Open-access Universidade fraturada: reflexões sobre conhecimento e responsabilidade social

The fractured university: knowledge and social responsibility

Resumo

As reflexões contidas neste texto procuram expor e defender os princípios fundadores e orientadores da universidade pública como instituição central nos processos de construção da existência individual e social. A educação e o conhecimento são bens públicos e direitos humanos essenciais e precisam apresentar qualidade com sentido científico e social. Um direito humano jamais deveria ser negligenciado, tampouco sonegado a parcelas da população e nem restringir-se aos aspectos pragmáticos e utilitários da vida. Qualidade para poucos é elitismo. Qualidade apenas para o mercado é redução do cidadão a capital ou recurso humano. Entretanto, a educação superior, em grande parte impulsionada por poderosos organismos internacionais e pela economia de mercado, está tendendo a substituir as finalidades essenciais da formação humana integral pela capacitação em competências e habilidades requeridas para o desenvolvimento das empresas. A formação universitária da atual universidade neoliberal e operacional tem contribuído para a ampliação da desigualdade social. A universidade tem responsabilidade sobre o modelo de desenvolvimento da sociedade global. Formação e conhecimento com qualidade científica e pertinência social se entrelaçam na concretização da responsabilidade pública da universidade. Não é digna da denominação de universidade uma instituição que se afaste das responsabilidades sociais e públicas.

Palavras-chave Universidade pública; Responsabilidade pública; Qualidade; Relevância científica e pertinência social

Abstract

The ideas in this paper seek to present and defend the founding principles and orientations of the public university as a central institution of social and individual shaping processes. Education and knowledge are public goods and essential human rights and have to show quality with scientific and social meaning. Human rights should never be neglected, nor denied to shares of the population or be restricted to pragmatic and utilitarian aspects of life. Quality for the few is elitism. Quality only for the market is the reduction of the citizen to capital or resource. Higher education, however, is in great part propelled by powerful international organisms and the formal market economy, and tends to replace the essential goals of full human education by competence capacitation and market-based abilities. The operational, neoliberal education provided by today's university has contributed to the amplification of social inequality. The university has a responsibility over social development models. Education and knowledge with scientific quality and social pertinence mingle together in stablishing the university's public responsibility. An institution that drifts away from its social and public responsibilities is not worthy of being dubbed a university.

Keywords Public university; Public responsibility; Quality; Scientific relevance and social pertinence

Introdução

Não se ignorem as monstruosas mazelas da vida humana. Miséria de toda ordem: violência, conflitos, ódios, ignorância, injustiça, desequilíbrios sociais, corrupção e tantas outras barbaridades corroem os valores e ideais que deveriam fundar e impulsionar os horizontes de emancipação da humanidade. Mas a consciência dolorosa da miserabilidade humana não deve impedir aspirações otimistas e ações proativas no sentido de encaminhar soluções a alguns dos problemas mais aflitivos, preservar os valores mais caros e resguardar as possibilidades de sonhar um mundo em que a justiça social e a paz prevaleçam sobre as injustiças e o ódio. A factibilidade das aspirações rasteiras não deve barrar os mais elevados sonhos de liberdade, ainda que estes muito dificilmente sejam realizados nas dimensões ideais. Para a universidade, trata-se de resgatar seu papel de instituição proeminente nas difíceis buscas de construir mais equidade e de aumentar a coesão social.

A educação tem papel importante na espacialidade da interatuação do desenvolvimento da consciência crítica e da produção de condições favoráveis à elevação dos indivíduos e das sociedades. A universidade é um dos espaços públicos em que privilegiadamente podem e devem vicejar as reflexões, os conhecimentos e técnicas, em clima de normal aceitação das contradições, das diferentes visões de mundo, da liberdade de pensamento e de criação. Não como torres de marfim e sim como instituições mergulhadas nas contradições da barbárie e da liberdade humanas, têm, portanto, enormes potencialidades e graves responsabilidades públicas.

Eric Hobsbawm (2013, p. 9-10) se refere aos recentes e atuais “Tempos Fraturados” como a “uma época da história que perdeu o rumo e que, nos primeiros anos do novo milênio, com mais perplexidades do que me lembro ter visto numa já longa vida, aguarda, desgovernada e desorientada, um futuro irreconhecível”.

O título enuncia o eixo de algumas ideias fundamentais que se apresentarão ao longo do texto. Os principais elementos estão aí anunciados: universidade é uma instituição da sociedade, com quem tem compromissos e responsabilidades inelidíveis. Recusá-los seria negar a sua essência e sua principal razão de ser. Sem sentido vital e valência social, não mereceria existir uma instituição criada e mantida pela sociedade para o bem de todos.

Responsabilidade social e a questão dos conhecimentos: elementos substantivos da universidade

A universidade justifica a sua existência ao cumprir suas responsabilidades sociais. Isto é feito por meio da vivência de valores existenciais e humanos e, por vocação e demanda, pela produção e socialização de conhecimentos. Ela é uma instituição de educação cuja finalidade principal é a formação em seus distintos graus e dimensões. O que lhe impende por princípio e fim é a sua contribuição na construção do mundo humano que a cada um cabe protagonizar nos planos da individualidade, da socialidade e da cidadania.

Pela educação, vamos construindo-nos como seres humanos (BARATA-MOURA, 2004, p. 31-32), ao mesmo tempo e inseparavelmente, nos planos individual e social. Vamos sendo o que somos como indivíduos e, pelo mesmo processo, seguimos produzindo nossa forma de participação na edificação da sociedade. Seres relacionais que somos, educamo-nos, educamos outros e pelos outros somos educados. A aprendizagem, a produção e a disseminação de conhecimentos e, inseparavelmente, a vivência de valores fundamentais da vida constituem as condições e a matéria prima da formação humana. Em sentido mais alargado, se inseridos nos ideais de emancipação humana, contribuem para a construção das bases de uma nação socialmente justa, culturalmente elevada, politicamente democrática e economicamente desenvolvida.

