Open-access O manejo de alguns futuros médicos diante de situações de violência: algumas inquietações

The handling of some future doctors in situations of violence: some restlessness

El manejo de algunos futuros médicos en situaciones de violencia: algunas inquietudes

[...] naquele momento no parque das ruínas

percebi que temos falado muito

essa palavra ultimamente ruínas

não só na UERJ [Universidade do Estado do Rio de Janeiro] ou no rio

mas em todo canto

não sabemos o que fazer

quando tudo parece a ponto de desabar [...] 1 . (p. 17)

Este diálogo-comentário foi tecido a seis mãos e dispõe de dois tópicos que tocam transversalmente os pressupostos ético, estético e políticos dos autores. Concluímos nossos esforços no diálogo crítico com o artigo que abre esta seção “Debates” da Revista Interface. Para isso, sustentamos a questão: o que pode um artigo sobre formação médica, sensível às vicissitudes do sexual em nosso Brasil neste momento histórico em que apostamos em uma reconstrução ético-civilizatória?

Violência e gênero: sobre quem falamos?

A violência cometida contra os corpos dissidentes é uma constante nas existências LGBTIA+ e queers . Não por acaso somos o país campeão no ranking dos que mais matam essas vidas, principalmente se forem interseccionadas por raça, etnia, classe e localização geopolítica d .

Em outras palavras, há que se localizar a colonialidade do gênero como produção biopolítica. Para isso, torna-se fundamental considerar os modos como os discursos biomédicos se articulam como tecnologias de produção de perspectivas normativas e abjetas de masculinidades e feminilidades. Vale lembrar que o debate sobre gênero emerge no contexto da Medicina da década de 1950, mais especificamente, a partir de demandas correcionais de corpos que borram e desestabilizam fronteiras binárias de sexo/gênero. Discursos que, como denuncia a pesquisadora indígena Geni Núñes 2 , demarcaram (demarcam) dimensões corporais, sexuais e de gênero a partir da racionalidade da monocultura: monocultura dos afetos, monocultura dos padrões corporais, monocultura heteronormativa.

Nesse sentido, tais discursos incitam tecnologias de normalização que balizam perspectivas hegemônicas de Medicina que contribuíram e contribuem historicamente para reafirmar processos de classificação e hierarquização da população em categorias estanques, duais, morais e essencialistas. Estas, portanto, engendram-se em conluio com outros saberes e poderes na demarcação de fronteiras ficcionais, que se organizam a partir de uma divisão constituinte entre aqueles considerados humanos, sujeitos de direitos e usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), e outres e , que se atualizam como vidas precárias, impossíveis, ininteligíveis e monstruosas. Essa divisão ontológica impregna os modos de pensar e fazer ciência no cenário brasileiro e, por vezes, interditam que alguém seja, de fato, escutado em um atendimento clínico.

Um desses modos de interdição à escuta seria o ato de chapar a sigla LGBTIA+ e queers como um bloco, sem a análise de cada identidade e, dentro delas, das pluralidades, diversidades e singularidades 4 . Vidas pretas, pobres, de gays afeminados, travestis e transexuais são as mais violentadas. Quando essas pessoas conseguem acessar os cuidados do SUS após certas barreiras 5 , não raramente continuam a ser violentadas por práticas técnicas e colonizadoras, que imprimem modos verticais de ver o outro como corpo passível de ser invadido e doutrinado. Muito desse desrespeito vem da educação, com seus currículos repletos de saberes técnicos, porém, pouco humanizados.

Assim, o artigo com o qual dialogamos levanta uma questão primordial do respeito dos direitos humanos dos corpos LGBTIA+ e queers . Porém, precisamos questionar de quais direitos e para quais humanos falamos quando falamos em direitos humanos. Quais vidas valem 6 ? Quais merecem viver ou morrer na lógica da saúde capitalista, mercadológica, neoliberal e necropolítica 7 ? Quais existências são consideradas humanas, ou humanamente valoradas? Quais corpos são inteligíveis e quais vidas necessitam ser descartadas, merecem morrer ou deixar à mercê do próprio abandono, até que se morra por si? De que corpos necessariamente estamos falando? Corpos trans? Corpos pretas? Corpos periféricas? Corpos gordos? Quais são os mosaicos (im)possíveis? Debater relações não heteronormativas no âmbito da política pública de saúde nos convoca, necessariamente, a dimensionar noções de gênero e sexualidade em uma perspectiva interseccional, considerando diferentes posicionalidades que ocupamos no cenário político. É necessário considerar, de fato, as encruzilhadas que se desenham em nossas peles, traçadas a partir de marcadores de classe, raciais, territoriais, étnicos, entre outros.

Formação médica e seu horizonte de possibilidades

Como anda a formação médica no que tange à violência de gênero? Verifica-se uma violência já no currículo dos cursos da área da Saúde na observação de que não há em tais currículos a discussão de aspectos relacionados às vidas LGBTIA+ e queer e os corpos dissonantes que futuros médicos, médicas e mediques irão cuidar. Isso nos suscita algumas questões: faltam profissionais LGBTIA+ e queer também entre acadêmicos da Saúde? Entre os estudantes de Medicina, onde estão os LGBTIA+ e queer , que não reclamam por uma abrangência maior no cumprimento dos direitos preconizados pelo Código de Ética?

