Ao abordar a tomada de decisão sobre a (não) vacinação de crianças pequenas sob o prisma da interseccionalidade e de estudos teóricos sobre branquitude e parentalidade neoliberal, o primoroso artigo de Camila Carvalho de Souza Amorim Matos, Jeane Saskya Campos Tavares e Marcia Thereza Couto1 redimensiona o debate sobre a hesitação vacinal no Brasil. Seus achados e pistas reafirmam a importância de estudos aprofundados sobre esta temática, estimulando a adoção de novos enfoques e enquadramentos compatíveis com sua crescente complexidade.
Neste breve comentário, destaco três aspectos, entre os muitos suscitados pelas autoras que merecem debate aprofundado: a relação entre os achados da pesquisa e o recente levante contra a obrigatoriedade da vacinação infantil, liderado pelo movimento bolsonarista no Estado de Santa Catarina (SC); a reconfiguração da propaganda contra a saúde pública após o término da pandemia de Covid-19; e, ao final, uma referência à importância dos marcadores de raça, classe e gênero no estudo das narrativas sobre a Covid-19.
Começando pela insurreição catarinense, cabe destacar que o artigo em apreço é fruto de pesquisa empírica mais ampla, apresentando como recorte o material concernente a 12 famílias hesitantes em relação à vacinação infantil, residentes em Florianópolis, capital de SC. A atualidade não deixa dúvidas sobre a sagacidade das autoras na seleção da amostra. Diante da inclusão da vacina da Covid-19 no calendário vacinal infantil, quando da volta às aulas, em fevereiro de 2024, o líder bolsonarista Jorginho Mello, atual governador de SC, de forma coordenada com cerca de trinta prefeitos municipais, afirmou que a apresentação do comprovante vacinal contra a Covid-19 não seria obrigatória para matrícula nas escolas do Estado2. Atacou, dessa forma, um dos pilares da cultura de imunização brasileira, qual seja o vínculo entre saúde e educação. Embora de forma diversa, dessa vez coordenada com parlamentares bolsonaristas, o atual governador de Minas Gerais, Romeu Zema, somou-se ao ataque, chegando a declarar que as próprias crianças, depois de aprender ciências, poderão decidir se querem ser vacinadas ou não3.
A seguir, uma liminar do Supremo Tribunal Federal (STF), proferida pelo ministro Cristiano Zanin, suspendeu a validade de decretos de 19 municípios de SC que dispensaram a exigência de vacina contra a Covid-19 para matrícula e rematrícula na rede pública de ensino, no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 1123, proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL)4. Essa decisão cautelar, referendada pelo plenário do STF, tendo como votos vencidos os ministros indicados por Jair Bolsonaro, atingiu alguns dos mais populosos municípios do Estado, como Joinville (1°), Blumenau (3°) e Criciúma (8°)5. Os prefeitos de Florianópolis (2º) e de outros nove municípios catarinenses também são mencionados na liminar em razão de suas manifestações públicas, mas escapam à decisão, pois, segundo o ministro relator, estas declarações não se fizeram acompanhar de ato normativo ou omissão que possam ser questionados no bojo de uma ação de controle de constitucionalidade4.
Segundo a liminar, a vacinação não corresponde à decisão eminentemente individual, afeta a cada unidade familiar, mas sim ao dever geral de proteção que cabe especialmente ao Estado, no intuito de que todos possam conviver em um ambiente sanitariamente seguro, que se sobrepõe a eventuais pretensões individuais de não vacinar4. Logo, o STF reitera a obrigatoriedade da vacinação das crianças, prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8069/1990, art. 14, §1º), consolidando entendimento anterior de que é constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina registrada em órgão de vigilância sanitária, incluída no Programa Nacional de Imunizações (PNI), ou com aplicação obrigatória determinada em lei, ou ainda objeto de determinação de entidade federativa com base em consenso médico-científico. Nesses casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, tampouco ao poder familiar6.
Neste sentido, em ano de eleições municipais, o Poder Judiciário funcionou como barreira de contenção da exploração política de um movimento mais amplo de “uso customizado da saúde”, tão bem descrito pelas autoras1 (p. 11), que permite a escolha à la carte, entre as prestações de saúde disponíveis, daquelas que se coadunam com a visão de mundo dos responsáveis pela tomada de decisão, sempre orientados pela premissa da individualidade. Por tudo isto, o artigo ora comentado convida ao debate sobre a possível relação entre os achados da pesquisa e as características do movimento bolsonarista, do qual SC é notoriamente um importante reduto, além de outros movimentos antivacina atuantes na região.
