A crítica da economia política formulada por Kar Marx constitui pedra angular da cultura moderna e ainda continua sendo uma das análises mais fecundas da sociedade capitalista. Compreender qual é a função dessa crítica para a apreensão da atualidade política, social e econômica é fundamental. Alguns aspectos que gostaríamos esquematicamente de abordar neste editorial para a Revista Katálysis são os seguintes: 1) a relação entre essência e aparência; 2) a relação entre realidade e possibilidade; 3) o tema do sujeito e da transformação social.
No que se refere ao primeiro aspecto mencionado, a relação entre essência e aparência, nos reportamos a uma famosa passagem de Marx no terceiro livro de O Capital, onde ele afirma que se a essência e a aparência coincidissem, a ciência não seria necessária1. A investigação do que se vê permite entender que essa é a manifestação de algo mais profundo; se nos limitamos a reconstruir só as regularidades da aparência sem conectá-las com as leis que as regulam, ficamos presos ao fetiche da mercadoria e do capital e às suas máscaras fenomênicas. Estas máscaras nos aparecem como naturais, como se não pudesse existir uma alternativa ao sistema capitalista, como se as formas correntes fossem eternas, uma “natureza social”. A crítica nos permite entender que as organizações sociais humanas nem sempre têm sido as mesmas, que formas diferentes se alternavam na sua história e que o capitalismo é só uma dessas. Se tem um presente e teve um passado diferente, poderá também ter um futuro alternativo. Em particular, a crítica nos permite explicar que as categorias fundamentais sem as quais não nos parece possível conceber a realidade contemporânea não são condições da natureza, pelo contrário, são produtos do desenvolvimento social e, como tais, podem ser transformados. Por exemplo, nos parece “natural” que todos os produtos — incluindo os seres humanos — sejam mercadorias, ou que o dinheiro tenha poder social, ou que o capital se torne o sujeito de cada ação social; trata-se, ao invés disso, de relações sociais historicamente determinadas.
Um elemento fundamental da crítica marxiana da mercadoria e do dinheiro2 é a desestruturação da centralidade do indivíduo como sujeito social privilegiado, como se a sociedade fosse o resultado da soma de decisões individuais. Ao contrário, as pessoas que interagem no sistema mercantil se definem como tais só enquanto membros, partes de uma unidade social. Marx mostra como o que aparece à superfície — os indivíduos atomizados que constroem a sociedade como uma soma de decisões individuais — é exatamente a inversão da essência, a sociedade como totalidade de inter-relações estruturais de interdependência. Toda ideologia burguesa, agora dominante, está baseada sobre este assunto do indivíduo substancial, sobre a destruição do conceito de sociedade e, por conseguinte, da sua responsabilidade relativamente aos seus membros. A aparência da existência atomizada dos indivíduos é exatamente o efeito necessário das leis essenciais do modo de produção capitalista, a conexão universal dos seus membros aparece como a independência autonomizada deles; e a sua conexão aparece como relação de coisas com poder social, coisas sociais e indivíduos independentes. A crítica deverá não só mostrar a falsidade dos temas ideológicos do pensamento dominante, mas também explicar como a estrutura do capitalismo propõe essas ideologias como formas necessárias de sua manifestação (MARX, 2013, p. 154).
O capitalismo tem leis muito rígidas de funcionamento que implicam passagem lógicas e históricas necessárias; contudo, a existência de mecanismos necessários na reprodução capitalista não significa que essa necessidade seja natural; trata-se de uma necessidade historicamente determinada que pode ser transformada pelos mesmos atores que a realizam numa nova estrutura social mais racional e justa. Porém essa transformação não pode ser causal, mas tem que respeitar e direcionar a necessidade histórica. Outro assunto fundamental é que, segundo Marx, na história os seres humanos não atuam como indivíduos, mas como classes (contra a ideologia do indivíduo sujeito).
