Open-access Expressões do machismo entre universitários de uma instituição do Sul do Brasil

Expresiones de machismo entre estudiantes universitario del una instituicion del Sur de Brasil.

Resumo:

O presente artigo aborda a temática machismo a partir dos resultados das análises estatísticas descritivas oriundas do estudo “A Violência na População Universitária”. Para tanto, foi utilizado como método a aplicação do instrumento IV-SOPRA (Index de Violência Sofrida e Praticada) entre estudantes (n=510) de uma universidade pública do sul do país. As análises estatísticas descritivas sobre o machismo foram realizadas a partir do ponto de vista do espectador, do perpetrador e da vítima de manifestações machistas, o que suscitou diferentes reflexões. Para além dos números buscamos compreender o conceito de machismo. Acreditamos neste texto como uma ótima oportunidade de discutir o contexto universitário que, para além de um reprodutor do comportamento social, precisa ser um espaço construtor de novas óticas e novos conceitos que trabalhem em prol de uma sociedade mais justa e igualitária.

Palavras-chave: machismo; violência; diferença; universidade

Resumen:

Este artículo aborda el tema del machismo a partir de los resultados del análisis estadístico descriptivo derivado del estudio "La violencia en la población universitaria". Para ello, se utilizó como método la aplicación del instrumento IV-SOPRA (Índice de Violencia Sufrida y Practicada) entre estudiantes (n=510) de una universidad pública del sur del país. Con ello, nuestro objetivo general es presentar los resultados parciales de los análisis estadísticos descriptivos elaborados en el ámbito de este proyecto y reflexionar sobre las subjetividades que hay detrás de estos datos. Los análisis estadísticos descriptivos sobre el machismo se realizaron desde el punto de vista del espectador, del victimario y de la víctima de las manifestaciones machistas, que plantean diferentes reflexiones. Más allá de los números buscamos entender lo concepto de machismo. Creemos que este texto es una gran oportunidad para discutir el contexto universitario que, además de ser un reproductor de comportamientos sociales, necesita ser un espacio que construya nuevas perspectivas y nuevos conceptos que trabajen por una sociedad más justa e igualitaria.

Palavras clave: machismo; violencia; diferencia; universidad

Abstract

This article addresses the theme male chauvinism from the results of descriptive statistical analysis arising from the study "Violence in the University Population". For this, it was used as method the application of the instrument IV-SOPRA (Index of Violence Suffered and Practiced) among students (n=510) of a public university in the south of the country. With this, our general objective is to present partial results of descriptive statistical analyses produced in the scope of this project and to reflect on the subjectivities behind these data. The descriptive statistical analyses about machismo were carried out from the viewpoint of the spectator, the perpetrator, and the victim of machista manifestations, which raised different reflections. Beyond the numbers we seek to understand the concept of machismo. We believe that this paper is a great opportunity to discuss the university context that, besides being a reproducer of social behavior, needs to be a space that constructs new perspectives and new concepts that work towards a more just and egalitarian society.

Keywords: machism; violence; difference; university

1 Introdução

Comumente pensamos as instituições formais de educação como reflexo da sociedade, entretanto também construímos muros (nem sempre simbólicos) que blindam um espaço do outro. Este posicionamento pode representar um grande equívoco. Ao mesmo tempo que o tecido social vai costurando nossos valores e atitudes, as instituições, como parte da sociedade, vão produzindo e reproduzindo algumas visões de mundo e práticas. Uma via de mão dupla, que pode ser mais nociva para algumas e alguns Souza (2021) observa que:

No contexto da violência de gênero, as universidades conformam cenários nos quais as relações de gênero se reproduzem, podendo significar aprendizados desastrosos que se perpetuam nas gerações futuras (17,18). Nas universidades, ocorre a mesma socialização das relações de gênero presentes fora de suas paredes; além disto, esses espaços conservam uma forte estrutura hierárquica que favorece este tipo de relação desigual (Souza, 2021 p. 4).

Assim, entender a questão do machismo em nossas instituições de ensino superior é importante porque, argumentamos, refletem nossa sociedade. Nessa senda, D’Oliveira (2019, p. 2) comenta que:

[…] estudos iniciais têm se concentrado em estudantes e demonstrado as altas taxas, mas há denúncias de casos cometidos por professores da graduação e pós-graduação, geralmente mais difíceis de serem formalizadas pela grande diferença de poder e o receio da resposta institucional. As violências cometidas contra funcionárias da universidade e terceirizadas ainda são pouco visíveis, mas a analogia com outras formas de violência de gênero não nos permite ser otimistas em relação às suas prováveis magnitudes. As formas de violência de gênero na universidade têm especificidades, com grande presença de assédio moral, ameaças, humilhações e violência sexual. Os cenários também são diversos e incluem trotes, festas, clubes esportivos, salas de aula, viagens de trabalho de campo e repúblicas.

