Open-access Entregadores de aplicativo nas charges “Os empreendedores”: uma análise discursiva

App deliverers in The Entrepreneur’s cartoons: a discursive analysis

Resumos

Resumo  O presente artigo teve por objetivo analisar charges que abordam o tema do trabalho de entregadores de aplicativo, buscando compreender discursivamente seu modo de funcionamento. Para isso, apoiou-se no aparato teórico-metodológico da Análise de Discurso Materialista na interface com a Sociologia do Trabalho. O corpus analítico é constituído de charges do cartunista Toni D’Agostinho, mais precisamente suas charges pertencentes à série intitulada “Os Empreendedores”. O resultado das análises mostrou que, por meio do recurso linguístico-discursivo da ironia, as charges desconstroem o discurso do empreendedorismo que está na base do discurso das empresas-aplicativo, colocando em evidência a insegurança, a vulnerabilidade e a precarização do trabalho na era neoliberal.

Palavras-chave:  Entregadores de app; charges; discurso; precarização do trabalho; uberização


Abstract  This article aimed to analyze cartoons that deal with the theme of the work of app delivery workers, seeking to discursively understand their mode of operation. For this, it relied on the theoretical-methodological apparatus of Materialist Discourse Analysis at the interface with the Sociology of Work. The analytical corpus consists of cartoons by the cartoonist Toni D'Agostinho, more precisely his cartoons belonging to the series entitled “The Entrepreneurs”. The results of the analyzes showed that, through the linguistic-discursive resource of irony, the cartoons deconstruct the discourse of entrepreneurship that is in the basis of the discourse of application companies, highlighting insecurity, vulnerability and precariousness of work in the neoliberal era.

Keywords:  App delivery workers; cartoons; discourse; the precarization of work; uberization


Introdução

Este artigo busca analisar charges que trazem em seu bojo o tema do trabalho de entregadores de aplicativo, também denominado “trabalhadores uberizados”. Para isso, nos valemos do referencial teórico-metodológico da Análise de Discurso de cunho materialista que trabalha no entremeio entre Língua, História e Inconsciente na interface com os estudos da Sociologia do Trabalho (Antunes, 2008, 2019, 2020, 2021). Nosso corpus analítico é constituído de charges de autoria de Toni D’Agostinho, hospedadas em seu blog (www.acarticatura.com.br). Tais charges fazem parte da série intitulada “Os empreendedores” e retratam, de uma forma condensada, o dia a dia dos entregadores de aplicativo com ênfase no discurso do empreendedorismo sobre sua atividade.

A título de organização do artigo, antes de analisar as charges, iremos delinear o lugar teórico-metodológico de onde enunciamos, trazendo para a consideração as noções teóricas de texto, discurso e formação discursiva mobilizadas na análise; explicitar as especificidades do trabalho dos entregadores vinculados a plataformas de entregas via aplicativo na era da Economia da Tecnologia Digital, também conhecida como Gig Economy e, finalmente, discutir sobre o funcionamento discursivo do gênero “charge”, atentando-nos para a suas regularidades. Por fim, e não menos importante, farão também parte de nossa reflexão a consideração sobre a leitura e, em especial, a ironia como recurso linguístico-discursivo.

A abordagem discursiva da linguagem

A Análise de Discurso (AD doravante) de cunho materialista se constitui pela relação que estabelece com três disciplinas do conhecimento científico, a saber: Linguística, Marxismo e Psicanálise. Assenta-se em pelo menos quatro postulados importantes, a saber: i. A linguagem é opaca, isto é, ela tem historicidade (Orlandi, 1999), o que permite ao analista de discurso compreender e explicitar os processos de significação postos em funcionamento no(s) discurso(s); ii. O sujeito é constituído pelo Outro e pela memória: conjunto de dizeres já ditos e esquecidos que determinam e sustentam o dizer; iii. Não há discurso sem sujeito nem sujeito sem ideologia (Pêcheux, 1975); iv. O sentido se dá em relação a algo, ou seja, não há sentido em si ou colado às palavras.

O discurso é prática simbólica que se inscreve na história. Pêcheux (1969) o define como efeito de sentidos entre locutores historicamente situados, lugar no qual o pesquisador pode observar a relação entre língua e ideologia. Essa relação constitui no dizer regiões de sentidos ou formações discursivas (FDs), que correspondem às diferentes formações ideológicas de uma formação histórica. Para Courtine (1982, p. 249), cada FD corresponde a um domínio do saber que “[...] funciona como um princípio de aceitabilidade discursiva para um conjunto de formulações (determina ‘o que pode e deve ser dito’) e também como princípio de exclusão do não dizível”.

