Open-access Nas teias da internet: um tanto de liberdade, um tanto de moralização no aleitar

On the internet: a bit of freedom, a bit of moralization in breastfeeding

En Internet: un poco de libertad, un poco de moralización en la lactancia materna

Eu me lembro bem de meu estranhamento, como antropóloga e docente em cursos de Graduação em Ciências da Saúde, ao escutar os estudantes comentarem sobre as atividades da disciplina de “Promoção e Educação em Saúde”. De alguma maneira, o incentivo ao aleitamento e à prática da amamentação sempre aparecia com uma das práticas desenvolvidas. No entanto, ao contar como atuavam, sempre me perguntava que ideia de educação e de promoção da saúde carregamos nesses espaços de formação. Tudo me parecia um tanto prescritivo demais: “amamentar é muito importante; até os 6 meses é o mínimo; mas até os 2 anos é o ideal. Não se deve complementar com nenhum tipo de alimento: nem água, nem farinha diluída, tampouco dar de comer ao bebê; a amamentação cruzada não é uma prática segura”, dentre outras ideias que por ali circulavam.

Esse olhar certamente se deve a minha prática e tipo de escuta, ancorada nas Ciências Sociais e, portanto, antes no mapeamento dos valores e dos significados das práticas sociais. Por vezes, bem distante do considerado ideal, adequado, correto e disseminado pelo conhecimento científico. Quanto de sentido faria para as mulheres do Sol Nascente, uma das áreas mais vulneráveis da Ceilândia – Distrito Federal – amamentar até os 2 anos ou não oferecer nenhum tipo de complemento, quando necessitavam sair para trabalhar e deixar seus filhos pequenos com outras mulheres, vizinhas ou creches? Em uma resenha1 sobre o filme “De peito aberto”, exploramos a ideia de que, a depender da classe social, raça/cor, local de moradia e conjugalidade da mulher que amamenta, as prescrições e os agenciamentos a respeito de como, quando e por quais motivos oferecer o peito se alteram notadamente.

O artigo aqui debatido explora também esse ponto: como tais prescrições e possibilidades de agenciamento das mulheres que amamentam se borram facilmente e a todo momento. Partindo de uma plataforma digital bastante conhecida no universo materno contemporâneo – a Baby Center –, as autoras discutem a capacidade de agência das mulheres, mas também como vão sendo capturadas por novas regras que têm sido impostas às mães da atualidade. Segundo suas linhas, as mulheres passaram a confiar mais em informações que circulam na internet e são muitas vezes debatidas pelas próprias mães, do que nos supostos especialistas no assunto: os médicos. Existe o que denominam de um “movimento antimedicina”, mas também – por outro lado – uma sobrecarga de informação. As próprias usuárias do sistema produzem conhecimento nos grupos e tópicos da plataforma digital mencionada.

Usando a palavra leite como categoria de busca, as autoras chegaram ao material empírico analisado, com base em 144 respostas a um formulário que aplicaram entre as usuárias da plataforma e, por último, entrevistas realizadas com mulheres diferentes entre si em termos de raça/cor, local de moradia e número de filhos. Desse empreendimento, concluíram que – ao desconfiarem da medicina e de seu não incentivo ao aleitamento – as mulheres produzem conhecimento e tomam suas próprias decisões de maneira informada na medicina baseada em evidências, mas também se veem sobrecarregadas de informação, internalizando muitas vezes um dever moral de amamentar, tão normativo quanto a recomendação do leite em pó de outros momentos da sociedade brasileira. Por isso, as autoras acabam chamando-as de mães (que amamentam) conscientes, exaustas e conectadas. Nessa esteira, a internet tanto informa quanto as aprisiona em novas normas de conduta e regras do maternar.

Por um lado, as plataformas digitais e a internet fazem circular o conhecimento e tornam a informação acessível, permitem questionamentos, dúvidas e o acesso a contrapontos de itinerários terapêuticos ou práticas de saúde antes inquestionáveis. Mas também – por outro lado – carregam prescrições e moralidades de como maternar, criam expectativas, modelos de como agir e de como pensar, tornando-se – no final – tão prescritivas quanto a prática médica tradicional de outrora.

Aos meus olhos, a mesma premissa vale para a ideia de Promoção e Educação da Saúde que mencionei no começo deste diálogo. Se muito do que se compreende nesse campo se vê amparado em Paulo Freire2, na pedagogia do oprimido e no conhecimento emancipador da própria comunidade, ao olharmos com atenção, a escuta e o reconhecimento das práticas locais muitas vezes não são valorizadas ou são prontamente uniformizadas no que se entende como padrão outro de prática biomédica de saúde.