Avançando em nossa análise, passemos a problematizar a relação entre a realidade e a possibilidade. A viabilidade desta transformação, ou seja, da passagem de uma forma historicamente determinada à outra é real. Graças às modificações que o modo de produção capitalista tem determinado na história da humanidade ficou possível a passagem a um novo sistema social mais racional. A compreensão crítica do seu desenvolvimento real dá-nos as precondições necessárias desta passagem. Graças ao capitalismo temos resultados históricos que nos permitem conceber um futuro diferente: 1) a interconexão universal da reprodução humana (ideologicamente transformada na globalização) que pela primeira vez na história determina um conceito de humanidade que não é só intelectual ou teórico, uma abstração, mas uma realidade prática, a reprodução de cada indivíduo em cada parte do mundo depende estruturalmente da reprodução de indivíduos em outras partes; 2) a incrível produtividade do trabalho que permitiu superar a dramática dependência do passado e da necessidade, a possibilidade existente de superar a necessidade externa (criou também a possibilidade da destruição total da natureza), 3) o conhecimento científico, as técnicas e tecnologias para que seja possível gerir a complexidade do processo global de reprodução. A crítica nos permite distinguir o lado progressista do desenvolvimento capitalista e o seu lado destrutivo. Esse conteúdo material positivo se desenvolveu graças ao capitalismo na sua fase progressista. Contudo, isso agora fica limitado à sua forma despótica porque o capitalismo alcançou uma fase na qual não é capaz de progresso ulterior. As possibilidades que foram produzidas pelo capitalismo na sua fase progressista, agora estão bloqueadas pelas mesmas leis imanentes. A forma capitalista da reprodução tem entrado em contradição com o conteúdo que essa mesma gerou (MAZZONE, 1987).
É um fato que uma diversa organização da reprodução humana seja possível. A possibilidade real não é, contudo, a realidade em curso. A passagem da possibilidade real à realidade em curso pode ser um objetivo político, social. O tema das formas políticas, da organização para que uma nova sociedade possa nascer da velha, está ao centro do interesse teórico e prático da análise crítica. Esse elemento do sujeito é essencial tanto como as suas transformações objetivas.
Por fim, importa refletir sobre o tema do sujeito e da transformação social. A compreensão crítica dos processos permite individuar os sujeitos da transformação social? Parece que a interpretação tradicional que considerava só a classe operária como sujeito privilegiado tem que ser revista. Não só porque o desenvolvimento do capitalismo tem criado uma articulação muito mais complexa do que no tempo de Marx. Acho também que não é correto reduzir a própria teoria de Marx desta maneira. O “outro” do capital na sua teoria não é o operário, mas o trabalhador assalariado. A tradução do termo alemão “Arbeiter” é literalmente “trabalhador” que pode ser o operário, mas também mais geralmente trabalhador. As características das formas de trabalhar que o modo de produção capitalista determina se articulam de maneira formalmente coerente em diferentes figuras e períodos históricos: mudam as figuras históricas, mas não mudam as formas lógicas, as determinações funcionais. As formas que se mantêm nas diferentes figuras são: o caráter cooperativo do trabalho, seu caráter parcial, e, finalmente, o caráter de apêndice do trabalhador no processo de valorização do capital; essas formas são comuns às várias figuras históricas nas quais o processo de valorização se apresenta em períodos diferentes. Portanto, não só na fábrica tradicional se encontram essas formas, mas em muitas figuras contemporâneas “irregulares” da produção. O processo de valorização do capital permanece a finalidade total numa dinâmica que se desenvolve da mesma forma (no sentido da lógica do sistema), mas em figuras historicamente determinadas como diferentes. A crítica permite reconhecer as formas sob as figuras ou ainda as figuras como exemplos das formas.
Ao mesmo tempo, se esta é a maneira na qual se apresenta a modalidade do trabalho pelos trabalhadores que estão incluídos no processo de produção, muitos outros estão excluídos. Com efeito, a taxa de desemprego causada pelo capitalismo aumenta cada vez mais, determinando a questão da inclusão no processo de emancipação de indivíduos que, mesmo que não sejam trabalhadores, estão, contudo, incluídos no processo numa posição de exclusão relativa por causa do capital. A sua exclusão do processo se determina pelo processo mesmo e a impossibilidade estrutural deles de atuarem na reprodução da coletividade com um papel ativo. A dinâmica regressiva do capitalismo na sua fase crepuscular não permite uma repetição da sua momentânea fase progressista como ocorreu na Europa. Ao lado dos trabalhadores explorados, há uma massa sempre maior de trabalhadores sem emprego; estas duas categorias se encontram nos centros onde a economia capitalista se desenvolve. Contudo, tem também uma terceira categoria: todos os trabalhadores em países que nunca foram incluídos plenamente na reprodução capitalista e que nunca o serão porque o capitalismo não tem mais capacidade de expansão pela crise estrutural de valorização na qual se encontra. Esses trabalhadores não entraram e não entrarão na fase progressista do capitalismo e as suas figuras de trabalho permanecerão pré-capitalistas num contexto de desenvolvimento mundial caracterizado pela crise do capitalismo crepuscular3.
Uma grande parte do mundo conheceu e conhecerá só a face da sua brutalidade e barbaridade. Uma reação possível, que porém acho equivocada, seria uma recusa total do capitalismo, incluindo os elementos positivos que o capitalismo produziu na via dum primitivismo que representaria uma recusa também dos aspectos positivos e das possibilidades que existem só graças a ele mesmo. A crítica permite uma distinção do conteúdo progressista da forma regressiva. O risco é aceitar ideologias antimodernistas e um (anti)anticapitalismo reacionário que pode levar à direita em vez de à esquerda.
