Resumo
Introdução: Em 2015, o Brasil foi afetado pela epidemia de microcefalia. As famílias atingidas vivenciaram uma doença desconhecida.
Objetivo: Analisar sentimentos, reações e expectativas de mães de crianças nascidas com microcefalia pelo vírus Zika.
Método: Abordagem qualitativa. Realizadas entrevistas estruturadas e semiestruturadas com 19 mães e uma bisavó. Análise de conteúdo na modalidade temática.
Resultados: Os sentimentos descritos foram tristeza, medo, ansiedade e, algumas vezes, culpa. As reações relatadas foram choque, desespero, busca por informações, negação e, além disso, cada entrevistada vivenciou diferentes formas de aceitação. O luto do filho desejado foi um processo lento e doloroso. A maioria teve gestação não planejada, o que pareceu não ter influenciado nos sentimentos e reações provocados pelo diagnóstico dos filhos. As expectativas em relação ao futuro da criança envolveram medo da morte prematura e preocupações com o desenvolvimento motor, especialmente a incapacidade de andar e comer sozinho, levando à dependência.
Conclusões: Diante do nascimento de um filho com microcefalia, as mães precisaram refazer seus planos à luz de uma nova realidade, que impactou na qualidade de vida. Os profissionais precisam estar preparados para lidar com tais questões, garantindo também atenção às mães.
Palavras-chave: emoções; motivação; mães; microcefalia; vírus zika
Abstract
Background: In 2015, Brazil was affected by the microcephaly epidemic, when affected families experienced an unknown disease.
Objective: To analyze the feelings, reactions, and expectations of mothers of children born with microcephaly due to the Zika virus.
Method: Qualitative approach. Structured and semi-structured interviews were conducted with 19 mothers and a great-grandmother. Content analysis in thematic modality.
Results: The feelings described were sadness, fear, anxiety and, sometimes, guilt. The reactions reported were shock, despair, search for information, denial, and each interviewee experienced different forms of acceptance. Grieving the desired child was a slow and painful process. Most had unplanned pregnancies, which did not seem to have influenced the feelings and reactions caused by the children's diagnosis. Expectations regarding the child's future involved fear of premature death, concerns about motor development, especially the inability to walk and eat alone, leading to dependence.
Conclusion: Given the birth of a child with microcephaly, mothers needed to redo their plans in the light of a new reality, which impacted on their quality of life. Professionals need to be prepared to deal with such issues while also ensuring attention to mothers.
Keywords: emotions; motivation; mothers; microcephaly; zika virus
INTRODUÇÃO
Em 2015, o Brasil foi afetado por um problema de saúde pública, decorrente da epidemia de crianças nascidas com microcefalia, declarado pelo Ministério da Saúde, na época, como uma emergência nacional em saúde. As investigações clínicas a respeito desse surto evidenciaram que a causa era uma infecção pelo vírus Zika que acometia as mulheres durante a gestação1.
Tratava-se de uma nova doença, que passou a ser designada de Síndrome Congênita pelo Vírus Zika (SCZ), caracterizada por manifestações clínicas e alterações físicas que incluiam desordens neurológicas, alterações oculares, auditivas, desproporção craniofacial, deformidades articulares e de membros, além da microcefalia2,3.
As famílias atingidas, especialmente as mulheres, principais cuidadoras dessas crianças, vivenciaram uma situação de emergencialidade e muita exposição midiática de uma epidemia cujas causas e consequências ainda eram desconhecidas3.
Nesse cenário, a primeira geração de grávidas infectadas pelo vírus Zika no Brasil não tinha nenhum conhecimento do que se passava com elas e com seus filhos. A descoberta do diagnóstico ocorria ao mesmo tempo em que se lançavam hipóteses de vinculação ou causalidade, gerando incerteza e desamparo, especialmente nos primeiros casos diagnosticados4,5.
