Resumo
Introdução: A legitimidade da aspiração à equidade social como compreendida na atualidade é um fenômeno relativamente recente na história da humanidade. Adquire centralidade teórica e política no século XIX e expande-se através dos avatares do século XX, sendo objeto de leituras e interpretações distintas e, por vezes, contrapostas.
Objetivo: Analisar os rostos das inequidades sofridas pela população trans da Costa Rica em situação de rua diante uma revisão narrativa.
Método: Ensaio analítico reflexivo e argumentativo.
Resultados: A construção transfronteiriça de uma sociedade (pseudo)homogênea tem conduzido a uma concatenação de violências sobre a população trans em situação de rua. De certa maneira, o ponto de partida deste olhar segregacionista repousa em uma sociedade que possui uma visão deteriorada sobre o significado real da equidade e inclusão social.
Conclusões: Torna-se importante compreender a inequidade desenhada no espaço rua, entendendo esse como um hábitat que fortalece as distâncias/abismos sociais e sistematiza a exclusão de uma população já abandonada.
Palavras-chave: saúde pública; transexualidade; pessoas mal alojadas; fatores socioeconômicos
Abstract
Background: The legitimacy of social equity as understood today is a relatively recent phenomenon in human history. It acquires theoretical and political centrality in the 19th century and expands through the avatars of the 20th century.
Objective: To analyze the faces of the inequities suffered by the trans homeless population in Costa Rica through a narrative review.
Method: A reflective and argumentative analytical essay.
Results: The cross-border construction of a (pseudo)homogeneous society has led to a concatenation of violence against the homeless trans population. In a way, the starting point of this segregationist look rests on a society that has a deteriorated vision on the real meaning of equity and social inclusion.
Conclusions: It seems important to understand the inequality drawn in the street space, understanding it as a habitat that strengthens social distances/gaps and that systematizes the exclusion of an already abandoned population.
Keywords: public health; transsexualism; ill-housed persons; socioeconomic factors
INTRODUÇÃO
A legitimidade da aspiração à equidade social como compreendida (e percebida) na atualidade é um fenômeno relativamente recente na história da humanidade. Adquire centralidade teórica e política a partir do século XIX e se expande nos avatares do século XX, sendo objeto de leituras e interpretações distintas e contrapostas.
A América Latina não escapa a este percorrido de concepções e tropeços semânticos. O anterior responde a história tão plural em solidez democrática, vigência da liberdade e experiências heterogêneas de igualdade. Razões pelas quais os latino-americanos — considerados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento como a região mais inequânime do mundo — sentem-se obrigados a pensar no tema da equidade sem separá-lo nunca do tema da democracia, do direito e da liberdade1.
Este problema, historicamente reconhecido como as “velhas desigualdades da América Latina”, radica em que as disparidades socioeconômicas e identitárias dos distintos grupos têm gerado espaços culturais, de participação cívica e em matéria de acesso sanitário cada vez maiores, que se traduzem em obstáculos superlativos para o bem-estar dos setores menos favorecidos2.
Nesse mesmo âmbito, tem se demonstrado que as inequidades multivariadas relacionadas com os ingressos, a apropriação territorial e a estrutura dos serviços de saúde são perversas, dado que desgastam a coesão social e promovem o estigma e a discriminação. Contribuem, pois, para incrementar os índices de morbimortalidade e deslegitimam a inerência dos Direitos Humanos às populações em geral, mas principalmente daqueles grupos minoritários ou vulnerabilizados3.
Isto ocorre em grupos onde convergem, de forma multidimensional, vários mediadores sociais de diferenciação, tais como: a idade, o gênero, a identidade de gênero, a etnia, a classe social, as deficiências, o consumo de substâncias psicoativas, as doenças, as sexualidades dissidentes, dentre outras.
Efetivamente, por essa razão a Organização Mundial da Saúde2 aponta que, para combater as inequidades sociais, torna-se necessário que os países focalizem suas políticas públicas de modo a incidir sobre os Determinantes Sociais da Saúde (DSS). Há que serem consideradas ações multisetoriais sob as perspectivas da elaboração de políticas públicas sanitárias que entrem em sintonia com as necessidades locais, de acordo com as particularidades dos grupos vulnerabilizados.
