Estudando “formação e atenção” em saúde, denominadas “Educação Interprofissional e Prática Colaborativa” (EIPC) no contexto da racionalidade neoliberal e dos países latino-americanos, Vásquez, Finkler, Ayala e Verdi constroem uma analítica que enuncia “incoerências e incompatibilidades estruturais”. A racionalidade neoliberal não se esgotaria nos aspectos políticos e econômicos ou ideológicos, mas envolveria as formas de ser e agir. Uma razão neoliberal permearia a gestão e a implementação dos sistemas de formação e atenção, entendidas as perspectivas microssocial, organizacional e macrossocial, implicando a forma concreta com que são entabuladas as subjetividades profissionais. Nesse constructo, interrogam o programa internacional de EIPC emanado desde a Organização Mundial da Saúde e, no âmbito latino-americano, desde a formulação da Rede Regional de Educação Interprofissional das Américas.
A análise dos autores foi sumarizada pela convocação “Educação Interprofissional em Saúde no contexto neoliberal: incongruências e desafios”, apresentando-nos um conjunto de componentes enunciativos: incoerências e incompatibilidades estruturais; barreiras e limitações; limitações e desafios ao empreendimento interprofissional colaborativo. O pensamento reflexivo dos autores situa-se num plano macropolítico (contradição e conflito), tornando visível uma economia das formas e do poder (relações professor-aluno/profissões-equipe, gestão e implementação de currículos ou disciplinas, integração ensino-serviço, acreditação e regulação profissional etc.).
Um bom debate com tal analítica é a problematização da existência de barreiras, limitações, incoerências, incompatibilidades, incongruências e desafios estruturais, na medida em que são todos argumentos sinalizadores de um polo reativo à EIPC. Para Negri e Vercellone1, “os serviços denominados superiores, assegurados historicamente pelo Welfare State, correspondem a atividades nas quais a dimensão cognitiva, comunicativa e afetiva do trabalho é dominante” (p. 4). Nesses serviços, “poderiam se desenvolver formas inéditas de autogestão do trabalho, fundadas em uma coprodução de serviços que envolva estreitamente os usuários”. É o caso da Educação e da Saúde. Então, poderíamos antepor uma economia das forças e da potência a uma economia das formas e do poder. Uma boa problematização, portanto, seria perguntar pela “ação”, indagar como agem e onde estão as linhas de força e potência que promovem formas ou as desestabilizam, que operam pela vigência dos instituídos ou pela ressingularização das práticas (de ensino, de cuidado, de gestão e de participação dos usuários). Não a descrição dos fatores da realidade social ou uma sociologia da contradição, mas a cartografia de uma micropolítica da resistência e da criação (o bom combate).
O bom combate, por exemplo, não estaria na derrubada de barreiras, porém no levantamento de trincheiras contra capturas empreendidas pelo capitalismo cognitivo. O bom combate estaria em resistir à vigência da colonização antropo-falo-logocêntrica da ciência e das profissões, assim como exercer a decolonização dos saberes e das práticas que incentivam valores de segregação, exclusão, hierarquia, verticalidade e certeza, porque, em realidade, são “regimes de práticas” ou “regimes de governamento das práticas”. Tais regimes são constructos sob os quais se erigem modos de empreender ensino e atenção em saúde. Esses “regimes” implicam “práticas de produção da verdade e do conhecimento”, compreendendo “múltiplas formas de racionalidade prática, técnica e calculante”, sendo “submetidos a programas de sua reforma”2 (p. 18).
Para Dean2, estudos de governamentalidade estariam “mais preocupados em saber como o pensamento funciona no cerne de nossas formas organizadas de fazer as coisas, nossos regimes de práticas e nossas ambições e efeitos” (p. 18-19), ou seja, orientam-se a examinar “as condições nas quais se formam, são mantidos e transformados os regimes de práticas” (p. 21). Seria preciso localizar as práticas organizadas por meio das quais somos governados e governamos a nós mesmos, aquilo que compreendemos, então, como regimes de práticas ou regimes de governo.
O capitalismo industrial significou exatamente a aplicação do conhecimento científico à produção, inclusive na direção de uma dinâmica de trabalho mais flexível e interativa. O capitalismo cognitivo, próprio do capitalismo contemporâneo, mudou o lugar do conhecimento como força de produção para o conhecimento como recurso e produto3. No capitalismo cognitivo, como ilustra Lazzarato, o conhecimento assume o lugar de vetor das inovações e dinâmicas produtivas, desestabilizando o modelo da fábrica ou da empresa e projetando uma permanente produção imaterial4. Conforme Negri e Vercellone1, no capitalismo cognitivo, “o motor essencial do aparecimento de uma economia fundada no conhecimento se encontra na potência do trabalho vivo” (p. 2).
Rolnik5 recupera, em sua análise sobre as obras de Tunga, artista pernambucano, os trabalhos designados por “Instauração”, em que incorpora à obra “pessoas estranhas ao mundo da arte, protagonistas de uma espécie de performance, seguindo um ritual com objetos e materiais sugeridos pelo artista; [depois] restos da performance compõem uma instalação que permanece exposta” (p. 8). Conforme Rolnik, “o conjunto formado pela performance + processo + instalação instaura um mundo”, donde a designação “instauração”. Segue: “a vida em suas diferentes fórmulas de criação constitui um dos alvos privilegiados do investimento do capitalismo contemporâneo”. A fim de “fabricar e comercializar clones, o capitalismo extrai as matrizes não só da biodiversidade na natureza, mas também do multiculturalismo de modalidades de produção de sentido, de territórios de existência e de subjetividade”. Quanto às Instaurações, evoca: “sabe-se lá o que vai acontecer...” e cita uma passagem de Gilles Deleuze e Félix Guattari (“Percepto, afecto e conceito”, em “O que é a filosofia?”, de 1992): “trata-se sempre de liberar a vida lá onde ela é prisioneira, ou de tentar fazê-lo num combate incerto”.