Como já afirmamos, o cenário em nossas instituições de ensino superior são reflexos da situação em nossa sociedade, levando para dentro do campus questões relacionadas ao patriarcado e machismo - que será tratado em mais detalhes durante o desenvolvimento deste texto.

Ademais, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2021), 24% das mulheres brasileiras acima de 16 anos afirmam ter sofrido algum tipo de violência ou agressão nos últimos 12 meses, durante a pandemia de covid-19. Isso significa dizer que cerca de 17 milhões de mulheres sofreram violência física, psicológica ou sexual em 2020. As mulheres entrevistadas destacaram que o principal fator desencadeador dessas violências, praticadas por homens com quem convivem, foram respectivamente a falta de autonomia financeira e o aumento da convivência devido ao isolamento social. Essa pesquisa demonstra que em 2020, em relação aos anos em que não houve pandemia, o número de registros de agressões de diversos tipos contra as mulheres foi menor, no entanto, os casos de violência letal tiveram seus índices aumentados1. Tal fato pode sugerir não que a violência contra a mulher tenha diminuído. Entretanto, mas uma vez que a maior parte das agressões é praticada por homens com quem as vítimas convivem, que as mulheres estão encontrando maior dificuldade em realizar as denúncias, pois além da fragilização das estruturas de acolhimento, sofrem opressões e ameaças realizadas por homens com quem o convívio diário se intensificou devido às medidas de isolamento social. Também pode-se sugerir, de fato, que houve uma diminuição dessa violência que acontece na rua, nos espaços públicos ou compartilhados fora do lar por conta do isolamento pandêmico, levando a um aumento da violência dentro do lar, que não está sendo propriamente reportado.

Por sua vez, a Lei 13.104, aprovada em 2015, alterou o código penal brasileiro incluindo como qualificador do crime de homicídio, o feminicídio e o colocou na lista de crimes hediondos, com penalidades mais altas. A Lei compreende como feminicídio o assassinato de mulheres cometido em razão do gênero, quando a vítima é morta por ser mulher. O Brasil contabilizou 1.350 casos de feminicídio no ano de 2020, o que traz um aumento de 0,7% em relação ao ano anterior. São mulheres assassinadas, em sua maioria, pelos companheiros com quem dividem o lar, a vida, os filhos, os sonhos2. E é importante ultrapassar a ideia de que estas mortes são causadas apenas por homens que apresentam algum transtorno mental, uma vez que esses feminicídios são geralmente executados em casos em que a mulher não cumpriu, ou o homem acreditou que ela não cumpriu, o papel de gênero que lhe é imposto.

A violência contra a mulher é um fenômeno histórico, fruto das relações de desigualdade de gênero, aliado aos esquemas de opressão de raça, classe e sexualidade. E é argumentável que o patriarcado tem um papel central nestes esquemas de dominação, uma vez que o compreendemos como a manifestação e institucionalização da dominação masculina sobre as mulheres. Segundo Saffioti (1987), calcula-se que o domínio do homem sobre a mulher tenha se estabelecido há cerca de seis milênios, exercendo forte influência sobre a estruturação social humana. Saffioti (1987, p. 11) comenta:

É de extrema importância compreender como a naturalização dos processos socioculturais de discriminação contra a mulher e outras categorias sociais constitui o caminho mais fácil e curto para legitimar a "superioridade" dos homens, assim como a dos brancos, a dos heterossexuais, a dos ricos.

E Saffioti (2001, p. 115) continua, e analisa muito bem este fenômeno:

No exercício da função patriarcal, os homens detêm o poder de determinar a conduta das categorias sociais nomeadas, recebendo autorização ou, pelo menos, tolerância da sociedade para punir o que se lhes apresenta como desvio. Ainda que não haja nenhuma tentativa, por parte das vítimas potenciais, de trilhar caminhos diversos do prescrito pelas normas sociais, a execução do projeto de dominação-exploração da categoria social homens exige que sua capacidade de mando seja auxiliada pela violência. Com efeito, a ideologia de gênero é insuficiente para garantir a obediência das vítimas potenciais aos ditames do patriarca, tendo este, necessidade de fazer uso da violência.

Assim, através desses movimentos históricos, estabelece-se um papel de dominação pelo homem na sociedade em geral; e isso não apenas nas relações pessoais e diversas formas de violência contra a mulher, indo além disso em suas mais variadas manifestações contra segmentos da sociedade. Notamos que a ferramenta discursiva utilizada comumente na perpetuação do esquema patriarcal é o machismo sobre o qual vamos refletir um pouco nestes escritos. Sendo assim, acreditamos que algumas respostas que veremos nas análises sobre machismo da pesquisa “A Violência na População Universitária” (CNPQ/UNIVERSAL - Número do processo: 421496/2018-5 Chamada MCTIC/CNPq Nº 28/2018) realizada através da aplicação do instrumento IV-SOPRA (Index de Violência Sofrida e Praticada) podem ser compreendidas como sintomas dessa construção social alimentada pelo patriarcado, sistema ainda muito bem estabelecido em nossa sociedade.

2 Metodologia

Nosso objetivo geral é apresentar resultados parciais de análises estatísticas descritivas produzidas no escopo do projeto de pesquisa “A Violência na População Universitária” realizada através da aplicação do instrumento IV-SOPRA (Index de Violência Sofrida e Praticada). Tal pesquisa teve como objetivo “medir” os níveis de violência experienciados pela população universitária. Para tanto, foi utilizado o instrumento IV-SOPRA de coleta de dados junto à referida população, contendo um total 216 questões, através das quais tanto informações de perfil dos respondentes foram coletadas, quando foram abordados os seguintes “tipos de violência”: racismo, gordofobia, machismo, transfobia, homofobia, lesbofobia, bifobia, intolerância religiosa e bullying. Cada uma das expressões da violência continha perguntas referentes à perspectiva de quem sofreu, de quem cometeu e de quem presenciou algum ato de violência em algum momento na trajetória universitária durante o ano letivo. A aplicação do questionário aconteceu no período de agosto a dezembro de 2019 e após a sua conclusão, foram geradas análises estatísticas das variáveis estudadas. O convite para participação foi por e-mail institucional informando sobre a pesquisa e disponibilizando um link e QRcode que direcionavam participantes para a plataforma QUALTRICS. O número total de participantes dessa pesquisa foi 510 (n=510) de diversos cursos ofertados em uma universidade pública federal do sul do país, e a amostra foi por conveniência; a participação foi voluntária e anônima, seguindo a Resolução 510/2016 do Ministério da Saúde.

A partir de nossas análises, um trabalho de leitura e síntese dos resultados permitiu a elaboração de um relatório, que sublinha os fatores mais importantes identificados na manifestação de cada uma das violências analisadas entre estudantes universitários de graduação da universidade em questão, colocando em relevo as correlações estatísticas entre as variáveis estudadas. Para tanto, o relatório está organizado em duas grandes seções: a primeira apresenta o perfil dos participantes; e a segunda foca especificamente no machismo sofrido, praticado e vivenciado. Dada a grande quantidade de variáveis, foi escolhido o recurso de mapa mental para mostrar as correlações estatísticas e o relacionamento existente entre os dados e as informações geradas pela pesquisa. Com isso, a partir do relatório, socializamos um recorte analítico, mediante a tríade violência, machismo e educação.

Destacamos ainda que a universidade onde essa pesquisa foi conduzida avança consideravelmente em 2021 ao sancionar a Política de Igualdade de Gênero, a qual visa promover a igualdade de gênero mediante mecanismos institucionais, formação para a equidade de Gênero, ações afirmativas etc. Além disso, esta mesma universidade dispõe de um espaço multiprofissional, servindo de um lugar de acolhimento às pessoas em situação de violência, o que envolve uma rede de trabalho articulada entre setores e unidades pedagógicas.

2.1 Sobre os/as participantes da pesquisa

As primeiras informações de perfil dos participantes mostram uma divisão equilibrada entre os sexos (tabela 1), sendo que quase 70% deles situam-se entre as faixas etárias de 16-19 anos (27,68%) e 20-24 anos (42%). No quesito cor, a grande maioria declara-se branca (78,54%), enquanto 17,17 % distribuem-se entre preta e parda.

Tabela 1
Perfil dos participantes segundo sexo biológico, idade e cor

No que diz respeito à naturalidade dos participantes, as análises estatísticas mostraram que 83% são originários do Estado do Rio Grande do Sul, sendo a maioria do interior (73%). Já aqueles oriundos de outros estados, o percentual foi de 15,4%. Com relação ao curso de graduação no qual estão matriculados, apesar da pesquisa ter conseguido uma adesão de estudantes oriundos de 55 formações no total, a maioria dos respondentes concentra-se nos cursos de: engenharia (17,8%); Medicina (4,9%); Letras (4,4%); Pedagogia (3,34%).

Já com relação à identidade sexual, quase a totalidade dos participantes declarou-se identificar-se com o sexo biológico (95%), com uma maioria de heterossexuais no que tange a orientação sexual (Tabela 2). A bissexualidade aparece em segundo lugar (14,16%) e a homossexualidade em terceiro (7,51%). O percentual declarado de lésbicas (2,15%) mostrou-se próximo daqueles que preferiram não manifestar sua orientação (2,36%).

Tabela 2
Perfil dos participantes segundo identidade e orientação sexual

No que tange a ocupação dos participantes (Tabela 3), um pouco menos da metade não estava trabalhando no momento da participação na pesquisa (43,85%), seguido por aqueles que obtiveram uma bolsa de pesquisa de iniciação científica (14,3%), que exerciam algum tipo de estágio (11,11%), que eram empregados com carteira assinada (9,92%) e os autônomos (7,74%).

Tabela 3
Perfil dos participantes segundo categoria de trabalho, escolaridade da mãe e do pai

Em termos de escolaridade dos pais (Tabela 3), pode-se observar um maior percentual de mães que cursaram o ensino superior (37,12%) em detrimento de 29,04% de pais que chegaram até esse nível de formação. Essa diferença diminui entre aqueles que completaram o ensino médio, mas as mães seguem com um percentual maior (27,25%) que os pais (25,11%) pais. Já entre aqueles que cursaram somente o ensino fundamental, os resultados invertem-se: 21% entre as mães e 29% entre os pais.

Por fim, em relação à filiação religiosa (Tabela 4), 38,63% declararam não possuir nenhuma religião, enquanto 26,4% declararam-se católicos, seguidos por uma divisão quase igualitária entre protestantes (10,9%) e espíritas de matriz não africana (9%). Apesar de cerca de 60% dos participantes declararem que seguem algum tipo de religião ou culto, o percentual de não praticantes foi maior (60,9%) do que os praticantes (28,1%).

Tabela 4
Perfil dos participantes segundo religião e prática religiosa

3 Machismo e violência entre universitários: análises quantitativas

Tal como exposto na seção método deste artigo, a pesquisa mais ampla está subdividida em nove itens, cada um dedicado a um tipo de violência problematizada (racismo, gordofobia, machismo, transfobia, homofobia, lesbofobia, bifobia, intolerância religiosa e bullying). Todavia, evidenciamos, aqui, práticas discursivas manifestadas por uma população universitária e que nos fornecem pistas para melhor entendermos o machismo dentro do ambiente universitário.

3.1 O machismo pela ótica de quem o sofreu

Segundo a figura 1, o machismo é sofrido por 35% das respondentes e ele se manifestou com maior frequência duas a seis vezes no ano (36,3%), seguindo de várias vezes por mês (24%) e de uma vez ao ano (19%). Em 35,8% dos casos, o machismo foi praticado por um colega do mesmo curso, seguido por professor (25,5%) e de um colega de outro curso (21%). Entre os comentários deixados junto a essa questão, destaca-se o seguinte relato:

Figura 1
O machismo pela ótica de quem o sofreu

O caso de assédio com funcionário foi denunciado. O último caso de machismo não foi exatamente comigo, mas me afeta. Ex.: Professor que exclui autora(s) da bibliografia de sua disciplina, porque diz ser "muito complexo". Alguns professores fazem piadas diminuindo situações machistas e constrangedoras que ocorrem com mulheres.

A maior expressão do machismo deu-se através de piadas (66%), de abuso e/ou assédio sexual físico (22,3%) e provocou danos materiais para 4,13% das respondentes. Devido ao machismo, 39% das respondentes sentem que perderam oportunidades ou não tiveram reconhecimento e sentiram-se excluídas em 36% dos casos.

3.2 O machismo pela ótica de quem o praticou

Segundo a figura 2, somente 2,5% dos participantes responderam ter sido machistas. A manifestação do machismo deu-se com maior frequência com alguma colega de outro curso (33,3%), seguido de colega do mesmo curso (26,6%), uma inversão nos achados se comparado com os resultados das outras violências. O machismo manifestou-se com maior frequência de duas a seis vezes no ano (50%), seguida de uma distribuição igualitária entre pelo menos uma vez por mês (16,6%) e várias vezes no mês (16,6%). O uso de piadas (5,4%) foi a forma pela qual o machismo foi mais perpetrado, seguido de uma baixa expressão de danos materiais (0,2%) e de agressão física (0,2%). A exclusão devido ao machismo foi evocada por apenas 1,4% das respondentes.

Figura 2
O machismo pela ótica de quem o praticou

3.3 O machismo pela ótica de quem o presenciou

Já pela ótica de quem presenciou (figura 3), o machismo é observado por 59,4% das respondentes que viram uma colega (34,5%) sofrer com esse tipo de violência, seguido por uma professora (12,1%). O autor foi em 47% dos casos, um colega e em 31%, um professor. A frequência da ocorrência do machismo foi de duas a seis vezes no ano (23,2%), seguida de várias vezes no mês (18,8%) e de uma vez no ano (16,6%). Ao presenciarem o machismo, 51,4% das respondentes disseram sentir e colocar-se à isposição para testemunhar, seguido por sentir e falar com a pessoa para tentar ajudar (31,2%) e sentir, mas não fazer nada (14,6%).

Figura 3
O machismo pela ótica de quem o presenciou

4 Discussão

Destacamos acima, alguns dos dados referentes ao machismo, pela ótica de quem o sofreu, presenciou ou praticou, o que nos dá um panorama parcial, dado que a amostra foi por conveniência, do fenômeno do machismo numa universidade pública do sul do Brasil. Como demonstrado, a subescala para machismo demonstra uma alta proporção (66%) para o item sobre piadas misóginas. Do grego, misoginia tem origem em duas palavras: miseó, que significa ‘ódio’, e gyné para ‘mulher’. Misoginia e machismo correm em paralelo, sendo a misoginia o preconceito contra as mulheres por causa de seu gênero, podendo ocorrer através de atitudes agressivas que passam despercebidas, perpetrando violência simbólica na sociedade (Araruna, 2016); quer dizer, “[a]s controvérsias de humor podem simultaneamente revelar, desviar e obscurecer as relações de poder, como bem como a natureza retórica/política das piadas” (Pérez; Greene, 2016, p. 265) (tradução livre). Observamos ainda que as piadas misóginas estão frequentemente relacionadas à falta de inteligência das mulheres ou de capacidade em geral (Araruna, 2016), qualificando-as assim, como membros inferiores da sociedade patriarcal.

Nessa senda, Possenti (2001, p. 73 apud Pinheiro; Furtado, 2018 p. 6) observa que, por exemplo, “um enunciado humorístico preconceituoso”:

[...] só faz sentido no contexto de um dispositivo discursivo que legitima esse preconceito, mesmo que não faça referência explícita a ele, uma vez que se pressupõe que esse dispositivo já seja conhecido pelo interlocutor. Isso significa dizer que uma piada machista, por exemplo, só faz sentido num contexto de opressão sistemática de mulheres por homens e, ainda que não mencione abertamente essa opressão, serve como maneira de lembrar o interlocutor de sua existência (Pinheiro; Furtado, 2018, p. 6)

Outrossim, Pérez e Greene (2016, p. 267) apontam que “As piadas sexistas refletem e reforçam `um sistema de gênero binário onde os homens e as mulheres são intrinsecamente diferentes, e aos homens é dado mais valor (Bemiller; Schneider, 2010, 462)” (tradução livre). E quando isso acontece, duas situações emergem:

As mulheres ficam com duas opções - rir da piada ou expressar consternação com o conteúdo da piada [...] Se ela ri, ela é cúmplice da humilhação de seu próprio grupo. Se ela não rir, então ela é um "esporte mimado", alguém sem senso de humor ... Em ambos os casos, ela é ferida no social encontro [...] ela experimentou a subordinação (Bemiller; Schneider, 2010, p. 463).

Assim, nosso estudo sugere, devido à alta proporção (66%) para o item sobre piadas misóginas, que existe uma prevalência da visão e/ou percepção que mulheres são menos inteligentes e capazes para a vida acadêmica pelos estudantes de graduação da instituição estudada. Isso parece demonstrar uma inserção do patriarcalismo societário para dentro do campus universitário, levando-nos a crer na necessidade de ações afirmativas e proativas que desconstruam esse estigma contra as mulheres. De fato, Barreto (2014, p. 9) nota que:

No caso brasileiro, a implementação de políticas públicas com foco na inclusão e na valorização da mulher se deu a partir da década de 1980. (Farah, 2004). Entretanto, o tema da equidade entre mulheres e homens continua na agenda das políticas públicas e sociais, tanto a partir do Estado, quanto de organismos internacionais, tais como Organização das Nações Unidas (por meio da ONU Mulheres) Unesco e OIT. É importante destacar que a promoção da igualdade de gênero é um dos objetivos do milênio estabelecidos pela ONU, figurando em terceiro lugar entre suas oito metas.

Ademais, nossos achados ainda demonstram que existe uma discrepância entre quem sofreu, praticou e testemunhou esse tipo de violência misógina – a piada. Isso porque 66% das respondentes indicaram ter sofrido com piadas misóginas, enquanto apenas 5,4% indicaram ter praticado esse tipo de violência, sugerindo que existe uma falta de entendimento por parte de muitos homens no ambiente universitário quanto a questão e inadequação de piadas misóginas. No que diz respeito aos testemunhos de piadas misóginas por parte dos respondentes, 23,2 % relataram ter presenciado esse tipo de violência contra mulheres no campus da universidade; novamente, como esse item é respondido por participantes do sexo masculino e feminino a discrepância pode ser explicada pela possível falta de entendimento por parte dos respondentes homens da amostra. Quer dizer, uma vez que o machismo se esconde e se revela conforme sua intencionalidade, os usuários do discurso machista podem não o reconhecer como tal. Não cabe aqui uma discussão a respeito dos diversos movimentos feministas e suas complexidades, mas não podemos deixar de observar que um dos muitos benefícios destes movimentos é trazer discussões e reflexões que buscam conscientizar a sociedade no reconhecimento do machismo e suas mais diversas formas de manifestação.

Vale notar que julgamos que nossos resultados são um panorama parcial uma vez que nem sempre os sistemas de opressão são reconhecidos pelas vítimas, tampouco pelos perpetradores ou suas plateias, devido ao processo de normalização de práticas e discursos. Fenômenos como ‘gaslighting’ (a manipulação psicológica, que leva a mulher e as pessoas ao seu redor a acharem que ela enlouqueceu ou que é incapaz) e ‘mansplaining’ (que ocorre quando a mulher é interrompida pelo homem que “explica” sua fala como se esta não soubesse se expressar ou buscando validar seu trabalho ou pensamento), por exemplo, têm somente recentemente, seu reconhecimento dentro das variações de violência psicológica produzida contra as mulheres (Stocker; Dalmaso, 2016). Então, é importante lembrar que a pesquisa traz os sistemas reconhecidos por respondentes, que podem ser apenas a ponta do iceberg de um sistema patriarcal que oprime as mulheres e adoece as relações cotidianamente, e no nosso caso, dentro do campus da universidade.

Observamos ainda que a pretensa fragilidade feminina é usada para limitar às mulheres em brincadeiras, jogos, aprendizagem formal, acesso à informação e uma infinidade de coisas e situações que reforçam a pretensa superioridade masculina e inferioridade feminina. Essas delimitações são estabelecidas por convenções sociais, e processos de socialização, que definem nossos papeis nas estruturas societárias – não menos nas escolas e nas universidades. Nesse sentido, vale notar Stockard (1999, p. 215) que comentando sobre socialização de gênero, afirma que:

À medida que as crianças crescem, elas formam um senso geral de si mesmas e a capacidade de se relacionar com os outros e desempenhar um papel na sociedade. Neste processo, elas também desenvolvem crenças sobre os papéis e expectativas que estão associados a cada grupo de sexo (papéis de gênero) e a autoidentidade como membro de um ou outro grupo de sexo (identidade de gênero) ... A centralidade da socialização de gênero também reflete o fato de que nossa sociedade, e todas as sociedades conhecidas pelos cientistas sociais, são de gênero. As pessoas em todo o mundo reconhecem que existem diferentes grupos de sexo e atribuem diferentes papéis e responsabilidades aos membros desses grupos, assim como diferentes recompensas e valores (tradução livre).