Sobre isso, torna-se relevante analisar a experiência ocorrida na Costa Rica, um país localizado na América Central. Essa nação parece representar uma vivência interessante sustentada em características sociais dominantes que tem sido pouco exploradas na região: a igualdade imaginária4. O ideal coletivo de equidade anterior soa pouco verdadeiro, visto que não é identificável nos indicadores macroeconômicos desse contexto.
Quanto à realidade costarriquenha, é verdadeiro que a desigualdade no país é menor do que na maioria dos seus homólogos latino-americanos, fato presente desde as etapas mais tenras de sua conformação histórica como nação. Essa afirmação encontra sustento em indicadores como sua expectativa de vida (79,4 anos), seu Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) (0,76), sua estabilidade democrática e o fato de não possuir exército desde o ano de 1948. Adicionalmente, deve-se lembrar que a Costa Rica é o único país centro-americano livre de analfabetismo e uma das 20 nações com maior biodiversidade do mundo, sendo que uma quarta parte de seus 51.100 km2 é declarada como reserva natural protegida5,6.
Conexo a essa caracterização, o país tem apresentado um crescimento sustentado durante 25 anos e, sendo o país da região que mais investe em políticas sociais (23% de seu orçamento), a tendência exposta encontra-se mudando de forma acelerada. Isso decorre do aumento do Índice de Pobreza Extrema (IPE), em 5,7% para o ano de 2017, e devido à precarização das condições laborais6.
Complementando os dados anteriormente descritos, o pobre reconhecimento à diversidade sexo-genérica, junto com a segregação espacial urbana e a transformação da pirâmide demográfica, representam dimensões relevantes dessas mudanças. Dito de outro modo, a realidade corporizada que enfrentam os grupos vulnerabilizados, tais como as pessoas em situação de rua ou os autoidentificados como transexual, transgênero, não binários ou travestis, distam de indicadores privilegiados de equidade sociossanitária.
Nesse particular, a anterior afirmação desenha a materialização da frase “cidadãos todos… ma non troppo1”. É por essa razão que proponho, neste diálogo tempestivo, analisar os rostos das inequidades sofridas por uma população que de forma sistemática tem sido violentada quanto ao seu direito de reconhecimento da cidadania, como é o caso da população de mulheres trans costarriquenhas em situação de rua a partir de uma perspectiva sanitária.
CIDADANIAS PRECÁRIAS: REALIDADES (IN)VISIBILIZADAS DE PESSOAS NÃO IDENTIFICADAS
Na Costa Rica, a construção transfronteiriça de uma sociedade pseudo-homogênea tem conduzido a uma concatenação de violências sobre algumas populações específicas. De certa maneira, o ponto de partida deste olhar fragmentado repousa em uma sociedade que possui uma visão deteriorada sobre o significado real da equidade e da inclusão.
O mal-estar dessa imagem idealizada foi sendo germinada desde o início do século XX. Até os anos 1940, a luta social foi orientada pela realização de ideais revolucionários e pela busca dos mecanismos requeridos para concretizar de forma pragmática o ideal da coletividade — que na Costa Rica segue sendo almejado o seu alcance.
Contudo, apesar das evidentes distâncias sociais sobre a existência das inequidades sociossanitárias sustentadas na etnofobia, aporofobia e transfobia nas barreiras de acesso às oportunidades em razão do status social e dos recursos econômicos, existe no país uma conquista de igualdade jurídica que deriva em inclusão cidadã e democrática, amparadas em três sustentáculos normativos, que são: a convivência horizontal, a tolerância e o pacifismo imaginado4.
Embora essa realidade — real ou metaforizada — não se aproxime à expressada pelos corpos de pessoas autoidentificadas dentro do espectro trans, como também daquelas que se encontram em situação perene ou transitória de rua, em particular, nesta população, os baixos ingressos, o desemprego, a discriminação por sua identidade de gênero e os baixos níveis de escolaridade são todos exemplos dos determinantes sociais que atuam em forma aditiva para desprotegê-la ao tempo que a (des)caracteriza, pois sua imagem social está associada a estereótipos marginalizados e desnaturais da diversidade impressa na sua cidadania.
