Open-access Karl Marx, um cidadão do mundo

REVIEW: The old Marx: a biography of his last years (1881–1883)

Marcello Musto é um jovem intelectual italiano que vem se destacando pelas recentes pesquisas sobre os últimos períodos de vida do pensador alemão Karl Marx (1818–1883). Musto, que é também professor de Sociologia na York University (Toronto, Canadá), já publicou Another Marx: Early Manuscripts to the International (Bloomsbury, 2018) e Karl Marx: biografia intelectual e política (Einaudi, 2018); organizou obras como Karl Marx’s Grundrisse (Routledge, 2008); Marx for Today (Routledge, 2012); Trabalhadores, uni-vos! Antologia política da I Internacional (Boitempo, 2014); Marx’s Capital after 150 Years (Routledge, 2019); The Marx Revival (Cambridge University Press, 2020); Karl Marx’s Writings on Alienation (Palgrave, 2021); Rethinking Alternatives with Marx (Palgrave, 2021); e Marx and Le Capital (Routledge, 2022). Ou seja, ao longo da década de 2000, o autor vem realizando uma profícua incursão no pensamento marxiano, ora para realizar uma descoberta de um Karl Marx quase desconhecido do grande público, ora para redescobrir pontos e análises conceituais que só agora tiveram a devida correção no itinerário que Marx tinha em mente ao dar início à sua crítica da sociedade civil burguesa.

Nessa seara, Marcello Musto realizou uma tarefa impecável, pois suas publicações vão ajudar em muito na compreensão daquilo que Marx tinha como propósito analítico e como projeto político, a emancipação da classe trabalhadora. O livro de Marcello Musto — O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881–1883) —, em suas 158 páginas, contribui e contribuirá, sobremaneira, nessa direção, principalmente porque, após a dissolução da União Soviética, no ano de 1989, uma onda negacionista tomou conta dos debates políticos mundo afora, resultando num esquecimento quase que natural e numa crise do marxismo, que por pouco não jogou por terra essa proposta de emancipação elaborada por Karl Marx, Friedrich Engels, Rosa Luxemburgo e toda uma geração de lutadores e lutadoras do povo em prol da classe do proletariado, nos últimos 200 anos. Desse ponto de vista, ficou um vácuo de ideias progressistas, e para dificultar, surgiram pregações que anunciavam o fim do Socialismo como decante e a vitória final da formação capitalista, como se a História fosse uma “planilha” que não pudesse ser alterada pelo curso do desenvolvimento social, na sociedade, nas universidades e na militância de esquerda. Portanto, a escrita de Marcello Musto e diversas outras publicações que começam a circular nos meios acadêmicos, desde 2008 retomam a discussão do projeto socialista e repõem o Marxismo no centro dos debates, seja no próprio meio universitário, seja nas redes sociais, ainda que o novo cenário apresente um contexto de evolução conservadora e reacionária.

Em seu livro, Musto traz quatro pontos importantíssimos para entendermos os últimos anos de vida de Karl Marx, entre os anos de 1881 e 1883: 1) O pardo da existência e os novos horizontes de pesquisa; 2) A controvérsia sobre o desenvolvimento do capitalismo na Rússia; 3) Os tormentos do “Velho Nick”; e 4) A última viagem do Mouro. Ao longo dos capítulos, o leitor se deparará com um Karl Marx não só inédito, mas diferente daquilo que sempre se soube por meio dos escritos densos sobre economia política, temas internacionais e das agitações revolucionárias que abalaram o mundo de sua época. Aliás, nessa fase de maturidade, Marx se aventurou em temas como a matemática, a questão ecológica, temas americanos, botânica e os assuntos mais densos da luta que estava acontecendo em países como Índia, Egito e Argélia. Dessa forma, nesse ciclo antes de seu passamento, Marx era o “oposto de um autor eurocêntrico, economicista e absorvido exclusivamente pela luta de classes”, como prefacia Musto (2018, p. 11).

