Open-access Frestas: uma experiência de espaço contemplativo na formação em Saúde

Grieta: una experiencia de espacio contemplativo en la formación en salud

Resumo

O artigo apresenta uma cartografia dos acontecimentos vivenciados em um curso durante a pandemia com estudantes e profissionais da área da Saúde, adaptado para o ensino a distância e tomando fundamentalmente os conceitos de presença e experiência. Envolvendo criatividade e meditação e tendo como metodologia a fotografia contemplativa, a atividade objetivou apresentar a potência das práticas contemplativas e do Círculo Narrativo na criação de um espaço de acolhimento e de ampliação da percepção, permitindo que o tema da humanização seja abordado experiencialmente. Por meio das narrativas dos participantes e por meio de imagens e palavras, apresentam-se os impactos e sofrimentos vividos, bem como a percepção das potencialidades das frestas, ou seja, das aberturas. Tais frestas, criadas ou descobertas, geraram experiências coletivas de acolhimento e afetos disparados pela imagem, permitindo que os acontecimentos se tornassem interpelativos e criassem sentidos em dias tão difíceis.

Fotografia contemplativa; Meditação; Saúde; Ensino; Pandemia

Resumen

El artículo presenta una cartografía de los acontecimientos vivido en un curso durante la pandemia con estudiantes y profesionales del área de la salud, adaptado para la enseñanza a distancia, tomando fundamentalmente los conceptos de presencia y experiencia. Envolviendo creatividad y meditación y teniendo como metodología la fotografía contemplativa, el objetivo de la actividad fue presentar la potencia de las prácticas contemplativas y del Círculo Narrativo en la creación de un espacio de acogida y de ampliación de la percepción, permitiendo que el tema de humanización se aborde experimentalmente. Por medio de las narrativas de los participantes, utilizando imágenes y palabras, se presentan los impactos y sufrimientos vividos, así como la percepción de las potencialidades de las grietas, es decir, de las aberturas. Tales grietas, creadas o descubiertas, generaron experiencias colectivas de acogida y afectos, disparados por la imagen, permitiendo que los acontecimientos pasasen a ser interpelativos y creasen sentidos en días tan difíciles.

Fotografía contemplativa; Meditación; Salud; Enseñanza; Pandemia

Abstract

This study presents a cartography of the events experienced in a course during the pandemic, with health students and professionals, adapted for distance learning, using fundamentally the concepts of presence and experience. Involving creativity and meditation and using contemplative photography as a methodology, the activity aimed at presenting the potential of contemplative practices and the Narrative Circle in creating a space for welcoming and expanding perception, allowing the partakers to approach humanization in a experimental way. Through the participants’ narratives, using images and words, we could witness the impacts and sufferings they experienced, as well as the perception of the potentialities of the gaps, in other words, the openings. Created or discovered, such gaps generated collective experiences of acceptance and affection, triggered by images, transforming the events into questions and creating meanings in such challenging days.

Contemplative photography; Meditation; Health; Teaching; Pandemic

Introdução

O propósito deste texto é apresentar, na forma de narrativas e imagens, uma experiência com fotografia contemplativa no âmbito do Laboratório do Olhar (LabOlhar), um curso com estudantes da Saúde e realizado durante a pandemia; e traçar um percurso cartográfico de alguns dos acontecimentos vivenciados ao longo desse processo.

A fotografia contemplativa (miksang, fotografia meditativa ou mindfulphoto) é um exercício de busca pelo estado mental aberto, curioso e sem julgamento. Antes de ser uma técnica fotográfica, é uma forma de ver, uma experiência visual direta, em que o uso da percepção precede os conceitos. Derivada da meditação, na fotografia contemplativa busca-se observar a realidade sem pré-conceitos. Para Karr e Wood, “é método para treinar olho e mente através da observação cuidadosa e da presença, buscando-se a percepção, a visão clara, em oposição ao conceito. E registrar o que se vê, se vendo livre de expectativas”1 (p. 179).

Podemos considerá-la uma prática de mindfulness, ou atenção plena, termo que se refere a diversas práticas centradas na meditação e que pode ser definida como “a simplicidade em si mesmo [...] parar e estar presente”2 (p. 12). A base é o flash ou lampejo de percepção, o momento em que a inteligência da visão encontra uma imagem e se estabelece uma conexão com o presente.