Ao enunciar, o sujeito linguageiro se projeta imaginariamente na forma-sujeito da FD com a qual está filiado ideológica e inconscientemente, assumindo seus sentidos enquanto sistema de evidências e de significações percebidas, aceitas e experimentadas (Pêcheux, 1988).

As FDs são heterogêneas e se relacionam de modos diversos entre si (por aliança, conflitos, contradição etc.). Entretanto, no modo de organização imaginária, as FDs comparecem sob o efeito da homogeneidade — do sujeito e dos sentidos. No processo de escuta analítica, esse efeito de homogeneidade é desfeito pelo analista da linguagem, resvalando a heterogeneidade constitutiva do discurso.

Texto e discurso

Para a AD, o texto é compreendido como unidade complexa de significação (Orlandi, 2001), uma vez que ele é produzido em determinadas condições de produção e estabelece relações com outros discursos. Enquanto materialidade simbólica, todo texto é construído a partir de outros textos, de outros discursos, sempre marcado por sua relação com a exterioridade, que é constitutiva.

A partir dessa posição, interessa-nos abordar o texto como um modo de formulação atravessado pelo interdiscurso, isto é, pela memória discursiva (o saber discursivo) que se constitui ao longo da história e produz dizeres para e por sujeitos historicamente constituídos e atravessados pelo inconsciente.

Enquanto espaço heterogêneo, o texto está vinculado a um discurso que é, para Authier-Revuz (1998), um conjunto de regularidades enunciativas, a partir do qual se manifesta a dispersão do sujeito, que é heterogêneo e cindido por excelência.

Do ponto de vista do discurso, texto é tudo que provém de um discurso que o sustenta. Sendo assim, um texto não consiste só e unicamente de palavras nem por um número limite delas. Nesse sentido, uma palavra pode ser concebida como texto desde que seja revestida de textualidade, isto é, quando sua interpretação derivar de um discurso que a sustenta, isto é, que a provê de realidade significativa (Orlandi, 2001). O mesmo se dá com o universo visual (misto ou verbo-visual), como é o caso de nosso corpus analítico: as charges.

As especificidades do texto charge

Compreendemos as charges como um objeto discursivo, que é constituído historicamente, o que significa que elas são concebidas dentro de um espaço-tempo determinado e que modificam a relação dos sujeitos com os objetos a saber.

Quanto a seu aspecto linguageiro, as charges são um tipo de texto que se caracteriza pelo jogo entre os planos verbal e não verbal conjuntamente, o que rompe com a ideia hegemônica de texto como um conjunto de palavras organizadas. Entretanto, há também charges constituídas apenas pelo plano não verbal.

Para Carmelino e Possenti (2019, p. 32), as charges são um tipo de gênero, “seja por sua estrutura, seja por suas formas de circulação e também por sua peculiar relação com o contexto histórico e social”. Enquanto tal, as charges são um gênero opinativo, multimodal e assinado, isto é, elas têm uma autoria institucionalmente reconhecida e versam sobre temas e fatos reconhecidos socialmente. Enquanto manifestação artística, os temas de que tratam as charges são recriados por meio de recursos gráficos, daí seu caráter de síntese (condensação), simplificação e/ou exagero em alguns casos.

A retomada é um dos elementos que constituem o discurso chargístico, ou seja, as retomadas de informações que circulam na sociedade estão na base desse tipo de texto, estabelecendo um jogo entre o interdito e o permitido (Teixeira, 2005).

Para compreender o jogo que as charges estabelecem, é preciso que o leitor faça um exercício (inconsciente) de retomada de enunciados, informações e acontecimentos que circulam na sociedade, em grande parte na mídia. Sem essa compreensão, o texto não faz sentido (o nonsense se estabelece) e não se cumpre o seu objetivo.

No processo de escuta analítica, as retomadas são fundamentais para a compreensão da trama de sentidos que tecem as charges, pois elas permitem recuperar, na memória discursiva, formulações produzidas anteriormente. De acordo com Courtine (2009, p. 103), “toda formulação apresenta em seu ‘domínio associado’ outras formulações que ela repete, refuta, transforma, denega, isto é, em relação às quais ela produz efeitos de memória específicos.”