O gabinete da Rua Maitland Park Road

Musto já começa a obra trazendo à tona fatos da intimidade pessoal de Karl Marx de pouco acesso de seus próprios leitores, inclusive dos círculos mais próximos de Marx, como a imersão do filósofo alemão em temas fora do eixo econômico-filosófico, como a preocupação de Marx com os assim chamados “temas americanos”, a redação dos cadernos sobre matemática, os estudos de fisiologia, de geologia, de agronomia, de química e de física, ou seja, uma série de temas multidisciplinares, boa parte deles localizados no escritório de uma casa alugada na Rua Maitland Park Road, situada na região periférica de Londres, onde era sua residência e da família Marx. Lá, moravam o Mouro1, sua esposa Jenny (1814–1881), as filhas Eleanor (1855–1898) e Helene Demuth (1820–1890) e sua governanta de mais de 40 anos de convívio com o casal.

A casa da Rua Maitland Park Road, número 41, era o refúgio para Karl Marx guardar seus mais de 2 mil volumes de livros, sobretudo acerca de Ciência Política, História alemã e Literatura francesa, italiana, alemã e, desde 1869, sobre a Literatura russa que Marx começou a estudar para melhor compreender o processo revolucionário russo. Nessa biblioteca, havia uma infinidade de autores como Shakespeare, Dickens, Molière, Racine, Montaigne, Bacon, Goethe, Voltaire, entre outras produções literárias. Além de ser um reduto principal das visitas dos colaboradores, ativistas e líderes políticos dos mais diferentes locais do planeta, serviu, ainda, como centro de troca de correspondências internacionais entre os militantes socialistas, tanto que a caixa-postal da residência vivia abarrotada de cartas, de acordo com Musto (2018, p. 21). Prova disso é que o próprio Friedrich Engels (1820–1895) se mudou para a vizinhança próxima à casa de Marx, na Rua Regent’ Park Road, número 122, a poucos metros de distância.

Além do mais, o local era estratégico para a formação política da militância socialista, porque lá estavam guardadas publicações, documentos e resoluções mais importantes da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), uma cópia de A Sagrada Família, escrita em coautoria com Engels, em 1845, da Miséria da Filosofia, também pelos dois amigos e obras cruciais para o que se viria a ser conhecido depois como marxismo, como os livros Manifesto do Partido Comunista (1848), O 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852), e o próprio O Capital, de 1867, sua obra-prima. No sótão da casa havia, ainda, sinopses e manuscritos inacabados, destinados à “crítica roedora dos ratos”2, cuja volumosidade situava-se perto de um divã de couro, onde Marx costumava descansar após horas de estudos em cima de materiais muitas vezes em língua original.

Conforme Marcello Musto, no ano de 1881, Karl deu início aos estudos sobre Antropologia, indo estudar o livro A sociedade Antiga (1877), do antropólogo norte-americano Lewis Morgan (1818–1881), e resultando numa série de enxertos conhecidos como Cadernos Etnológicos. Essas anotações dispersas tratavam da colônia de Java na Indonésia, escrita por James Money (1818–1890), sobre a aldeia ariana na Índia, de autoria de Jonh Phear (1825–1905) e sobre história antiga das instituições, do historiador Enry Maine (1822–1888). Os Cadernos Etnológicos, de pouco mais de 100 folhas, não foram escritos por Marx, mas, posteriormente editados e lançados por Lawrence Krader (1919–1998) com o título de Cadernos Etnológicos de Karl Marx (Musto, 2018, p. 31). Nos Cadernos Etnológicos, é possível encontrar outras anotações sobre a pré-história, o desenvolvimento dos vínculos familiares, as condições das mulheres, a origem das relações de propriedade, a formação da natureza e questões como as conotações racistas de alguns antropólogos da época e os efeitos do Colonialismo. Sobre isso Marx pensava:

a família moderna em germe não somente a servitus (a escravidão), mas também a servidão da gleba; desde o princípio, ela pôs suas relações a serviço da agricultura. Possui em miniatura todos os antagonismos que, mais tarde, se desenvolverão em massa na sociedade e em seu Estado […] na origem, era constituída diretamente de escravos (Morgan apudMusto, 2018, p. 34).

