Open-access Homicídios femininos no estado do Rio Grande do Norte e suas regiões de saúde no período de 2000 a 2016

Female homicides in the state of Rio Grande do Norte and its health regions between 2000 and 2016

Resumo

Introdução  Os homicídios femininos apresentam elevada magnitude e transcendência no Nordeste brasileiro.

Objetivo  Analisar a evolução temporal da mortalidade por homicídio feminino no estado do Rio Grande do Norte (RN) e suas regiões de saúde nos anos 2000.

Método  Trata-se de um estudo ecológico que utilizou regressão binomial negativa para a análise de tendência.

Resultados  A taxa de mortalidade média no período foi de 5,08 óbitos por 100.000 mulheres, com as maiores taxas observadas na Região Metropolitana (5,92 óbitos) e Mossoró (5,60 óbitos). A maior proporção de óbitos ocorreu em solteiras, perpetrados por arma de fogo e localizados no domicílio. Verificou-se uma tendência de aumento da mortalidade em todas as faixas etárias até os 49 anos e na Região Metropolitana de João Câmara. Também se constatou tendência de alta na taxa de mortalidade por homicídios por arma de fogo em todas as regiões de saúde, exceto Caicó e Pau dos Ferros, onde houve estacionariedade nas taxas.

Conclusão  O estado do Rio Grande do Norte e suas regiões de saúde apresentam taxas de homicídios femininos semelhantes aos países com maior violência contra as mulheres, indicando a necessidade de maiores investimentos na rede de proteção à mulher em situação de violência doméstica.

Palavras-chave:  homicídios; mulheres; violência baseada no gênero; mortalidade; estudos ecológicos

Abstract

Background  Female homicides present high magnitude and transcendence in the Northeast region of Brazil.

Objective  To analyze the temporal evolution of mortality due to female homicide in the state of Rio Grande do Norte and its health regions between 2000 and 2016.

Method  Ecological study using negative binomial regression for trend analysis.

Results  The average mortality rate for the period analyzed was 5.08 deaths per 100,000 women, with the highest rates observed in the metropolitan region (5.92) and in the municipality of Mossoró (5.60). Most of the deaths were of unmarried women, with the use of firearms, and occurred at home. There was an upward trend in mortality in all age groups up to age 49 and in the metropolitan region of João Câmara. An upward trend was also observed in the mortality rate of firearm homicides in all health regions of the state, except for Caicó and Pau dos Ferros, where these rates showed a stationary trend.

Conclusion  The state of Rio Grande do Norte and its health regions show female homicide rates similar to those of countries with the greatest violence against women, indicating the need for greater investments in the protection network for women in situations of domestic violence.

Keywords:  homicide; women; gender-based violence; mortality; ecological studies

INTRODUÇÃO

No Brasil, com o processo de transição demográfica, observa-se a transição epidemiológica de superposição e polarização, em que coexistem doenças e agravos não transmissíveis, doenças transmissíveis e causas externas, constituindo a tripla carga de doença no perfil epidemiológico brasileiro, com disparidades importantes entre as regiões brasileiras1-3. As regiões Sul e Sudeste apresentam-se em etapas mais avançadas dessa transição, enquanto as regiões Norte e Nordeste se encontram em etapas mais tardias, em que coexistem elevação da morbidade e mortalidade por doenças crônicas não transmissíveis, manutenção de significativas taxas de incidência por doenças tropicais negligenciadas e epidemia de homicídios4,5.

Neste contexto, a região Nordeste se destaca como uma das regiões brasileiras mais violentas, com aumento expressivo nas taxas de mortalidade por homicídios masculinos e femininos nos anos 20005,6. O processo de disseminação e interiorização da violência, sofrido por essa região nos primeiros anos do século XXI, associa-se à ampliação do crime organizado e tráfico de drogas. Discute-se que essa realidade se deva em partes aos programas de transferência de renda, que aumentaram a circulação de dinheiro em muitos municípios nordestinos, tornando-os atrativos para o comércio ilegal de drogas. Essa situação contribuiu para o aumento da violência estrutural, assumindo coeficientes de homicídios semelhantes aos países que estão em guerra6-8.