Além desse aspecto de retomada, a charge pode contar, de modo sintético, uma história. Por meio de seus recursos gráficos, ela pode condensar, em um mesmo espaço (quadro), um acontecimento ou um fato ocorrido na sociedade. Ou seja, as charges, enquanto texto, funcionam pelo recurso da síntese, também conhecido como técnica de condensação, que é um tipo específico de elaboração dos sentidos.

Resta discorrer sobre o caráter humorístico das charges. Enquanto uma prática de linguagem, o campo da comicidade, do qual deriva o chiste, o cômico e o humor, conforme a distinção estabelecida por Freud (1905), se manifesta, em sua maioria, na relação conjunta entre a materialidade linguística e imagética.

De nossa parte, as charges não são um mero objeto de entretenimento e brincadeira; elas implicam relações sociais e políticas sérias, funcionando muitas vezes como forma de posicionamento político e crítica social contundente.

A ironia e (n)o processo de leitura

A leitura é um processo de compreensão ativa, ou seja, ela exige uma tomada de posição do sujeito leitor a respeito do discurso do outro, com fins de “analisar suas palavras, confirmá-las, adotá-las, contrariá-las ou criticá-las em constante apreciação valorativa e réplica na relação dialógica que se desdobra durante o processo de leitura.” (Holanda, 2016, p. 97).

Nessa mesma direção, Orlandi (2012, p. 101) considera que a leitura é produção de sentidos, seja reproduzindo-os ou transformando-os: “quando estamos lendo, estamos participando do processo (socio-histórico) de produção de sentidos.” Assim, longe de ser uma prática de decodificar os signos linguísticos presentes no texto, a leitura é um processo de construção de sentidos que demanda interação e relações de sentido entre sujeitos historicamente constituídos.

Da perspectiva materialista, para compreender como um texto funciona, é preciso levar em consideração as suas condições de produção, que incluem os sujeitos, a ideologia, a memória e a situação. No caso das charges, o gesto do leitor não é somente o de codificar os elementos verbais e/ou verbo visuais, mas também de estabelecer relações de sentido entre o que é dito, o já dito e o que é/foi silenciado. Para Holanda (2016), “[...] deve-se conceber a leitura como processo dialógico e travar uma busca pela compreensão não de enunciações isoladas e monológicas, mas sim de enunciações completas, isto é, de todos os elementos (verbais e extraverbais) constituintes”.

Nesta pesquisa, adotamos a perspectiva de Orlandi (1986), para a qual a ironia funciona como elemento que causa uma ruptura no momento em que se estabelecem os processos de significação da linguagem. Ou seja, faz parte do funcionamento da ironia romper com os processos de significação estabelecidos institucionalmente. Lugar do outro sentido, a ironia abre para o equívoco da língua (o real da língua) e da história.

A ironia coloca à mostra a incompletude e a indeterminação da linguagem em razão da polissemia que está em sua base (Orlandi, 1986), além de estabelecer uma fronteira tênue entre o mesmo (paráfrase) e o diferente (polissemia); ou seja, ela joga sobre o mesmo e o diferente.

Um ponto importante a ser considerado a respeito de seu funcionamento é o fato de que a ironia aponta para a relativização dos significados, isto é, nela e por meio dela as palavras são ressignificadas quando produzidas em uma enunciação específica. Deste modo, “a ironia coloca em causa um corte essencial em que jogam nosso universo linguístico, cultural, ideológico, através da relação crítica com o senso-comum (ou com a ordem legítima)”, de acordo com Orlandi (1986).

O funcionamento discursivo da ironia atesta bem a afirmação de Michel Pêcheux (1983, p. 53) de que todo enunciado é “intrinsecamente suscetível de tornar-se outro”, o que significa dizer que o sentido pode deslocar-se para outras regiões de saber que lhe é distinta, abrindo lugar à interpretação. Para o autor, é a presença do outro nas sociedades e na história que faz emergir, no processo de leitura, pontos de deriva possíveis, compreendidos estes como espaços que permitem ao leitor interpretar.

A era do trabalho digital: os entregadores de aplicativo

É a partir do contexto de crise permanente do capital em curso desde 1970 que o capital busca cada vez mais novas formas de extrair lucro. Uma delas e talvez a mais eficaz é o uso da tecnologia. Como Antunes (apudFachin, 2018) afirma, a reestruturação capitalista “é impensável sem o mundo digital, é impensável sem a era do mundo financeiro que ‘revolucionou’ o tempo e o espaço em todas as atividades produtivas”.