Com relação a essas referências, permitamo-nos mergulhar na realidade contextual desta população neste território centro-americano. Assim, a evidência esclarece que as mulheres trans formam na Costa Rica um grupo significativamente homogêneo. Embora seja verdade que não exista um censo nacional que permita desvelar dados fidedignos — o que indicaria explicitamente uma inequidade no reconhecimento da sua presença no tecido social —, calcula-se que aproximadamente 0,5% da população costarriquenha poderia se entender para além do gênero ao qual ela foi designada ao nascer7.
Decerto, esses dados podem indicar que em sua maioria trata-se de mulheres trans com idades compreendidas entre os 17 e 35 anos. Acredita-se que a maior parte desse contingente tenha concluído apenas o ensino elementar, dedique-se à atividade sexual remunerada por falta de oportunidades e que viva em quartos compartilhados com outras companheiras8.
Por outro lado, embora a identidade autoidentificada seja respeitada nos documentos de identidade, a expectativa de vida das pessoas trans continua sendo de 42 anos de idade, correspondendo, tão somente, a quase metade dos anos de vida da população geral costarriquenha. Quanto à situação da América Latina9, não menos preocupante, e igualmente merecedora de atenção, o registro médio de 35 anos de idade contraria a tendência ao envelhecimento progressivo da população, em sua generalidade, no que se refere à realidade das pessoas que se autoidentificam como trans. Ao tempo, demonstra que o reconhecimento dos direitos estipulados pela Corte Interamericana dos Direitos Humanos no mês de novembro de 2018, por enquanto, parece ininteligível.
Em tal domínio expressam-se os corpos violentados das vítimas de crimes de ódio cuja estatística nem sequer se torna concreta para a instituição de políticas públicas pertinentes. Certamente, torna-se difícil ter certeza sobre quantas pessoas são assassinadas pela sua identidade de gênero, se tanto a mídia quanto as autoridades ainda reportam esses fatos como a morte de “um homem que se fazia chamar de Maria” e que “aparentava ser mulher”.
A anterior afirmação me induz a explorar, em primeira instância, essa inequidade que se relaciona diretamente com os fatores associados com sua condição ontológica, sendo que na Costa Rica interpreta-se que, diante de uma não linearidade entre os elementos tecno-artificiais do sexo e do gênero, se desenha um afrontamento às posturas ideológicas convencionais e ortodoxas que se traduzem em atos de transfobia.
Sob essa perspectiva, segundo dados do “Estudo de soroprevalência de HIV em população exposta a maior risco da Grande Área Metropolitana”, 64,7% das mulheres trans participantes dessa pesquisa reportaram ter sido abusadas ou maltratadas por conta da sua identidade de gênero nos últimos 12 meses. Esse mesmo estudo aponta que 55% das participantes mencionaram que seus familiares demostraram rejeição e desprezo, e que 49,6% delas foi vítima de algum tipo de violência nos serviços de saúde por causa da sua expressão de gênero10.
Todavia, 26,1% das participantes consideraram que foi necessário ocultar a sua identidade de gênero ao receber serviços sanitários. Da mesma forma, 40,1% indicaram ter sido necessário ocultar a sua identidade ao procurar emprego, enquanto 35,9% das participantes denunciaram algum ato de discriminação por sua identidade de gênero11.
Também há outros aspectos que comprometem a saúde e a expectativa de vida das pessoas autoidentificadas como trans, como o estigma associado à desconstrução e subversão das normativas de gênero, que não somente provoca uma alta incidência de doenças de cunho mental, ao tempo que eleva os cifrões condutais de ideações suicidas, tentativas de suicídio e suicídio; situação presente nas culturas patriarcais latino-americanas devido ao alto valor que é concedido à masculinidade hegemônica (e primitiva) que se converte em desatenção e invalidação dos direitos humanos daquelas que se atrevem a questionar ou problematizar os limites de gênero12.
Dessa realidade, depreende-se que a população trans não se beneficia dos serviços públicos de saúde para realizar acompanhamentos, sejam no âmbito da saúde geral, mental ou no que se refere à hormonioterapia, uma vez que ambas as possibilidades são legítimas e com respaldo jurídico. Contrariamente, a realidade informa que aquelas mulheres trans que procuram a expressão corporal de gênero através do uso de hormônios ou cirurgias apresentam altos índices de automedicação e injeções não supervisionadas de óleos e silicones industriais. Consequentemente, o contato que têm com o sistema de saúde na maioria dos casos acontece em situações críticas, gerando desde complicações físicas irreversíveis ou comprometimentos orgânicos funcionais totalmente vitais.