O nascimento de um filho com alguma condição crônica de saúde leva a família a enfrentar a crise da perda do filho idealizado e a necessidade de se ajustar às novas demandas de cuidados. Sentimentos de fracasso, incapacidade e inferioridade podem ser mobilizados pela impossibilidade de gerar um filho saudável6,7. Neste caso não se trata de um problema genético dos pais, mas do efeito devastador provocado por um vírus que, mesmo assim, pode gerar sentimentos de culpa. Os pais passam por um processo de luto, que acontece em vários estágios, até que possam ressignificar o vínculo com o filho7,8.
O momento da descoberta do diagnóstico marca o início desse processo que, junto às particularidades e contextos familiares, reflete sentimentos, reações e expectativas que modelam a elaboração da notícia e a realidade da doença5.
Nesta situação, frequentemente os pais encontram-se fragilizados e necessitam de um suporte emocional para que entendam o processo pelo qual estão passando, em especial as mães, que são, em geral, as mais atingidas8.
Diante do exposto, esta pesquisa tem como objetivo analisar os sentimentos, as reações e expectativas de mães de crianças nascidas com microcefalia pelo vírus Zika, de forma a compreender como vivenciaram o luto do filho idealizado e a ressignificação de suas expectativas, buscando contribuir para a qualificação do atendimento prestado a essas mulheres.
METODOLOGIA
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, baseada na teoria compreensiva9, parte do estudo “Síndrome congênita pelo Zika vírus, soroprevalência e análise espacial e temporal de vírus Zika e Chikungunya no Maranhão”, realizado no período de abril de 2017 a fevereiro de 2018, em um Centro de Referência Estadual em Neurodesenvolvimento.
Participaram da pesquisa 20 mães de crianças nascidas com microcefalia pelo vírus Zika, cadastradas na instituição. Para definição das participantes, foram utilizadas duas estratégias: mapeamento do perfil sociodemográfico das mulheres e das características clínicas das crianças e entrevista com informante-chave que acompanhava todas as famílias.
A escolha das participantes buscou contemplar as múltiplas situações baseadas em características sociodemográficas e clínicas, e a quantidade de entrevistas obedeceu ao critério de saturação9.
Foram utilizados dois instrumentos: o primeiro, um questionário estruturado que contemplava dados de identificação da mãe e da criança, características sociodemográficas, dados sobre gestação, parto e nascimento e situação clínica da criança. O segundo foi um roteiro de entrevista semiestruturada que destacava a questão norteadora da pesquisa que buscou compreender os sentimentos e reações das mães diante do diagnóstico de microcefalia, causada pelo vírus Zika, bem como suas expectativas para o futuro de seus filhos.
A abordagem inicial aconteceu na sala de espera, no dia da consulta. A data e o local das entrevistas foram definidos de acordo com a conveniência das participantes. A entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas.
Foi realizada Análise de Conteúdo, na modalidade temática. Foram seguidos os procedimentos metodológicos: pré-análise, que consistiu em leitura flutuante e exaustiva na busca das unidades temáticas; categorização do material; classificação dos dados; inferência e interpretação dos resultados10.
Os resultados foram discutidos a partir de contribuições teóricas sobre o processo de elaboração do luto e adoecimento crônico11,12.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos, CAEE n° 55329616.7.0000.5086, obedecendo à Resolução 466/12, do Conselho Nacional de Saúde. No sentido de preservar a identidade das entrevistadas, seus nomes foram substituídos por nomes iniciados com a letra M para as mães e B para a bisavó.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Foram realizadas 20 entrevistas, sendo 19 mães e uma bisavó, que exercia o papel de cuidadora principal.
Em relação às características sociodemográficas, as mulheres tinham entre 15 e 42 anos de idade, a maioria era casada, com ensino fundamental ou médio completos. A principal atividade exercida era do lar, e a quantidade de filhos variava de 1 a 9. A bisavó tinha 72 anos, era aposentada e tinha ensino fundamental incompleto. Em relação aos municípios de residência, 12 entrevistadas moravam no interior do estado (Tabela 1).