Estudos têm evidenciado aumento da violência de gênero e feminicídios em regiões com altas taxas de homicídios masculinos por causa da ineficiência do Estado em proteger as mulheres vítimas de violência e punir os agressores9-12. Nessa direção, estudos desenvolvidos no Brasil mostraram maiores taxas de homicídios femininos em localidades que sofreram o processo de disseminação e interiorização da violência, com correlação positiva entre homicídios masculinos e femininos9,10.

Os homicídios femininos, apesar da menor magnitude em relação aos masculinos, representam um importante problema de saúde pública e crimes de lesa-humanidade, pois retiram das mulheres o direito à vida. Em mais de 70% dos casos, associam-se à violência de gênero, perpetrados por parceiros, ex-parceiros ou conhecidos da vítima, cujo principal fator de risco é a condição feminina, e nessas circunstâncias são denominados feminicídios13,14.

Em seu conceito original, o termo “feminicídio” foi empregado para denominar apenas assassinatos femininos cometidos por homens, cujo principal fator associado é a desigualdade de gênero15-18. No entanto, nos últimos anos, em razão da ausência de um sistema de informação de óbitos em muitos países que explicite os cenários nos quais os homicídios femininos ocorreram e as características do perpetrador da violência, estão sendo utilizados todos os homicídios femininos como uma proxy aos feminicídios18. Apesar dos contrapontos dessa abordagem, ela permitiu visibilizar o problema dos homicídios femininos, além de possibilitar a comparação da evolução desse agravo à saúde entre as diversas regiões do mundo18.

Atualmente, o Brasil ocupa a quinta posição entre os países com maiores coeficientes de feminicídio, contudo há disparidades em suas regiões geográficas na magnitude e evolução temporal9,10,18-20. Os maiores coeficientes de mortalidade são verificados nas regiões Centro-Oeste (7,81 óbitos) e Nordeste (7,26 óbitos), no entanto é importante destacar que as demais regiões mostraram taxas superiores a 3 óbitos por 100.000 mulheres9,10,19,20, sendo consideradas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como regiões de alta mortalidade por feminicídio18.

No período de 1980 a 2014, a região Nordeste foi a única do Brasil com aumento do risco de morte por homicídios femininos no último quinquênio (2010 a 2014) da série histórica20. Além disso, observou-se ascendência na taxa de mortalidade dos registros classificados, especificados como eventos cuja intenção é indeterminada (ECI), o que pode ter contribuído para taxas de mortalidade por homicídios femininos subestimados nessa região20.

Essa hipótese foi corroborada por um estudo que aplicou técnicas de correção para os registros classificados como ECI nos estados da região Nordeste, elevando em 17% os óbitos por homicídio no período de 1980 a 2014. Evidenciou-se ainda a elevação na evolução temporal da mortalidade para todos os seus estados, com exceção de Sergipe, que mostrou estacionariedade21. Nesse cenário, o estado do Rio Grande do Norte (RN) destaca-se por apresentar aumento nas taxas de mortalidade para mulheres a partir da primeira até a quinta década de vida, e para a mortalidade geral, especialmente a partir do segundo quinquênio dos anos 200021. A partir disso, tencionando ampliar o entendimento da mortalidade por homicídios femininos, o presente trabalho analisou a evolução temporal da mortalidade por agressão em mulheres no estado do RN e suas regiões de saúde (RS) no período de 2000 a 2016.

MÉTODO

Estudo ecológico de tendência temporal dos homicídios femininos no estado do RN e suas oito RS, em mulheres a partir da faixa etária de 10 a 14 anos. Os óbitos referentes à agressão (homicídios), que correspondem aos códigos X85 a Y09 da Décima Classificação Internacional das Doenças (CID-10), foram extraídos do Sistema de Informações Sobre Mortalidade do Departamento de Informática do SUS (SIM/DATASUS)22.