Pela educação, assumimos a responsabilidade de edificar a humanidade que a cada um corresponde. A responsabilidade da formação pessoal é correlativa da responsabilidade coletiva de construção da história humana. Se ontologicamente temos o direito a ser humanos, por isso mesmo temos todos o direito à educação. E mais que direito. Moralmente, temos todos o dever de realizar-nos mais completamente como seres humanos. Devido a esse dever, impõe-se o princípio da responsabilidade coletiva da educação. A formação humana propiciada pela educação não deve ser entendida e praticada simplesmente como uma história de realização pessoal para usufruto próprio mas, também, correlativamente, de enriquecimento da esfera pública.

A responsabilidade primeira da universidade é construir, no dia a dia, a qualidade dos processos sem perder de vista os seus fins essenciais. Isto significa cumprir suas atividades de formação e de trato com o conhecimento com o maior grau possível de qualidade acadêmica, científica, técnica, moral, política e social. Em outras palavras, o eixo da responsabilidade das instituições educativas deve consistir essencialmente na formação de indivíduos-cidadãos dotados de valores cívicos e conhecimentos técnica e cientificamente relevantes e socialmente pertinentes.

À universidade compete a missão de formar pessoas com alto sentido cultural, moral e político de cidadania e de contribuir, em sua esfera de possibilidades e em seus limites, para a solução de problemas da coletividade. A responsabilidade da universidade não diz respeito somente à técnica, mas, também, à ética e à política. É bem verdade que os conhecimentos que produz hão de apresentar pertinência para a sociedade, e isso inclui necessariamente a economia. Mas a universidade não deve transformar-se em serva da economia. Pertinência social e autonomia se associam como princípios inseparáveis do estatuto da universidade. Autonomia universitária é condição essencial para o cumprimento da responsabilidade científica e social da universidade.

Essas ideias preliminares marcam os pontos de partida dos arranjos que serão apresentados a seguir. São posições de princípio. Indicam direções, razões e desejos. Princípios morais e ético-políticos são universais, de um lado, e, por outro, atinentes à atividade dos indivíduos e sua participação na esfera pública. Como tantos outros, os princípios, na maioria das vezes, não se realizam completamente e frequentemente se concretizam às avessas. A educação não é tudo nem pode tudo, mas muito pior é a falta de educação de qualidade.

A realização humana é e será sempre imperfeita, inacabada e por debaixo das aspirações e projetos pessoais e sociais. Nem por isso deve ser abduzido nosso direito a sonhar com um futuro humano mais elevado e feliz. Este ideal guarda muito de utopia ao considerar a busca da felicidade (e com ela a justiça, a liberdade etc.) não apenas algo moralmente bom, mas humanamente necessário para a realização da condição humana.

A universidade é uma instituição da sociedade cuja missão essencial consiste em dar forma e conteúdo à construção da vida das pessoas e, ao mesmo tempo, contribuir para solucionar os problemas do conjunto da população, no âmbito de sua competência e de acordo com suas possibilidades. A universidade, juntamente com outras instituições públicas, precisa empenhar-se por recuperar a capacidade humana de “soñar un mundo en el que las barbaridades, el terror y el odio son vencidos, y ganan la amistad, el civismo, la solidaridad y la justicia” (PETRELLA, 2005, p. 12). Sem sonhos e sem utopias não há como desejar avançar e construir horizontes futuros mais desejáveis.

O viver humano solidário e digno requer racionalidade, apego à verdade, à crítica fundamentada e compromisso com a realidade, mas, por outro lado, também precisa de utopias e esperanças. O risco faz parte permanente do viver humano. Vale, então, lembrar o que há cerca de cinco séculos passados pensava um dos maiores gênios da humanidade. Michelangelo Buonarroti (1475-1564) acreditava na capacidade de emancipação humana. Para ele, o grande risco da emancipação humana consiste em evitarmos as mais altas aspirações pelo temor de não a realizarmos, trocando-as pelas aspirações demasiado baixas e facilmente alcançáveis.

A universidade é um dos espaços da convivência plural da sociedade. Tem muitas e diferentes responsabilidades, correlacionadas com as múltiplas e contraditórias demandas dos diversos setores da população, a começar pela explicitação das diferenças, por meio da crítica fundamentada em conhecimentos, valores e a prática permanente do diálogo. Cada grupo de interesse e de interessados tenta impor suas visões e exigências particulares, embora não homogêneas e bem integradas e coesas. De todo modo, para além das disputas de poder e acima dos interesses e projetos fragmentados e segmentados, é radical a responsabilidade da universidade e das demais instituições educativas com a formação integral de cidadãos-profissionais, pela mediação dos conhecimentos. A integralidade da formação é uma exigência existencial e faz parte do sentido público da universidade como instituição social.

Nessa linha de raciocínio, o conhecimento tem valor público e social. Pertence à esfera dos direitos humanos e dos projetos civilizacionais. O conhecimento é conteúdo integrante da formação humana social, ética, política, moral e estética. Não deve ser, ou não deveria ser, simples engrenagem da otimização dos lucros. É base do desenvolvimento individual e nacional pelo que contém de instrumentalidade operacional, científica, técnica e pelos valores humanísticos que porta.

O conhecimento ultrapassa de muito as relações restritas que com ele os indivíduos tecem. Tem papel fundamental nas tramas das formações econômicas e sociais. Não é simplesmente matéria prima do desenvolvimento econômico ou, como está em moda dizer, motor do progresso, como se o progresso humano correspondesse unicamente à medida do econômico. É inegável que o desenvolvimento econômico, especialmente nos dias atuais, tem estreita relação com a informação e com os conhecimentos que apresentam grande potencial de aplicação quase imediata. Porém, há outros significados que desbordam o plano econômico.

Os conhecimentos são essenciais à formação dos indivíduos e esta guarda uma essencial correlação com a construção das sociedades. Para além de úteis ao usufruto individual e de grupos, eles são essenciais aos processos de condução da vida. Enquanto fazem parte da forma e do conteúdo da necessidade inafastável de formação humana, os saberes e as técnicas precisam ter rigor científico e ser pertinentes ao bem estar coletivo. E mais eficazmente cumprem seu sentido público na medida em que se inserem em horizontes, uns factíveis, outros utópicos, que as forças sociais e o Estado se estabelecem e buscam alcançar.

