada em competências comunicativas específicas, integrada com a Medicina Baseada em Evidências, e tem por objetivos personalizar e desenvolver conjuntamente o cuidado. Assim, experiências em si mesmas, como pesquisas de caráter qualitativo, livros com coletâneas de histórias de pacientes ou técnicas de uma medicina dita “integrativa” ou “alternativa” que promove a cura por meio da contação de histórias não são equiparáveis à MN, como pontua Cenci4.

Como princípios desse método, Charon e colaboradores elencaram atenção, representação e associação5. O primeiro diz respeito a uma mistura de observação aguda, concentração sintonizada e atenção plena, permitindo ao médico perceber e registrar o que o paciente comunica verbalmente, em seus silêncios e por meio do seu estado físico. Já o segundo simboliza a capacidade de absorver as linguagens verbal e não verbal que descrevem situações complexas e caóticas e de lhes dar forma, que é temperada pelas percepções e sensações do médico e do paciente. A representação simboliza ainda a esperança de reconexão e comunhão entre a pessoa adoecida (contadora da história), o médico (escritor) e o leitor. Por fim, o terceiro princípio – associação – consolida os que vieram antes, traduzindo a capacidade de união entre os seres (profissionais, pacientes e leitores), uma vez que se reconhecem adoecidos ou passíveis de adoecer, necessitando de cuidados.

Ainda, segundo Leder6 e Greenhalgh e Hurwitz7, esse encontro, diagnóstico e terapêutico ao mesmo tempo, é único, pois caracteriza a história do indivíduo enquadrado na categoria de “doente” e ainda se desdobra em narrativas complementares, tais como: texto experiencial (valor atribuído pela pessoa aos sinais e sintomas que apresenta), texto narrativo (interpretação do médico sobre o “problema” contado pela pessoa), texto perceptivo (elementos coletados pelo médico a partir do exame físico) e texto instrumental (contribuições de exames complementares).

Analisando a resistência da academia tradicional em incorporar as dimensões humanas do adoecimento e restauração, Charon chama atenção para tais “falhas vexatórias da medicina”, as quais não só não contribuem para uma compreensão integral da pessoa adoecida como também minam a construção de vínculo e confiança na relação profissional-paciente5. Não obstante, a mesma autora exalta a competência narrativa como potencial construtor de sentidos para vivências da prática clínica.

A autopatobiografia – história da doença sob a ótica da pessoa – é a raiz da Medicina. Essa experiência tem seu caráter subjetivo ressaltado pela valorização da narrativa do indivíduo8. Por meio da compreensão do outro e de sua narrativa, o profissional de saúde pode, com humildade, aprender a oferecer cuidado genuíno e compassivo, recordando-se de quem está cuidando e porque tal cuidado é valioso2.

Atualmente, uma gama de publicações acadêmicas sustenta a importância da MN na prática médica5, ligando o desenvolvimento de competências narrativas ao aumento da empatia e de aquisição de habilidades de comunicação, observação e raciocínio ético9. Assim, a MN apresenta-se como um contrapeso à medicina biologicista, estando comprometida com o resgate da humanização, humildade, compromisso ético e imaginação dos profissionais de saúde, buscando possibilidades de reescrever as histórias contadas pelas pessoas10. Para Stelet11, o contraponto à Biomedicina se expressa na possibilidade de a MN tornar explícita a relação de poder entre o médico e a pessoa que busca o cuidado.

A partir dessas considerações sobre a MN, faz-se necessário refletir acerca da sua relação com o modelo biomédico.

O conflito entre a medicina narrativa e o modelo biomédico; e o diálogo entre a medicina narrativa e a humanização

Atenção à saúde com qualidade pressupõe o atendimento ao princípio da integralidade, isto é, consideração às diversas dimensões e níveis de complexidade dos problemas de saúde de pessoas, famílias e comunidades. A valorização da integralidade dentro do conjunto de práticas de um sistema e de seus profissionais de saúde está associada à racionalidade ratificada pelo referido sistema e operada por tais trabalhadores, de acordo com Paim12 e Pinheiro e Mattos13. Nas últimas décadas, tem-se assistido à ascensão de discussões aprofundadas sobre os modelos de racionalidades médicas vigentes e seus componentes. Segundo Luz14, o conceito de racionalidade envolve um complexo agregado de saberes e práticas composto por cinco dimensões inter-relacionadas: uma morfologia humana, uma dinâmica vital, um sistema de diagnose, um sistema terapêutico e uma doutrina médica. Sob essa ótica, ainda segundo a autora, seria possível distinguir várias racionalidades consolidadas, como a Biomedicina, a medicina tradicional chinesa, a medicina ayurvédica e a homeopatia.