O RN caracteriza-se como a 16ª unidade da federação brasileira mais populosa, dividida em 167 municípios que estão segmentados em oito RS: 1ª RS – São José de Mipibu (SJM), com 351.502 habitantes, distribuídos por 27 municípios; 2ª RS – Mossoró (MO), composta por 15 municípios, a segunda RS mais populosa, com 448.904 habitantes, concentrando 14,17% do total de habitantes do estado; 3ª RS – João Câmara (JC), com 25 municípios e 312.919 habitantes; 4ª RS – Caicó (CO), também formada por 25 municípios, com 295.726 habitantes; 5ª RS – Santa Cruz (SC), com 21 municípios e 185.719 habitantes; 6ª RS – Pau dos Ferros (PF), com 36 municípios e 230.042 habitantes; 7ª RS – Metropolitana (MT), constituída por 5 municípios, mostrando o maior contingente populacional, com 1.187.899 habitantes, ou 37,5% da população residente no estado, concentrada na capital, Natal, e também distribuída entre as localidades de Extremoz, Macaíba, Parnamirim e São Gonçalo do Amarante; e 8ª RS – Açu (AC), composta por 13 municípios, com 155.316 habitantes22.

A microrregião MT apresentava a maior renda média per capita (R$ 821,23), seguida por MO (R$ 484,73), CO (R$ 416,67), AC (R$ 364,06), PF (R$ 302,87), JC (R$ 295,03), SJM (R$ 293,54) e SC (R$ 265,74). A taxa de desemprego na população a partir dos 16 anos no RN correspondeu a 9,79%, com os maiores percentuais observados em AC (11,50%), JC (10,56%) e SJM (10,36%)22.

Neste estudo, utilizou-se do total de homicídios femininos como uma proxy dos feminicídios, pois, no SIM/DATASUS, não é possível identificar as circunstâncias em que os assassinatos de mulheres ocorreram e tampouco são fornecidas informações a respeito do agressor. Além disso, estudos têm apontado que 60 a 70% dos homicídios femininos na América Latina são por causa da violência de gênero11,18,23.

Considerando a alta proporção de registros de óbitos classificados como ECI no estado do RN21, neste estudo realizou-se a correção dos registros de óbito por meio da redistribuição proporcional, segundo ano, faixa etária e RS, em três etapas19: (1) calculou-se a proporção dos óbitos por agressão em relação ao total de óbitos por causas externas acidentais e intencionais (traumatismo acidental, lesão autoprovocada, agressão e intervenção legal); (2) o valor obtido na etapa anterior foi multiplicado pelo total de óbitos classificados como ECI; (3) o resultado na segunda etapa foi adicionado ao total de óbitos originalmente classificados como agressão no SIM/DATASUS, representando o registro de óbito por agressão corrigido.

Os óbitos classificados como ECI são mortes ocorridas por causas externas, mas não é possível identificar se elas foram acidentais, intencionais ou autoinfligidas.

Também extraíram-se os registros de óbito segundo raça/cor, escolaridade, estado civil, local de ocorrência e meio pelo qual a agressão foi perpetrada. Utilizou-se dos fatores de correção obtidos na primeira etapa de correção mencionada para se obter registros de óbitos corrigidos de acordo com essas variáveis19.

A variável ‘anos de estudo’ foi categorizada em: nenhum; 1 a 8 anos; 9 a 11 anos; e 12 anos ou mais. A ‘raça/cor’ foi classificada em: brancos; negros (pretos e pardos); amarelos (asiáticos); e indígenas. A variável ‘local de ocorrência’ foi categorizada em: hospitais e outros estabelecimentos de saúde; domicílios; vias públicas; e outros. Calcularam-se as frequências relativas para cada uma dessas variáveis em relação ao total de óbitos.

A variável ‘meio pelo qual a agressão foi perpetrada’ foi classificada em: arma de fogo; estrangulamento ou sufocação; objeto perfurante ou penetrante; e outros. Avaliou-se a proporção de óbitos segundo o meio de perpetração, excluindo-se os registros cujo meio de perpetração não foi especificado.

Corrigidos os óbitos, calcularam-se as taxas brutas, por faixa etária, e padronizadas pelo método direto, tendo como população-padrão a população mundial proposta pela OMS22. Os dados populacionais foram obtidos com o DATASUS, com base nos Censos de 1980, 1991, 2000 e 2010, sendo que as projeções intercensitárias realizadas para populações de 1º de julho dos anos intercensitários foram as estimadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)22.