Por outro lado, no esquema complexo de construção destes papéis de gênero os homens têm menos limitadores, muito mais estímulos e acesso às ferramentas de construção concretas e simbólicas de seu papel na sociedade. As diferenças de acesso a essas ferramentas de construção social reforçam o discurso da superioridade masculina e trazem privilégios sociais, principalmente, o poder de dominação das mulheres, explicando assim a possível falta de entendimento ou sensibilidade por parte de respondentes homens. Afirmamos então, que não se nasce machista, torna-se. A guisa de brincadeira, parafraseamos Simone de Beauvoir (1980) quando esta afirma que a representação do gênero feminino como o conhecemos é construído socialmente e não um papel pré-determinado no nascimento. Usamos a comparação para pensar em como o discurso machista, na determinação dos papéis sociais dos gêneros masculino e feminino, atua. É um discurso construído desde o nascimento, quando os primeiros papéis distintos são atribuídos aos sujeitos e seus corpos, de acordo com o gênero esperado de cada um. Hirigoyen (2006, p. 75) comenta:

Historicamente, o homem sempre foi considerado o detentor único do poder, e as mulheres sempre se viram excluídas dele, isso condicionou o modo de pensar de ambos, desde o berço: é assim, porque sempre foi assim! Essa representação social, partilhada por todos, ainda mantém os estereótipos, apesar da evolução dos costumes.

Um outro ponto saliente na pesquisa diz respeito a questão da exclusão de indivíduos do sexo feminino por parte de homens. O preconceito contra as mulheres perpassa o estereótipo construído de que as mulheres não são fortes, inteligentes ou assertivas e lhes faltam algumas habilidades e competências que as excluem de algumas profissões e áreas de conhecimento (Do Rego Barros; Oliveira, 2020). Em nossa pesquisa 36% das respondentes afirmaram ter sofrido com a violência da exclusão, enquanto apenas 1,4% dos homens afirmaram ter praticado esse tipo de violência; também, e acreditamos conectado com o item de exclusão, 39% das respondentes afirmaram ter sofrido com a falta de reconhecimento no ambiente acadêmico. No Brasil, as mulheres recebem 30% menos que os homens (IBGE, 2019) e os empregos que são predominantemente femininos têm salário mais baixo e menor prestígio quando comparados aos seus pares (Pereira; Lima, 2017). Estas descobertas corroboram com a pesquisa realizada pelo Instituto Avon e Data Popular (2015) e por Bongers et al. (2003) que exploram diferentes formas de violência contra as mulheres na universidade. Meza et al. (2020) demonstraram em seu estudo que as mulheres, no contexto universitário, são mais vulneráveis que os homens a todos os tipos de violência, incluindo a patrimonial; de fato, Meza et al. (2020, p. 6) afirma:

Este estudo revela que quando o gênero é levado em consideração, pode-se dizer que as estudantes do sexo feminino recebem mais expostos a todas as formas de violência e seus níveis que os homens estudantes. Com base no nível de violência foi encontrado que a violência severa foi representada por violência física, sexual e psicológica, enquanto moderada violência social, sexual, e física, e finalmente uma violência leve por parte da psicologia, patrimonial e gênero (tradução livre).

Nossos achados sugerem que há uma certa naturalização ou normalização de certos processos de violência contra as mulheres, através de piadas, exclusão e falta de reconhecimento. Assim sendo, mediante os escritos de Minayo (2005), determinados papéis de gênero são construções ocidentais de um longo período e, por ser uma construção histórica, produz uma determinada percepção de naturalização. Minayo (2005, p. 23) comenta:

A concepção do masculino como sujeito da sexualidade e o feminino como seu objeto é um valor de longa duração da cultura ocidental. Na visão arraigada no patriarcalismo, o masculino é ritualizado como o lugar da ação, da decisão, da chefia da rede de relações familiares e da paternidade como sinônimo de provimento material: é o “impensado” e o “naturalizado” dos valores tradicionais de gênero.

Compreende-se que tal naturalização fabrica um sistema de desigualdades, seja em contexto familiar, educativo formal ou midiático, cristalizando certas relações de gênero e perpetuando o que alguns corpos podem ou não na sociedade - quer dizer, o masculino passa a ser a medida de todas as coisas. Ainda, seguindo de maneira mais abrangente sobre a questão do masculino ser a medida de todas as coisas, a autora Auad (2012, p. 19) ao discutir acerca do modo como as relações de gênero organizam-se na sociedade ressalta que:

[...] quando começamos a considerar as relações de gênero socialmente construídas, percebemos que uma série de características consideradas “naturalmente” femininas ou masculinas corresponde às relações de poder. Essas relações vão ganhando a feição de “naturais” de tanto serem praticadas, contadas, repetidas e recontadas (Auad, 2012, p. 19).