Todos têm direito à educação, pois todos têm necessidade vital de formação. Portanto, a qualidade da universidade em grande parte consiste em sua capacidade de formar cidadãos portadores de sólidos conhecimentos e conscientes de suas responsabilidades nos processos de construção econômica, ética e política da sociedade. Isso leva a pensar no tema da qualidade social e política como responsabilidade da universidade. Se educação e conhecimento são bens públicos e direitos humanos essenciais, a universidade se obriga a ter e produzir qualidade com sentido científico, público e social. Um direito humano não pode ser negligenciado e tampouco sonegado a parcelas da população. Nem mesmo se restringe aos aspectos pragmáticos e utilitários da vida.

Michel Freitag (1995, p. 65) afirma que “o ensino do conhecimento tem uma função pedagógica que não se refere somente à aprendizagem e ao desenvolvimento da disciplina, mas ao melhoramento do viver-coletivo societal”. Por essa razão, defende que as pesquisas imediatamente pragmáticas e utilitaristas deveriam ser deixadas a instâncias extrauniversitárias (de ministérios, centros de pesquisas especializados, empresas etc.), onde estudantes poderiam estagiar. Diz Freitag (p. 65): “quanto à universidade, ela se perde e se deixa lentamente destruir ao querer responder a tais necessidades imediatamente traduzíveis em objetivos.”

A qualidade da universidade não deveria restringir-se unicamente a critérios de operacionalidade e utilidade mercadológica, nem às análises de custo-benefício, tampouco aos resultados de exames de desempenho estudantil e arranjos bibliométricos da produção científica. São aspectos das dimensões objetivas da universidade, mas, por isoladas, não produzem uma imagem integrada do cumprimento das finalidades institucionais. Mais importante que a performatividade em uma ou outra dimensão particularizada é o realizar-se como espaço público fundamental na construção de sociedades econômica e culturalmente evoluídas e democraticamente justas e participativas.

Portanto, a universidade não deve viver apenas internamente os valores democráticos. É seu dever, respeitadas as limitações, competências e critérios próprios de sua natureza, estabelecer ações e programas que possibilitem um amplo acesso de todos os grupos populacionais, com atenção especial àqueles que apresentam vulnerabilidades sócio-econômicas. Responsabilidade social e democratização são conceitos praticamente equivalentes. Diz Boaventura de Sousa Santos (2004, p. 100):

A ideia da democratização externa confunde-se com a responsabilização social da universidade, pois o que está em causa é a criação de um vínculo político orgânico entre a universidade e a sociedade que ponha fim ao isolamento da universidade que nos últimos anos se tornou anátema, considerado manifestação de elitismo, de corporativismo, de encerramento na torre de marfim, etc.

A qualidade da educação, no sentido público, é necessariamente social, além de técnica e científica. Qualidade para poucos é elitismo. Qualidade apenas para o mercado é restrição do cidadão a capital ou recurso humano. Se o isolamento da universidade é indesejável, também não é aceitável sua adesão cega aos apelos do mercado e, ainda mais deletéria, a transformação da educação em negócio. Sair da torre de marfim para constituir-se um espaço público de construção da democracia econômica, cultural, cognitiva e política, eis um dos significados mais fortes da responsabilidade social da universidade. O núcleo central dessa responsabilidade se corporifica na produção e socialização de conhecimentos relevantes e rigorosos do ponto de vista da ciência e socialmente pertinentes, ou seja, portadores de valores importantes para o bem-viver societal.

Contudo, nem todo conhecimento que hoje se produz e se reproduz na universidade contribui para tornar mais ético e justo o viver humano. Ao contrário. Fazendo parte da tendência geral de mercadorização da sociedade que grassa por toda parte, o conhecimento está sendo produzido e irradiado mais pelo critério de valor utilitário que pelo significado humano formativo. A educação é vista pelos setores hegemônicos da economia e da política como um poderoso provedor das competências e habilidades que as estruturas de produção e de trabalho demandam. Os principais objetivos da educação superior se deslocam da formação humana integral para a capacitação em competências e habilidades requeridas para o desenvolvimento das empresas. Do valor social se inflectem ao interesse comercial

As novas estruturas de produção e trabalho se transformam muito rapidamente e carregam consigo inseguranças e necessidades de atualização permanente. A economia tende a resumir-se a comércio. A chamada sociedade do conhecimento, que muitas vezes se confunde com economia do conhecimento, inclui e exclui. É certo que os meios de comunicação se ampliam espetacularmente em ondas de inclusão mundial, mas o que frequentemente também ocorre é a tendência a “atomizar as experiências subjetivas e a produzir o enfraquecimento das dimensões públicas” (DIAS SOBRINHO, 2005, p. 77). A universidade empobrece sua função social ao deixar de ser um “lugar institucional privilegiado de elaboração de uma cultura comum que integra nela mesma o debate e a reflexão, e sem a qual a ideia mesma de um espaço público político ficaria vã” (FREITAG, 1995, p. 33).

Já em texto de 1988, Ball denunciava a “colonização crescente das políticas educativas pelos imperativos da política econômica” (p. 122). De lá para cá, o conhecimento vem adquirindo crescente importância na produção da economia e da política. Cada vez mais se conecta com os contextos da produção econômica, e se submete aos critérios da utilidade, da aplicabilidade, dos interesses de lucro, da competitividade das empresas.

Organismos multilaterais têm atribuído um peso muito grande à educação superior, argumentando que o progresso social e econômico se assenta sobre o saber e a melhoria geral das competências técnicas e profissionais. Repercutindo um alerta do Banco Mundial, Salmi (2004, p. 56) afirma:

Os países em desenvolvimento e países em transição correm o risco de serem marginalizados na economia mundial altamente concorrencial porque seus sistemas de ensino superior não são suficientemente preparados para tirar partido da produção e da prática do saber; o Estado tem o dever de estabelecer um quadro propício que encoraje os estabelecimentos de ensino superior a serem mais sensíveis às necessidades de uma economia global e competitiva do saber e também mais adaptados às condições moventes do mercado do trabalho do capital humano de alto nível; o grupo do Banco Mundial pode ajudar seus países clientes a tirar proveito da experiência internacional e a mobilizar os recursos necessários para melhorar a eficácia e a faculdade de adaptação de seus sistemas de ensino superior.