Com isso, a palavra “família” desde seu germe, tem a ver com famulus (escravo, criado), e sem nenhuma relação com a criação de filhos pelos casais casados, mas, sim, com o conjunto de escravizados que são forçados a trabalhar para o patrão, regidos pelo poder do pater famílias. Isso é, foi a escravidão que esteve na orientação do princípio organizador da família, com seus antagonismos. Nesse aspecto, conforme Marcelo Musto, Marx dedicou especial atenção às condições das mulheres. Segundo a revisitação historiográfica que está sendo feita desde 2008 da posição marxiana sobre o tema, Marx observou que as sociedades antigas tinham melhor tratamento com as mulheres. A partir de dados elencados por Lewis Morgan, a mudança da descendência da linhagem materna para a paterna foi prejudicial para o sexo feminino, entre os gregos, o que diminuiu o direito das esposas e mulheres, cujo modelo foi avaliado por Morgan como negativo. Na cultura grega da época a mulher passou a ser inferior, a “deusa da sabedoria saiu da cabeça de Zeus”3, como lembrou Marx.

Noutra ponta do debate histórico, Musto reforça em seu “O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881–1883)” a rejeição da ideia de que as mudanças sociais ocorreriam unicamente devido às transformações econômicas, uma vez que Karl Marx defendia, na verdade, a especificidade de cada condição histórica, as múltiplas possibilidades e a centralidade da ação humana para realizar as transformações, com clara condenação do avanço espontâneo do processo histórico. Principalmente porque, como acreditavam seus seguidores menos atentos, que a última fase burguesa se seguiria para o fim do capitalismo, automaticamente a ser superado pelo Socialismo, o que resultou num surto fatalista e de passividade que blocou o movimento operário e que negligenciava as próprias reflexões de Marx contrárias a essa interpretação. De acordo com Musto (2018, p. 37), “jamais desejou um retorno ao passado, mas — como acrescentou na transcrição do livro de Morgan — vislumbrou um tipo de sociedade superior”. Isso porque, tanto como condenação do determinismo econômico como ponto de vista de que as contradições da civilização não eram estáticas e nem passivas, mas eram projetos realizados pelo esforço humano diante da necessidade de preservar a vida, e não pela evolução mecânica da sociedade. Ou falando de outra forma, pela ação consciente da classe trabalhadora (Musto, 2018, p. 37).

A questão da comuna agrária russa

Outro ponto de especial atenção aos leitores e leitoras do livro de Marcello Musto é a posição marxiana sobre a Rússia, que até então Marx considerava como o grande obstáculo à emancipação da classe trabalhadora, melhor dizendo: através de volumas cartas e em artigos de grande repercussão internacional publicados no jornal New-York Tribune e na História Diplomática Secreta do Século XVIII (1856–1857), Marx considerava que o atraso das condições sociais, a lentidão do desenvolvimento econômico do país, o regime czarista de caráter despótico e a política externa conservadora levaram a uma postura contrarrevolucionária na Rússia. Porém, em sua fase de maturidade, e já tendo consolidada sua irretocável carreira como líder revolucionário e como agitador das massas proletárias, Karl Marx reviu boa parte dessas opiniões, na medida em que algumas transformações ocorridas nas condições sociais russas proporcionaram uma reviravolta e uma mudança de rota, que agora poderiam viabilizar uma revolução mais intensa que a ocorrida na Inglaterra, por exemplo, uma vez que apesar de ser o berço do capitalismo e ter um maior contingente de operários fabris, o proletariado inglês havia perdido força por causa das algumas melhorias de suas situações de vida, como a redução da jornada de trabalho e o consequente reformismo dos sindicatos (Musto, 2018, p. 59).