Quanto às crianças, 12 eram do sexo feminino e 8 do masculino, a idade variou de 11 meses a 2 anos e 2 meses, todas tinham fenótipo característico da doença. Quanto ao local de nascimento, três nasceram em maternidades da rede privada e 17 da rede pública, 11 casos no município de São Luís e o restante no interior do estado. A maioria das gestações não foi planejada.
As falas foram organizadas de modo a desvelar as experiências da situação vivenciada e as perspectivas de futuro das mães, diante do nascimento de um filho com microcefalia.
Os resultados foram categorizados, codificados e interpretados a partir de duas categorias analíticas centrais: “Sentimentos e reações vivenciados frente a um filho com microcefalia” e “Expectativas com relação ao desenvolvimento”.
Sentimentos e reações vivenciados frente a um filho com microcefalia
A notícia de que os filhos foram acometidos pelo vírus Zika foi inesperada para 15 das 20 entrevistadas, que ficaram surpresas com o diagnóstico e não esperavam que seus filhos pudessem nascer com uma deficiência. As outras cinco entrevistadas já tinham ouvido falar sobre a epidemia de microcefalia e já conviviam com o medo de seus filhos nascerem com a doença.
Os principais sentimentos e reações relatados no momento da descoberta foram medo, tristeza, choro, desespero e decepção, conforme observado nas falas.
“Eu fiquei triste! Assim… porque quando tu tá grávida, tu idealiza as coisas. Mas não me arrependo de ter escolhido ter ele, não” (Michele).
Quando ela [médica] me falou isso, meu mundo caiu! Porque eu já tinha começado a ver bebês com microcefalia… e eram aqueles bebês! Como sempre colocam na televisão… só colocam o lado ruim. Daí, eu fiquei assustada, porque não sabia como minha filha ia nascer. Como seria a aparência? Então, me assustou. Eu chorei muito (Mônica).
“Foi assim… a pessoa ficar, assim, esperando uma coisa e acontecer outra! Foi tipo uma decepção” (Mariana).
Esses sentimentos e reações, em geral, são elaborados de forma muito particular e dependem de fatores como a personalidade, gravidade da deficiência, contexto cultural, do quanto suspeitavam do diagnóstico, de que maneira a doença foi descoberta e o nível de expectativa que se estabeleceu durante a gestação. Porém, apesar de tais particularidades, a discrepância entre o filho imaginado e o filho nascido com uma doença crônica gera uma sensação de perda à maioria das mães13,14, que, muitas vezes, passam por um processo de luto15.
O luto é o processo pelo qual, ao longo de um determinado período, a pessoa elabora a sua perda. Um trabalho lento e doloroso, em que essa mãe renuncia ao filho idealizado, para que possa ressignificar, criar um novo vínculo e investir emocionalmente no filho que nasceu, o filho real16.
Em geral, trata-se de um processo de superação marcado por estágios progressivos: choque, negação, reação e aceitação, sinalizados em sequências e intensidades diferentes conforme as características de cada um. O processo de aceitação pode ser gradual, mas também pode não ocorrer17.
Todas essas fases foram percebidas nesta pesquisa. Porém, não seguiram uma ordem lógica e, em alguns casos, diante de novas situações, as reações mudaram. E nem sempre todos os estágios citados na literatura foram vivenciados por uma mesma mulher. Essas mulheres não seguiram nenhum script.
Essa situação pode ser explicada pelo fato de que, à medida que a síndrome avançava nas crianças, essas mulheres eram frequentemente surpreendidas com novos diagnósticos, em virtude do desconhecimento das manifestações clínicas relacionadas à SCZ. Portanto, viveram e reviveram situações características do luto por mais de uma vez, a cada novo diagnóstico que recebiam.
Neste estudo, várias mães relataram o choque como reação inicial diante do diagnóstico de microcefalia.
“Acabou tudo, tudo, tudo! Foi um choque. Foi um fim do mundo pra mim! Nunca imaginava. Você tá esperando uma criança 100%. Você tem de lidar com isso” (Melani).