Aí estão presentes alguns itens importantes da ingerência da globalização neoliberal sobre a educação superior. Organismo multilateral de enorme capacidade de determinação ideológica e poder econômico-político no mundo, o Banco Mundial deixa clara sua visão economicista a respeito da educação e do conhecimento. Segundo esse organismo, em um regime de alta competitividade mundial, as políticas e processos de ampliação do acesso aos níveis superiores e a difusão de práticas eficientistas relacionadas ao conhecimento agregariam vantagens competitivas aos países emergentes e pobres. Estes poderiam se beneficiar da experiência mundial acumulada pelo Banco Mundial e da prontidão dessa Organização para repassar as “boas práticas” que deram certo nos países do Primeiro Mundo, com o objetivo de melhorar a “eficácia” e a adaptação dos sistemas de educação superior às “necessidades da economia global”.

O conhecimento produzido e disseminado na educação superior, na perspectiva bancomundialista, seria fundamental para o aumento de competitividade de cada país e isso redundaria em fortalecimento do mercado global. Nesses termos, o conhecimento, então, deve estar a serviço do desenvolvimento e da competitividade da esfera econômica. O papel central da educação superior é, na visão do Banco Mundial, potenciar as competências em vista do fortalecimento das economias locais, que, por sua vez, devem estar ajustadas à economia global.

O conhecimento deixou de ser reconhecido como portador de significação humana ligada à liberdade e à produção do bem social. As disciplinas das humanidades perderam a importância fundamental que tinham no passado. Agora as referências centrais dos conhecimentos são as disciplinas de base técnica e informacional, ou seja, aquelas que agregam eficácia e competitividade, de acordo com as necessidades da economia global, esta mesma reduzida a comércio global. Tudo conjura para anular a política de valor público e esvaziar o Estado. Aí estão elementos substantivos da globalização neoliberal, cujo objetivo “era precisamente reduzir o tamanho, o escopo e as intervenções públicas do Estado” (HOBSBAWM, 2013, p. 230).

A educação superior se transforma juntamente com as mudanças que ocorrem nas estruturas econômicas, políticas e culturais, tanto nos âmbitos públicos quanto privados da vida contemporânea. Na base das rápidas transformações que se operam em todos os setores da vida e em todo o mundo, o conhecimento de raiz informático-tecnológica se modifica, se volatiliza e se torna obsoleto em curto espaço de tempo. Dele espera a economia globalizada que seja útil às empresas e de pronta aplicação. Quando perde utilidade do ponto de vista do mercado e das profissões, é logo descartado e substituído por outro mais eficaz e coerente com as necessidades das corporações mercantis.

Cada vez mais imprescindível ao desenvolvimento econômico e à aquisição de vantagens competitivas nas relações comerciais globais e crescentemente mais associado ao exercício profissional e aos contextos específicos, o conhecimento vai perdendo sua histórica densidade de significação humana associada à liberdade, à emancipação pessoal e ao bem coletivo, e mais e mais é subsumido pela ideologia do interesse individual e do lucro ilimitado. O que mais conta na “universidade operacional” (FREITAG, 1995) relativamente ao mercado são os meios. A prioridade não são mais os valores referentes aos fins, e, sim o saber-fazer e os resultado práticos. Os fins não são mais prioritários. Os meios se legitimam como fins.

A universidade deixou que se lhe escapasse a utopia, ainda vigente na maior parte do século XX, que consistia em vê-la como parte essencial dos projetos civilizacionais e instrumento fundamental da criação de uma próspera sociedade democrática. Desde, sobretudo, as duas últimas décadas do século passado, a utopia social passou a ser substituída pela pragmática da função econômica. Agora, à universidade não mais se impõem os objetivos amplos e as aspirações mais altas da sociedade democrática e justa, mas o servir a indústria e as necessidades laborais de curto prazo. A universidade perde sua natureza de instituição de formação e adquire um estatuto operacional de formação de competências fragmentárias e de aplicação imediata. Em razão desse desvio, “o conjunto da sociedade perde seu último lugar institucional de síntese e de orientação crítica” (FREITAG, 1995, p. 30).

O prestígio da universidade atual se deve nem tanto a seu potencial civilizacional, como no seu passado secular, mas, sobretudo, porque agora se tornou uma organização muito importante na produção de tecnologia, de capacitação profissional e de competitividade. Para bem executar essa função, ela procura ser uma estrutura de gestão, como o são as organizações empresariais. A ênfase no operacional e pragmático encurta o horizonte da responsabilidade civilizacional da universidade na formação integral de cidadãos e empobrece o valor da contribuição do conhecimento, que ela produz e socializa, relativamente à solução dos problemas de hoje e de amanhã da humanidade.

Nem toda instituição educativa é importante, não é qualquer tipo de conhecimento que é valorizado na atual era da globalização. Observa criticamente Axel Didriksson (2000, p. 14) que a importância dos conhecimentos, tanto na perspectiva econômica como na política, não é ampla e irrestrita. Restringe-se o prestígio àqueles “conhecimentos relacionados com os processos de inovação tecnológica e produção industrial, competitividade e liderança no mercado, e que se situam nas unidades produtivas mais dinâmicas”.

Por outro lado, Salmi, economista do Banco Mundial, apresenta uma perspectiva distinta, pois claramente favorável ao papel da universidade como motor do desenvolvimento centrado no econômico e da competitividade. Afirma Salmi (2004, p. 58), irradiando um discurso caro ao Banco Mundial, que as inovações tecnológicas e a difusão dos conhecimentos científicos se traduzem por uma maior produtividade, e a maior parte dessas inovações é produto da pesquisa fundamental e da pesquisa aplicada conduzidas nas universidades.

Muito positivo que a universidade contribua para uma maior produtividade em benefício do coletivo, mas, negativamente, como fetiche do desenvolvimento econômico, a produtividade e a competitividade sem tréguas estão contribuindo para a diluição do social e a corrosão das relações humanas. Destituída de valores do bem comum e dimensionada pela obsessão do aumento da competitividade individual, a técnica se livra da ética e colabora para a extensão da crise geral de sentidos e da crescente anemia da socialização que afeta a sociedade atual.