E, na mesma senda, Saffioti (1987, p. 24) sublinha que:

[...] a presença ativa do machismo compromete negativamente o resultado das lutas pela democracia, pois se alcança, no máximo, uma democracia pela metade. Nesta democracia coxa, ainda que o saldo negativo seja maior para as mulheres, também os homens continuarão a ter sua personalidade amputada. E vale a pena atentar para este fenômeno.

Ainda, de acordo com Auad (2012, p. 14) “[...] educar homens e mulheres, para uma sociedade democrática e igualitária, requer reflexão coletiva, dinâmica e permanente.” Certamente esse trabalho reflexivo e analítico não é privilégio apenas da universidade, mas esta cumpre um papel importante em tal ação. Como lugar de um suposto saber e de lugar da pesquisa, a atividade acadêmica precisa se ocupar, também, com a desnaturalização dos lugares de gênero, como se estes fossem unicamente um dado da natureza e não passíveis de problematizações.

Dado o exposto, a educação em si constitui-se como território de disputas no enfrentamento das violências, e nesse caso da violência contra a mulher, sendo um compromisso que pode ser assumido via pesquisas, políticas públicas, e práticas pedagógicas. Importante, no entanto, reconhecer que o machismo, discurso e prática de reprodução e manutenção do patriarcado, está presente em todo tecido social. O discurso machista também é perpetuado institucionalmente e pode ser percebido na mídia, na legislação, nas instituições educativas, sendo uma prática não só estrutural como estruturante em nossa sociedade. Ou seja, ele não só já permeia as estruturas sociais, como atua de forma a direcionar novas iniciativas de manutenção de privilégios do gênero masculino em detrimento do feminino.

Nesse sentido, é importante que Instituições de Educação Superior se engajem com estudos informativos e críticos, como o presente, desenvolvendo políticas e estratégias de enfrentamento, e finalmente implementando ações efetivas, que lidem com a violência direcionada a suas respectivas populações femininas. Turgoose (2019, p. 119) comentando sobre o contexto Anglo-saxão afirma que:

[a]s universidades estão trabalhando em melhores políticas, protocolos e serviços destinados a lidar com a chamada ‘cultura de homem' e violência de gênero (Gender Based Violence). Embora as políticas forneçam uma estrutura formal para lidar com isso e, portanto, representem um passo importante neste processo, elas não devem ser vistas como uma panaceia, caso contrário terão um efeito de ilusão em que prevaleça apenas em ter uma política. (tradução livre).

6 Conclusão

Nosso Projeto “A Violência na População Universitária” abarca resultados quantitativos e qualitativos sobre o machismo, do ponto de vista do espectador, do perpetrador e da vítima de manifestações machistas, o que desenha uma analítica do contexto universitário e das subjetividades construídas neste espaço. Evidencia-se que o espaço do ensino superior, como qualquer outro, produz novas formas de ser e estar no mundo, constituindo-se, também, um campo de luta e de aliança de novos conceitos e conhecimentos. Nossa pesquisa intenta criar possibilidades de reflexão, quiçá desnaturalizar uma violência que adquire muitas facetas de modo rasteiro, seja na educação superior como na educação básica. Como Van Dijk (2006, p. 116) reflete “[à]s vezes, as ideologias se tornam tão amplamente compartilhadas que parecem ter se parte das atitudes geralmente aceitas de uma comunidade inteira, como crenças óbvias ou opinião, ou senso comum”, e como tal, é importante identificarmos, refletirmos e agirmos de modo crítico, desnaturalizando e desnormalizando qualquer tipo de violência.

  • 1
    Segundo a última edição da nota técnica, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2020) foi identificado que entre março e maio de 2020, houve diminuição de 27,2% dos registros de lesões corporais dolosas, diminuição 31,6% nos registros de estupro e aumento de 2,2% de casos de feminicídios.
  • 2
    Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2019), 90% das vítimas de feminicídio no Brasil são mulheres mortas por maridos, ex-maridos, companheiros ou ex-companheiros.
  • Revisão ortográfica e gramatical por: Cristiane Silveira dos Santos E-mail: chane.s.santos@gmail.com

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Jan 2022
  • Aceito
    27 Set 2023
  • Revisado
    04 Out 2023
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