O choque é a reação inicial frente ao diagnóstico quando, geralmente, os pais ficam paralisados e têm dificuldade em lembrar o que lhes foi falado, devido às suas condições emocionais. Ficam ansiosos e temerosos17.
As falas das cinco entrevistadas que receberam o diagnóstico durante a gestação e das 15 que receberam após o nascimento relataram o estado de choque no momento da notícia. No entanto, aquelas que já conheciam o diagnóstico desde a gravidez estavam mais preparadas para o momento do nascimento, a exemplo do que fala Melani: “O que os médicos me falaram [quando o filho nasceu], não foi um choque pra mim. Como eu já sabia, não foi um choque. Mas se eles me falassem lá, eu acredito que eu não aceitava, não. Eu ia dizer que não era minha criança”.
Quando o diagnóstico ocorre ainda durante o período gestacional, supõe-se que os familiares tenham maior oportunidade para o preparo e aceitação do fato, o que não exclui a angústia com relação ao desconhecido. Receber a notícia de uma deficiência logo após o nascimento impõe a necessidade de, ao mesmo tempo, compreender a gravidade da situação e cuidar da criança com suas necessidades18,19.
Entretanto, autores problematizam que receber a notícia de uma criança com deficiência na gestação pode prolongar o sofrimento dos pais. As dificuldades familiares podem ocorrer antes do nascimento, com os pais negando a situação ou acreditando que a gestação não chegará ao termo, o que pode gerar situações de superinvestimento ou, em oposição, de desinvestimento dos pais em relação ao filho intrauterino20,21.
Neste estudo, apenas uma mãe, que recebeu o diagnóstico após o nascimento, disse ter preferido assim: “Assim… ia ser mais difícil se a gente soubesse antes, porque se a gente soubesse antes, talvez fosse mais complicado” (Maria).
Em relação à comunicação de notícias difíceis, a questão mais importante é quanto à forma como a transmissão é feita, sendo importante que ocorra tão logo definido o diagnóstico22.
A maioria das mães entrevistadas questionou o diagnóstico, como relatado na fala abaixo:
Mas aí… eu não tava acreditando, não! Eu disse: “Tia, minha filha é normal”. Normal, comia, dormia, não tinha crise, não tinha nada… normal! Minha tia até falou: “Nossa família todinha tem a cabeça pequena, eu tenho a cabeça pequena”. Aí, ela também nasceu com a cabeça pequena, é herança da família (Márcia).
A comunicação entre profissionais de saúde e usuárias é atravessada pelas perspectivas a partir das quais estes sujeitos encaram a realidade. A fala da mãe pode representar uma fase de negação do diagnóstico. Por outro lado, a interpretação de que a cabeça pequena é uma herança familiar pode referir-se a um processo de aceitação da criança a despeito da doença.
A busca por características familiares que justificam a diferença do filho, como relatada por Márcia, é descrita na literatura23. Trata-se de uma outra forma de compreensão da saúde, da doença e do corpo, por meio de uma racionalidade diferente da biomédica.
A negação é consequência de um processo de descrença no qual os pais não aceitam a situação vivenciada24, e sua reação nem sempre aparece de forma explícita nos relatos25. Alguns questionam a fidedignidade do diagnóstico ou a competência dos profissionais. Tentam acreditar que não há nada de errado com seu filho, recusam-se a reconhecer as limitações da deficiência, acreditando que se trata apenas de uma doença passageira26.
Dentre as entrevistadas deste estudo, duas mães receberam diagnóstico de depressão, e uma delas relatou: “Eu já tava desesperada, há dois meses sem dormir de noite. Emagrecendo, cheia de olheiras. Até meu marido via que eu já tava já… se eu não tivesse procurado esse psiquiatra, acho que eu tinha enlouquecido” (Marcela).
Tristeza, desesperança e medo podem levar a mãe a um sofrimento profundo. Por um lado, uma mãe que precisa adaptar-se a uma nova realidade e, por outro, uma criança que necessita de cuidados27. Depressão e raiva reprimida, diante das frustrações também são descritas nesse contexto28.