As taxas de mortalidade nas RS foram analisadas por meio de taxas trienais até o período de 2010-2014 e bianuais nos dois últimos anos da série (2015-2016). Com base nessas taxas, construíram-se mapas de mortalidade por quartis, por meio das bibliotecas spdep e rgdal do programa estatístico R, versão 3.2.1.

A análise de tendência temporal foi realizada em duas etapas: inicialmente, realizou-se a análise exploratória, por meio da função de autocorrelação e do teste de Durbin-Watson para avaliar a autocorrelação da série histórica24. Após a confirmação da dependência temporal dos dados, analisou-se a tendência temporal por meio da regressão binomial negativa, pois os dados apresentaram superdispersão (variância maior que a média), indicando que a regressão de Poisson não era o método mais adequado, mesmo que a variável resposta representasse dados provenientes de contagem24.

O número de óbitos esperados para cada ano representou a variável dependente; e o ano calendário centralizado, a variável independente. Decidiu-se por estimar modelos de regressão ponderados, proporcionais ao tamanho populacional, adicionando parâmetro conhecido como offset, que corresponde ao logaritmo da população de cada localidade em estudo24. As análises foram realizadas pelo programa estatístico R, versão 3.1.0, utilizando a library MASS, considerando-se estatisticamente significativos valores de p ≤ 0,05. O mesmo procedimento foi realizado para o número de óbitos de acordo com o meio de perpetração (estrangulamento ou sufocação, afogamento, arma de fogo, objeto penetrante ou contundente).

A tendência foi classificada em estacionária, decrescente ou ascendente, de acordo com o valor do risco relativo (RR), por meio da exponenciação do coeficiente da regressão e respectivo intervalo de confiança de 95% (IC95%). As séries foram classificadas em estacionárias, descendentes e ascendentes pela avaliação do RR e respectivo IC95%, a saber: estacionárias, quando o IC95% contiver o valor 1; descendentes, quando o RR e IC95% contiverem valores menores que 1; e ascendentes, quando o RR e o IC95% apresentarem valores acima de 124.

RESULTADOS

No período de estudo, registraram-se 936 óbitos por homicídios em mulheres no estado do RN, correspondendo a uma taxa média padronizada de 4,09 óbitos por 100.000 mulheres. Após as etapas de correção, houve aumento de 23,98% nos registros de óbito (5,08 óbitos/100.000 mulheres), em que o menor coeficiente foi observado no ano 2000 (2,66 óbitos/100.000 mulheres) e o maior foi no ano de 2014 (7,61 óbitos/100.000 mulheres).

As RS que apresentaram as maiores taxas médias padronizadas de homicídios femininos por 100.000 mulheres foram a MT (5,92 óbitos) e MO (5,60 óbitos). Em contrapartida, CO (2,80 óbitos) e JC (3,46) mostraram os menores coeficientes.

Destaca-se que houve aumento percentual acima de 17% quando se comparou o primeiro ao último ano da série histórica em todas as regiões, com exceção de CO (–60,10%) e PF (–1,72%), que apresentaram redução. A região de MT apresentou o maior aumento percentual, 484%, variando de 1,47 óbito por 100.000 mulheres (2000) a 8,62 óbitos (2016). O mesmo padrão foi observado no estado do RN, em que houve aumento de 172%: em 2000, a taxa de mortalidade por 100.000 mulheres correspondeu a 2,66 óbitos, e em 2016, a 7,23 óbitos.

A evolução temporal das taxas de mortalidade por esse grupo de causas sugere ascendência no estado do RN, tanto nas taxas corrigidas quanto nas taxas sem correção. Os registros classificados como ECI influenciam o perfil temporal da mortalidade por homicídios femininos, ou seja, quando houve aumento dos seus coeficientes, reduziu-se a mortalidade por homicídio, e vice-versa (Figura 1).

Figura 1
Taxa de mortalidade por homicídios femininos por 100.000 mulheres no estado do Rio Grande do Norte, no período de 2000 a 2016. Fonte: SIM/DATASUS22

Semelhantemente, evidenciou-se aumento nas taxas nos períodos analisados em todas as RS no período analisado, com exceção de PF, pois não houve óbitos por homicídios nos períodos de 2003 a 2008 nessa última região. No entanto, é importante destacar que, em todos os períodos em análise, grande proporção das RS apresentou coeficiente superior a 3 óbitos por 100.000 mulheres (Figura 2).