Essa situação se agrava ao considerar os altos índices de necessidades em saúde não satisfeitos por parte dessa parcela populacional negligenciada. Quanto a isso, ao interpretarmos os dados informados no ano de 2019 pelo Ministério da Saúde da Costa Rica, que logrou determinar uma prevalência do Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), de 24,6% (IC95% 0,5–4,3) em mulheres trans, é possível deduzir que essa epidemia, na Costa Rica, está intensificada em Homens que têm sexo com Homens (HSHs) e nas mulheres trans — embora deva ser aclarado que isto não responde unicamente às suas práticas sexuais ou aos comportamentos de risco a que podem estar sujeitas essas populações11.
Tais evidências sugerem que a principal razão pela qual a epidemia está concentrada nesses dois grupos responde ao impacto negativo que tem tido o estigma e a discriminação pela identidade sexual e a identidade de gênero na vida dessas pessoas. Pode-se deduzir que essa realidade se deve à geração de comportamentos associados à clandestinidade, às dificuldades de acesso aos serviços sociossanitários e, inclusive, ao desenvolvimento de condutas autodestrutivas11.
Nesse âmbito, dados publicados pela Rede Latino-Americana e do Caribe de Pessoas Trans corroboram com o sucedido costarriquenho, pois reportam que a principal barreira no acesso aos sistemas de saúde pública esteja associada diretamente à provável falta de preparo, sensibilização e capacitação dos profissionais de saúde quanto à atenção de pessoas autoidentificadas como trans; fatos que podem contribuir para as práticas de marginação, discriminação, distanciamento ou segregação social9.
Afora esses desdobramentos, é importante destacar a atividade laboral realizada por essa população. Das mulheres trans participantes do estudo11, 67,2% reportaram ter praticado atividade sexual remunerada nos últimos 12 meses, e 58,7% referiram ainda realizá-la na atualidade. Complementarmente, essas mulheres trans informaram praticar atividade sexual remunerada desde os 17 anos de idade, ou seja, estariam submetidas à exploração sexual desde a juventude; já 74,8% afirmaram ter mais de três anos no campo do sexo pago, trabalhando em média seis dias por semana11.
Dessa forma, o exposto faz alusão expressa a um ponto focal de análise das inequidades que ineludivelmente incidem na expectativa de vida saudável das mulheres trans costarriquenhas. Estes elementos, quando associados às dimensões de saúde e de precariedade laboral, apontam a um grau de pobreza ou de pobreza extrema, a altas taxas de inacessibilidade à moradia adequada e segura, ao baixo nível escolar e às limitadas oportunidades que as mulheres trans encontram em validar seu direito à cidade e à cidadania.
A respeito da pobreza, embora seja reconhecida falta de pesquisas que analisem em profundidade esse universo trans, elas auxiliam na percepção das inequidades no que tange ao coletivo feminino quanto aos níveis de ingresso e consumo econômico nacional. De forma semelhante, enfrentam situações mais complexas de não terem reconhecidos os seus direitos econômicos, políticos, sociais e culturais11.
Como apontado, o panorama das mulheres trans em geral nos convida a pensar em dados que desvelam desigualdades evitáveis que estão acompanhadas por subnotificações. Essa realidade não é excepcional, e torna-se mais complexa quando adicionamos as questões de moradia, visto que são poucos os dados sobre a presença dessas mulheres nesta condição. Os poucos registros existentes não são precisos acerca da relação entre essas duas grandes dimensões ontológicas, podendo-se inferir que tal situação se torna uma realidade que se incrementa na sociedade costarriquenha de forma exponencial.
Por meio desses pressupostos, torna-se possível observar que a existência e o aumento não seja um fenômeno recente, visto que se encontra constituído de forma tímida na Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas em Situação de Abandono e Situação de Rua13 ao indicar que um dos fatores relacionados com a condição de rua vincula-se com o fazer parte da comunidade LGBTQIAPN+.