A operacionalização dos saberes e práticas das racionalidades parte de pressupostos que variam de acordo com o paradigma ao qual se ajustam. Nascimento15 chama a atenção para coexistência de dois paradigmas na atualidade, sendo um hegemônico e outro que tem sido revitalizado nas últimas décadas. O primeiro é o paradigma biomédico, que possui caráter materialista/mecanicista e concebe formas de pensar e agir centradas na doença, tendo a tecnologia e o complexo médico-industrial como bases de sustentação. O segundo é o paradigma vitalista, o qual, por sua vez, contempla a integralidade, a promoção e a prevenção como fatores que geram saúde, aliados a equilíbrio e harmonia.

O modelo biomédico pode ser esmiuçado em um aglomerado de conceitos e ações que compreendem o processo saúde-doença a partir da Biologia, Física e Química, de tal forma que as dimensões humanísticas (sociais, psicológicas, culturais, históricas, entre outras) das pessoas e de seus processos de adoecimento recebem pouca atenção. Entre suas principais características, estão: visão centrada na doença, fragmentação do conhecimento por especialidades, excesso de tecnologia, alienação de emoções e linguagem dessensibilizada, por vezes violenta16. Um problema central desse modelo reside na sua baixa capacidade de explicar fenômenos que fogem à causalidade clássica patógeno/patologia, convertendo-se, assim, em empecilhos para a prática de profissionais de saúde17. Luz14 aponta para o desequilíbrio entre as dimensões racionais e intuitivas da racionalidade biomédica. A dimensão racional, centrada no saber, sobrepuja e domina a dimensão intuitiva, centrada na capacidade de mobilizar os processos de cura das pessoas. Esse desequilíbrio é descrito na MN como um conflito entre a narrativa de doença dos profissionais de saúde e a experiência de adoecimento dos pacientes. Em vez de mobilizar o encontro dessas narrativas, a prática biomédica vigente reduz a experiência de sofrimento narrada pelos pacientes a uma reformulação dessa narrativa em um diagnóstico. Nessa perspectiva, instala-se na prática dos profissionais de saúde uma verdadeira falta de comunicabilidade com seus pacientes e um distanciamento do devir ancestral da relação de cura.

Nos últimos quarenta anos, o movimento chamado “Humanização”18 iniciou-se com a luta por direitos sociais e ações humanitárias e se direcionou ao estudo dos fatores envolvidos na perpetuação de violência institucional na Saúde, que pode se manifestar, especificamente na Medicina, no esgarçamento da relação médico-paciente, caracterizando-a mais como “desencontro” do que como interações. O termo “medicina humanística” surgiu em resposta à crise de valores e dificuldades enfrentadas em serviços de saúde de todo o mundo. São reconhecidos como possíveis elementos que justificam essa crise: elevadas prevalência e incidência de doenças associadas ao estresse e à saúde mental entre profissionais de saúde; judicialização de relações entre pacientes e profissionais; desigualdade na distribuição de recursos tecnológicos, físicos e humanos; altos investimentos em tecnologia com baixa tradução em melhoria da qualidade de vida das pessoas; e fuga crescente de pessoas adoecidas da medicina tradicional em busca de soluções ofertadas por práticas de medicina ditas “alternativas”17. De acordo com Simões19, a humanização da assistência à saúde colocaria em xeque o modus operandi do sistema e de quem o constrói, demandando mudanças administrativas, políticas e, essencialmente, subjetivas, fundamentadas na transformação do modo de enxergar o usuário do serviço, que passaria a ser enxergado como um sujeito autônomo.

Em resposta a essa conjuntura, a Política Nacional de Humanização (PNH)20, conhecida como HumanizaSUS, foi criada pelo Ministério da Saúde a partir de uma ampliação da Política Nacional de Humanização da Atenção Hospitalar e define o termo “humanização” como “valorização da dimensão subjetiva e social em todas as práticas de atenção e gestão, fortalecendo e estimulando processos integradores e promotores de compromissos e responsabilização” (p. 9). A PNH se assenta sobre três princípios estruturantes: afirmação do protagonismo dos sujeitos e coletivos; a inseparabilidade entre atenção e gestão; e transversalidade das relações21. Pensando na consolidação da política em todos os pontos da linha de cuidado de um indivíduo dentro da rede de saúde, é fundamental reconhecer o papel da APS como porta de entrada do sistema de saúde e sua legítima capacidade de gestão e coordenação do cuidado21. Nesse contexto, uma revisão sistemática de Nora e Junges22 analisou publicações sobre práticas de humanização na APS e identificou três campos principais de inserção de tais intervenções: organização e infraestrutura dos serviços básicos de saúde, processo de trabalho e tecnologia das relações.