Figura 2
Taxas de mortalidade médias de homicídios femininos por 100.000 mulheres, segundo o período e as regiões de saúde do Rio Grande do Norte, no período de 2000 a 2016. Fonte: SIM/DATASUS22

Em relação ao perfil socioeconômico das mulheres vítimas de homicídios, constatou-se maior proporção de mortes em mulheres solteiras e negras (preta/parda) em todas as regiões (Figura 3A). Em relação à raça/cor, destacam-se as regiões de JC, MT, SJM e SC, nas quais mais de 80% dos homicídios foram perpetrados em mulheres negras (Figura 3C). No presente estudo, não foi possível utilizar a variável escolaridade por causa da grande proporção de registros com informação ignorada (54,81%).

Figura 3
Proporção de óbitos por homicídios femininos no estado do Rio Grande do Norte e suas regiões de saúde, segundo o estado civil, o local de ocorrência, o nível de escolaridade e o meio pelo qual a agressão foi perpetrada, no período de 2000 a 2016

Em relação ao local de ocorrência, verificou-se um equilíbrio na distribuição entre domicílio, via pública, hospital e outros estabelecimentos de saúde. Nas regiões de AC, CO, JC, PF, SC e no estado do RN, mais de 30% dos óbitos ocorreram no domicílio (Figura 3B). O meio de perpetração utilizado com maior frequência em todas as RS foi a arma de fogo, com exceção de CO e PF, onde se destacou o uso de objeto contundente e penetrante (Figura 3D).

A análise de tendência temporal evidenciou ascendência nas taxas de homicídios femininos para todas as faixas etárias do estado do RN, com exceção das faixas etárias de 50 a 79 anos, e perfil estacionário. No estado do RN, assim como nas regiões de JC, MT, SJM e SC, observou-se tendência ascendente dos homicídios femininos, porém nas demais regiões houve estabilidade (Tabela 1). Ainda no estado do RN, verificou-se tendência ascendente para homicídios perpetrados por arma de fogo e estabilidade para os demais meios de perpetração. Nas RS de AC, MT, MO, SJC e SC, ocorreu ascendência nas mortes perpetradas por arma de fogo, contudo, nas demais regiões, houve tendência estacionária para todos os instrumentos de perpetração analisados. Além do mais, as regiões de MT e SC apresentaram aumento dos homicídios cometidos por meio de objeto contundente ou penetrante (Tabela 2).

Tabela 1
Tendência da taxa de mortalidade (por 100.000 mulheres) por homicídios femininos segundo a faixa etária e as regiões de saúde do estado do Rio Grande do Norte, 2000 a 2016
Tabela 2
Tendência da taxa de mortalidade (por 100.000 mulheres) por homicídios femininos segundo o meio pelo qual a agressão foi perpetrada, no estado do Rio Grande do Norte e suas regiões de saúde, no período de 2000 a 2016

DISCUSSÃO

Os feminicídios representam a etapa final das violências de gênero cotidianas às quais as mulheres estão expostas no patriarcado, como o sistema de relações sociais de opressão, além da exploração e dominação masculina sobre as mulheres15-17. Segundo a OMS, a violência de gênero está presente em todas as classes sociais, religiões e etnias, manifestando-se como violência verbal, psicológica, física e patrimonial, com impactos na saúde mental, sexual e reprodutiva das mulheres18.

Meneghel et al. (2017)13 afirmam que o feminicídio não se limita somente às mortes perpetradas no ambiente doméstico, ocorrendo em novas circunstâncias que envolvem agressão sexual, exploração sexual, tráfico de pessoas, mortes por vingança, especialmente em localidades de alta vulnerabilidade social, dominadas pelo crime organizado e tráfico de drogas. No entanto, os homicídios femininos perpetrados por parceiros íntimos ainda se destacam como a principal circunstância de ocorrência de feminicídios, representando 38,6% dos homicídios femininos em 66 países25 e cerca de 70% em países da América Latina11,12.