Outra situação vivida por essas mães foi a sensação de culpa, em decorrência da tentativa de encontrar uma razão para o acontecimento, como na fala de Márcia: “Aí, eu disse assim: ‘Será que eu fiz um pecado tão grande, pra minha filha vir assim?’”.
A culpa é uma forma corriqueira das mães de crianças com deficiência expressarem seus sentimentos. Há uma necessidade de compreenderem por que isso aconteceu com elas, o que as leva a uma culpabilização por acontecimentos passados e presentes, como se a deficiência viesse em forma de castigo para seus atos, como a ideia de “pecado”25.
Outros sentimentos, como medo e incerteza, foram relatados em relação ao futuro das crianças, à aparência, ao preconceito social, à responsabilidade de cuidar de uma criança deficiente e às possíveis mudanças nas relações familiares: “Aí… meu marido também ficou triste, aí ficou arrasado demais. Pensava que nós ia até se separar por causa disso. Porque assim, … meu Deus do céu, como é que eu vou criar uma criança… não vai andar, não vai falar. Aí, só me dá trabalho” (Mary).
Porque uma criança dessa é uma caixa preta com uma interrogação, ninguém sabe o que é uma criança com microcefalia por Zika. Ninguém sabe lidar com uma criança dessas. Aí, eu olhava e dizia: “Meu Deus, os meninos são feios demais, essa cabeça, um oião”, eu digo, “ai meu Deus do céu, eu não vou aguentar parir uma criança desse jeito” (Melani).
O drama de criar uma criança com deformidades que a tornam feia, sem expectativa de desenvolvimento (não vai andar, não vai falar) e que vai dar muito trabalho está presente na dor e na incerteza que passaram a fazer parte do cotidiano dessas mulheres.
Embora a maioria das mães tenha buscado realizar movimento em direção à construção de vínculos afetivos com seus filhos e de superação da dor, tal situação não aconteceu em todos os casos, a exemplo do que falaram Mary e Bianca: “Eu fiquei olhando pra ela. Aí, eu pensava que eu não ia querer ela”; (Mary); “Ela mesmo [mãe] não ia cuidar de criança doente, que ela disse: ‘Mermã, eu não vou cuidar de criança doente. Criança que tem essas coisas só falta morrer de [tanto] andar pro hospital’” (Bianca — bisavó).
Embora as reações iniciais relatadas acima tenham sido de não aceitação, esses casos tiveram desfechos diferentes. Mary não abandonou e passou a cuidar do filho, assim como outras mães que também tiveram como reação inicial o medo e a intenção de abandono. Na segunda situação, a criança estava sendo cuidada pela bisavó por abandono materno.
A vivência de sentimentos ambivalentes, que geram medo, angústia e insegurança diante da incerteza da vida futura do filho, contribuem para a intenção ou para a efetiva realização do abandono por parte dessas mães29.
Diante dos aspectos existentes acerca da microcefalia, Melo et al.30 apontaram um aumento significativo no abandono por parte dos genitores — na maioria das vezes, o pai.
Por fim, quando as fases anteriores são superadas, a aceitação e a busca de estabilidade emocional podem acontecer, possibilitando o investimento no tratamento da criança17. Neste estudo, a fé foi evidenciada como uma estratégia de aceitação, a exemplo da fala de Mariana: “Aí, eu também não me desesperei. Por incrível que pareça, eu aceitei! Eu disse assim: ‘Deus me deu ele, do jeito que ele me deu. Então, eu vou aceitar. Ele é meu agora’”.
Nas falas acima, a mãe parece entender a chegada da criança com microcefalia como parte de um projeto planejado por Deus, que não deve ser contestado.
Tais explicações ligadas à vontade divina são importantes formas de enfrentamento para a resolução dos conflitos emocionais. Assim, Deus determina o destino e também dá força e conforto para aliviar o sofrimento31.
Outra forma de aceitação se deu em um caso em que a mãe havia recebido diagnóstico intrauterino de Síndrome de Edwards, cujo prognóstico era incompatível com a vida. Diante disso, sua reação ao nascimento de uma criança com microcefalia causada pelo Vírus Zika foi marcada por uma imediata aceitação: “E assim, ela nasceu com esse problema [microcefalia]. Mas, graças a Deus! Eu dou muito graças a Deus porque a minha filha tá viva. Essa foi a melhor notícia que podia me chegar naquele momento” (Marina).
A microcefalia para esta mãe significou a sobrevivência de sua filha. Desta forma, a deficiência ganhou menos importância, com relação à possibilidade de sobrevivência.
Em outra perspectiva de aceitação, as mães reagiram buscando informações, principalmente na internet, para minimizar seu sofrimento. Um exemplo disso é Mel: “Na hora, eu tive um baque, mas eu passei a saber o que ela ia precisar. Fui na internet, vi que ela precisava de fisioterapia, terapia ocupacional, essas coisas”.
Essas mães tiveram dificuldades quanto ao conhecimento acerca do diagnóstico de microcefalia antes e/ou após o nascimento dos seus filhos, bem como insatisfação com relação às infomações fornecidas por profissionais da saúde. Tais fatores incentivaram suas pesquisas na Web e redes sociais5.
Esses recursos de busca por informações podem ajudar a esclarecer, constituir rede de apoio, mas também potencializar incertezas, na medida em que as informações podem ser descontextualizadas, contraditórias e falsas, ou que deslocam os sujeitos para contextos que não fazem parte de sua realidade32.
Por fim, apesar de todas as dificuldades, da ausência de perspectivas de melhoras significativas, essas mães investem no desenvolvimento de seus filhos, buscam superar o desânimo e ressignificar suas vidas. Porém também convivem com sentimentos variados, contrastantes e conflitantes, característicos da incerteza com relação ao futuro de seus filhos, e que impactam na criação de vínculos imprescindíveis ao desenvolvimento da criança.
Expectativas com relação ao desenvolvimento de um filho com microcefalia
A maioria das mulheres entrevistadas não planejou a gestação, e momentos difíceis foram vivenciados assim que descobriram o diagnóstico de microcefalia. Mesmo assim, a despeito das incertezas em torno do desenvolvimento de seus filhos, seguiram apostando numa evolução favorável de seus estados de saúde.
Apesar da gravidade da doença, a maioria das mães, a exemplo de Matilde, demonstrou expectativas de um desenvolvimento “normal”: “Tenho muita certeza, muita fé em Deus que ela vai viver uma vida normal. Eu já vejo ela andando, correndo, eu já vejo ela desenvolvida” (Matilde).
A ideia de uma “normalização” projetada para o futuro parece configurar-se numa estratégia que possibilita a convivência com a inconstância do presente. O medo da morte e o atraso no desenvolvimento motor dos filhos também estão presentes nas preocupações da vida cotidiana e das expectativas futuras: “Tenho medo dela dar uma convulsão e morrer” (Mel); “Eu queria ao menos que ela andasse, pra mim já tava bom, porque é cansativo andar com ela no braço” (Maísa).
Em apenas um caso, a mãe demonstrou total desesperança quanto ao desenvolvimento futuro do filho:
Não adianta eu ficar me iludindo e ficar nessa tortura, ficar me cobrando uma coisa que não vai acontecer. Já vai fazer dois anos e não senta, não mastiga direito, não bebe água bacana. Ela parece um recém-nascido, só que já grande. Então, não! As expectativas são poucas (Melani).
Neste estudo, a maioria das mães parecia não reconhecer as limitações do seu filho, o que as aproxima mais da fala de Matilde e possibilita uma reflexão quanto à aceitação do filho, a partir das condições da microcefalia e das dificuldades que a acompanham. As expectativas não se adaptaram às possibilidades reais de desenvolvimento destas crianças.