O LabOlhar é um curso oferecido desde 2015 na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) como uma disciplina eletiva e atividade semestral, composta por cinco encontros e com turmas de dez a vinte alunos. No primeiro encontro, temos a única aula expositiva para apresentar o conceito de fotografia contemplativa e a dinâmica do processo. Nos demais encontros, realizamos discussões a partir das fotografias feitas pelos participantes, sendo este o momento de experimentação – daí o nome “laboratório”.

O LabOlhar se debruça sobre o conceito de fotografia contemplativa e incentiva sua prática enquanto uma atividade artística e meditativa, cujo objetivo não é o resultado, mas o fazer, o explorar a experiência da presença por meio do olhar, mantendo-o no presente de modo a registrar o que se vê, livre de expectativas. Ao longo do curso LabOlhar, foram apresentados também exercícios de mindfulness para enriquecer a experiência meditativa e auxiliar na conexão das pessoas com o momento e com a atitude de abertura para a experiência2 (p. 13).

A partir do segundo encontro, o Círculo Narrativo passa a ser uma etapa importante. Essa atividade consiste em formar uma discussão em roda sobre questões despertadas pelas fotos, sem o objetivo de analisá-las quanto à qualidade, mas sim as encarando como oportunidade de deixar fluir percepções: cada participante relata o que vê, o que o afeta e o que pensa em cada fotografia. A nomenclatura “círculo” decorre da abertura para todos falarem e da proposta de não haver hierarquia. Assim, é possível construir uma narrativa uma narrativa com todos os participantes da atividade, ainda que múltipla e aberta.

Apenas ver fotografias e dizer um simples “gosto/não gosto” esgotariam rapidamente a experiência3 (p. 34). Seria preciso uma oportunidade de “argumentar” os humores, um momento estético-reflexivo que nos parece essencial, como uma forma de expandir a imagem, algo que abarque cada individualidade, mas não de forma a reduzi-la.

O essencial é poder expressar o que a foto produz ou provoca e, a partir disso, com o grupo, desenvolver uma narrativa, que não precisa ser fechada e pode, por exemplo, aproximar o tema que surge da vida dos participantes. Para isso, partimos dos conceitos barthesianos de studium, o que se vê na foto, a descrição, e punctum, o que na foto te toca e te fere, mesmo que aparentemente não seja o objetivo do fotógrafo3 (p. 46-51).

O objetivo do curso, para além de apresentar a fotografia contemplativa como um recurso de promoção de qualidade de vida e uma prática que exercita a atenção plena – seja para o autocuidado, como prática artística ou como componente da atividade profissional –, é oferecer um espaço para discussões humanizadas e acolhedoras, a fim de ampliar a experiência dos participantes e trazer o tema da humanização de forma mais experiencial e fluida e menos técnica.

A seguir, apresentaremos uma breve cartografia do vivenciado pelos participantes de uma turma especificamente atravessada pela pandemia de Covid-19, em que o curso, realizado no segundo semestre de 2020, foi adaptado para o ensino a distância.

Consideramos, aqui, o percurso da cartografia como um duplo movimento de “acessar o plano do comum e também construir um mundo comum e, ao mesmo tempo, heterogêneo”4 (p. 264). Para isso, valemo-nos de fotografias e textos produzidos pela turma e pelo pesquisador.

Partindo “do pressuposto de que o ato de conhecer é criador da realidade”4 (p. 264), pretendemos apresentar uma experiência concreta de construção de diálogos mediados pela imagem e de criação baseada na meditação.

Nesse processo, alguns autores nos guiaram. Nesse sentido, Renato Ferracini5 questiona se a experiência, caracterizada por ele pelo encontro e pela presença, poderia ser um ato de “produção de uma saúde que não passa pelo saudável do músculo, do orgânico e do bem vivido”, mas sim “pelo compartilhamento de experiências poéticas coletivas [...]”5 (p. 1). Susan Sontag6, por sua vez, considera que a fotografia seria um recurso ilimitado de experiências, capaz de criar, mais do que representar a realidade. Por fim, Jorge Larrosa Bondía7 afirma que “A experiência e o saber que dela deriva são o que nos permite apropriar-nos de nossa própria vida” (p. 27).