A América Latina é uma das regiões mais violentas para as mulheres no mundo. No período de 2007 a 2012, 25 países concentraram 54% dos homicídios femininos do mundo, dos quais 12 estavam na América Latina e Caribe18, com taxas superiores a 3 óbitos por 100.000 mulheres, sendo consideradas áreas de alta mortalidade por homicídios.

O Brasil é o quinto país em magnitude de homicídios femininos no mundo, registrando taxas de mortalidade superiores a 5 óbitos por 100.000 mulheres6,18 e tendência de mortalidade ascendente em todas as regiões geográficas, com destaque para as regiões Nordeste e Centro-Oeste com os coeficientes mais elevados9,10,20.

O estado do RN e suas RS apresentaram no presente estudo coeficientes superiores a 3 óbitos por 100.000 mulheres a partir de 2003-2005, com exceção de JC e SC, e acima de 5 óbitos por 100.000 mulheres no período de 2015-2016, excetuando-se PF, estando, assim, entre as regiões do mundo de maior mortalidade por feminicídio6,18. No entanto, é necessário considerar que a magnitude dos coeficientes de mortalidade pode estar subestimada por causa da grande proporção de registros de óbitos classificados como ECI19-21. Portanto, o risco de morte por feminicídio pode ser muito maior do que o estimado no presente estudo, pois há subestimação residual, mesmo após a aplicação de técnicas de correção, em regiões com baixa qualidade e cobertura dos registros de óbito19.

No presente estudo, mantendo o mesmo perfil de outras pesquisas brasileiras, observou-se maior proporção de óbitos em mulheres negras, solteiras, cujo local de ocorrência foi o domicílio e via pública, com meio de perpetração por arma de fogo9,10,19-21.

No Brasil, pessoas negras de ambos os sexos apresentam maior risco de morte por homicídios5,6, e, no período de 2000 a 2014, observou-se redução dos homicídios em mulheres brancas e aumento em mulheres negras6. Por causa do resquício da escravidão e fruto do racismo estrutural, mulheres negras ocupam a base da pirâmide social no Brasil, apresentando os menores níveis de escolaridade, ocupando os postos de trabalho mais precarizados e residindo em regiões de alta vulnerabilidade social, muitas vezes dominadas pelo crime organizado, com taxas de mortalidade semelhantes a países que se encontram em guerra8-10,18.

A maior frequência de óbitos em mulheres solteiras pode associar-se ao efeito da idade, pois há maior risco de morte por homicídios em mulheres mais jovens, que, em grande proporção, são solteiras9,10,19-21. Além disso, estudo de revisão sistemática evidenciou que mulheres que estão em uniões não formalizadas apresentam maior risco de óbito por feminicídio em relação às mulheres casadas26.

No que diz respeito ao local de ocorrência, é importante ponderar que não somente os homicídios que ocorreram no domicílio estavam associados à violência de gênero. Na última década, em todas as regiões brasileiras, verificou-se aumento da frequência de assassinatos que aconteceram em via pública9,10,19-21,27, especialmente nos anos após a publicação da Lei Maria da Penha, que foi acompanhada por ampla divulgação em todos os meios de comunicação em nível nacional. Dessa forma, acredita-se que muitas mulheres que tentaram romper com o ciclo de violência que viviam, por não receberem a proteção do Estado, foram mortas em via pública, pois os seus parceiros e ex-parceiros, que conheciam suas rotinas, podiam surpreendê-las na saída de casa, trabalho ou escola10,19-21,27. No período de 2011 a 2016, no Brasil, 31% dos homicídios em mulheres com notificação prévia de violência doméstica foram perpetrados em via pública27.

Nas grandes regiões brasileiras, constatou-se aumento dos homicídios femininos praticados por arma de fogo, especialmente nos anos 20006,9,10,19-21. A grande circulação de armas de fogo aumenta a vulnerabilidade das mulheres à violência doméstica e ao feminicídio. No RN e em seis RS, percebeu-se tendência ascendente de homicídios femininos cometidos por arma de fogo, destacando a importância do controle da aquisição, circulação e contrabando de armas na proteção das mulheres. Neste sentido, estudo de caso controle evidenciou aumento da chance de feminicídio em mulheres cujo parceiros possuíam arma de fogo (OR = 7,50; IC95% 3,85-14,99)28.