Como segundo aspecto a debater, sublinho que, não apenas os decretos municipais cujos efeitos foram suspensos pelo STF, mas também as declarações das autoridades envolvidas na insurreição visam claramente erodir o papel desempenhado pelo Estado na proteção da saúde pública. É certo que a sobrevivência de um sistema público, bastião da defesa do acesso universal à saúde no Sul Global, como é o Sistema Único de Saúde (SUS), desafia o neoliberalismo, apesar de suas muitas limitações. A pesquisa deixa claro que a obrigatoriedade das vacinas, cuja implementação é garantida pelo PNI, desempenha papel fundamental ao constranger uma parte das famílias hesitantes a vacinar suas crianças.
Neste sentido, a partir das falas das pessoas entrevistadas, o artigo instiga a pensar como a propaganda contra a saúde pública vem sendo atualizada após a experiência brasileira de resposta à Covid-19. Durante a pandemia, definimos esse tipo de propaganda como:
[...] o discurso político que mobiliza argumentos econômicos, ideológicos e morais, além de notícias falsas e informações técnicas sem comprovação científica, com o propósito de desacreditar as autoridades sanitárias, enfraquecer a adesão popular a recomendações de saúde baseadas em evidências científicas, e promover o ativismo político contra as medidas de saúde pública necessárias para conter o avanço da Covid-19.7 (p. 16)
Sendo um dos elementos da estratégia federal de disseminação da Covid-19 no Brasil, a propaganda incluiu o uso de veículos oficiais de comunicação, a exemplo do website do Ministério da Saúde, como espaço de “oficialização da desinformação”8.
A propósito, na literatura sobre a desinformação, a vacina serve como exemplo de que agendas políticas podem ser organizadas para a propagação deliberada do negacionismo. Diante dela, a educação pode ser insuficiente para convencer as pessoas sobre evidências científicas: em todo o mundo, constata-se a recusa de pais altamente educados em ciência a imunizar seus filhos9.
Nesse ponto, os achados da pesquisa indicam que, entre as famílias hesitantes, o PNI constrange mais as de baixa renda, que necessitam de vagas em creches ou escolas públicas, do que as famílias privilegiadas. As autoras problematizam o “capital simbólico para bancar a decisão de não vacinar diante dos equipamentos do Estado”1 (p. 13), que algumas famílias possuem, outras não.
Penso que a tolerância, escandalosa e sistemática, à propaganda contra a saúde pública – comprovada pela impunidade de autoridades de diferentes esferas de governo, do presente e do passado, que promovem ou promoveram a desinformação implicando graves riscos para a saúde e a vida dos brasileiros – também está relacionada ao neoliberalismo. Para as elites, é incômodo o reconhecimento da prevalência do público sobre o privado como forma eficiente, senão única, de preservação da vida.
Por fim, quero registrar, mesmo que brevemente, a produção artística sobre a Covid-19, em particular, as obras-primas de Leandro Assis e Triscila Oliveira, cujas histórias em quadrinhos põem em relevo os marcadores de raça, classe e gênero no Brasil, imprescindíveis para a compreensão das narrativas sobre as crises sanitárias. No livro “Confinada”10, os autores retratam a opressão das trabalhadoras domésticas e suas estratégias de enfrentamento da pandemia. Embora aborde a Covid-19 apenas ao final da obra, “Os Santos” contribui para a compreensão do impacto do racismo estrutural na resposta à emergência sanitária, sustentando, nas palavras de Triscila Oliveira, que se trata de uma obra “atemporal porque o Brasil continua colonial”11 (p. 173).
Ao ler o artigo em comento, recordei especialmente de um cartoon publicado por Leandro Assis, em julho de 2020 (figura 1).
Assim como as demais obras de Leandro de Assis e Triscila Oliveira, o cartoon evidencia, sem rodeios, as dimensões adicionais de sofrimento e opressão vividas pelas trabalhadoras brasileiras durante a crise sanitária. Ele retrata uma trabalhadora doméstica admoestada pela empregadora em razão do uso da máscara facial. O gesto da mulher negra periférica, a única entre os personagens a valer-se de uma medida preventiva recomendada pelas autoridades sanitárias, é interpretado como um acinte sob a perspectiva da branquitude e do privilégio, detentores naturais da prerrogativa de temer o contágio e de governar a sua contenção.