No capitalismo, trabalho e tecnologia constituem uma importante relação histórica de interdependência (Luna; Oliveira, 2022). A tecnologia tem um papel fundamental àqueles que detêm os meios de produção, já que contribui para o aumento do lucro e permite a redução da força de trabalho. Com vistas aos interesses do Capital, assistimos a um intenso esforço para o desenvolvimento das inovações tecnológicas no mundo do trabalho. Dentro desse contexto, surge a Indústria 4.0, também conhecida como Quarta Revolução Industrial, “como um componente da reestruturação produtiva permanente do capital, que tem como centralidade a exploração e precarização dos trabalhadores — por meio do trabalho digital” (Luna; Oliveira, 2022, p. 74).

Nesse cenário, tanto o trabalho digital quanto as TICs convocam um novo modelo estrutural da gestão organizacional dos processos laborais contemporâneo. Esse modelo tem favorecido a ampliação do trabalho morto — por meio das ferramentas e maquinarias robotizadas —, culminando na intensificação da flexibilização e da precarização da força de trabalho (Luna; Oliveira, 2022).

Os entregadores de aplicativos, também conhecidos como “entregadores uberizados”, são trabalhadores autônomos que realizam entregas de produtos solicitados por meio de aplicativos em seus próprios veículos ou alugados, geralmente bicicletas, motocicletas ou carros. Eles são contratados como prestadores de serviços pelos aplicativos de entrega e são remunerados por entrega realizada, muitas vezes sem vínculo empregatício formal.

Para os sociólogos do trabalho, a forma denominada “uberização do trabalho” consiste no mascaramento de relações assalariadas, que comparecem, no fio do discurso, sob o efeito de “trabalho do empreendedor”, do trabalho do prestador de serviços, resultando em precarização do trabalho e eliminação de direitos. A precarização do trabalho é um conceito importante que, para Soares (2019), está relacionado “às distintas formas de rebaixamento salarial, degradação das condições de trabalho, retirada de direitos trabalhistas historicamente conquistados e fragmentação da classe operária atingindo homens e mulheres.” (Soares, 2019, p. 295). Ou seja, essas novas formas de trabalho interditam a regulação protetiva, o que resvala na exploração do trabalho e na precarização de suas condições (Antunes; Figueiras, 2020).

Por sua vez, o termo “sujeito uberizado” é atribuído aos trabalhadores que seguem o “contrato de zero hora”, tal como foi adotado na Inglaterra (“zero-hour contract” em inglês), ou “recibos verdes” em Portugal, ou ainda “voucher” na Itália até 2017, e por aí seguem as versões dessa forma de trabalho nos países que adotam uma agenda neoliberal em sua faceta mais cruel. Todas elas são modalidades de trabalho intermitente, nas quais os trabalhadores são remunerados de acordo com as horas trabalhadas, o que significa dizer que, nessa lógica empresarial contemporânea sustentada pelo Aparelho Digital (Adorno; Nogueira, 2020), o tempo de espera não é considerado trabalho. Esse é um ponto fundamental dessa nova forma de organização do trabalho: enquanto os direitos trabalhistas são aniquilados, produz-se a ilusão de que o sujeito é empresário dele mesmo, o dito “empreendedor”, e, por tabela, “parceiro” da organização, resultando na diluição da figura do trabalhador. Para Bomardelli (2019, p. 85) afirma que “O sujeito trabalhador, agora deslocado para sujeito empresário, é aquele que encarna a memória do empreendedorismo, nas condições econômicas do neoliberalismo, que se submete às regras da empresariabilidade”.

Ao degradar a vida no trabalho, esse mecanismo retórico, característica fundamental da era informacional-digital, se aproxima muito daquilo que se viveu na era da revolução industrial. Para Antunes e Figueiras (2020, p. 6), as plataformas digitais impõem comumente os trabalhadores “o rótulo de autônomo/as, sendo o trabalhador/a remunerado por tarefa ou lapsos temporais mínimos (como horas), sem qualquer garantia de jornada e de remuneração, o que acarreta implicações importantes na dinâmica da gestão e controle da força de trabalho (dada a ausência de compromisso explícito de continuidade.” Assim, embora haja uma forte exaltação das liberdades individuais na retórica desse novo maquinário de trabalho instalado na contemporaneidade, nunca na história o tempo se fragmentou tanto a ponto de se aproximar do trabalho escravo.