O desafio da teoria crítica é compreender quais são as formas práticas e institucionais adequadas para que todos esses sujeitos possam se organizar politicamente como força unitária. Os sujeitos possíveis então se articulam em graus diferentes: 1) os trabalhadores assalariados que valorizam o capital em formas cooperativas, de trabalhador parcial ou como apêndice (não só nas fábricas), 2) os desempregados funcionais que existem como excluídos do capital no interior do sistema capitalista, 3) todos eles no mundo que foram parte diretamente do capitalismo só tangencialmente e que nunca o serão porque ele não mais possui capacidades expansivas. Como unir todos esses sujeitos antagonistas possíveis é o grande desafio histórico e político que está à nossa frente e que é um dos temas fundamentais da crítica.
Em síntese, considerando o conjunto das questões apresentadas, queremos enfatizar que a dinâmica do capitalismo crepuscular, do capitalismo na sua fase tardia, implica contradições estruturais que podem tanto destruir o sistema mesmo, como também permitir uma saída progressiva dele. As condições dessa saída estão na capacidade de organização da classe trabalhadora que, por um lado, precisa identificar as modalidades de unificação de sujeitos que aparentemente ficam muito distantes e, por outro, colocar esta luta no desenvolvimento das tendências históricas do modo de produção capitalista. Ao nosso ver, a teoria marxiana do capital continua atual e nos permite uma fecunda abordagem sobre a realidade social, política e econômica contemporânea.
Itália, junho de 2024.
Agradecimentos
Não se aplica
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1
MARX, K. (1894), O Capital. Crítica da Economia Política, Livro III: O Processo Global da Produção Capitalista, São Paulo, Boitempo, 2017, p. 1061 (MARX, 2017). Uma distinção inspirada na lógica da essência hegeliana: HEGEL, G. W. F. Wissenschaft der Logik, vol. I, t. I, Die objektive Logik: Erstes Buch; vol. II, t. I, Die objektive Logik: Zweites Buch; t. II, Die subjektive Logik, Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1996, II, p. 161 (HEGEL, 1996).
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2
Para uma apresentação geral sobre a novidade na pesquisa marxiana depois da nova edição histórico-crítica ver: FINESCHI, R. Un nuevo Marx: filología e interpretación tras la nueva edición histórico-crítica. Barcelona: El viejo topo, 2023 (FINESCHI, 2023a)
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3
Sobre esta categoria, cf. FINESCHI, R. Violência e estrutura social no capitalismo crepuscular. In: Os direitos não cabem no estado: trabalho e política social no capitalismo. Unisa, 2023 (FINESCHI, 2023b). Um tema que também foi abordado por JAMESON, F. Postmodernism, or, The Cultural Logic of Late Capitalism (Post-Contemporary Interventions), Duke University Press; First Edition, 1992 (JAMESON, 1992).
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Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação
Não se aplica.
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Consentimento para publicação
O autor consente a publicação do presente manuscrito.
Referências
- FINESCHI, R. Un nuevo Marx: filología e interpretación tras la nueva edición histórico-crítica. Barcelona: El viejo topo, 2023a.
- FINESCHI, R. Violência e estrutura social no capitalismo crepuscular´. In: BOSCHETTI, I, et al. (ORG.). Os direitos não cabem no estado: trabalho e política social no capitalismo Rio de Janeiro: Usina, 2023b.
- HEGEL, G. W. F. Wissenschaft der Logik, vol. I, t. I, Die objektive Logik: Erstes Buch; vol. II, t. I, Die objektive Logik: Zweites Buch; t. II, Die subjektive Logik, Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1996.
- JAMESON, F. Postmodernism, or, The Cultural Logic of Late Capitalism (Post-Contemporary Interventions), Duke University Press; First Edition, 1992.
- MARX, K. (1867), O capital.Crítica da economia política, Livro I: O processo de produção do capital, São Paulo, Boitempo, 2013.
- MARX, K. (1894), O Capital. Crítica da Economia Política, Livro III: O Processo Global da Produção Capitalista, São Paulo, Boitempo, 2017.
- MAZZONE A. ‘La temporalità specifica del modo di produzione capitalistico’, Marx e i Suoi Critici, Urbino: Quattro Venti, 1987.
Editado por
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Editores Responsáveis
Michelly Laurita Wiese – Editora-chefe
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Jaime Hillesheim – Comissão Editorial
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
09 Dez 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
13 Set 2024 -
Revisado
17 Nov 2024 -
Aceito
07 Out 2024