Na Saúde, como na Educação, nosso trabalho é fortemente imaterial (acolhimento, comunicação, troca de informações e saberes) e o produto desse trabalho é fartamente imaterial (um “estado” de saúde), não se esgotando na medida em que é consumido, porque ele próprio é produtor de saúde. Na Saúde, o trabalho imaterial e os produtos imateriais existem em profusão e, sob o neoliberalismo, estão açambarcados pelo capitalismo cognitivo. O capitalismo cognitivo tem em vista o controle sobre as formas do exercício profissional da inovação e da invenção, e revela-se na ativação de inovações e invenções. Não por acaso, durante a pandemia de Covid-19, a palavra “reinvenção” foi insistentemente pronunciada.
Sobretudo na Saúde, o capitalismo cognitivo acentua a imaterialização do trabalho e das relações de trabalho, otimizado que é pelos recursos tecnológicos agora disponíveis e amplamente consumidos, mas são os saberes vivos que os mobilizam, é o conhecimento que regula o consumo e a geração de tecnologia. Então, nossas ações de “formação e atenção” são enredadas pelas formas ou agenciam forças. O capitalismo cognitivo, em um jogo potente de saber-poder, modula corpo e saberes, não apenas em seus aspectos biofísicos, toma a alma, a cognição, os afetos e o poder criativo e inovador. Uma vez que agimos, que combates ensejamos? Não podemos nos colocar como as resultantes, tampouco supor que políticas provenientes de organismos internacionais se proporiam à instauração de mundos em aberto ou aos agenciamentos disruptores dos regimes de governamento.
Algumas das condições de possibilidade para a constituição da EIPC podem ser perscrutadas justamente pela cartografia do capitalismo cognitivo. A força de trabalho especializada e parcelar, com funções privativas estáveis e fragmentadas em leis de exercício profissional, vem sendo desbancada, em que pesem as lutas corporativas de reserva de mercado. Uma força de trabalho que opere com acolhimento, linha do cuidado, projetos terapêuticos singulares e trabalho em rede é aquela que vem sendo demandada em sistemas de acesso universal e base territorial. Corsani6 elucida que “a passagem do fordismo ao pós-fordismo pode ser lida como a passagem de uma lógica da reprodução a uma lógica da inovação, de um regime de repetição a um regime da invenção” (p. 15). Desde um ponto de vista macropolítico, as intenções estão claras sob a EIPC: melhorar a atenção e a qualidade dos serviços, diminuir custos e cumprir as metas da cobertura universal. Os desafios estruturais estão na ordem da regulação, da gestão do trabalho/educação, da revisão de normas de ensino e de serviço, da imposição de mecanismos de certificação e acreditação. A quem e quando interessaria pensar o problema da colaboração interprofissional como uma questão no bojo de uma economia das forças e potências? Essa inflexão ofereceria como mirada “uma terceira margem, intempestiva”7 (p. 264) e abordaria a experiência incoercível da presença3, um “estar-aí”, ativo e ético.
-
Ceccim RB, Prates CC. Educação Interprofissional, Práticas Colaborativas e Micropolítica: o combate incerto dos afetos no capitalismo cognitivo sob o trabalho em Saúde. Interface (Botucatu). 2023; 27: e230399 https://doi.org/10.1590/interface.230399
Referências
- 1 Negri A, Vercellone C. Il rapporto capitale/lavoro nel capitalismo cognitivo. Posse. 2007; Ott:46-56. HAL Id: shs.hal.science/halshs-00264147.
- 2 Dean M. Governamentality: power and rule in modern society. London: Sage; 1999.
- 3 Levin-Borges R. Políticas da presença: em tempos de neoliberalismo e neofascismo [tese]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2022.
- 4 Lazzarato M. Trabalho e capital na produção de conhecimentos: uma leitura através da obra de Gabriel Tarde. In: Cocco G, Galvão AP, Silva G. Capitalismo cognitivo: trabalho, redes e inovação. Rio de Janeiro: DP&A; 2003. p. 61-82.
-
5 Rolnik S. Despachos no museu: sabe-se lá o que vai acontecer... SP Perspectiva. 2001; 15(3):3-9. doi: 10.1590/S0102-88392001000300002.
» https://doi.org/10.1590/S0102-88392001000300002 - 6 Corsani A. Elementos de uma ruptura: a hipótese do capitalismo cognitivo. In: Cocco G, Galvão AP, Silva G. Capitalismo cognitivo: trabalho, redes e inovação. Rio de Janeiro: DP&A; 2003. p. 15-32.
- 7 Ceccim RB. Equipe de saúde: a perspectiva entre-disciplinar na produção dos atos terapêuticos. In: Pinheiro R, Mattos RA. Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: Abrasco; 2005. p. 259-78.
Editado por
-
EditorAntonio Pithon CyrinoEditora de debatesSérgio Resende Carvalho
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
30 Out 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
12 Ago 2023 -
Aceito
21 Ago 2023