A universidade atual está condenada à burocracia da produtividade e à produção do aniquilamento da criatividade. Anula-se o sujeito moral exigido pela cidadania consciente e participativa e emerge o indivíduo como elemento impulsionador da economia. A formação se reduz a capital humano. A sociedade não mais organiza a economia; é a economia quem organiza a sociedade. Assim se apaga o projeto civilizatório que deveria estar animando a universidade.

Como tendência predominante, a universidade atual pouco se preocupa com a formação para a liberdade, a crítica fundamentada e a reflexão. Ela mesma perdeu sua capacidade de refletir sobre os grandes problemas que afligem a sociedade e de elaborar sínteses compreensivas sobre o mundo humano. Abdicou de correr grandes riscos e deixou de inserir nos processos de ensino-aprendizagem e de construção de conhecimentos, assim com nas relações interpessoais no meio acadêmico, as incertezas, os debates, a pluralidade, os questionamentos. Abriu mão de criar conhecimentos e técnicas que produzam mais desenvolvimento humano em benefício de todas as pessoas e de promover ações que contribuam com os propósitos de mais coesão e justiça social. Abdicou de um valor que a acompanhou ao longo da história e, com isso, perdeu a sociedade uma instância de reflexão, síntese, crítica e orientação.

A formação universitária da universidade neoliberal e operacional não tem contribuído para que o estudante se integre ativamente na esfera pública, de cuja construção deveria participar crítica e criativamente. Nesse sentido, a universidade neoliberal está servindo mais aos objetivos de retração dos espaços públicos e expansão da esfera privada na economia, na política e na vida comum dos indivíduos. Tem contribuído para ampliar a desigualdade social ao restringir o conceito de cidadão ao de consumidor. Na economia de mercado que domina o mundo, o consumidor só participa à medida que consome e sempre de acordo com sua capacidade individual e para benefício próprio. Na proclamada “sociedade do conhecimento”, “o conhecimento se torna a fonte básica da riqueza nacional e pessoal, e em que aos possuidores e usuários do conhecimento se concede, de modo correspondente, a parte do leão dessa riqueza” (BAUMAN, 1998, p. 64).

Para pertencer efetivamente a uma sociedade e participar da construção coletiva, isto é, ser cidadão, precisa-se de ter conhecimentos, valores e atitudes constitutivas do espaço público e da coesão social. Daí a importância de não se fazer da universidade uma mera instância de prestação de serviços e, sim, de formação de cidadãos-atores aptos a influir construtivamente numa sociedade que corresponda a seus projetos e sonhos de vida.

A globalização atual confere plena centralidade à economia de mercado e envolve, em mútua interação, um notável processo de individualização e de dissolução das relações sociais. A centralidade do mercado é assegurada por um complexo de elementos interatuantes que se relacionam com a supremacia da capacitação técnica, o alto valor do conhecimento como motor do desenvolvimento e, de modo especial, os fantásticos avanços científico-tecnológicos, comunicacionais e informacionais.

Essas grandiosas mudanças que afetam todas as esferas da vida se produzem sem a participação dos sujeitos. As grandes decisões são tomadas longe do alcance dos cidadãos. Apontam Cerda, Egaña, Magendzo, Santa Cruz e Varas (2004, p. 127) que o processo democratizador está em poder de pequenos círculos de nações, grupos econômicos transnacionais e organismos internacionais. Esses círculos é que estão indicando o rumo das mudanças, de tal modo que os mecanismos de representação democrática carecem da soberania suficiente para desenhar e decidir o futuro das vidas dos cidadãos e das sociedades.

O modelo universitário hegemônico no mundo está comprometido com a irradiação e a consolidação da ideologia e da economia neoliberal da atual globalização. Nessa lógica, majoritariamente, se fazem a ciência, a tecnologia e a inovação. Essa tríplice relação constitui os pilares fundamentais do desenvolvimento da economia globalizada e responde por grandes conquistas nos contextos do progresso material das sociedades. Não são nada negligenciáveis os espetaculares avanços do conhecimento técnico-científico e seus impactos na vida dos indivíduos. Mas a universidade também não deve abdicar de sua função originariamente de construção de sociedades humanas mais equitativas, aproveitando sabiamente os benefícios sociais e públicos da ciência, da tecnologia e da inovação. De acordo com os valores da relevância e da pertinência, a sabedoria consiste em produzir ciência, tecnologia e inovação inseridas nos projetos éticos e políticos de construção de sociedades democráticas e justas.

Ciência, tecnologia e inovação são fundamentais no combate à pobreza e às carências culturais, econômicas, sociais, intelectuais e políticas. Em outras palavras, são elementos importantes da cidadania social, que requer o exercício consciente dos direitos em sua integralidade: civis, políticos, econômicos, sociais, culturais. Portanto, estão conectados com os ideais de liberdade e de equidade, princípios que rechaçam a exclusão de todo tipo, os preconceitos, a intolerância, a opressão, a pobreza, o individualismo possessivo, a indiferença frente a todos os exercícios e práticas de pensamento e ação que se opõem à dignidade humana.

A riqueza hoje é, em grande parte, imaterial. Dada a alta importância do conhecimento, é razoável pensar que suas diferentes etapas de produção, distribuição, acesso e consumo sejam palco de acirradas disputas. Como instância crítica e criativa, não cabe à universidade ser indiferente frente a essas tendências avassaladoras da globalização, que estão envolvendo todo o universo em violências, pobreza, anemia ética, selvagerias e luta desenfreada pelo poder.

A cosmovisão neoliberal e tecnocrática, hegemônica nos dias de hoje, impõe a toda a gente os rumos da economia de mercado (e, então, da produção, distribuição e aplicação do conhecimento, da ciência e das técnicas) as formas de pensar e agir na vida cotidiana e nas rotas esferas da convivialidade social. Predomina hoje um modelo verticalizado de determinação ideológica e política que afeta as diversas dimensões da vida humana.