Karl Marx acompanhava a situação russa desde 1850, seja saudando as revoltas camponesas que resultaram a abolição da servidão, em 1861, seja através de estudos sobre estatísticas dos problemas locais, ou por meio do início do aprendizado da língua russa, o que o ajudou a melhor compreender esse cenário interno. A partir de 1881, as formas arcaicas de organização comunitária da Rússia levaram Marx a aprofundar os estudos e a troca de correspondências com militantes russos, como aquelas enviadas a militante do “Repartição Negra”, Vera Zasulitch (1849–1919), que numa destinada a Marx, em 16 de fevereiro de 1881, resumiu quais eram os pontos centrais das discussões:

A comuna rural, liberada das exigências desmesuradas do fisco, dos pagamentos à nobreza e da administração arbitrária, é capaz de desenvolver-se pela via socialista, que dizer, de organizar pouco a pouco sua produção e sua distribuição de produtos em bases coletivas. Nesse caso, os socialistas revolucionários devem envidar todos os esforços em prol da liberação da comuna e de seu desenvolvimento (Zasulitch apud 2018, p. 61).

Nessa carta enviada a Karl Marx, Vera Zasulitch fazia uma consulta ao pensador alemão de como circulavam nos meios revolucionários e entre os ativistas a opinião de que a comuna rural era um atraso condenado à morte, e boa parte deles atribuía ao próprio Marx a origem dessa opinião. Contrariamente, Zasulitch pensava que os revolucionários deviam dar todo apoio a essa comuna agrária de especificidade russa. O apelo da militante russa era para que Marx pudesse esclarecer tal dúvida, já que ele estava familiarizado com as relações comunitárias da época pré-capitalista. Em sua resposta, Marx relembrara que sua reflexão sobre o percurso seguido pela ordem econômica capitalista para sair do ventre da ordem econômica feudal era apenas uma referência à situação aplicada somente ao Velho Continente, diga-se Europa Ocidental, e que não servia para descrever outras situações em outras regiões do planeta, tendo em vista que seria necessário estudar separadamente cada um dos fenômenos e só depois confrontá-los. Resumindo: não havia a possibilidade de usar uma teoria histórico-filosófica geral para ser aplicada em casos diversos e diferentes (Musto, 2018, p. 74–78).

Ainda na carta de resposta a Vera Zasulitch, Marx deixou clara sua posição sobre a possibilidade de a obschina4 ser o germe de uma futura sociedade socialista, na perspectiva de que a Rússia não podia percorrer servilmente todos os caminhos trilhados pela Inglaterra, portanto, não precisaria passar pelo capitalismo, isto é , por meio da lógica capitalista do trabalho coletivo e cooperativo realizado em larga escala e incorporando as conquistas positivas do sistema capitalista, mas substituindo-as gradualmente a agricultura parcelária pela agricultura combinada com o auxílio das máquinas e dos avanços tecnológicos, preservando, no entanto, seu caráter comunitário através de uma revolução russa para garantir o livre crescimento da comuna rural, ou como Marx enfatizou “trocar de pele sem precisar antes cometer suicídio” (Marx, 2013, p. 111).

1881, Karl Marx se torna “cidadão do mundo”

Na visão de Musto, ainda no ano de 1881, Karl Marx, apesar da profícua produção literária e sociológica, anda não era um teórico de referência internacional indubitável. Isso só veio a acontecer no século seguinte, no início do XX após as repercussões das resoluções adotadas pela Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) e pelo impacto provocado pela eclosão da Comuna de Paris, em 1871. A notoriedade como mentor político veio em seguida à publicação de O Capital, reimpresso na Alemanha em 1873, o que em seu conjunto foram fatores que contribuíram para a expansão do pensamento marxiano e da consolidação da figura de Karl Marx como o grande expoente do movimento operário internacional, como aconteceu na construção de programas partidários e na redação de teses de cunho político, ou como Musto (2018, p. 86) registrou: “[…] em seus últimos anos Marx foi testemunha de um interesse cada vez maior, em muitos países europeus, por suas teorias — especialmente as contidas em seu magnum opus5. A título de exemplificação temos a influência de Karl Marx na redação do programa do Partido Social-Democrata dos Trabalhadores da Alemanha (SDAP), em 1875, na Federação do Partido dos Trabalhadores Socialistas da França (FPTSF), entre outras produções de ordem prática e nas quais sempre eram destacadas que a revolução não era uma derrubada simples do sistema, mas um processo longo e complexo (Musto, 2018, p. 94).