A partir das inquietações despertadas pelos autores, interessou-nos perceber, sobretudo, os afetos e o que toca, até mais do que os aprendizados, pois, afinal, “cartografar é conectar afetos que nos surpreendem”8 (p. 336).

O projeto foi aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da instituição, sob o número de parecer 1.763.067.

O pesquisador

Com a suspensão das atividades universitárias, a partir da decretação da emergência causada pela pandemia de Covid-19 em março de 2020, tivemos que lidar com medo, preocupações e incertezas. Para este pesquisador principal e primeiro autor, mesmo como praticante de meditação e considerada uma pessoa “calma”, senti o impacto e a angústia de adiar os planos. Foi necessário enfrentar esse confinamento repentino, involuntário e improvisado. Aos poucos, encontrei formas de lidar com a situação, assim como tantas pessoas que, de acordo com cada contexto, condições socioeconômicas e tantos outros fatores precisaram reorganizar seus dias; adaptar-se às novas circunstâncias, demandas e faltas; e descobrir aquilo que era possível ser feito. Era necessário tecer novos ordenamentos, principalmente naquele momento inicial, para poder prosseguir, entre noticiários de mortes e governantes sem agir.

As preocupações cresciam e a carga de estresse em nenhum momento diminuiu. No entanto, havia dentro de casa um certo prazer nessa nova rotina, proporcionado pelos exercícios que, ao mesmo tempo, eu praticava e propunha aos alunos.

Cartografia: o percurso da experiência

Cartografia, original e literalmente, refere-se à elaboração de cartas geográficas, que são a expressão e busca para se conhecer e entender os territórios. No entanto, nas Ciências Humanas e, especialmente, na Educação, a cartografia tem adquirido significados variados, configurando-se como um método de abordagem de experiências, um método de pesquisa que não objetiva encontrar algo pressuposto, confirmar ou refutar resultados esperados, mas sim que propõe descobrir a experiência do caminho9 (p. 668), um processo em aberto em que se traça um plano comum entre os envolvidos, pesquisadores, participantes e comunidade e conectam-se afetos9 (p. 671).

Pretendemos apresentar, em nossas narrativas, o potencial da inclusão dos participantes da pesquisa como sujeitos ativos, de “fazer valer o protagonismo do objeto e a sua inclusão ativa no processo de produção de conhecimento”4 (p. 264).

Colocar o participante e o pesquisador para contar uma história e criar imagens, juntos, só tem sentido, como uma pesquisa, se inserido dentro de uma proposta de abertura: “Quando acontecimentos são narrados e compartilhados, personagens, lugares, conversas, texturas e imagens ganham espaço em nossas vidas”8 (p. 335).

Por isso, procuramos cartografar “com afetos, abrindo nossa atenção e nossa sensibilidade a diversos e imprevisíveis atravessamentos”4 (p. 277), buscando, assim, a possibilidade de conhecer a potência da experiência transcorrida de forma desarmada, colocando o participante da pesquisa em posição de coautoria na reflexão e problematização do processo de pesquisa.

Pandemia e interrupção: uma nova turma

Quando a pandemia começou, o LabOlhar estava iniciando duas turmas, uma em São Paulo e outra em Santos. Havia muita expectativa tanto por parte dos inscritos quanto da parte do pesquisador-professor, especialmente em relação à turma de Santos, pois era a primeira vez que seria ofertada aquela disciplina na cidade. Tanto a disciplina quanto a pesquisa a ela vinculada já tinham seus passos planejados e previstos. E agora, o que fazer? O estresse foi enorme, e o sentimento de ter algo injustamente tirado de mim foi forte, especialmente em relação à turma da Baixada Santista. Estava perdendo a chance de ir à Santos quinzenalmente, ter contato com esses novos alunos e com novas realidades. Havia dado apenas uma aula para essa turma: a segunda aula, que aconteceria em 23 de março – a caminhada fotográfica – sempre foi uma ótima experiência, que vinha sendo muito aguardada por mim e pelos alunos. Sem ter tido a oportunidade de realizar a caminhada, decidi, não sem frustração, cancelar essa turma.