Círculos de alta capacidade de determinação e dominação ideológica, cultural e econômica, incrustados nas influentes corporações, nos grandes laboratórios, nos organismos multilaterais e em seus braços operacionais, com a ajuda de expertos distribuídos pelo mundo afora, determinam os rumos da ciência e tecnologia, os modos e lugares de sua produção, distribuição e usos. Essa engrenagem mantém viva e renovada a narrativa que carrega a crença na capacidade soberana da razão e, por consequência, de seu produto mais caro - o conhecimento científico - de alavancar um progresso venturoso e incessável para a humanidade. Sob o pretexto da pretensa objetividade e da neutralidade ideológica da ciência, se afasta das forças sociais a discussão ético-política a respeito do tipo de conhecimento que seria socialmente mais necessário e de qual cidadania a educação deveria encarregar-se de formar.

Há fortes demandas por mais conhecimentos, alguns deles de tipo novo. Esses conhecimentos precisariam ser produzidos e distribuídos com muita rapidez, para darem conta de situações emergentes e urgentes. A capacitação profissional há de ser contínua e permanente, para satisfazer a grande mutabilidade do mundo empresarial e o crescimento exponencial dos conhecimentos técnicos. Nisso há o risco de as aquisições cognitivas serem efêmeras e pouco ou nada significativas para a construção da cidadania pública e ativa, ainda que úteis aos empregadores. Além disso, muito do que se cataloga como conhecimento não passa de informação. Portanto, também não se constitui como aprendizagem significativa e formativa do sujeito. Não responde a problemas de natureza civilizacional, pois não se insere em projetos de reflexão normativa da sociedade.

No âmbito da educação superior, pressionados pelos empoderados núcleos internacionais, as instituições são constrangidas a ajustar seus currículos, a gestão acadêmica, os conceitos e procedimentos de formação de professores e estudantes, os critérios e modelos de avaliação aos imperativos da ordem econômica e aos padrões norteadores dos rankings internacionais. As exigências de conectividade do conhecimento e de instrumentalidade técnica da formação, ou seja, da capacitação profissional, impõem prioridades curriculares e disciplinares aderentes à ordem econômica. Isso tem fortes impactos nos prestígios sociais e acadêmicos e nas políticas de financiamentos. Mas têm, também, importantes impactos na formação fragmentária e utilitarista dos estudantes.

Professores e estudantes estão perdendo o protagonismo de cidadãos e sujeitos. As prerrogativas de decisão escapam de seu controle para os fóruns dos expertos e operadores técnico-administrativos. Onde prevalece o valor do individualismo, não há como edificar a comunidade. Só se constitui sujeito quem, mergulhado nos encontros e desencontros do cotidiano, conduz o processo de construção de sua vida e da comunidade, reconhecendo e respeitando as diferenças e contradições vigentes na coletividade e assumindo suas responsabilidades na construção do bem comum.

Responsabilidade coletiva nos processos de construção da sociedade: é este o sentido forte da palavra solidariedade presente em sua etimologia. A competitividade acirra a desigualdade e a exclusão. Não é a competitividade que deveria animar a tarefa universitária de construção da esfera pública. É a solidariedade, entendida como responsabilidade coletiva. A palavra “solidaridad”, recorda Petrella (2005, p. 158), “proviene del latín solidus, principio jurídico según el cual los miembros de un grupo son responsables en conjunto de las acciones de los otros miembros”.

A competitividade é a força motriz da tecnificação, mercantilização e instrumentalização da vida e concorre fortemente para os processos de despolitização e suspensão do sujeito histórico. A racionalidade técnica-científica-instrumental-informacional-global internaliza na sociedade a noção de um progresso sempre crescente baseado na incorporação da tecnologia e dos produtos da inovação à produção industrial. Da posse ou carência dos conhecimentos de natureza instrumental e, principalmente, do domínio ou do despreparo tecnológico dependem os destinos de um indivíduo no meio social e de um país no mosaico global.

Até um passado não muito distante, mas antes da invasão da economia de mercado, a principal referência da universidade era a sociedade. Instituição social, educativa, cultural e científica, criada e mantida pela sociedade para formar pessoas aptas ao desenvolvimento da cidadania e da coesão social, por meio da produção e irradiação do conhecimento. De direito humano fundamental, portanto, público, a educação (e tudo o mais que constitui esse fenômeno: formação, conhecimento, aprendizagem etc.) vai se tornando produto ou serviço, isto é, propriedade privada para benefício particular de indivíduos e empresas.

A universidade vem sofrendo uma erosão em sua missão histórica, em grande parte devida à mudança nos conceitos ético-políticos da cidadania e do conhecimento. A técnica vai subsumindo a ética e a economia vai determinando a política. A referência central vai deixando de ser a sociedade ou o bem coletivo e se desloca ao mercado. Inverte-se a lógica: não é a sociedade quem organiza o mercado e, sim, é o mercado o organizador da sociedade. Mudam os conceitos da formação. Refluem os conceitos de formação integral de cidadãos-profissionais portadores de conhecimentos e valores humanos fundamentais e aptos a interferir crítica e construtivamente na sociedade, e prevalecem outros, como o individualismo possessivo, a busca incessante do lucro, o aumento da competitividade e semelhantes.

É parte da missão essencial da universidade contribuir para fundamentar e fomentar a participação civil culta e responsável na vida social. Faz parte de sua responsabilidade social exercitar suas potencialidades em vista da construção da democracia. Mas a democracia econômica, política e cultural repele tudo o que seja injustiça e desigualdade. O mundo humano não se humaniza se não é equitativa a distribuição dos bens materiais e culturais. Tampouco se constrói uma sociedade democrática sem uma participação efetiva e bem fundamentada da cidadania pública.

Uma sociedade que tolera e produz desigualdades é antidemocrática, atrasada, injusta e perversa. Quanto mais desigualdade, menos cidadania, mais violência, mais pobreza. A educação não é suficiente para resolver os problemas da injustiça social e da fragilidade da democracia. Mas certamente a falta de educação de qualidade e de sentido público aprofunda a desigualdade e fragiliza a cidadania. Por essa razão, não são concebíveis o desinvestimento do Estado na educação pública e o incentivo direto e indireto à mercadorização da universidade. Em consequência, também não é apropriado chamar de universidade uma instituição que não corresponda aos compromissos públicos que lhe atribui a sociedade.