Algumas mães, independentemente das informações que possuem sobre o diagnóstico, esperam que o desenvolvimento dos seus filhos seja “normal” ou que venha a melhorar33. Por outro lado, talvez essas expectativas revelem um olhar materno muito mais perceptível às potencialidades de seu filho do que voltado apenas para a doença e para as limitações relativas à condição de saúde da criança23.
As elevadas expectativas das mães quanto à independência dos filhos com microcefalia se devem ao fato de que são elas que realizam todas as atividades voltadas aos cuidados do dia a dia das crianças. Seus esforços contínuos estão direcionados para o desenvolvimento do seu filho, acompanhando-os nos itinerários terapêuticos34. A esperança de que seus filhos alcancem alguma independência está associada à possibilidade de reduzir a sobrecarga de cuidados/trabalho que elas têm na rotina com suas crianças35. Mas também temem pelo futuro de “um recém-nascido, só que já grande” quando elas mesmas não tiverem mais forças para cuidá-los36.
Essas diferentes expectativas podem ir desde a completa incredulidade em relação a situação do filho à plena aceitação, podendo ocasionar a idealização de uma cura mágica, bem como o temor quanto a uma possível morte26.
No contexto em questão, a demora na conclusão de um diagnóstico para a deficiência e de um prognóstico do seu desenvolvimento foi limitador para as expectativas maternas5.
Vale ressaltar que as concepções da mãe sobre a deficiência do filho podem se modificar conforme ela vivencia as possibilidades reais do dia a dia com a criança26. Diante de incertezas e/ou desconhecimento sobre as possibilidades de desenvolvimento, evidencia-se a importância de profissionais preparados para uma orientação adequada33.
Esta pesquisa teve como possível limite o fato de que a maioria das entrevistas foi realizada enquanto as mães aguardavam o atendimento dos filhos. A presença da criança com suas demandas e a necessidade de conciliar o tempo de entrevista com a hora da consulta, por vezes, causava ansiedade e pode ter abreviado seus relatos. Finalmente, espera-se que a disponibilidade das pesquisadoras em ouvir lembranças, desabafos e projetos destas mulheres, sem julgá-las, apenas buscando compreender seus pontos de vista, possa ter contribuído, em alguma medida, para reflexões acerca de suas vidas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A notícia de que seus filhos tinham microcefalia desencandeou nas mães uma variedade de sentimentos e reações que podem ser compreendidos como fases do processo de luto do filho saudável imaginado. A ausência de planejamento da gestação e o momento da descoberta do diagnóstico, antes ou depois do parto, parecem não ter influenciado em seus sentimentos e reações no momento da notícia. Porém, aquelas que já conheciam o diagnóstico desde a gravidez pareciam estar mais preparadas para as dificuldades enfrentadas depois do nascimento.
As preocupações inciais estiveram relacionadas a um futuro próximo e associadas ao medo da morte, ao desenvolvimento motor da criança e à sua dependência de cuidados. Poucas vezes manifestaram expectativas a longo prazo, considerando que, para a maioria das mães, não era possível, até aquele momento, pensar no futuro. No entanto, algumas apresentaram expectativas otimistas quanto à independência das crianças, acreditando que seus filhos serão capazes de alcançar alguma autonomia. A idealização presente nas expectativas otimistas quanto à independência e autonomia das crianças parece oferecer um alento à dura realidade vivenciada.
Por se tratar de uma nova doença, com grande repercussão midiática, o impacto emocional da notícia pareceu ser intensificado. Apesar disso, as mídias também ajudaram no processo de aceitação, busca e compartilhamento de experiências.
Considerando um contexto já marcado por dificuldades socioeconômicas e de acesso à educação e à saúde, ter um filho com vírus Zika impactou sobremaneira na qualidade de vida das mães entrevistadas. Os profissionais precisam estar preparados para lidar com tais questões, garantindo atenção não somente às crianças, mas também às mães.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Dez 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
14 Maio 2020 -
Aceito
19 Jul 2021