No presente estudo, chama atenção a grande proporção de óbitos perpetrados por esfaqueamento nas RS de CO e PF, pois o uso de objetos perfurantes/penetrantes necessita de grande uso de força por parte do agressor, evidenciando um cenário de violência extrema e alta misoginia18,19,25. Observou-se ainda tendência de aumento dos óbitos com esses meios de perpetração em duas RS com taxa ascendente de mortalidade geral, MT e SC.

No estado do RN, em associação com a alta mortalidade por feminicídio, verificou-se tendência ascendente em mulheres jovens (10-14 a 40-49 anos) e nas regiões de JC, MT, SJM e SC; nas demais, foi estacionária. Esperava-se redução das taxas de mortalidade por homicídios femininos (efeito de período) após a promulgação da Lei Maria da Penha (2006). No entanto, estudos têm evidenciado evolução temporal de elevação das taxas de mortalidade e aumento na magnitude dos coeficientes no Brasil, regiões geográficas e unidades federativas9,10,19-21. Ademais, 15% das mulheres assassinadas no Brasil no período de 2011 a 2015 haviam notificado a violência doméstica que sofriam27.

Discute-se que essa realidade esteja relacionada ao processo de disseminação e interiorização da violência e à ineficiência do Estado em garantir a proteção de mulheres que vivem em contextos de violência doméstica9,10,19-21. Nessa direção, estudos têm evidenciado tendência ascendente e alta magnitude de homicídios femininos em localidades com altas taxas de homicídios masculinos, que se encontravam em processo de disseminação e interiorização da violência7,9,10 e apresentavam rede de proteção à mulher em situação de violência em quantidade insuficiente29.

A Lei Maria da Penha foi um avanço no campo jurídico-legal para a proteção das mulheres brasileiras, no entanto o orçamento destinado à implementação dos seus dispositivos legais e à rede de proteção às mulheres em situação de violência tem sido escasso, gerando quantitativo inadequado de Delegacias de Atendimento à Mulher (DEAM) e Casas-abrigos29. A região Nordeste, no ano de 2018, contava apenas com 70 DEAM e 9 Casa-abrigos, sendo 7 DEAM e 1 Casa-abrigo no RN30.

O presente trabalho visa fornecer subsídios para a avaliação e o planejamento das políticas e programas de assistência às mulheres em situação de violência no estado do RN. Como limitações, destaca-se a utilização de todos os homicídios femininos como aproximação para os óbitos decorrentes da violência de gênero, metodologia aplicada em outros estudos em razão da ausência de informações sobre as circunstâncias em que os homicídios femininos se deram9,10,19-21 e dos problemas de cobertura e qualidade da informação, que são corrigidos em parte pelos processos de correção aplicados. Acredita-se que a utilização de todos os homicídios femininos compensaria os problemas dos registros de óbitos citados9,10,19, no entanto, para estudos futuros, sugere-se a avaliação dos boletins de ocorrência dos homicídios femininos com vistas a descrever os cenários em que essas mortes ocorreram.

Os resultados do presente estudo apontam os homicídios femininos como uma tragédia cotidiana no estado do RN e suas RS, indicando para a gravidade desse problema de saúde pública e desrespeito aos direitos humanos das mulheres, evidenciando, assim, a urgência na proposição de medidas para aumentar a proteção social de mulheres em situação de violência, cumprindo as prerrogativas legais da Lei Maria da Penha, por meio da ampliação do financiamento, com vistas a aumentar o número de DEAM e Casas-abrigos. Somado a isso, é necessário haver ações que promovam mudanças na estrutura social dominante, pois estudos têm evidenciado redução da violência contra as mulheres em países que desenvolveram ações na comunidade para discutir as desigualdades de gênero, incluindo homens e mulheres31.

  • Trabalho realizado na Escola de Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) - Natal (RN), Brasil.
  • Fonte de financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES); código de financiamento 001.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    16 Ago 2019
  • Aceito
    21 Nov 2019
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