Se na esfera internacional Marx viu seus textos serem valorizados enquanto fonte de análises para deliberações filosóficas e políticas, no plano pessoal as coisas não andavam tão bem assim. Isto porque nas primeiras semanas de junho de 1881, sua esposa, Jenny von Westphalen, teve as condições de saúde pioradas por causa de um tratamento de câncer no fígado, obrigando Marx a se tornar seu mais íntimo enfermeiro e o casal indo morar em Eastbourne, próxima ao canal da Mancha. Nessa cidade francesa, a família Marx mudou-se com os netos, sua filha Jenny Longue e seus dois pets, na esperança de que os ares do litoral pudessem ajudar na recuperação da esposa Jenny, cujas despesas de hospedagem e do tratamento de saúde foram pagas por Friedrich Engels. Entre os familiares, Karl Marx era chamado de velho Nick (que na gíria inglesa significava “velho diabo”); e em muitas de suas cartas-pessoais, Marx as assinavam como Old Nick, divertindo-se com a apologia de tal figura, apesar das dívidas e do momento doloroso e de sofrimento de Jenny Westphalen. A essa fase, o Mouro a declarou como “aquela em que na família, neste momento, só infortúnios” (Marx apudMusto, 2018, p. 101).

E os infortúnios desabafados por Marx não cessariam tão cedo. Em 16 de agosto, sua filha Eleanor cai em depressão devido a um suposto noivado malsucedido, em outubro foi o próprio Marx que teve a saúde abalada, agora por uma forte bronquite, com risco de resultar em pneumonia, o que levou Marx a permanecer acamado por 12 dias, e no dia 2 de dezembro de 1881, aos 68 anos, falece sua esposa Jenny von Westphalen. Essa morte, nas palavras do Old Nick, lhe privara de seu “maior tesouro” (Marx apudMusto, 2018, p. 101). A cronologia de dissabores levou Marx para um estado de convalescença e de um drama de acontecimentos familiares entretecedor, entre 1881 e 1882. Contudo, nesse curto período, Marx consegue tempo para se dedicar aos estudos sobre o desenvolvimento do Estado Moderno (século XV), especialmente consultando obras que resultaram nas Notas Sobre a História Indiana, de 1879, inspiradas no livro História Analítica da Índia, de Robert Sewell (1845–1925), História dos Povos da Itália, do historiador Carlo Botta (1766–1837) e História do Povo Alemão, escrito por Friedrich Schlosser (1776–1861), totalizando 143 páginas sobre história. Todavia, a instabilidade de seu quadro de saúde interrompeu suas anotações sobre demais temas históricos da época, sob o risco de uma nova recaída na debilidade de saúde. Retrato disso é que em 1882 Marx foi obrigado a usar um respirador artificial, pelo qual os jornais alemães já tinham anunciado sua morte (Musto, 2018, p. 105–107).