Uma das mais importantes faces da responsabilidade da universidade consiste no fortalecimento de seu compromisso com o conhecimento de natureza pública e de utilidade social. A democracia cognitiva é uma das dimensões essenciais da democracia plena e de acréscimo de humanidade aos processos históricos de humanização do mundo. Todos os grupos sociais têm direito ao conhecimento. Ampliar a inclusão educativa e a democratização dos benefícios culturais é uma questão central da justiça social e dos projetos civilizatórios.

Mais gente na educação indica mais qualidade social e um passo na direção da equidade. Só que isso é ainda insuficiente. A qualidade precisa ser pertinente, isto é, útil para a população e, ao mesmo tempo, deve ter rigor e relevância do ponto de vista do saber, da ciência e da tecnologia. A ampliação do acesso aos processos educacionais formais e aos bens culturais em geral não deve consistir em simples e cega adesão à agenda da economia de mercado global e, sim, processo de formação de sujeitos aptos à construção da história na perspectiva da justiça social. A universidade não deve perder a capacidade de reconhecer que a dignidade humana há de sempre prevalecer sobre os interesses privados.

Considerações finais

A universidade tem responsabilidade sobre o modelo de desenvolvimento da sociedade global. Esse modelo precisa ser construído em uma direção distinta daquela que hoje se impõe como hegemônica. A sociedade contemporânea requer trabalhadores do conhecimento e profissionais capazes de responder a complexas exigências e a desafios de todo tipo que se avolumam, se renovam e, muitas vezes, se sobrepõem e se contradizem. Importante é que esse novo modelo de desenvolvimento se fundamente em conhecimentos que alcancem a todos e alimentem a realização dos sonhos de liberdade e felicidade.

A universidade é atravessada de contradições e dissensos. Ela não está isenta das lutas de ocupação de ideias e espaços que invadem os campos de poder em todos os setores do mundo. Não são discórdias apenas a respeito de questões organizacionais. No fundo, os dissensos mais importantes se referem à questão dos fins. O que realmente está em questão são as concepções de educação e os objetivos ou referências da universidade. Isso tem a ver com as posições filosóficas e políticas a respeito do público e do privado.

A universidade é instituição de formação humana integrada a projetos civilizacionais, ou é instância a serviço do mercado e dos interesses privados dos indivíduos? Não são nada gratuitas e irrelevantes as tomadas de posição de uma ou de outra concepção. São diferenças conceituais, filosóficas e políticas a respeito da ciência, da formação, das finalidades da universidade e guardam relações com os problemas vitais de hoje e as esperanças que prospectam desenhos de um futuro melhor.

O campus universitário é um campo de disputas de poder que envolvem ideias e lugares sociais distintos e frequentemente conflitantes. As discrepâncias se disputam nos currículos, na organização das estruturas de ensino e pesquisa, nas políticas de desenvolvimento institucional, nas avaliações, nas salas de aula, nos laboratórios, nos hospitais, nos temas de investigação, nos projetos de financiamento, nas instâncias administrativas, nos organismos de relacionamento com as empresas e setores da sociedade, enfim, em todas as instâncias que constituem o cotidiano universitário. É nesse palco que se disputam ideologias, poderes, conceitos de qualidade e de finalidades da educação em geral e, obviamente, da universidade.

Mas, como a universidade perdeu o protagonismo na definição da qualidade e das finalidades da educação, da formação e do conhecimento, um outro campo de disputas, aderências e discordâncias se instaura entre os atores internos e externos, entre o próprio da instituição educativa e as externalidades do mundo globalizado, lembrando que uns e outros estão permanentemente cruzados de contradições de toda espécie também em seus respectivos âmbitos.

Há diferenças radicais entre conceber a formação e o conhecimento na linha do bem público ou de usufruir deles como mercadoria. “As diferenças entre uma e outra concepção interferem efetivamente na produção, distribuição, na aprendizagem, nos usos e nas finalidades dos conhecimentos” (DIAS SOBRINHO, 2005, p. 84). Como mercadoria, a formação e o conhecimento objetivam alimentar o desenvolvimento de competências e habilidades propícias ao aumento da competitividade e à maximização de lucros. Como bens públicos, formação e conhecimento têm por referência a sociedade e se orientam por valores como justiça social, equidade, respeito às diferenças e outros da cidadania democrática.

Educação se realiza como bem efetivamente público na medida em que forma cidadãos com conhecimentos e valores que propiciam a construção de sociedades justas, evoluídas e coesas em seus diversos aspectos: econômicos, culturais, técnicos, éticos, políticos e estéticos. É responsabilidade indeclinável da universidade trabalhar sobre o conhecimento e com o conhecimento na perspectiva do desenvolvimento humano integral e da construção social. Como defende Petrella, as instituições de educação não existem para preparar os novos conquistadores do mundo, mas para formar cidadãos. “Se as universidades não estão preparadas para ensinar isso, nenhum espanto se a injustiça, a violência, a guerra permaneçam no futuro as formas naturais de comportamento dos humanos” (PETRELLA, 2003, p. 48).

Formação e conhecimento com qualidade científica e pertinência social se entrelaçam na concretização da responsabilidade pública da universidade.

A educação superior não deve dar razão ao mercado, se e quando o mercado se impõe como razão da sociedade ... não deve ser o motor da globalização da economia de mercado, mas, sim, da globalização da dignidade humana, de recuperação da dimensão histórica dos indivíduos, da reintegração da sociedade (DIAS SOBRINHO, 2005, p. 246)).