Dentro do domínio da tecnologia das relações, Merhy23 descreve o acolhimento, o vínculo, a escuta, o respeito e o diálogo como ferramentas amplamente disponíveis para os profissionais de saúde. A habilidade de escuta qualificada é entendida por Lopes e Bandeira24 como a construção de habilidade para ouvir as narrativas e distinguir, em seus elementos, formas de compreensão dos fatos da vida e da história da pessoa.

História de problema, que vira história de aprendizado, que vira história de vida

Saber ouvir, para Freire25, é uma habilidade essencial, que pode ser assimilada para a educação em saúde, sendo definida pelo Ministério da Saúde como o “conjunto de práticas do setor que contribui para aumentar a autonomia das pessoas no seu cuidado e no debate com os profissionais e os gestores a fim de alcançar uma atenção de saúde de acordo com suas necessidades”26.

Considerando que as ações de educação são inerentes ao trabalho em saúde27, a prática clínica deve ser compreendida como um processo contínuo de empoderamento e construção de autonomia em parceria com as pessoas. Dessa maneira, é possível estabelecer uma relação entre a MN, a educação em saúde, o fortalecimento do protagonismo dos sujeitos e uma prática humanizada.

Nesse contexto, percebe-se que a MN é um instrumento capaz de, a partir da história clínica tradicional relatada pelo indivíduo (história do problema), construir uma outra história, que pode ser recheada de elementos de promoção e educação em saúde e enfrentamento, conforme a habilidade do profissional (história de aprendizados). Não obstante, tal processo se refaz com a análise dessa última a partir do diálogo e do vínculo com a pessoa, promovendo autonomia e transformação de sua biografia (história de vida). Indo do centro às pontas e das pontas ao centro, a história inicial do problema é acolhida e trabalhada para que seja evidenciada uma história de aprendizados, catalisadora de resiliência. Essa história tem potencial para estimular transformações no encontro clínico. Ou seja, a MN pode ser utilizada como ferramenta de educação em saúde para proporcionar autoconhecimento e empoderamento das pessoas sobre seus processos de saúde e doença a partir de suas próprias histórias.

A partir do compartilhamento das histórias, é possível perceber o potencial da MN para dar centralidade às mais diversas dimensões da humanização descritas por Todres28. O senso de lar é uma dessas facetas e a percepção de que o ambiente da unidade de saúde é acolhedor pode contribuir com o fortalecimento da relação de confiança entre médico e paciente. Esses conceitos estão invariavelmente ligados à ambiência e ao acolhimento previstos e desenvolvidos como tecnologias na APS.

A personificação é outro aspecto da humanização e surge nas narrativas pelo reconhecimento da importância de valorizar o conhecimento do próprio organismo biofisiológico, com suas potencialidades e fragilidades, e não apenas como algo a ser consertado; a consideração da personificação do ser para além da máquina física amplia seu reconhecimento enquanto humano e, por consequência, seus possíveis recursos para construção de bem-estar.

As narrativas podem proporcionar perspectiva, contexto e significado aos dilemas das pessoas29. Ao definir os “comos” e “porquês” e “de que modos”, oferece-se ao leitor a possibilidade de vislumbres de compreensões que não seria atingido de outro modo. Brody relatou que médicos e terapeutas com frequência percebem seu trabalho como uma forma de facilitar histórias alternativas que façam sentido do ponto de vista do paciente30.

O Método Clínico Centrado na Pessoa, abordagem clínica primordial para a prática da Medicina de Família e Comunidade, tem como pressuposto a MN na medida em que ambos partem de um mesmo ponto – a história da pessoa – e a ele agregam valores (contextos próximos e distantes), sem os quais não seria possível tecer uma compreensão ampliada e integral do indivíduo31. O desenrolar dessa história contribui, inclusive, para a definição diagnóstica e decisão compartilhada das opções terapêuticas.

A conexão próxima entre o narrador (pessoa) e o leitor (médico) implica desejo de cuidado e confiança. Essa relação médico-paciente pode, por si só, representar um ato terapêutico, algo que Balint32 descreveria como:

O remédio mais usado em Medicina é o próprio médico, o qual, como os demais medicamentos, precisa ser conhecido em sua posologia, reações colaterais e toxicidade. (p. 335)

A ética médica também é afetada pelas narrativas, na medida em que estas são utilizadas pelo seu valor, isto é, pelas suas histórias (a narrativa em si) e pelo o que têm a contar33. Ainda, proporcionam reflexão sobre como as histórias são contadas (a teoria narrativa) e porque isso é importante para a prática médica. As narrativas em si mesmas contribuem para a ética médica ao serem usadas para o ensino de princípios éticos e como guias morais, que orientam a prática de uma boa medicina e de uma boa vida como um todo. Por fim, as histórias registradas servem como testemunhas das práticas adotadas e permitem revê-las, bem como os princípios éticos envolvidos.