Defendemos que a academia repense suas práticas a todo instante, para que vá desaprendendo modos colonizadores do agir e pensar, e os substitua por outros modos de cuidar, em que o conhecimento técnico e científico seja inundado pelos saberes das pessoas atendidas, em uma construção de um prontuário de atendimento e diagnóstico partilhado. A partir do encontro com os corpos LGBTIA+ e queer é que se faz possível um cuidado digno e, para qualquer encontro, o inesperado do encontro com o outro nem sempre é “confortável”. O “desconforto” deve ser partilhado na busca de um comum. Não são saberes técnicos, em detrimento das experiências vivenciadas pelas pessoas atendidas, que garantem o cuidado. Perder o conforto, o controle e o poder médico, no momento do cuidado, faz parte de um processo de humanização, do próprio profissional de Medicina e dos profissionais de Saúde.

Nesse sentido, considerar cuidados em saúde que tenham como sul a dimensão dos direitos humanos nos convoca a primeiro perguntar: quais vidas ganham status de humanidade e têm seu direito à saúde minimamente garantido? Saúde para quem? Como articular um atendimento humanizado no SUS a aqueles que na ordem global são situados como não humanos?

De fato, o artigo dialoga com a subjetividade da época: pensar meios de “ensinar” como lidar com os impasses do sexual para jovens médicos em tempos em que o Brasil bate recordes de mortes de homossexuais, transexuais e feminicídios. A baixa adesão dos estudantes seria um sintoma desse contexto em que a morte se torna banalizada? O texto alega que os participantes teriam um lugar de “convertidos” para o que o estudo propunha avaliar. O que dizer do montante daqueles que não participaram do estudo? As ausências dizem por si mesmas? E a presença também é assim tão esclarecedora?

A formação pode ter suas balizas; suas orientações; seus horizontes civilizatórios; e seus indicadores táticos, estratégicos e políticos, mas há incorporações técnicas de qualquer ordem que podem dar garantias de uma formação médica como pedem os autores? Não seria aquilo que o texto revela uma necessidade que transborda os muros das instituições médicas e resvala em nossa sociedade que, apesar (e contra) das leituras contra-hegemônicas do sexual, ainda habita os muros altos do preconceito e da binaridade no que tange à pluralidade dos modos de gozo?

A investigação proposta no artigo acerta ao dizer que se trata de um desafio, fato percebido por Freud, pois este dizia que uma das profissões impossíveis é o ofício de ensinar. Mas o que nos resta é persistir na ampliação da escuta diante do sofrimento que gira em torno das múltiplas vivências e experiências com o sexual. O desafio maior, sem dúvida, é viver, e não sobreviver enquanto uma existência que não se enquadra aos ditames não heterossexuais em nosso país.

Abordar mais os temas como os propostos pelo artigo são janelas para a escuta. Não nos iludamos tomando as propostas do artigo em debate como garantidoras de um caminho para a mudança. Talvez existam caminhos. Um deles se esboça no artigo, mas não se encerra nele.

Referências

  • 1 Garcia M . Parque das ruínas . São Paulo : Luna Parque ; 2018 .
  • 2 Núñes G , Oliveira J , Lago M . Monogamia e (anti)colonialidades: uma artesania narrativa indígena [ Internet ]. Teor Cult . 2021 [ citado 1 Fev 2023 ]; 16 ( 3 ): 76 - 88 . Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/TeoriaeCultura/article/download/34439/24552 .
    » https://periodicos.ufjf.br/index.php/TeoriaeCultura/article/download/34439/24552
  • 3 Brevilheri UBL , Lanza F , Sartorelli MR . Neolanguage and “neutral language”: inclusive potentialities and/or conservative reactions . Res Soc Dev . 2022 ; 11 ( 11 ): e523111133741 . doi: 10.33448/rsd-v11i11.33741 .
    » https://doi.org/10.33448/rsd-v11i11.33741
  • 4 Akotirene C . Interseccionalidade . São Paulo : Sueli Carneiro, Jandaíra ; 2019 .
  • 5 Merhy EE . O cuidado é um acontecimento e não um ato . São Paulo : Hucitec ; 2013 .
  • 6 Butler J . Corpos que Importam: os limites discursivos do sexo . São Paulo : n-1 Edições ; 2019 .
  • 7 Mbembe A . Necropolítica . São Paulo : n-1 Edições ; 2018 .
  • d
    Dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e pelo Grupo Gay da Bahia, uma vez que os registros policiais oficiais são subnotificados e não há esse levantamento nos dados oficiais.
  • e
    Para a utilização de outras linguagens mais inclusivas, este artigo por vezes utilizará a neolinguagem, ou Linguagem Inclusiva de Gênero.

Editado por

  • Editor: Antonio Pithon Cyrino
  • Editor de debates: Sérgio Resende Carvalho

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Fev 2023
  • Aceito
    10 Abr 2023
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