Por todo o antecedente, cabe concluir que a universidade precisa recuperar sua disposição de pôr em questão os sentidos das transformações que são mundiais e onipresentes e que a afetam fortemente. A reflexão é necessária para compreender o que ocorre fora e o que se passa em seu interior, para produzir sentidos sobre o mundo do qual faz parte e sobre si mesma. Desde que fundados na ética da justiça social e das políticas de inclusão e participação dos cidadãos na vida pública, os progressos materiais e os avanços da ciência e da tecnologia são de enorme valor humano. Erro grave seria reduzir a sociedade ao mercado, como se ambos se equivalessem. Seria igualmente grave erro de nefastas consequências para a vida democrática se a universidade “não assumisse seu papel de enorme importância na formação da cidadania e desenvolvimento da sociedade civil” (DIAS SOBRINHO, 2005, p. 241). Formação e cidadania: nisso consiste o essencial da responsabilidade social da universidade. Papel intelectual, político e moral. Segundo Wallerstein (2005, p. 1), há “un vínculo íntimo entre lo intelectual, lo moral y lo político”. Para ele, uma ação racional é aquela pela qual se busca uma explicação ótima do que ocorre e, em função dessas considerações, se introduzem preferências morais e se decide quais são os esforços políticos mais eficazes para construir um mundo melhor.

É verdade que “os intelectuais por si só não têm condição de mudar o mundo, embora nenhuma mudança desse tipo seja possível sem sua contribuição” (HOBSBAWM, 2013, p. 236). O presente é de transição, caótico, vivemos “tempos fraturados”, o futuro é incerto. Precisamos de muito conhecimento, muita técnica. Lembremos, contudo, que as escolhas nunca são puramente técnicas; integram nossos sistemas de valores. Nisso reside um importante compromisso da universidade: construir sistemas de análises e interpretações que contribuam a transcender as incertezas e imprecisões do momento e a ajudar a cidadania a compreender mais coerentemente as decisões intelectuais, morais e políticas que há de tomar para a construção de um mundo relativamente mais democrático e igualitário. A ciência rigorosa e solidamente fundamentada deve estar em íntima aliança com a busca permanente dos fins justos na vida moral e política.

Na linha de argumentos proposta por Wallerstein (2005, p. 59), pode-se concluir que três responsabilidades intimamente enlaçadas, nada fáceis, mas irrecusáveis, impõem-se aos universitários das distintas disciplinas: arranjar sistemas intelectuais de compreensão e transformação da realidade, desenvolvendo o pensamento crítico e analítico, construindo conhecimentos e aplicando técnicas, de acordo com as mais importantes prioridades da sociedade; avaliar moralmente as decisões e os rumos a seguir; avaliar politicamente os meios para atingir mais facilmente os fins. Certamente não é o caminho mais fácil para a felicidade, ainda que seja uma felicidade efêmera e mesmo potencialmente odiosa. O que mais anima a gente hoje e se pensa que inventam o futuro são as ciências e a tecnociência. Em consequência, a mundialização da civilização que confere primazia ao pragmatismo e ao individualismo. Diz Bauman (2011, p. 197): “A ignorância política é perpétua a si mesma”. E conclui: “Precisamos de uma educação vitalícia para nos dar escolhas. Mas precisamos ainda mais de salvaguardar as condições que tornam a escolha disponível e ao alcance de nosso poder”. Bem difícil é isso, pois “todos somos condenados à vida de opções, mas nem todos temos os meios de ser optantes” (BAUMAN, 2011, p. 94). A globalização neoliberal aprofundou essa e muitas outras polarizações.

Um dos mais sérios problemas da atualidade é que a civilização abdicou de questionar-se. Impera o princípio das autoevidências, que não precisam de explicações e não são mais objeto de discussões e argumentações. (BAUMAN, 1998, p. 13-14). Daí decorrem cada vez mais intensamente a necessidade de recuperação e o sentido insubstituível das Humanidades na compreensão e na valoração das decisões e ações, embora as Humanidades já não comportem mais aspirações prometeicas. Ciente dos limites e riscos, pedagógica e reflexivamente, compete ao intelectual, então, ao professor universitário, especialmente ao de formação humanística, “mostrar qual é o valor dos valores, a grandeza dos fins, porque é precisamente o que ele pode ver quando exerce seu olhar reflexivo sobre a ação humana, social, histórica, quando ele olha o que é o modo de existência da sociedade e da pessoa...” (FREITAG, 1995, p. 188-189). “A informação fragmentada e autofágica não se faz conhecimento. O saber que reduz a verdade à utilidade não se transforma em sabedoria” (DIAS SOBRINHO, 2014, p. 659).

Ciência e tecnologia são motores importantes do desenvolvimento, mas necessitam de sistemas de freios e contrapesos da reflexão de ordem moral e social. Não se trata de divisão de tarefas entre disciplinas e entre universitários, em que um segmento se dedicaria à produção desenfreada e supostamente neutra e isenta de valor – ciência autorreferenciada como proprietária da verdade e da eficácia - e outro se dedicasse à reflexão, à análise, à crítica e à cultura – âmbito do bom, do belo, da utopia. O pensamento crítico é obrigação inafastável de todo ofício intelectual, de todos os ramos do conhecimento e do saber. Sem ciência e tecnologia a sociedade mundial patinha, engendra núcleos de pobreza e atraso, aprofunda polarizações. Mas sem as Humanidades e um amplo pensamento crítico, reflexivo e antibarbárie, a universidade desperdiça as melhores chances de construção de um futuro digno da Humanidade. Sem valor público e social, uma empresa de educação superior é só uma organização, um simulacro, não uma verdadeira universidade.

Referências

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  • BAUMAN, Zigmunt. Globalização. As Consequências Humanas. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
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  • CERDA, Ana María; EGAÑA, M. Loreto; MAGENDZO, Abraham; SANTA CRUZ, Eduardo; VERAS, René. El complejo camino de la formación ciudadana. Una mirada a las prácticas docentes. Santiago: LOM Ediciones/PIIE, 2004.
  • DIAS SOBRINHO, José. Dilemas da educação superior no mundo globalizado. Sociedade do conhecimento ou economia do conhecimento? São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.
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  • SOUSA SANTOS, Boaventura de. A universidade no século XXI. Para uma reforma democrática e emancipatória da Universidade. São Paulo: Cortez, 2004.
  • WALLERSTEIN, Immanuel. Un mundo incierto. Buenos Aires: Libros del Zorzal, 2005.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov 2015

Histórico

  • Recebido
    23 Jun 2015
  • Aceito
    15 Jun 2015
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