Nesse contexto, iniciativas que utilizem elementos de educação em saúde a partir de princípios da MN nas redes sociais parecem promover a geração de redes de contatos, educação e cuidado do paciente, além de servir como fator mobilizador para coletivos envolvidos na discussão e elaboração de políticas públicas em saúde que considerem o elemento “humanização das práticas” como base. Camargo e Oliveira34 identificaram, por exemplo, o potencial do uso do Facebook em grupo de pessoas vivendo com HIV/AIDS (PVHA). De acordo com o estudo desenvolvido pelos pesquisadores, a socialização de PVHA em ambientes digitais pode reduzir o sofrimento diante da estigmatização da doença e melhorar a adesão ao tratamento.

Alguém falou. Alguém ouviu. Alguém anotou, para que mais alguém pudesse experimentar

No Brasil, várias iniciativas, individuais ou coletivas, têm se proposto a exercitar a MN nas redes sociais. Um exemplo é o blog Causos Clínicose, administrado por um grupo de médicas e médicos de Família e Comunidade, no qual são compartilhadas narrativas de estudantes e profissionais de todo o Brasil. Um outro projeto de destaque é o blog Rua Balsa das 10f, criado por profissionais de saúde envolvidos em práticas de educação popular em saúde no Rio Grande do Sul. A experiência se transformou no livro “Estórias da Rua que foi Balsa” 35 , que foi destaque nacional e internacional e chegou a ganhar o Prêmio Jabuti de literatura brasileira em 2017.

Fora do país, há alguns exemplos do uso da MN em redes sociais, como o Dear Diagnosisg. Trata-se de um blog mantido por duas autoras que objetivam o compartilhamento de experiências com diagnósticos. É permitida a participação tanto de pessoas com doenças quanto de profissionais de saúde e cuidadores. As narrativas são desenvolvidas a partir do relato sobre como ocorreu o processo diagnóstico. Propõe-se que se escreva sobre como isso afetou os sentimentos, as crenças e o impacto nos projetos de vida e nos relacionamentos dos autores. Além disso, estimula-se que a narrativa construa uma reflexão sobre a interface entre os sistemas de saúde e o diagnóstico relatado. Os relatos de diversos sujeitos (profissionais, pacientes, familiares) envolvidos com os diagnósticos catalisam o sentimento de alteridade entre os narradores, que vivenciam experiências particulares e observam e até participam, em alguma medida, dos processos de reconhecimento, acomodação e ressignificação das experiências de outrem.

Em tempos de pós-verdade, em que o argumento baseado nas emoções e nas crenças influenciam a opinião pública mais fortemente do que as verdades factuais e objetivas36, destaca-se o risco da propagação de fake news a partir das redes sociais. Observa-se que, nas plataformas digitais, as informações falsas se espalham mais rapidamente e de modo mais amplo, distante e profundo do que as informações relacionadas às verdades factuais37. Tendo isso em vista, é fundamental que pesquisadores e profissionais implicados com as verdades científicas desenvolvam estratégias para enfrentar a onda negacionista e anticientífica. Não há uma estratégia completa e universal capaz de frear a desinformação nas redes digitais. É necessário utilizar estratégias específicas para segmentos específicos e objetivos específicos38. Assim, defende-se que, para pesquisadores e profissionais engajados com as verdades factuais, a MN pode ser um recurso para o enfrentamento da desinformação, pois possibilita a produção de argumentos sensíveis e capazes de tocarem as emoções das pessoas.

Outro ponto de reflexão, sobre o uso das redes sociais, é o risco da cristalização de padrões ideais e narcisistas de sujeitos, a partir da perspectiva neoliberal que rege as mídias digitais. Há uma tendência perigosa, promovida por plataformas como o Instagram, da transformação dos sujeitos em objetos mercadológicos. Para que as pessoas consigam “se vender”, estimula-se exibições de si enquanto imagens e performances que são distantes da realidade39. A MN pode ser um contraponto a essa tendência. Por meio das narrativas das dores e dos sofrimentos, é possível promover o discurso do real não objetificado.

Ponto de chegada

A vivência do compartilhamento, em redes sociais, dos registros dos encontros com pessoas no cenário da APS, tendo a MN como inspiração, foi um movimento de busca por compreensão do universo singular e do outro. O mergulho na literatura vigente permitiu iluminar vários pontos cegos acerca da relação entre MN, redes sociais e humanização. Entre ouvidos e palavras, o ponto de chegada deste ensaio sinaliza a MN enquanto um valioso ponto de partida para a produção do cuidado.

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Editado por

  • Editor: Antonio Pithon Cyrino
  • Editor associado: Cesar Augusto Orazen Favoreto

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Set 2022
  • Aceito
    17 Out 2022
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