A assistência à amamentação, praticada nos serviços de saúde e em campanhas nacionais do Ministério de Saúde ou locais dos governos de Estado, trata o assunto de modo bastante homogêneo: a importância do aleitar para a saúde da criança e seus benefícios. Comunica-se em saúde com base nessa premissa universal, por vezes sem particularizar as questões.

No entanto, o artigo com o qual ora dialogamos nos mostra como esse mesmo processo acontece também entre as usuárias do sistema de saúde, ainda que se imaginem à sua margem. Nesse processo em particular, destacaria com bastante ênfase a ideia de mulher-mãe consciente, conectada e exausta, como um processo social que pode ser emancipatório, mas também perverso para a saúde das próprias mulheres que amamentam, que se veem numa verdadeira corrida para amamentar, numa corrida para saber o que fazer, sobre o que decidir e sobre como se informar. Os mandatos sociais intensificam-se e, nesse modelo de parentalidade atual, as mulheres têm padecido física e emocionalmente.

A psicanalista Vera Iaconelli3 publicou recentemente um estudo sobre psicanálise e as políticas da reprodução. Ao iniciá-lo, sustenta que os modelos de parentalidade atualmente operantes se tornaram insustentáveis dada a sobrecarga do cuidado experimentada pelas famílias nucleares e mais especificamente nas mulheres que cuidam a partir do final do século 20. O Estado neoliberal se ausenta, na mesma medida em que teorias econômicas e psicanalíticas enaltecem que as mães são fundamentais e insubstituíveis nas tarefas de cuidado. Michel Foucault4 também já havia anunciado essa prática ao discorrer sobre o neoliberalismo americano e como o “capital humano” das crianças e infantes dependeria da quantidade de tempo e da dedicação que suas mães a elas dedicassem. Disso dependeria se tornarem, inclusive, bons empreendedores de si: sujeitos-empresa de sucesso. Enquanto, para as mulheres, restaria uma “renda psíquica” por conta da satisfação emocional obtida em realizar essa tarefa.

A exaustão ou o cansaço experimentado pelas mulheres-mães, como as entrevistadas pelas autoras, decorre justamente dessa ideia: de serem as únicas responsáveis pela criação de seus filhos. No pacote da criação dos filhos vigora a moralidade de que as mães devem se dedicar integral e harmoniosamente aos seus filhos, que devem ser zelosas, informadas, conscientes e aleitar de preferencia até os 2 anos. Uma prática que, na maioria das vezes, recai sobre as mulheres de modo solitário, sem apoio estatal, como licenças, tempo reduzido de jornada, horário flexível de trabalho ou qualquer apoio financeiro para tanto. Existem algumas iniciativas, mas elas se estendem somente aos 4 ou 6 meses de vida da criança.

Isso posto, o artigo que abriu essa possibilidade de reflexão tem o mérito de nos fazer pensar sobre as trampas ou armadilhas que o discurso da livre comunicação na internet pode representar para as próprias mulheres-mães que amamentam ou querem fazê-lo; haja vista ser mais um ponto de inflexão em suas práticas de cuidar, aprender, escrever, interagir e saber o melhor caminho a escolher ao oferecer o peito. Enquanto muitas mulheres estão nessa corrida angustiante, as políticas de cuidado estatais e socialmente partilhadas deixam de operar, as mulheres se sobrecarregam e adoecem, mas a lógica do Estado neoliberal – não ao acaso – ganha cada vez mais força na privatização e familiarização dos cuidados na contemporaneidade.

Por tudo isso, vale muito a leitura do artigo aqui debatido, assim como a dos outros textos a ele articulados em nossa revista, haja vista precisarmos pesquisar e escrever muito sobre a lógica da amamentação com olhares complexos e menos biologicistas.

Referências

  • 1 Carneiro R, Braga R. De peito aberto. Anu Antropol. 2020; 45(2):259-64. doi: 10.4000/aa.5914.
    » https://doi.org/10.4000/aa.5914
  • 2 Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra; 1996.
  • 3 Iaconelli V. Manifesto antimaternalista: psicanálise e políticas de reprodução. Rio de Janeiro: Zahar; 2023.
  • 4 Foucault M. Nascimento da Biopolítica. Lisboa: Edições 70; 2010.

Editado por

  • Editor
    Antonio Pithon Cyrino
    Editor de debates
    Sérgio Resende Carvalho

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    24 Out 2023
  • Aceito
    04 Nov 2023
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