Os dias africanos de Karl Marx

Os 72 dias em que Karl Marx permaneceu em estadia no continente africano representam as últimas viagens do Mouro na procura para a cura de suas chagas. Obviamente, para o porte de um homem que estava em pleno exercício das funções cognitivas e teóricas, a conciliação entre o rigoroso tratamento médico a expedições de análises políticas não deixou de ser realizada, a partir da chegado do líder alemão à África, no dia 20 de fevereiro de 1882, após longas 34 horas de viagens até Argel, capital da Argélia. Marx foi ao continente africano à procura de soluções mais concretas para suas doenças, especialmente por tratamento mais eficaz contra a bronquite, a tosse ininterrupta e uma série de catarros que não lhe davam sossego, sendo prontamente atendido pelo juiz Albet Fermé, destacado militante socialista e único que conhecia a já famosa trajetória do paciente. Infelizmente, por infortúnio do destino, a época escolhida para as sessões de terapia foi de intensos períodos chuvosos e de frio, com o pior inverno que a cidade já tinha vivido. O médico de Karl Marx, Charles Stéphann (1840–1906) receitou, então, cuidados à base de xarope e de psicotrópicos, visando diminuir as dores de grande intensidade, e os mais intensos deles, reduzir drasticamente os esforços físicos, que significava para Marx abandonar qualquer trabalho de ordem intelectual, inclusive se preocupar com os problemas de ordem mundial. Na enfermaria, foi submetido à aplicação de medicamentos para estancar as dores, a proliferação de bolhas na região do tórax e para conter a insônia, além da tentativa de paralisar as feridas nas costas, na qual Marx se queixou reclamando: “para uma mente sã num corpo são, ainda havia muito para fazer6”, numa alusão aos poucos resultados do longo e doloroso tratamento (Musto, 2018, p. 111–113).

A última viagem do Mouro e única na região africana o impediu de fazer as correções da terceira edição alemão d’O Capital, de analisar a conjuntura política da época e de tecer comentários críticos sobre a propriedade comunal árabe, bem como de falar sobre a realidade argelina, pois fora realizada praticamente para se dedicar ao tratamento médico e da cura para suas dores. Haja vista que em 22 de fevereiro de 1882 o jornal L’Akbbar publicou uma matéria relatando as injustiças do sistema dominação agrária pelos colonizadores franceses, e uma vez que qualquer cidadão francês podia adquirir uma concessão de mais de 100 hectares de terras argelinas e depois podia revendê-las ao preço de 40 mil francos a qualquer pessoa argelina, isso sem precisar deixar a França. Com todos os esforços para se concentrar nas orientações médicas de total reclusão, Marx não deixou de observar da sacada do hotel em que estava sendo realizada a medicação que próximo ao local havia grupos de trabalhadores construindo casas, apesar de sadios, depois de três dias de trabalho, já apresentavam quadro de febre, e que parte do salário era para pagar despesas de medicamentos fornecidos pelos empreiteiros.

Marx resumiu essas observações sobre a realidade árabe-argelina em 16 cartas redigidas às margens do Mar Mediterrâneo, com destaque para a visão colonial crítica marxiana e sobre as relações sociais na cultura muçulmana. Um aspecto, nesse conjunto de cartas, que se destaca é a postura natural, elegante e digna do povo argelino, de vestimenta quase opulenta em contraste com a realidade europeia, principalmente a francesa, a qual registrou:

[…] a riqueza e pobreza não tornam os filhos de Maomé uns diferentes dos outros. A absoluta igualdade em suas relações sociais não é influenciada por elas. Pelo contrário, são notadas apenas pelos desonestos. Não que se refere ao ódio pelos cristãos e à esperança numa vitória definitiva sobre os infiéis, seus políticos consideram, com razão, que o sentimento e a prática de absoluta igualdade (não de riqueza e renda, mas da pessoa) são garantias para manter vivo o ódio e não abandonar a esperança. Ambos, no entanto, sem um movimento revolucionário, caminham para a ruína (Marx apudMusto, 2018, p. 117).

Por meio desse trecho da carta enviada à sua filha Laura Lafargue, em 13 de abril de 1882, Marx registra seus encantos e como ficou maravilhado com as relações sociais argelinas e da noção de igualdade crônica, porém ressaltou a necessidade dessa noção de igualdade ser permeada por um movimento de inspiração revolucionária que desse cabo a toda forma de opressão, destacadamente a colonial. Marx não deixou de perceber que na cultura muçulmana não havia a subordinação, a autoridade pregada pela cultura ocidental. Principalmente, aquela oriunda das torturas contra os árabes e da brutalidade policial empregada pela autoridade colonial francesa. Finalmente, feliz com o que viu, ficou mais lisonjeado, ainda, com os resultados do tratamento que finalmente deram certo, e Karl Marx pode finalmente retornar à França, agora surpreendendo a todos, sem as longas madeixas e sem a barbas longa que o imortalizara.