Nesse sentido, é necessário associar distintos fatores à situação de rua para ampliar o entendimento sobre a vida das pessoas trans, tais como: desemprego, existência de deficiências físicas, migração e consumo de substâncias psicoativas. Em articulação com esse processo de exclusão, é possível vislumbrar a superação dos enfrentamentos registrados em suas histórias de vida, como a perda de vínculos e de capital social.
Essas circunstâncias propiciam a criação de um círculo de exclusão entre a estigmatização e o desarraigo, que, para os tomadores de decisões, torna favorável a justificativa de inações para melhorar a qualidade de vida dessas pessoas. É perceptível a existência de uma concepção socialmente aceita, de que é contraproducente atender à essa população, pois reforçariam seus “comportamentos desviantes” — segundo Edwin Sutherland —, com isso criando um marco de tolerância diante de questões valoradas de forma negativa, como a não linearidade entre sua identidade de gênero e o sexo firmado ao nascer, o possível consumo de substâncias psicoativas, a atividade sexual remunerada, a situação de rua, dentre outras.
Consequentemente, esta análise apresenta a mulher trans em situação de rua, seu surgimento como produto urbano, seus estados e seus modos de habitar a cidade, sua rotulagem normativa (em termos goffminianos14) e social; suas subjetivações, seu consumo e sua luta pelo consumo — em outras palavras, nos apresentam as cidadãs que se encontram imersas na cidade de modo excludente, que formam parte do sistema, mas anula-se sua participação, o que, segundo Giorgio Agamben15, é o exemplo claro da materialização da inclusão exclusiva.
Poder-se-ia admitir, então, que a exclusão-inclusiva das mulheres trans em situação de rua leva à análise territorial, direcionada à interação entre os corpos e os espaços, que ressalta a ideia de território a fim de definir fronteiras espaciais e culturais e de identificar ideias que flutuam ao interior de um campo espacial determinado.
Diante de tal asserção, torna-se importante compreender a inequidade desenhada no espaço rua, entendendo-o como um hábitat aberto à intempérie e ao transeunte desprevenido ou talvez dessensibilizado pela naturalidade do próprio fenômeno da transexualidade e de como ela causa desvantagem e distâncias sociais em uma população já excluída. Faço referência aqui às verdadeiras heterotopias cidadãs que convertem a algumas pessoas como parte dessa paisagem urbana.
Parece bastante evidente que estou reflexionando aqui sobre a materialização da exclusão. Particularmente, refiro-me àquela mulher trans que tem sido obrigada a habitar nesse espaço etéreo pela sua negativa de formar parte do sistema (familiar, comunitário ou social). Contudo, qualquer que seja o caso, a situação de rua se constitui para elas uma resposta ou uma opção onde a supervivência aparece como um elemento que transversa seus corpos.
Entretanto, se as histórias de segregação das mulheres trans (estejam elas em situação de rua ou não) em uma sociedade pseudo-equitativa não são uma situação recente, por que se mantêm ou se agrava, embora exista uma quantidade importante de inversão econômica injetada na suposta solução? Qual o alcance das políticas públicas de saúde aplicadas? Qual a participação da mulher trans em suas formulações?
Refletindo em um sentido relacional, é claro que a participação das cidadãs trans nos espaços políticos deveria ser ocupada como um exercício do distintivo sistema democrático e equitativo costarriquenho, porém não existe uma voz aqui posicionada, tampouco considerada, o que evidencia a omissão aos pronunciamentos dos entes do Direito Internacional, que instam aos Estados-Nações a conceitualizar, desenhar e implementar políticas públicas de saúde com uma abordagem territorial e com participação cidadã local.
Nesse sentido, o discurso político sanitário contemporâneo, seja por parte dos organismos multilaterais da saúde ou dos integrantes do sistema das Nações Unidas, está estreitamente vinculado com a ideia de equidade ou em sua forma mais concreta com a busca da equidade em saúde. E embora pareça ter-se alcançado um consenso universal neste ponto, a equidade é a aspiração da saúde pública16.
Essa aparente unanimidade é frágil, pois tanto os planos e programas dos diferentes sistemas nacionais de saúde como os planos impulsados e promovidos pelos organismos multilaterais diferem notavelmente na materialização das metas com que procuram alcançar a equidade, sendo um reflexo da limitação do aparente consenso.
Sem dúvida, isso responde à estreita vinculação do conceito de equidade com o conceito de igualdade, gerado e diferenciado através de um complexo processo fundamentalmente filosófico. O caso da equidade em saúde das pessoas trans — temática de recente aparição — deve ser analisado desde uma perspectiva histórica, para compreender como tem-se percebido as relações sociais de inclusão e exclusão, assim como entre justiça e equidade quando se referem à saúde desta população.
Nesse sentido, uma premissa elementar para alcançar a equidade das mulheres trans está relacionada com a sua “cidadanização”. Em outras palavras, com o reconhecimento formal e jurídico da sua condição de “ser humano que tem direitos”. Portanto, as estratégias para otimizar e universalizar seu acesso à saúde e a seus direitos de cidadã, subsequentes vinculados à sua identidade, constituem-se também na responsabilidade compartilhada entre diferentes âmbitos e protagonistas sociais e governamentais.
De modo suplementar, focar o olhar nessas questões permitirá analisá-las sob duas perspectivas: uma considerando a situação das populações vulnerabilizadas em suas experiências, percepções e suas condições e barreiras no acesso ao status jurídico; e outra com práticas governamentais e sociais pertinentes aos trans articuladas com objetivo à integralidade das políticas.
Finalmente, esta análise me permite destacar a atenção nas inequidades sofridas pela população trans costarriquenha e reconhecer que as ditas inequidades são enormes, graduais, crescentes, adaptativas e históricas. Em consonância, torna-se possível evidenciar que existe um imaginário de equidade costarriquenho que é tóxico, pois invisibiliza a realidade experienciada por essa população. A desnaturalização deste imaginário possibilitará a legitimação dos cotidianos dessas mulheres trans e, consequentemente, as direções que devemos seguir para efetivar seu direito à saúde.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A dimensão da equidade na Costa Rica e no Sul Global deve ser concretizada por meio de políticas sociais comprometidas e coerentes com a realidade particular das múltiplas populações que compõem seu tecido populacional. Reconhecer a existência de inequidades superlativas vislumbra-se como o ponto de partida para a ação política efetiva.
Assim, para alcançar a equidade sanitária de uma população, como a população trans, torna-se necessária a efetivação de eixos essenciais, tais como: a garantia ao direito à educação, ao emprego, à saúde, à moradia etc. Adicionalmente, require-se da promoção de espaços de participação social que permitam a aplicação de políticas de proteção social universal com o intuito de mitigar as novas mutações das formas mais elementares das desigualdades em todos os espaços de diferença, incluindo o campo da saúde.
Chegando neste ponto, poderíamos finalizar esta reflexão com o seguinte questionamento: será possível diminuir as inequidades sofridas pela população trans na Costa Rica? A resposta é complexa, pois, como analisado, a questão da equidade é abstrusa, inclusive em países desenvolvidos e com uma base de origem mais igualitária. Agora, contextualizemos isso em um local onde paira um ideal de equidade que evidentemente é imaginado e imaginário.
Contudo, acredito que seja possível avançar para um contexto mais equitativo se considerar combater alguns elementos constitutivos da diferença injusta que marcam os corpos e os territórios das mulheres trans. Ao final, caminhar em prol de uma sociedade mais igualitária significa não somente reduzir o coeficiente de Gini de forma abstrata, senão materializar empregos de melhor qualidade e gerar políticas de reativação econômica contracíclicas que evitem a volatilidade onde sempre perdem as pessoas mais fracas nos ciclos negativos, e também um pacto fiscal que permita aumentar a baixa carga tributária da região de maneira progressiva, por desenvolver políticas públicas eficientes e sólidas frente aos grupos de pressão.
Dependerá simultaneamente de uma institucionalidade forte e capaz de reduzir o arbítrio das masculinidades tóxicas e aumentar a eficácia das regras, evitando assim a corrupção e a perversa exclusão. Estaria, ademais, supeditado de maneira nevrálgica em aumentar os acessos à propriedade e a avanços, autênticos e definitivos; dever-se-ia principalmente igualar o acesso a uma educação de qualidade que permita romper as exclusões, com vistas ao desenvolvimento igualitário do capital humano, através da redistribuição das capacidades humanas e destruindo a base desigual de origem que tem marcado a história da América Latina.