Análise das charges Os empreendedores

As charges que compõem nosso corpus analítico fazem parte de uma série intitulada “Os empreendedores”, de autoria de Toni D’Agostinho, hospedadas no blog do artista cunhado “A caricatura” (2023). Faz parte dessa série um total de 25 charges. Para este trabalho, selecionamos cinco charges representativas do modo de funcionamento discursivo.

Vale dizer que todas as charges foram desenhadas com estilo básico, em preto-branco, exceto os instrumentos de trabalho (mochila, capacete, celular e, em alguns casos, a roupa) são coloridos (vermelho, laranja e verde). Os desenhos mostram os personagens trabalhadores de aplicativos, mas a principal regularidade discursiva é o trabalho irônico com o discurso do empreendedorismo sobre a sua atividade.

É possível observar uma regularidade importante em todas as 25 charges que compõem a série Os empreendedores: a ironia é produzida na relação entre a denominação “Os empreendedores”, que aparece na parte superior das charges, em caixa alta, e o conteúdo nelas presente. As charges fazem transbordar as contradições, tensões e conflitos que constituem o trabalho dos entregadores de app, fundamentalmente o discurso do empreendedorismo.

A respeito da Figura 1, apresentada a seguir, a resposta do entregador à pergunta “Você não dorme melhor sabendo que é seu próprio patrão?” é irônica e, como tal, desconstrói (Orlandi, 1986) a ideia de que o empreendedorismo seria algo positivo na vida dessa categoria laboral. Observe:

Figura 1
– “Eu não durmo”

A resposta “Eu não durmo” quebra com a expectativa da pergunta, que supõe autonomia e liberdade associadas comumente, na sociedade capitalista neoliberal, ao trabalho de entregador de aplicativo. No plano do imaginário, tudo se passa como se, ao ser seu “próprio patrão”, o trabalhador tivesse controle de seus horários e flexibilidade na realização de suas atividades laborais. Na contramão dessa lógica, a resposta do entregador denuncia a realidade precária do ofício e a exaustão que ele promove, o que pode ser observado pelo modo de sua construção morfossintática. O enunciado “Eu não durmo” revela a exploração a qual os entregadores são submetidos. Como afirma Marx (2017, p. 116), a produção capitalista é “[…] uma dissipadora de seres humanos, de trabalho vivo, uma dissipadora não só de carne e sangue, mas também de nervos e cérebro.”

A ironia que permeia a charge coloca em evidência a precariedade e os desafios enfrentados pelos trabalhadores desse setor. Mesmo que haja uma aparente (ilusória) autonomia, a falta de sono que está implicada na formulação “Eu não durmo” evidencia as longas horas de trabalho e a constante pressão para cumprir metas e atender às expectativas das empresas-aplicativo.

A charge mostra um furo no ritual dos apps, mostrando suas contradições e abre para a reflexão sobre as condições precarizadas de trabalho dessa categoria. Ela questiona a suposta liberdade e autonomia que essa nova forma de trabalho promete e, ao mesmo tempo, escancara as dificuldades e precariedades vivenciadas pelos trabalhadores. Ao apresentar essa contradição de forma humorística, a charge coloca em questão as condições de trabalho desse setor, tais como garantia de direitos trabalhistas, segurança e melhores condições para os entregadores, tudo o que o Capital e a pauta neoliberal não querem.

O que fica apagado no discurso empresarial, mas transborda no discurso que atravessa a charge em questão é o fato de que o empreendedorismo, enquanto discurso, atua como uma medida das empresas-aplicativo de se isentar da responsabilidade de gerir seus trabalhadores, já que seu sistema de trabalho transfere o gerenciamento do tempo para o próprio entregador.

A Figura 2 faz referência, no nível intertextual, à fotografia de Tiago Queiroz (à direita), que se transformou em símbolo da precarização da profissão (Fotografia extraída do jornal O Estadão, de 07 dez. 2020, intitulada “O descanso dos bikeboys”, de Tiago Queiroz). Essa fotografia teve uma circulação importante nos diferentes meios midiáticos burgueses e alternativos nacionais. Justaposta à Figura 2 é possível vislumbrá-la a seguir.

Figura 2
– O descanso dos bikeboys

A Figura 2 traz o cenário natalino como mote. Nela dois entregadores vestidos de papai Noel são retratados descansando, exaustos, em uma pilastra, sob o fundo musical “É Natal”. Pelo plano não verbal, há sentidos em tensão. De um lado, a charge mostra os trabalhadores reféns da lógica neoliberal em que o lucro do capital supera qualquer necessidade humana, no caso o descanso, o sono. De outro, há uma brecha que expõe a parada para o descanso como signo de resistência à lógica de exaustão que esse trabalho configura.

A charge coloca em cena o fato de que, para a metabolização do capital, é necessária a superexploração do trabalho (Antunes, 2008), daí a utilização intensa das formas nefastas de precarização dessa classe trabalhadora. A Figura 3 materializa bem esse funcionamento de superexploração do tempo dos sujeitos trabalhadores nesse contexto laboral, como pode-se observar a seguir:

Figura 3
– O tempo exaustão

A charge denuncia como o tempo de trabalho nesse contexto das empresas-aplicativo ocupa quase todo o tempo de vida do trabalhador. No eixo da formulação verbo-visual, o trabalhador começa às 10h e vai até às 23h de modo ininterrupto. Note-se que a mochila vai aumentando de tamanho à medida que as horas passam, produzindo como efeito de sentido a invisibilidade do entregador e a superexploração que sofre. Ao mesmo tempo em que denuncia, a charge ironiza a ideologia do empreendedorismo, colocando por terra a fórmula “empresário de si mesmo” bastante difundida na atualidade. O discurso do empreendedorismo que exalta as liberdades individuais no contexto da retórica do maquinário digital desaba, resvalando na liquidez do tempo do trabalhador: “O tempo não pertence aos seres humanos concretos (e formalmente livres), mas ao ciclo integrado do trabalho.” (Benardi Bifo, 2010, apudAntunes, 2019, p. 27).

Ainda com relação à categoria tempo que a charge traz para a cena discursiva, Feffermann, Luz e Ferreira (2023, p. 7) afirmam “o tempo de trabalho ocupa quase todo o tempo da vida, expressando-se na: disponibilidade para um possível pedido; espera do cliente; compra no supermercado; espera da entrega dos restaurantes”, entre outros.

Na sequência, a Figura 4 expõe os riscos, a insegurança e a vulnerabilidade intrínsecos ao trabalho de entregadores que utilizam motocicletas como ferramenta laboral.

Figura 4
– “Tive um acidente”

No diálogo estabelecido entre entregador e empresa: “Socorro... tive um acidente”, “Antes ou depois de entregar a encomenda?”, a charge escancara ironicamente um aspecto fundamental das empresas-aplicativo: eximem-se da responsabilidade inerente aos vínculos empregatícios, dos riscos e custos do trabalho e, ao mesmo tempo, eliminam proteções, direitos e garantias, como afirmam Feffermann, Luz e Ferreira (2023, p. 4).

Na charge evidencia-se a extrema vulnerabilidade quanto à falta de segurança, à suscetibilidade do trabalho e sua precarização, à inexistência de proteção aos trabalhadores, desresponsabilizando e transferindo para o trabalhador a incumbência de garantir sua segurança, tal como está materializada no eixo intradiscursivo: “Antes ou depois de entregar a encomenda?” Metaforicamente, trata-se de uma pergunta feita por um sujeito representante do Capital, vinculado a uma pauta neoliberal que desumaniza o trabalhador.

A não responsabilização das empresas-aplicativo em relação aos direitos trabalhistas torna os entregadores vulneráveis frente às condições climáticas ou qualquer outro imprevisto como acidentes ocorridos no trabalho, como é retratado pela charge em questão.

Esse tipo de trabalho se aproxima muito daquilo que Marx (2004) afirmou nos Manuscritos Econômicos-Filosóficos: o trabalhador se transforma em mercadoria, tornando-se um ser estranho, um meio de sua existência individual. Nessa via, o que deveria ser fonte de humanidade se converte em alienação e estranhamento dos trabalhadores. Esse processo de alienação do trabalho não resulta apenas em perda do objeto, mas fundamentalmente do próprio ato de produção, resultado da atividade produtiva já alienada. Noutros termos, no capitalismo, o trabalhador não se satisfaz no trabalho, mas se degrada; não se reconhece nele. Desumaniza-se (Antunes, 2008).