Já com a turma de São Paulo que já havia tido duas aulas – incluindo a caminhada fotográfica –, decidi seguir em frente. Porém, como não havia definição oficial da universidade sobre a continuidade das aulas, situação que perdurou por meses, disse aos alunos que seguiria informalmente com a disciplina e quem quisesse poderia aguardar a volta oficial das atividades acadêmicas.

Aproximadamente metade dos alunos da graduação e todos da pós-graduação aceitaram permanecer cursando a disciplina. Foi muito bom ter essa atividade: era uma forma de continuar meditando, e os exercícios para permanência no presente e abertura do olhar tinham um efeito desestressante, sendo boas práticas para os alunos e para mim.

Ao realizar as atividades propostas, como andar pela casa descobrindo os efeitos e belezas da luz (figura 11), surgiam momentos de calma e atenção plena; e momentos de pausa nas preocupações daqueles dias, que nos possibilitaram, por meio de descobertas visuais, fortalecer-nos.

Figura 11
Fotografia do pesquisador principal e primeiro autor.

As aulas foram retomadas oficialmente pela universidade apenas em julho, de forma on-line. Com a turma de São Paulo, retomei as atividades para os alunos que optaram por esperar a volta. Já para a turma de Santos, comecei o processo novamente, agendando e divulgando uma nova turma; e fazendo as inscrições necessárias.

Dessa vez, o curso foi planejado para EAD, com cada aula prevista após a experiência improvisada anterior. Aproximadamente metade dos alunos que estavam na turma cancelada se inscreveram nesta, mas também houve novos interessados.

O curso teria seis aulas e optei por fazê-las a cada duas semanas para estender nossos encontros, que começaram em agosto e assim foram até novembro. Nesse período, a maioria dos participantes já estava de certa forma adaptada à rotina de quarentena ou às restrições, e muitos eram trabalhadores da área da Saúde e conviviam de perto com as consequências da pandemia.

Nessa turma, havia vinte participantes. Composta apenas por mulheres, todas estudantes da área da Saúde e com a maioria já atuando profissionalmente, as discussões frequentemente abordavam as dificuldades próprias daqueles dias, como o confinamento, a solidão, o medo, as dificuldades em trabalhar ou cuidar dos filhos e os problemas financeiros.

Tanto eu quanto as alunas fomos percebendo como os exercícios e as discussões nos ajudaram a atravessar esse período difícil. Saber que outras pessoas passavam por dificuldades semelhantes tornavam os dias menos solitários. Mais importante ainda foi compartilhar soluções, dúvidas, angústias e pensamentos e perceber como a arte se aproximava da realidade, tornando mais fácil abarcá-la, e isso tornava o momento da aula muito aguardado.

Sentimos que o curso passou rapidamente e que deixou uma abertura para a percepção.

A potência das frestas

Mais tarde, refletindo sobre as fotografias e os textos dos alunos, percebemos que o curso funcionou, de certa forma, como uma brecha de luz na escuridão, como se fosse uma abertura, ainda que temporária e breve, nesses momentos tão angustiantes da pandemia. A palavra “fresta” surgiu como expressão dessa abertura que nos permitiu lembrar que existe algo para além dessa escuridão.

Vamos agora explorar essas frestas. A seguir, apresentaremos fotografias e trechos dos relatos das participantes, elaborados ao final da disciplina e acompanhados apenas do primeiro nome de cada uma para preservar suas identidades, conforme autorizado por elas.

Uma janela criativa

Figura 1
Fotografia da aluna Juliana.

E em um dos momentos observando ao redor, prestando atenção, percebi um rastro na folha de uma lagarta que apelidei de “lagarta virginiana”, pois ela parecia ter organizado a forma de comer a folha. Achei lindo e fotografei. (Juliana)

Figura 2
Fotografia da aluna Fabiana.

Os exercícios realizados eram janelas criativas que me acalmavam. (Fabiana)

Muitos dos exercícios propostos consistiam em andar pela casa, ou em outro local possível, e observar tudo que se apresentasse aos olhos, sem buscar nada específico, apenas exercitando a descoberta. Essa prática objetiva principalmente o exercício da percepção, pois pede mais paciência para acontecer. A fotografia contemplativa propõe olhar e fotografar sem expectativas, treinar olho e mente “por meio da observação cuidadosa e da presença, buscando-se a percepção e a visão clara, em oposição ao conceito.”1 (p. 179, tradução nossa). Imaginamos que essa atividade possa ter também um efeito desestressante ou calmante, pois, ao focar o olhar no que está presente, pode-se temporariamente esquecer preocupações, ansiedades e lembranças; e suspender o julgamento, proporcionando um alívio para a mente.

Assim, encantar-se ou “achar lindo” o simples caminho da lagarta, fotografar, perceber que há uma janela criativa aberta e que isso acalma constituem-se no começo da descoberta da contemplação.

Aquilo que tem lugar

Figura 3
Fotografia da aluna Ana.

Na minha percepção, a falta de diretrizes claras das instâncias que supostamente deveria trazê-las demonstrou um aspecto tão letal quanto o vírus. [...] Frustração enorme abateu-se em mim. [...] A validação do quanto podemos aprender e ensinar nesse movimento de trocas afetivas, da observação do entorno e do que nos afeta sem a preocupação frenética de fazer alguma citação ou referência bibliográfica é o que fica de mais precioso dessa experiência. Nossas percepções, vivências, sentimentos e desejos têm lugar. Lugar esse que a academia nega e até rejeita a maior parte do tempo. (Ana)

Figura 4
Fotografia da aluna Fabiana.

E, diante do caos de ideias, orientações e trabalhos, lá estava eu, uma trabalhadora do SUS [Sistema Único de Saúde], na área de vigilância epidemiológica, [mas] com a expectativa de respirar outros ares, outro cenário talvez mais imaginativo do que situações difíceis que já vinha experimentando diariamente há seis meses, nem que fosse por duas horas a cada 15 dias, [...] me inscrevi como eletiva e iniciei. (Fabiana)

Os dias estão longos, intensos e cansativos, o desânimo, o medo, as incertezas se fazem presente, mas a gratidão fortalece e a disciplina contribuiu significativamente com esse meu lado grato, na descoberta de novos olhares, na possibilidade de maior percepção. (Patrícia)

Muitas alunas eram trabalhadoras na área da Saúde e estavam envolvidas diretamente com a pandemia; suas rotinas foram temas constantes nas conversas, levando a momentos muito intensos. Ficou clara a frustração com as dificuldades do presente e com o desinvestimento na realidade por parte do poder público. Em muitos momentos, era quase um tabu falar diretamente do trabalho, das mortes, do sofrimento, mas os demais percebiam e entendiam o não dito. Nesse contexto, podemos perceber a importância de um lugar que acolhe “percepções, vivências, sentimentos e desejos” (Ana), que, afinal, integram qualquer pessoa.

Experimentamos sentimentos e olhares do outro por meio do que Ferracini et al.10 definiram como uma “presença radicalmente coletiva” (p. 117), algo que pode quebrar o tempo cronológico, abrindo uma fissura, e – por que não? – uma fresta para, por exemplo, o acolhimento. Esse efeito é intensificado pela abertura coletiva de corpos, no presente caso, por meio de olhares e sentimentos. Ainda para esses autores, essa presença, como uma abertura, aumenta a qualidade do encontro pela “ampliação do poder de afetar e ser afetado”10 (p. 117).

Essas frestas permitiram sentir que é possível respirar outros ares, encontrar ao mesmo tempo uma saída e deixar entrar novas experiências. Nas fotos, vemos as frestas entre os edifícios deixando passar um pouco de luz e de céu, como se o olhar buscasse uma saída da loucura de uma rotina massacrante, ao mesmo tempo que deixava entrar luz para seus próprios sentimentos, resultando em sensações de alívio e gratidão em meio a tantos sentimentos negativos.

Percebemos que as participantes, mesmo quando saíam de casa para trabalhar ou realizar outras obrigações, ainda se sentiam confinadas, seja pelo medo, pelas preocupações ou pelas máscaras. No entanto, nos nossos encontros, esse medo aos poucos perdeu espaço, e, ao nos abrir, criamos um lugar de presença e acolhimento.

Revelando o simples e o comum

Figura 5
Fotografia da aluna Yasmin.

Fora da aula, exercícios de observação de cores, perspectivas, texturas e outros ricos detalhes me fazem perceber a beleza do rabo do Sardinha, perceber o colorido dos chinelos e parar para apreciar e admirar, na simplicidade, sem a pretensão de ser simples de fato, ou complexa. (Yasmin)

Figura 6
Fotografia da aluna Andrea.

Pude observar camadas da cidade, cores dos lugares por onde passo, das coisas no meu trabalho e de como podemos usufruir de momentos de simplicidade. (Andrea)

O exercício de observar o comum permite ampliar o olhar e simultaneamente diminuir expectativas e ansiedades, exercitando a capacidade de se encantar com o momento. “Os exercícios da fotografia contemplativa visam trazer a simplicidade de volta em nossas vidas através da desaceleração do olhar”1 (p. 127). É uma forma de, ao menos momentaneamente, deixar a complexidade dos problemas e restrições e perceber a beleza do simples, descobrir novas camadas no comum e, assim, aproveitar o cotidiano.

Distâncias e proximidades

Figura 7
Fotografia da aluna Evelyn.

Era a primeira disciplina que iria cursar durante o período da pandemia e do ano de 2020. [...] a princípio se distanciava da temática do projeto de pesquisa, mas convocava para as demais áreas da minha vida: o yoga, a meditação e a saúde. (Evelyn)

O espaço do LabOlhar – que, a princípio, poderia ser distante da pesquisa de algumas participantes – também oferecia uma conexão do meio acadêmico com outros espaços da vida. Algumas delas estavam retomando suas aulas nesse curso e, ao mesmo tempo que “saíam” para as aulas, ainda estavam dentro de casa.

Ao falar e ouvir sobre essa dualidade, as alunas dispararam reflexões sobre o dilema gosto versus obrigação. Isso foi percebido como uma experiência impactante, trazendo um nível a mais de percepção de nossa própria existência singular e concreta. Como destacou Larrosa Bondía, “a experiência e o saber que dela deriva são o que nos permite apropriar-nos de nossa própria vida.”7 (p. 27). Assim, surgiram outras formas de relacionar distâncias e proximidades, na vida acadêmica e pessoal.

Estar junto

Figura 8
Fotografia da aluna Fabiana.

Defino como um frescor para a minha alma e mente ter cursado esta disciplina. (Fabiana)

Figura 9
Fotografia da aluna Evelyn.

Quando me atentei, estava há um tempo olhando aquela imagem. Respirando naturalmente, senti uma serenidade. Lembrei do exercício e registrei. [...] Em aula foi interessante a visão dos demais sobre a imagem, cada um se conectou com um detalhe. (Evelyn,)

[...] cada encontro foi um misto de aprendizado, alegria, prazer e desafio. (Juliana)

De que formas o acolhimento pode se expressar? O que mostra que estivemos realmente juntos e que o curso foi uma boa experiência?

Se a cada encontro havia “aprendizado, alegria, prazer e desafio”, podemos dizer que se trata de um espaço de aprendizado potente. Participar do curso trouxe para Fabiana uma sensação de “frescor para a minha alma e mente”, que veio junto com uma imagem da amplidão da noite, sugerindo, além de acolhida, uma abertura para a observação atenta. Essa mesma imagem, quando partilhada na aula, permitiu perceber como os demais se conectaram com diferentes detalhes, oportunizando escuta e atenção mútua.

Assim, o acolhimento se fez no encontrar, escutar, perceber e valorizar o olhar, a narrativa e a presença; e no contemplar juntos. Para Manning11 (p. 279), a “contemplação – assim como a intuição e sua contraparte, a simpatia – ativa o diferencial do acontecimento” e, a partir disso, construímos um espaço contemplativo em comum, uma abertura para a simpatia e o aprendizado.

Presença e conexão com o momento

Figura 10
Fotografia da aluna Rita.

Estimular a atenção para o olhar ativou todo o corpo... afloraram com muita intensidade as percepções de todas as novidades do entorno. Cada canto, cada objeto, tudo vem para o olhar com muita potência. (Rita)

O que fica é a vontade de continuar e seguir em uma dinâmica que nos permita contemplar mais as pequenas sutilezas da vida, nos conectando ao momento presente de forma mais potente. É um aprendizado que sai da academia e continuará na minha vida. (Juliane)

Fiz os mesmos exercícios que propus aos participantes, como andar pela casa observando a luz. Para mim, foram momentos importantes para lidar com a pressão e a ansiedade. (Pesquisador principal e primeiro autor)

As frestas apareceram dentro de casa, nas fotografias, nas narrativas e, principalmente, no olhar das alunas. Se “cada canto, cada objeto, tudo vem para o olhar com muita potência” (Rita), é porque houve, antes de tudo, a pausa, uma conexão com o momento. As frestas estavam lá, mas, para percebê-las, foi preciso, como a própria aluna disse, “contemplar mais as pequenas sutilezas da vida, nos conectando ao momento presente de forma mais potente” (Juliane).

Essas frestas permitiram a presença dos objetos e das outras pessoas, abrindo passagens e possibilitando um entrar e sair do lugar de conforto. Como especulou Giannachi12, “a presença é a operação por meio da qual o sujeito se testemunha como outro e depois recicla esse ‘outro’ para que se torne parte de si mesmo” (p. 60). Assim, o próprio olhar foi uma fresta que promoveu a conexão profunda consigo e com o presente para que realidade e presença passassem de forma mais intensa.

Olhando através das frestas

O conceito de fresta é essencial na fotografia. A própria câmera fotográfica funciona basicamente a partir de uma fresta – o obturador –, que é também uma espécie de cortina que se abre por um breve instante, permitindo que a luz passe e assim se forme a imagem no filme – no caso da fotografia analógica, – ou no sensor, no caso da fotografia digital. No sentido criativo, a fotografia busca, entre outros objetivos, encontrar algo presente, mas não percebido, como se propusesse a abrir uma brecha e desbloquear a percepção.

Nas narrativas e imagens apresentadas, a contemplação aparece como uma janela criativa, que acalma; e permite manifestar afetos e trazer as “percepções, vivências, sentimentos e desejos” (Ana) para uma conversa em grupo, o que foi percebido principalmente como um gesto de acolhimento. Porém, se as narrativas das participantes valorizaram o acolhimento, podemos supor que elas encontram, em geral, lugares não acolhedores. Aqui, propusemos ultrapassar essa barreira por meio da arte, da meditação e da conversa. Sabemos que as “maneiras de conhecer das humanidades e das artes [...] nos ajudam a apreciar o paradoxo, tolerar a incerteza e manter muitas interpretações contraditórias das histórias em mente ao mesmo tempo”13 (p. 407, tradução nossa). Assim a fotografia e as conversas geradas nos permitiram fazer passagens nessa barreira antes sequer percebida.

Essas passagens, uma vez descobertas ou criadas, aparecem ora como uma saída e um alívio da rotina esmagadora, ora como uma possibilidade de entrada, seja para a luz, para a criatividade ou para o outro. É como se nos alternássemos nos papéis de fotógrafo e fotografado, ou autor e receptor.

Contudo, se essas frestas se manifestaram principalmente por meio de imagens, estas poderiam ser entendidas como mera representação de algo, quando, na verdade, são potentes justamente por serem experiências por si mesmas. Não estávamos, nos momentos em que havia a discussão das imagens, debruçados sobre representações, mas, sim, criando um momento autêntico. Afinal, como disse Sontag6:

[...] a força da imagem fotográfica origina-se no fato de serem elas realidades materiais por direito próprio, depósitos ricos em informação deixados no rastro da coisa que as emitiu, meio vigoroso de virar o feitiço contra o feiticeiro, no caso a realidade — de transformá-la em sombras. (p. 172)

Criar essa realidade, ao fotografar ou ao discutir imagens, levou-nos a perceber a beleza contida no simples, descobrir novas camadas no comum e usufruir do momento, mesmo o mais ordinário, o que pode ser uma saída temporária, uma pausa na complexidade dos problemas, limitações e sofrimentos, mas também uma possibilidade para conectar diferentes instâncias da vida, que a princípio parecem separadas, como a vida acadêmica e a pessoal.

Ao nos expor à experiência das vidas e aos olhares uns dos outros, criamos sentidos em dias tão difíceis. Porém, entendendo a experiência como algo que nos acontece, é necessário lembrar que, para que algo possa nos acontecer, é preciso uma interrupção, uma diminuição de ritmo, uma pausa para ver, escutar e sentir. Como disse Evelyn: “quando me atentei, estava há um tempo olhando aquela imagem, respirando naturalmente, senti uma serenidade”.

Bondía propôs “pensar a educação a partir do par experiência-sentido”7 (p. 19), e não como o acúmulo de informações. Ter a experiência, o autor nos explica, requer passividade, ser território para os acontecimentos, abrir mão do controle e deixar o protagonismo. “[...] requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, [...] suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza”7 (p. 24) e para isso é preciso dividir o espaço e valorizar a narrativa e o olhar dos outros.

A vontade de estar com os outros e compartilhar o olhar foi um intenso exercício de presença, no qual as fotografias, as narrativas e as discussões provocaram e puderam expressar uma experiência possível em tempos tão complexos.

Considerações finais à luz dos afetos coletivos

A fotografia contemplativa apresenta uma possibilidade para praticarmos o ver sem pensar, exercitando a percepção por meio da contemplação. O LabOlhar, com suas práticas contemplativas e o Círculo Narrativo, foram percebidos como um espaço acolhedor e estimulante para a ampliação do olhar; como espaço de contemplação e conexão com as “pequenas sutilezas da vida”; e como um aprendizado que transborda no cotidiano, dando ensejo a outros modos de sensibilidade e processos de subjetivação.

Contemplar e estar juntos compuseram esse espaço de acolhimento, de presença e de tecelagem de narrativas conjuntas, possibilitando construir momentos de circulação de afetos. Para Ferracini5, a presença coletiva surge a partir de uma proposta específica e de uma intensificação a partir da abertura de corpos. Essa intensificação, nos nossos encontros on-line, foi produzida a partir não apenas da fotografia, mas também da meditação, da conversa e de outras práticas que fizeram parte de todo esse processo.

Expusemo-nos à experiência; contemplamos o que estava à nossa frente; deixamos que algo nos passasse e nos tocasse; e, ao mesmo tempo, narramos esses acontecimentos. Quando acontecimentos são compartilhados, amplia-se o espaço de viver8, pois lugares, imagens e ideias entram em nosso mundo e nos interpelam.

O LabOlhar foi uma aposta nos afetos conjuntos e na presença coletiva, disparada pela imagem enquanto produtora de experiências por si mesma. Essa aposta se mostrou frutífera. Um de seus efeitos foi ter contribuído para viver e enfrentar dias difíceis e caóticos. O Círculo Narrativo, enquanto jogo “do estar e fazer junto, do preocupar-se e do concernir a mim mesmo e ao outro ao mesmo tempo”14 (p. 9) foi possível baseado na simplicidade do comunitário, na relação primordial de confiança, ao estarmos “presentes, vivos e, de certa maneira, alegres”14 (p. 9), despertados ou potencializados pelo estar e cuidar juntos.

Os relatos foram permeados, direta ou indiretamente, pelo tema da humanização como prática, ou seja, como algo que acontece de fato, e não como uma teoria. Isso aparece na percepção do curso como um espaço de descobertas; ampliações; acolhimentos; exercício de autonomia; encontro de prazer dentro de um cotidiano cansativo e estressante; possibilidade de aproximação entre pesquisa e outras áreas da vida; possibilidade de apreciar elementos simples da vida; e encontro de novos cenários e novos olhares sobre a realidade. Assim, foi possível exercitar a criatividade e encontrar calma.

Evidentemente, a experiência aqui apresentada tem limitações, como o fato de ser uma disciplina eletiva e contar apenas com alunos predispostos a fazer os exercícios propostos de uma mesma instituição e de estes se constituírem em um público limitado. Não é possível saber se essa construção afetiva e coletiva se sustentaria a longo prazo, e como seria com outros perfis de alunos. No entanto, seu efeito de auxílio no enfrentamento de um período significativo da pandemia, tão difícil e desafiador, já é um resultado concreto e registrado nas fotografias e nos momentos de compartilhamento de experiências.

Em tempos de escuridão, as frestas permitiram que a luz da experiência passasse e criasse sentidos; e a contemplação ativou o acontecimento e possibilitou experimentar a presença com o outro. A potência das frestas foi criar afetos coletivos e dar sentidos para prosseguir.

Referências

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Editado por

  • Editor: Antonio Pithon Cyrino
  • Editora associada: Elisabeth Maria Freire de Araujo Lima

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    17 Fev 2022
  • Aceito
    17 Fev 2023
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