De que forma podemos multiplicar gestos de resistência como resultados de agendas políticas em prol da vida, e não apenas frutos de condições impostas por um Estado cada vez mais disputado e enfraquecido por insurreições extremistas? Eis, no meu entender, um dos principais desafios propostos pelas autoras neste brilhante artigo.
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Financiamento
A autora é bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq, nível 1A.
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Ventura DFL. A não vacinação infantil no contexto de insurreições extremistas e de redimensionamento da propaganda contra a saúde pública. Interface (Botucatu). 2024; 28: e240187 https://doi.org/10.1590/interface.240187
Referências
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1 Matos CCSA, Tavares JSC, Couto MT. “Eu vivo num mundo muito burguês, não moro na periferia”: não vacinação infantil e a intersecção entre raça, classe e gênero. Interface (Botucatu). 2024; 28. doi: 10.1590/interface.230492.
» https://doi.org/10.1590/interface.230492 -
2 Caniato B, Bechara V. Governadores contrários à vacinação obrigatória dão fôlego ao negacionismo [Internet]. São Paulo: Veja; 2024 [citado 10 Maio 2024]. Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/a-infeliz-tatica-dos-governadores-que-lancam-ofensiva-contra-vacinacao
» https://veja.abril.com.br/brasil/a-infeliz-tatica-dos-governadores-que-lancam-ofensiva-contra-vacinacao -
3 Poder360. Criança aprenderá ciência para decidir se quer se vacinar, diz Zema [Internet]. Brasília: Poder360; 2024 [citado 10 Maio 2024]. Disponível em: https://www.poder360.com.br/brasil/crianca-aprendera-ciencia-para-decidir-se-quer-se-vacinar-diz-zema/
» https://www.poder360.com.br/brasil/crianca-aprendera-ciencia-para-decidir-se-quer-se-vacinar-diz-zema/ -
4 Brasil. Supremo Tribunal Federal. ADPF 1.123 Santa Catarina. Medida Cautelar. Relator: Ministro Cristiano Zanin [Internet]. Brasília: STF; 2024 [citado 10 Maio 2024]. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15364444141&ext=.pdf
» https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15364444141&ext=.pdf -
5 Portal G1. Censo do IBGE: quais são as 15 cidades mais populosas de Santa Catarina [Internet]. Rio de Janeiro: Portal G1; 2023 [citado 10 Maio 2024]. Disponível em: https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2023/06/28/censo-do-ibge-quais-sao-as-15-cidades-mais-populosas-de-santa-catarina.ghtml
» https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2023/06/28/censo-do-ibge-quais-sao-as-15-cidades-mais-populosas-de-santa-catarina.ghtml -
6 Brasil. Supremo Tribunal Federal. Tema: 1103 - Título: possibilidade dos pais deixarem de vacinar os seus filhos, tendo como fundamento convicções filosóficas, religiosas, morais e existenciais [Internet]. Brasília: STF; 2020 [citado 10 Maio 2024]. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/tema.asp?num=1103
» https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/tema.asp?num=1103 -
7 Ventura DFL, Aith FMA, Reis RR, coordenadores. A linha do tempo da estratégia federal de disseminação da Covid-19 [Internet]. São Paulo: CEPEDISA/USP; 2021 [citado 10 Maio 2024]. Disponível em: https://cepedisa.fsp.usp.br/wp-content/uploads/2024/01/CEPEDISA-USP-Linha-do-Tempo-Maio-2021_rev4-1.pdf
» https://cepedisa.fsp.usp.br/wp-content/uploads/2024/01/CEPEDISA-USP-Linha-do-Tempo-Maio-2021_rev4-1.pdf -
8 Floss M, Tolotti G, Rossetto AS, Camargo TS, Saldiva PHN. Linha do tempo do “tratamento precoce” para Covid-19 no Brasil: desinformação e comunicação do Ministério da Saúde. Interface (Botucatu). 2023; 27. doi: 10.1590/interface.210693.
» https://doi.org/10.1590/interface.210693 -
9 Gomes SR, Zamora MH. Negacionismo: definições, confusões epistêmicas e implicações éticas. Cienc Educ (Bauru). 2024; 30. doi: 10.1590/1516-731320240008.
» https://doi.org/10.1590/1516-731320240008 - 10 Assis L, Oliveira T. Confinada. São Paulo: Todavia; 2021.
- 11 Assis L, Oliveira T. Os Santos. São Paulo: Todavia; 2023.
Editado por
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EditorAntonio Pithon CyrinoEditor de debatesHelvo Slomp Junior
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
26 Ago 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
24 Abr 2024 -
Aceito
16 Jun 2024