Detrás deste caminho gradual, subjaz definitivamente a ideia de que o sucesso da região deve ser medida pelo nível de dignidade de vida dos grupos minoritários para além dos cifrões da média da população. Nessa realidade, um elemento crítico ao respeito vincula-se com a compreensão dos sistemas de saúde, como espaços de poder que podem ocupar um lugar de influência no macro contexto social, econômico e político. Portanto, constituem um espaço de incidência que deve ser deliberadamente abordado e incorporado como um dos elementos dos sistemas da saúde moderna, atuando como contrapeso favorável aos menos privilegiados dentro das dinâmicas de poder das sociedades.
REFERÊNCIAS
-
1 Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Relatório de Desenvolvimento Humano: a ascensão do sul. Progresso humano num mundo diversificado [Internet]. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento; 2017 [acessado em 7 mar. 2020]. Disponível em: https://hdr.undp.org/system/files/documents/hdr2019ptpdf.pdf
» https://hdr.undp.org/system/files/documents/hdr2019ptpdf.pdf - 2 Organización Mundial de la Salud. Comisión sobre Determinantes Sociales de la Salud. Subsanar las desigualdades en una generación: alcanzar la equidad sanitaria actuando sobre los determinantes sociales de la salud. Genebra: Organización Mundial de la Salud; 2009. Serie de Informes Técnicos, 939.
-
3 Silva MJS, Schraiber LB, Mota A. O conceito de saúde na Saúde Coletiva: contribuições a partir da crítica social e histórica da produção científica. Physis. 2019;29(1):e290102. https://doi.org/10.1590/S0103-73312019290102
» https://doi.org/10.1590/S0103-73312019290102 - 4 Sojo C. Igualiticos: la construcción social de la desigualdad en Costa Rica. San José: PNUD; 2010.
-
5 Chamizo García HA. Mortalidad por diarreas e inequidades en Costa Rica. Horiz Sanitario. 2017;16(1):16-27. http://dx.doi.org/10.19136/hs.a16n1.1412
» http://dx.doi.org/10.19136/hs.a16n1.1412 - 6 Instituto Nacional de Estadísticas y Censos. Costa Rica en cifras. San José: Instituto Nacional de Estadísticas y Censos; 2018.
- 7 Centro de Estudios Internacionales. Diagnósticos Jurídico sobre derechos humanos de las poblaciones lésbicas, gay, trans, bisexuales de Costa Rica. San José: CEI/Equipo Lésbico Gay de Investigación; 2017.
- 8 Rueda A. Iniciativa de asociación Transvida y MEP permite a 50 transexuales derrotar discriminación y retomar estudios. 2016.
- 9 Red Latinoamericana y del Caribe de Personas Trans. Plan estratégico 2014-2018. Buenos Aires: Red Latinoamericana y del Caribe de Personas Trans; 2018.
- 10 Ministerio de Salud. Dirección de Garantía de Acceso a Servicios de Salud. Norma Nacional para la Atención en Salud Libre de Estigma y Discriminación a Personas Lesbianas, Gays, Bisexuales, Trans, Intersex (LGBTI) y otros hombres que tienen sexo con Hombres (HSH). San José: Ministerio de Salud; 2019.
- 11 Ministerio de Salud. Guía corta: Situación de derechos de las personas LGBTI en Costa Rica. San José: Ministerio de Salud; 2018.
- 12 CEJIL. Diagnóstico sobre los crímenes de odio motivados por la orientación sexual e identidad de género en Costa Rica, Honduras y Nicaragua. San José: CEJIL; 2013.
- 13 Ministerio de Desarrollo Humano e Inclusión Social. Política Nacional para la Atención Integral de Personas en Situación de Abandono y en Situación de Calle. San José: Ministerio de Desarrollo Humano e Inclusión Social; 2016.
- 14 Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar; 2013.
- 15 Agamben G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2ᵃ ed. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG; 2010.
-
16 Tumas N, Pou SA, Díaz MP. Inequidades en salud: análisis sociodemográfico y espacial del cáncer de mama en mujeres de Córdoba, Argentina. Gac Sanit. 2017;31(5):396-403. https://doi.org/10.1016/j.gaceta.2016.12.011
» https://doi.org/10.1016/j.gaceta.2016.12.011
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Dez 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
19 Ago 2020 -
Aceito
19 Jul 2021