Como é sabido, o empreendedorismo é um discurso que faz parte da formação ideológica neoliberal. Como parte desse discurso, a ideia de parceria está fortemente presente. No plano do imaginário, tudo funciona como se o entregador fosse um empresário que trabalhasse em parceria com os oligopólios, colocando ambas as figuras (proletários e burgueses) em um mesmo patamar social, dissimulando igualdade nas diferentes posições-sujeito: classe operária, de um lado, e a burguesia, de outro, como observa-se na Figura 5.

Figura 5
– A parceria

A Figura 5 convoca, na memória discursiva, a ideologia do empreendedorismo, tal como é difundida pelos aparelhos ideológicos de informação (Althusser, 1970) e é deslocada (desconstruída) no diálogo estabelecido entre os entregadores: “Até hoje não entendi a nossa parceria com o aplicativo de entregas”, em que o colega, sob tom irônico, enuncia: “A parceria é simples: nós pedalamos pra viver e eles vivem pra lucrar.”

Há um jogo de sentidos produzido entre os verbos pedalar, viver e lucrar. Enquanto os entregadores pedalam — e pedalar aqui significa trabalhar, isto é, vender a sua força de trabalho —, os homens detentores dos meios de produção vivem e lucram ao mesmo tempo, às custas da superexploração da força de trabalho daqueles. O jogo simbólico estabelecido entre vida e lucro (empresários), de um lado, e vida e trabalho/pedalo (trabalhadores), de outro, desnuda os sentidos dissimulados que a palavra parceria convoca no imaginário social.

Importa dizer que a formação discursiva pró-empreendedorismo, determinada pela formação ideológica neoliberal, atua de forma a produzir a ilusão de autonomia do sujeito, corroborando a lógica do efeito de evidência sob a qual o sujeito-empreendedor ergue a si mesmo e sua “empresa” por meio de seu esforço, capacidade e criatividade.

O texto chargístico é revelador do que está implicado nessa ideologia empreendedora neoliberal: quem trabalha não é o mesmo que quem enriquece cada vez mais; trata-se, pois, de posições-sujeito distintas do ponto de vista socio-histórico e ideológico. Assim, embora na lógica do capitalismo de plataforma todos os sujeitos — entregadores e os donos dos oligopólios — passam a ser chamados indistintamente de “colaboradores”, “parceiros” e, conforme Alves (2007, p. 172), “supostamente pessoas livres, juridicamente iguais”, a charge denuncia que há parceiros mais iguais que outros.

Considerações finais

Apoiados no aparato teórico-metodológico da análise de discurso materialista na interface com os estudos da Sociologia do Trabalho, este artigo objetivou analisar o funcionamento discursivo de charges que trazem em seu bojo o tema da uberização do trabalho, em especial dos entregadores de aplicativo.

O resultado das análises mostrou que, por meio do recurso linguístico-discursivo da ironia, as charges desconstroem o discurso do empreendedorismo que está na base do discurso das empresas-aplicativo, colocando em evidência aquilo que ele dissimula: a insegurança, a vulnerabilidade, a destruição dos direitos trabalhistas, enfim, a precarização do trabalho. Como explicitamos nas análises, todas as charges jogam ironicamente com a expressão linguística que dá título a elas, qual seja: Os empreendedores. Assim, a partir da elaboração imagético-textual no jogo estabelecido com o título, as charges explicitam ironicamente as condições perversas dessa nova forma de trabalho pós-moderna que caracteriza a economia gig.

De nossa parte, as charges, ao desconstruir o discurso hegemônico do Capital, isto é, dos oligopólios de aplicativos, materializam, no plano simbólico (visual e verbo visual), a resistência à precarização que essa forma perversa de trabalho promove e, ao mesmo tempo, denunciam o enriquecimento (lucro) dos grandes empresários, evidenciando seus reais interesses econômicos nessa forma de trabalho contemporânea.

  • Consentimento para publicação: As autoras consentem a publicação do presente manuscrito.
  • Agência financiadora: Não se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação: Não se aplica.

Referências

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Editado por

  • Editores Responsáveis
    Michelly Laurita Wiese – Editora-chefe
  • Jaime Hillesheim – Comissão Editorial

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    20 Out 2023
  • Aceito
    05 Fev 2024
  • Revisado
    03 Abr 2024
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