Assim, “O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881–1883)” é um livro que merece e precisa ser lido, pois possibilita redescobrir Karl Marx como homem, cidadão preocupado com o mundo e como uma pessoa comum que elabora e pensa os problemas sociais. Entretanto, merece uma discussão o deslize cometido pela edição brasileira da Boitempo, pois no original a obra foi publicada em italiano com o título “L’ ultimo Marx (1881–1883). Saggio di biografia intellectuale”. “Último Marx” atenderia melhor as exigências da luta contra o etarismo, a categoria velho, além de pejorativa para vários usos, carrega toda uma conotação de coisa que está em idade avançada, antiquada e em desuso, portanto, nada mais distante daquilo que o pensamento de Karl Marx se tornou, ao longo dos anos, e porque está confrontante à ideia de uma sociedade nova, que é a grande contribuição do arcabouço marxiano para a humanidade, principalmente quando se leva em consideração que o etarismo embutido na categoria “velho” traz uma noção de coisa em declínio nas sociedades classistas e, dessa forma, que pode ser descartada após cumprir determinados papéis no seio da exploração do trabalho social. Se a tradução fosse para ‘’Último Marx”, traria embutida toda uma carga de atualizações e redescobertas que estão sendo feitas pelas novas gerações, assim, o universo categorial marxiano, agora, ganharia um novo ciclo de leituras e perquisições que colocariam possibilidade socialista na ordem do dia. E não possui nada de velho, ao contrário.

Agradecimentos

Não se aplica.

  • 1
    Alusão à pele escura de Karl Marx que virou um apelido íntimo.
  • 2
    Marx assim se expressou como porque estavam esquecidos em uma gaveta ou porque estavam proibidos de circular.
  • 3
    A deusa grega Atena era uma divindade no panteão grego, considerada a deusa da sabedoria, das habilidades e dos ofícios, da guerra. Ela ficou marcada por ter nascido ao sair da cabeça de seu pai, Zeus.
  • 4
    Conforme o Dicionário do Pensamento Marxista, obschina era um tipo de comuna russa, uma antiga comunidade de camponeses russos na qual a terra era de propriedade inalienável da comuna, e periodicamente redistribuída em lotes às famílias pertencentes a ela, em geral de acordo com o número de adultos do sexo masculino existentes em cada família. (Cf. Bottomore, Tom,1988).
  • 5
    Musto refere-se ao “O Capital”.
  • 6
    Conforme confessou em carta enviada a Engels em 28 de março de 1882.
  • MUSTO, M. O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881–1883). São Paulo: Boitempo, 2018. 158 p.
  • MUSTO, M. The old Marx: a biography of his last years (1881–1883). São Paulo: Boitempo, 2018. 158 p.
  • Agência financiadora Não se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação Não se aplica.
  • Consentimento para publicação O autor consente a publicação do presente manuscrito.

REFERÊNCIAS

  • MARX, KARL. O Capital: crítica da economia política: Livro III: o processo global da produção capitalista. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017. 980 p.
  • MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. As lutas de classes na França. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2012. (Coleção Marx-Engels).
  • MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Lutas de Classes na Rússia São Paulo: Boitempo, 2013.
  • MUSTO, Marcello. O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881–1883). Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2018. 158 p.

Editado por

  • Editores Responsáveis
    Michelly Laurita Wiese – Editora-chefe
    Heloísa Teles – Comissão Editorial

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    12 Jan 2024
  • Aceito
    17 Abr 2024
  • Revisado
    26 Jun 2024
location_on
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Curso de Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina Universidade Federal de Santa Catarina , Centro Socioeconômico , Curso de Graduação em Serviço Social , Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Campus Universitário Reitor João David Ferreira Lima, 88040-900, Tel. +55 48 3721 6524 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: revistakatalysis@gmail.com
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro