Resumos
Este estudo examinou a produção do cuidado nos serviços de saúde, adotando a metodologia participativa “rio da vida”. Realizado em uma comunidade ribeirinha no interior do Amazonas, a pesquisa utilizou essa abordagem reflexiva, envolvendo a criação de um rio com materiais artísticos, como lápis coloridos e cartolina. A técnica promoveu a proximidade com as histórias, trajetórias e empoderamento de agentes comunitários, usuários e cuidadores. Essa experiência profunda proporcionou insights sobre os desafios territoriais no acesso à saúde em situações urgentes. A gravação das narrativas durante os trabalhos coletivos serviu como método de coleta de dados, facilitando o diálogo entre a equipe de saúde e cuidadores; e enriquecendo a compreensão das dinâmicas regionais envolvidas no cuidado emergencial.
Palavras-chaves Atenção Primária à Saúde; Pesquisa participativa baseada na comunidade; População rural; Primeiros socorros
Este estudio examinó la producción del cuidado en los servicios de salud, adoptando la metodología participativa “río de la vida”. Realizado en una comunidad que vive a la orilla de un río en el interior de estado de Amazonas, la investigación utilizó ese abordaje reflexivo, envolviendo la creación de un río con materiales artísticos, tales como lápices de colores, cartulina y otros. La técnica promovió la proximidad con las historias, trayectorias y el empoderamiento de agentes comunitarios, usuarios y cuidadores. Esa experiencia profunda proporcionó insights sobre los desafíos territoriales en el acceso a la salud en situaciones urgentes. La grabación de las narrativas durante trabajos colectivos sirvió como método de colecta de datos, facilitando el diálogo entre el equipo de salud y cuidadores, enriqueciendo la comprensión de las dinámicas regionales envueltas en el cuidado de emergencia.
Palabras clave Atención Primaria de la Salud; Investigación participativa basada en la comunidad; Población rural; Primeros auxilios
This study examined the production of care in healthcare services, adopting the participatory methodology “river of life”. Conducted in a riverside community in the interior of the Amazonas region, the research employed this reflective approach, involving the creation of a river using artistic materials such as colored pencils and cardboard. The technique fostered closeness with the stories, trajectories, and empowerment of community agents, users, and caregivers. This profound experience provided insights into the territorial challenges in accessing healthcare during urgent situations. Recording narratives during collective work sessions served as a data collection method, facilitating dialogue between the healthcare team and caregivers, enriching the understanding of regional dynamics involved in emergency care.
Keywords Primary Health Care; Community based participatory research; Rural population; First aid
Introdução
A busca pelo acesso à saúde no contexto do sistema de saúde brasileiro continua a ser um desafio complexo, exacerbado pelas diversas diferenças culturais, históricas e geográficas que permeiam o país. A Amazônia, em particular, destaca-se como uma região que demanda investimentos significativos em tecnologias de cuidado, a fim de atender às especificidades e características únicas desse vasto território. Esse espaço não apenas representa um desafio, mas também emerge como um campo crucial para a aprendizagem, abraçando diversas práticas e conhecimentos provenientes de diferentes origens.
No âmbito do sistema de saúde brasileiro, a descentralização, a participação e a integralidade surgem como desafios fundamentais, com a extensão territorial das políticas oficiais e as redes locais de solidariedade, sendo reflexo direto da unicidade do Sistema Único de Saúde (SUS). Em meio à diversidade de municípios, destaca-se a necessidade premente de elaborar e manter processos de regionalização sob responsabilidade tripartite, especialmente em regiões específicas por ampla diversidade geográfica, sanitária e cultural, como é o caso da Amazônia1,2.
Historicamente, as comunidades ribeirinhas enfrentam a exclusão dos serviços de saúde devido à concentração das ações nas sedes municipais. Esse cenário passou por uma transformação significativa com a incorporação, pela Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), de iniciativas destinadas a promover a inclusão da população ribeirinha. As equipes de Saúde da Família Ribeirinha (ESFR) e equipes de Saúde da Família Fluvial (ESFF), com a Unidade Básica de Saúde Fluvial (UBSF), apresentaram-se peças-chave nesse processo de inclusão1,3.
Este artigo visa analisar a organização de Urgência e Emergência na PNAB e no modus operandi das equipes de saúde, especificamente na equipe ribeirinha do território em estudo. Dentro desse escopo, destaca-se a importância da Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, da Floresta e das Águas (PNSIPCF), enquanto se propõe uma abordagem metodológica participativa denominada “rio da vida”. Por meio desse método, busca-se não apenas compreender, mas também fortalecer as histórias e trajetórias dos trabalhadores, usuários e cuidadores populares que desempenham papéis cruciais na comunidade ribeirinha do Mocambo, localizada no município de Parintins, Amazonas.
Atenção Básica em Saúde na Amazônia ribeirinha
A Atenção Básica em Saúde na Amazônia ribeirinha desempenha um papel crucial ao abordar os desafios importantes enfrentados pelas populações rurais nessa vasta região. A legitimidade dessa preocupação decorre da constatação de que tais comunidades têm menor acesso a cuidados de saúde e experimentam resultados de saúde desfavoráveis4. Globalmente, 70% dos 1,4 bilhões de pessoas em extrema pobreza residem em áreas rurais, destacando a exclusão social relacionada à baixa renda e à falta de infraestrutura vital, como serviços de saúde, transporte e comunicação, que são características marcantes da população rural amazônica. Conforme revelado pelo Atlas Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) Amazonas5, 68% da população rural e 31,1% da população urbana do Amazonas vivem abaixo da linha da extrema pobreza, subsistindo com R$ 5,50 per capita por dia. Em Parintins (AM), onde a população rural representa cerca de 79,1% do total, 55% enfrenta essa situação de vulnerabilidade econômica.
Na agrovila Mocambo do Arari, a equipe de saúde ribeirinha está vinculada à Unidade Básica de Saúde (UBS), composta por nove agentes comunitários de saúde (ACS), uma enfermeira, um médico, uma técnica de enfermagem e um agente comunitário de endemias. Essa equipe reside na agrovila ou nas comunidades ribeirinhas adjacentes, exceto o médico, que passa 15 dias na localidade.
A atenção especial à hidrovia amazônica, repleta de rios navegáveis, destaca a importância das embarcações no cotidiano amazônico, transportando não apenas pessoas, mas também alimentos, medicamentos e outros insumos essenciais para as comunidades ribeirinhas6. O transporte sanitário, crucial para a região, varia de acordo com o ciclo hidrológico, exigindo diferentes estratégias de acordo com as mudanças no nível das águas. A rabeta(f), devido ao seu baixo custo, é o meio de transporte mais utilizado pela população ribeirinha7.
O território amazônico exerce uma influência significativa nas condições de saúde da população ribeirinha, sendo moldado por fatores como fluxos das águas e barreiras de acesso aos serviços de saúde8. Esse território, para além de sua caracterização como espaço físico, manifesta-se como um lócus de pertencimento identitário, constituindo um ambiente propício para intercâmbios de natureza material e espiritual. Sua representação simboliza, assim, a concretização do exercício vital9,10.
A compreensão da vida ribeirinha envolve um olhar diferenciado sobre o lugar e o território líquido. Nesse contexto, a Estratégia de Saúde da Família surge como uma poderosa ferramenta de descentralização dos serviços de saúde, transformando o cuidado em saúde da população no estado do Amazonas11. No entanto, a vasta extensão territorial e hidrográfica impõe desafios às equipes de saúde, que lidam diariamente com aspectos singulares do modo de vida ribeirinho, influenciados pelo ciclo das águas.
Apesar do cenário de exclusão e das condições socioeconômicas adversas, acreditamos na importância das dinâmicas e narrativas do território; e da vida das pessoas, que fornecem informações que transcendem as bases dos sistemas de informação convencionais. Nossa abordagem se concentra nas pessoas e na potência de seus modos de vida, revelando possibilidades de aprendizagem e transformação das condições de exclusão. Ao adotarmos a epistemologia das ausências, conforme proposto por Boaventura de Sousa Santos10,12, buscamos dar visibilidade ao que está esquecido e escondido nos conhecimentos convencionais, criando presenças e um entendimento mais pertinente sobre o lugar.
Percurso metodológico
A pesquisa desenvolveu uma abordagem participante, descentralizando a figura do pesquisador no campo de estudo. Nessa perspectiva, exploramos a vida social e cultural dos participantes, os quais atuaram mutuamente como informantes, colaboradores ou interlocutores. Nessa dinâmica, pesquisador e pesquisado são simultaneamente sujeitos e objetos do conhecimento, destacando a complexidade das relações que moldam as diferenças teórico-metodológicas13.
A pesquisa foi conduzida na agrovila São João Mocambo do Arari, uma região rural no município de Parintins (AM), que abriga quase 11 mil habitantes distribuídos por 64 comunidades e uma sede. Mocambo é a comunidade ribeirinha referencial do distrito, situada em uma área de difícil acesso, a 3 km das margens do Rio Amazonas, exigindo cinco horas de viagem de barco até a sede do município, sendo acessível unicamente por via fluvial.
Para estabelecer relações mais simétricas e dialógicas, utilizamos a técnica de pesquisa “rio da vida”, uma abordagem definida por Wallerstein13 como um método de descrição e reflexão em que o desenho de um rio é usado como metáfora para examinar processos ou trajetórias de vida dos participantes. Essa técnica consiste em um método de pesquisa baseados em arte14 e integra o arcabouço procedimental da Pesquisa Participativa Baseada na Comunidade (CBPR). Trata-se de uma abordagem de pesquisa em que pesquisadores e pesquisados compartilham poder; e as parcerias, contextos, processos e resultados de intervenções ganham centralidade na promoção do empoderamento e da justiça social das comunidades envolvidas13.
Os nomes dos participantes foram substituídos por letras no intuito de preservar suas identidades, conforme aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), com a utilização do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) assinado pelos participantes para preservação, sigilo das informações e imagens.
A condução da oficina baseou-se na apresentação do conceito simbólico do “rio da vida” como um recurso culturalmente significativo, particularmente relevante para os habitantes da Amazônia, representando a vida e suas transformações. Durante a introdução, os participantes foram estimulados a refletir sobre a natureza dos rios, suas nascentes e seus fluxos; e a associar esses elementos a encontros significativos e influências em suas vidas, especialmente em contextos de urgência e emergência.
Na primeira etapa da oficina, os participantes foram divididos em dois grupos distintos, compostos por trabalhadores (Grupo ACS) e usuários (Grupo usuários). Cada membro foi orientado a refletir sobre sua trajetória pessoal em relação à saúde, respondendo a questões específicas relacionadas a eventos marcantes, influências e mudanças ao longo do tempo.
Posteriormente, na segunda etapa, os participantes receberam materiais como papel, lápis de cor, cartolina e revistas para criar coletivamente o “Rio da Vida da Saúde”. A utilização desses materiais permitiu a representação visual de elementos simbólicos, como obstáculos e momentos positivos ao longo do rio.
A terceira etapa envolveu a construção gráfica do “Rio da Vida da Saúde”, incentivando os participantes a descreverem etapas cruciais, influências, obstáculos, e momentos de paz em suas trajetórias. Um cronograma histórico foi elaborado para contextualizar as datas relevantes ao longo do rio.
Na quarta etapa, os participantes afastaram-se de suas criações e foram convidados a refletir sobre a experiência, destacando elementos significativos, facilitadores e desafios identificados durante o processo.
Por fim, a quinta etapa proporcionou um momento de discussão coletiva, na qual as equipes compartilharam suas experiências, destacando semelhanças e diferenças nas trajetórias de saúde apresentadas. Esse momento fomentou uma análise mais aprofundada das narrativas e a identificação de padrões.
O tempo dedicado a cada passo foi gerenciado cuidadosamente para garantir uma participação efetiva e a exploração abrangente das experiências individuais e coletivas no contexto de saúde.
Essa abordagem metodológica inovadora foi implementada com o intuito de elicitar narrativas, apresentações e evidências subjacentes ao presente texto. Conforme discutido por Lira et al.15, a aplicação da abordagem narrativa emerge como uma técnica instrumental para acessar os significados atribuídos às experiências, proporcionando uma compreensão mais profunda da realidade cotidiana dos sujeitos. A escolha por narrativas breves, conforme sugerido por Silva e Trentini16, foi embasada na abordagem sintética, enfatizando a estrutura mínima da narrativa (início, meio e fim) e concentrando-se em episódios específicos, notadamente nas práticas de cuidado experimentadas pelos participantes da pesquisa.
Adicionalmente, após a conclusão da oficina, as narrativas gravadas foram transcritas para possibilitar uma análise mais detalhada e aprofundada. A metodologia adotada para a análise das narrativas segue uma perspectiva estrutural, explorando a organização formal dos relatos como meio de discernir padrões e significados emergentes. Esse processo visa proporcionar uma compreensão mais abrangente das experiências compartilhadas pelos participantes, contribuindo para a construção de conhecimento no campo da saúde e cuidado em contextos específicos, como o da Amazônia.
O retorno social desta pesquisa resultou na publicação de um livro intitulado “A arte do cuidado em saúde no território líquido: conhecimentos compartilhados no Baixo Rio Amazonas – 2020”(g), disponibilizado gratuitamente na versão on-line em PDF.
O presente estudo está inserido no projeto “Acesso da população ribeirinha à Rede de Urgência e Emergência no estado do Amazonas”, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa no Amazonas (FAPEAM) e aprovado pelo CEP da Universidade Federal do Amazonas, sob o CAAE n. 99460918.3.0000.5020, atendendo aos requisitos éticos e legais, conforme a Resolução n. 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (CNS).
Resultados e discussão
Os rios da vida e acesso nas urgências e emergências
Iniciamos esta sessão apresentando a imagem criada pelo grupo de participantes engajados na construção coletiva dos “Rio da Vida da Saúde”. A representação visual destaca a agrovila Mocambo do Arari.
O primeiro relato foi do ACS V, que atua há vinte anos no território ribeirinho. A narrativa apresenta uma situação de urgência e emergência:
[...] Foi um acidente que ocorreu na estrada. No período que aconteceu esse acidente, o senhor estava trabalhando na estrada de carroça, ele vinha do centro e encontrou um cidadão que vinha de moto no sentido oposto eles se chocaram. Nesse período, a Unidade Básica de Saúde estava sem ambulancha, ela estava em conserto em Parintins. Tudo que acontece na comunidade, os comunitários procuram primeiro o ACS; assim, logo que ocorreu o acidente, me chamaram, iniciamos os primeiros socorros, era uma situação grave. Necessitamos fretar uma voadeira para levar para Parintins, não tínhamos outra opção, saímos daqui umas cinco horas da tarde, o rio estava seco, e nessa época nossa região fica mais difícil o acesso. Temos que atravessar uma praia, nesse caso, tivemos que carregar o paciente e a voadeira. Antes desse momento, tentamos ligar para Parintins e a ambulancha ficou de ir buscá-lo na beira do rio Amazonas. Chegamos no local marcado e a ambulancha não estava, esperamos mais de 20 minutos. Chegamos em Parintins às nove e meia da noite numa voadeira com motor de 15hp. Foi uma superação de vida, pois eu achei que o paciente não se deixou levar pelo lado da tragédia, na situação em que ele estava [...].
(ACS V)
O usuário também deu a sua versão sobre o acidente:
[...] As condições da estrada fizeram com que ele [o rapaz que estava na moto] fizesse uma manobra arriscada, ele não bateu porque quis, bateu porque tinha que acontecer. Foi tão rápido que não tive reação, nem passou pela minha cabeça levantar a perna. Para mim o que aconteceu foi o demônio, Deus não ia fazer algo assim. Tentaram me carregar, mas estava muito feio, então trouxeram uma rede, aí deu para mim levar. Tem parte que eu lembro, mas tem parte que fiquei em choque, esqueci, era muita gente. V [ACS] que me acompanhou [...].
(Usuário da UBS)
O primeiro relato é fornecido pelo ACS V, que possui duas décadas de experiência no território ribeirinho. Ele compartilha uma história sobre um incidente de urgência e emergência durante um acidente na estrada. No momento do ocorrido, a UBS não tinha uma ambulância disponível, pois estava em reparo em Parintins. Seguindo o protocolo, a comunidade iniciou os primeiros socorros com a ajuda do ACS, que rapidamente deixou seu posto e começou a prestar assistência em uma situação grave.
Devido à ausência de ambulância, foi necessário fretar uma voadeira para transportar o paciente até Parintins. O ACS V destaca os desafios enfrentados, incluindo a dificuldade de acesso devido à baixa do rio, a necessidade de atravessar uma praia carregando o paciente e a frustração ao esperar pela ambulancha, que não compareceu no local designado. Apesar das adversidades, a chegada a Parintins foi alcançada em uma voadeira com motor de 15hp às 21h30. O ACS enfatiza a resiliência impressionante do paciente diante dessa difícil situação.
O segundo depoimento é do próprio usuário envolvido no acidente. Ele descreveu as condições precárias da estrada que levaram ao incidente e acreditava que as consequências ocorreram por razões inevitáveis. Expressou a sensação de choque e o esquecimento de parte do ocorrido, ressaltando a presença e o suporte do ACS, que o acompanhou durante o trajeto, inclusive carregando-o em uma rede devido à gravidade dos danos.
A memória do ACS abrangeu uma variedade de personagens que desempenharam papéis cruciais na experiência, envolvendo não apenas ele e o usuário, mas também outros participantes, como os primeiros socorristas na UBS; os auxiliares no transporte do paciente e da lancha; o piloto da outra voadeira que o trouxe do rio Amazonas; aqueles que acompanharam e apoiaram o paciente; e, por fim, os profissionais responsáveis pela cirurgia no hospital de Parintins. A experiência tornou-se coletiva, com personagens que, embora nem sempre presentes nas palavras dos narradores, desempenharam papéis cruciais na narrativa, tornando-se parte integrante da história, que transcende a singularidade do usuário e do trabalhador, transformando-se na história de “muita gente”.
A memória, conforme Halbwachs et al.17 e Bosi18, é a ponte entre passado e presente. Halbwachs et al.17 destacam que a memória está associada a conexões com outros assuntos e que essas conexões emergem como memórias individuais. Contudo, para o autor, a essência do conhecimento coletivo forma a base da memória social.
Ambas as narrativas oferecem uma visão abrangente das complexidades associadas à urgência e emergência em áreas ribeirinhas. O acidente ocorrido durante uma atividade de trabalho destaca a ausência de transporte sanitário imediato, a necessidade de meios alternativos de locomoção devido à manutenção da ambulância e os desafios específicos enfrentados durante o transporte do paciente. A temporalidade na resposta às emergências é enfatizada, sublinhando a importância crítica do tempo para salvar vidas. O testemunho ressalta também a resiliência do paciente diante das adversidades e a solidariedade da comunidade no auxílio aos cuidados de saúde.
Práticas tradicionais no cuidado em saúde
A narrativa da parteira (figura 2) da comunidade mostra muitas curvas, corredeiras, pedras, mas também mostra os “furos” (atalhos) e as brechas que aparecem entre os rios e lagos.
[...] eu desenhei uma casa, essa casa no caso é de uma parturiente, onde muitas vezes faço parto no chão. Muitas grávidas não querem ir para Parintins porque não tem apoio para lá, não tem família e nenhum parente. [...] Cada parto é um parto, cada parto é um aprendizado. Então eu trouxe aqui o que está comigo desde a nascença. É uma coisa que a gente não passa para ninguém, mas pode passar a experiência. Gosto que cada ACS saiba sobre o parto, por isso aviso o ACS da área. Então, a enfermeira, ela me fez assinar esse documento. Até hoje eu tenho que declarar que a mulher foi bem tratada no parto com duas testemunhas [...].
(Parteira)
A narrativa da parteira revelou o nascimento de seu percurso como uma jovem que se dedica ao ofício de parteira, atendendo parturientes em suas próprias casas, as quais optam por não ir à UBS. Isso ocorre devido à crença de que, ao procurar a UBS, serão encaminhadas para a sede do município, conforme orientação da gestão municipal. Os profissionais de saúde, por sua vez, não possuem autonomia nesse contexto, enquanto a parturiente fundamenta sua escolha na confiança no conhecimento da parteira. Essa confiança, no entanto, não é reciprocada pela gestão, que exige a assinatura de um termo de responsabilidade com duas testemunhas, atestando que a parturiente foi devidamente tratada. Esse cenário reflete a prática comum da medicalização do parto no Brasil, sem exceção para a região amazônica.
De acordo com um estudo sobre o perfil das internações nos hospitais que atendem a população ribeirinha de Parintins, a principal causa de internação está relacionada à “gravidez, parto e puerpério”, representando 49,1% de um total de 1700 das internações ocorridas entre os anos de 2017 e 201819. Essas situações corriqueiras poderiam ser evitadas caso as parteiras fossem integradas ao trabalho das equipes de Saúde da Família nas comunidades ribeirinhas.
[...] Já fiz parto com médico, já fiz parto com enfermeira, aí depois não pode mais. Agora a gente faz em casa e depois avisa o ACS da área. Não peso e não meço, porque o ideal tem que medir o tórax, cefálico, abdominal e comprimento, mas não tenho esse material ainda. Peço ajuda aos ACS de Mocambo porque eu já fui várias vezes acompanhando mulheres para Parintins com dor. A criança não nasceu e estava nessas horas a mulher desmaia, fica molenga, aí tem que ir para lá, né? Aqui tem todo aquele processo, tem carinho, porque a mulher está no primeiro filho, ela não sabe como é. [...] Essas crianças que nascem, para mim, é uma superação de vida, porque eu tô trabalhando com a vida, com criança, é por aquele sangue que me fortalece. Hoje sou vovó já de filho de parto, mas ainda estou triste porque não somos amparados [...].
(Parteira)
A parteira destacou que sua atuação vai além do ambiente domiciliar, mencionando que já participou de partos com a presença de médicos e enfermeiras. No entanto, ela ressalta as limitações de suas ações, destacando a ausência de equipamentos para registrar informações sobre a criança. O acompanhamento das gestantes até o hospital é uma prática comum entre as parteiras na Amazônia, sustentada pela confiança e pelo afeto estabelecido entre a gestante e a parteira. Contudo, ao chegarem ao hospital, muitas vezes enfrentam resistência por parte da equipe de saúde, que muitas vezes impede o exercício de seu papel, mesmo sendo especialistas no ato de partejar.
Desde 2018, as parteiras do Amazonas se organizam por meio da Associação das Parteiras Tradicionais do Estado do Amazonas (APTAM), alcançando conquistas significativas para o reconhecimento de suas práticas e conhecimentos. Uma dessas conquistas foi instituída pela Lei Estadual n. 5.312 de 202020, que autoriza a presença das parteiras durante todo o trabalho de parto, nascimento e pós-parto imediato, quando solicitado pela parturiente em maternidades, casas de parto e estabelecimentos hospitalares, tanto na rede pública quanto na privada do estado do Amazonas. Esse avanço representa um marco importante no reconhecimento do papel das parteiras no processo de parto e nascimento.
A discussão sobre o protagonismo, resistência e desafios enfrentados pelos agentes de saúde tradicionais, como curandeiros e parteiras, na prestação de cuidados à saúde, especialmente em contextos ribeirinhos, é essencial para uma compreensão crítica da complexidade inerente ao modelo biomédico. As práticas tradicionais em saúde estão intrinsecamente ligadas aos “rios” de saberes populares na produção do cuidado. Na agrovila do Mocambo, as parteiras desempenham um papel fundamental na experiência coletiva, contribuindo para um momento singular na vida das pessoas, que é o parto e nascimento. As situações de emergência narradas pela parteira durante o parto não apenas descrevem aspectos logísticos – como transporte e localização –, mas também destacam a valorização do cuidado baseado em uma vida inteira de experiência.
A parteira expressa sua frustração pela falta de apoio ao desenvolvimento de seu trabalho, mesmo após três gerações de experiência em nascimentos auxiliares, ainda sendo obrigada a atualizar documentos de responsabilidade por cada parto realizado. Nesse contexto, as curvas e as barreiras do rio podem ser metafóricas para as dificuldades impostas pela gestão, pois, na dinâmica da vida e dos nascimentos, não se apresentam como obstáculos ao seu desempenho, mas, pelo contrário, como motivos de alegria ao “trabalhar com a vida” no nascimento das crianças.
Em um estudo realizado por Silva21 em um território quilombola no estado do Amazonas, acordou-se que o cuidado baseado em saberes tradicionais é predominantemente fornecido por parteiras, rezadores, benzedores e puxadores de ossos. Esses agentes são reconhecidos pela comunidade como elementos essenciais na rede de acesso à produção de saúde no território. Para efetivar esse compartilhamento de saberes na produção do cuidado, é imperativo o planejamento de ações que integrem esses agentes às equipes de saúde.
Considerações finais
Nos intricados territórios da Amazônia ribeirinha, a distância se revela no tempo de deslocamento por vias fluviais, furos e igarapés, funcionando como vias naturais que interligam localidades e comunidades. O conceito de território líquido está profundamente entrelaçado aos modos de vida da população, influenciando a produção de alimentos, transporte, pecuária e transformações do solo durante os períodos de cheia e seca. Expressões como “grande cheia” ou “seca grande” destacam-se, deixando suas marcas não apenas nos níveis das águas registrados em árvores e habitações, mas também nas memórias daqueles que as vivenciam. Nesse contexto, a questão do acesso está intrinsecamente associada ao “pulso das águas”, ao movimento dos rios, ao ciclo hidrológico e à própria dinâmica da vida.
As narrativas emergentes dos “rios da vida” revelam que o acesso em situações de urgência e emergência carrega consigo a memória, marcando as experiências no trabalho e na vida comunitária. Nesse cenário, a equipe de saúde organiza suas práticas considerando o movimento das águas, no qual o imponente rio Amazonas se apresenta como o caminho viável nesse território.
A técnica do “rio da vida” proporcionou uma jornada reveladora sobre o trabalho e a vida de profissionais de saúde, usuários e cuidadores populares. Os encontros, a representação das nascentes e dos rios, e as narrativas resultaram em um mosaico de histórias e memórias que conferem sentido ao vivido. O lugar revela-se, assim, aberto e intensamente diversificado, escapando a um olhar rápido e distante22; ao contrário, exige atenção às negociações com o outro, às características do território e aos saberes tradicionais.
O “rio da vida” estabelece diálogo com outras questões que podem ser exploradas na abordagem participativa, como as estratégias de negociação entre gestão e cuidadores populares (parteiras, pegadores de ossos e rezadores). A pesquisa envolveu uma conexão significativa com a comunidade e a equipe, ampliando as observações e apoiando as demandas e necessidades da população, incluindo processos de educação permanente, diálogos sobre a gestão territorial e a dinâmica do acesso aos serviços de saúde.
As potencialidades dessa abordagem residem na capacidade de empregar uma metáfora culturalmente rica, como o rio, facilitando a expressão e reflexão sobre experiências vitais. A construção coletiva desses símbolos oferece uma plataforma inclusiva para narrativas individuais, permitindo que os participantes articulem, simbolicamente, as influências cruciais em suas vidas. Além disso, o uso de materiais diversificados promove uma expressão criativa e individualizada, enriquecendo as representações dos “rios” com uma gama variada de elementos culturais e pessoais. Essa abordagem, ao incorporar simbolismo cultural e permitir a expressão artística, torna-se uma ferramenta potente para a investigação participativa e o entendimento aprofundado das influências e transformações na vida dos participantes.
Concluindo, este estudo não se encerra em si mesmo, mas abre-se para novas narrativas e encontros. O local que historicamente acolheu os negros (que é também o significado da palavra “mocambo”) continua a acolher as pessoas, mas a luta persiste pela inclusão e contra formas racistas de tratamento à população ribeirinha. A comunidade ribeirinha permanece como um local de difícil acesso, escolhido pelas pessoas para ser o melhor lugar para viver, sendo um entre tantos na Amazônia que requer políticas inclusivas e integrativas.
O estudo evidencia a distância entre as políticas oficiais e as comunidades ribeirinhas da Amazônia, ressaltando a invisibilidade da diversidade e das adversidades cotidianas que comprometem a integralidade da atenção no SUS. Isso se reflete tanto nos territórios amazônicos quanto na ostensiva invisibilidade que certos grupos populacionais enfrentam, naturalizando as ausências nas formulações de políticas e iniciativas governamentais.
Agradecimentos
Expressamos nossos sinceros agradecimentos à Secretaria Municipal de Saúde de Parintins, aos dedicados profissionais de Saúde e à acolhedora comunidade de Mocambo do Arari. A colaboração e participação ativa desses parceiros foram fundamentais para o sucesso deste estudo, enriquecendo-o com perspectivas valiosas e contribuições essenciais. Essa parceria exemplar reflete o comprometimento conjunto com a pesquisa e a promoção da saúde, fortalecendo os laços entre a academia e a comunidade. Agradecemos sinceramente pela generosidade, pelo envolvimento e pelo valioso apoio ao longo deste trabalho.
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Reis AES, Schweickardt JC, Guedes TRON, Santos ICPAM, Murta SG. Navegando pelo “rio da vida”: a produção do cuidado em situações de urgência e emergência em um território da Amazônia. Interface (Botucatu). 2024; 28: e230649 https://doi.org/10.1590/interface.230649
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Financiamento
Esta pesquisa foi financiada com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do estado do Amazonas pelo edital n. 001/2017 – PPSUS. A primeira autora foi bolsista da Fapeam no Programa de Pós-Graduação em Condições de Vida e Situações de Saúde na Amazônia (PPGVIDA).
Referências
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Editado por
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EditoraDenise Martin CovielloEditor associadoLucas Pereira de Melo
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
24 Jun 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
16 Jan 2024 -
Aceito
04 Mar 2024