RESENHA BOOK REVIEW
Andréa Zhouri
Professora do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
"A Re-volta da Ecologia Política"
Conflitos Ambientais no Brasil
Henri Acselrad (org.)
Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2004, pp.294.
Os movimentos sociais surgidos no mundo a partir de 1960 foram acompanhados por debates intelectuais que buscavam novas bases para as Ciências Sociais. Notadamente, tentou-se superar dicotomias como objetividade-subjetividade, indivíduo-sociedade, e natureza-cultura. Os esforços para a superação da dicotomia natureza-cultura ligavam-se ao surgimento de uma crítica ambiental da sociedade industrial emanada de um movimento simultane-amente político e acadêmico denominado "ecologia política". Crítica em relação aos custos crescentes da reprodução do sistema produtivo, a ecologia política ia além da análise das contradições do modo de produção capitalista para denunciar uma alienação mais radical que a simples expropriação da mais-valia, qual seja, a alienação entre a sociedade industrial e a natureza.
O surgimento dessa crítica suscitou, contudo, reações por parte dos defensores da industrialização enquanto evolução inevitável. Os ecologistas passaram a ser desqualificados como românticos e ingênuos opositores do progresso. Entretanto, os problemas relativos à poluição e à escassez de recursos para a produção industrial não passaram desapercebidos pelos paladinos do desenvolvimentismo, sendo paula-tinamente incorporados como "variáveis ambientais" legítimas no debate sobre a sociedade industrial. Nesse sentido, uma certa despolitização do debate ecológico foi ocorrendo na medida mesma em que as forças hegemônicas da sociedade reconheciam e institucionalizavam aqueles temas ambientais que não colocavam em cheque o modelo de sociedade vigente.
Foi assim que a década de 1990 consagrou o termo "desenvolvimento sustentável" como um campo de reconhe-cimento da chamada "crise ambiental" em escala planetária ' crise entendida enquanto realidade objetivamente dada - e proposição para conciliação e consenso entre os conflitos de fundo colocados pela crítica ambiental à sociedade industrial. Neste processo, a "natureza" é entendida meramente como uma variável a ser manejada, administrada, gerida, na velha tradição racionalista burocrática e iluminista, de tal forma a não obstaculizar a concepção hegemônica de "desenvolvimento". A natureza como realidade externa à sociedade e às relações sociais - é então assimilada e equacionada apenas como recurso para a produção. No sentido de legitimar esse discurso oficial, muitas ONGs e movimentos ambientalistas - antes portadores de um contra-discurso ao desenvolvimentismo - foram convidados à participação e à parceria. O ambientalismo de resultados incorporou a negociação como palavra de ordem.
Nesta perspectiva, os conflitos inerentes aos desiguais processos de construção e atribuição de significados, apropriação e uso dos territórios são concebidos apenas como tensões entre os diferentes "setores" da sociedade, portadores de distintos "interesses" que são, portanto, passíveis de "negociação" a partir de técnicas apropriadas e eficientes. Surgem os "peritos técnicos" treinados na arte de "resolução de conflitos". Essa é a abordagem preponderante no campo ambiental brasileiro, incluindo aí tanto as políticas públicas quanto as análises sociológicas. Questões relativas às desigualdades no acesso aos recursos territoriais e a desproporcional distribuição dos riscos e das cargas de poluição industrial na nossa sociedade - perspectiva efetivamente política e sociológica que tende a considerar as redes de poder constituídas historicamente - são desconsideradas por essa abordagem corrente.
É o que nos ajuda a compreender, com lucidez intelectual, Henri Acselrad em seu capítulo introdutório de Conflitos Ambientais no Brasil, onde se re-elabora, de forma atualizada e mais sofisticada, a crítica da ecologia política subsumida a partir de 1990 pela crença otimista no mercado e a conseqüente fé na tecnologia como capazes de resolver os "problemas ambientais" sem que mudanças nas instituições da sociedade fossem necessárias. O livro enfoca os processos políticos e simbólicos que contribuem para a construção de determinados sentidos hegemônicos de meio ambiente, remetendo aos conflitos distributivos em curso neste início de século XXI.
Ao analisar o meio ambiente como um terreno contestado material e simbolicamente, Acselrad elabora a noção de conflitos ambientais como "aqueles envolvendo grupos sociais com modos diferenciados de apropriação, uso e significação do território, tendo origem quando pelo menos um dos grupos tem a continuidade das formas sociais de apropriação do meio que desenvolvem ameaçada por impactos indesejáveis transmitidos pelo solo, água, ar ou sistemas vivos decorrentes do exercício das práticas de outros grupos". Com essa contribuição conceitual, o autor remete os conflitos ambientais a quatro dimensões constitutivas - apropriação simbólica e apropriação material, durabilidade (da base material necessária à continuidade de determinadas formas sociais de existência) e interatividade (ação cruzada de uma prática espacial sobre outra) que seriam essenciais para apreender a dinâmica conflitiva própria aos diferentes modelos de desenvolvimento.
Nos capítulos subseqüentes, diversos autores analisam os conflitos ambientais em diferentes regiões do país, tanto nos espaços rural e "florestal", como nos espaços urbanos. Assim é que Alfredo Wagner de Almeida discute a ameaça aos territórios socioambientais das "populações tradicionais" da Amazônia através da apropriação do seu patrimônio genético pela industria farmacêutica e da biotecnologia no âmbito dos tratados da OMC. Ainda na região amazônica, Lourdes Gonçalves Furtado analisa os conflitos envolvendo a industria pesqueira e as comunidades ribeirinhas, Maria Nilda Bizzo as disputas envolvendo o zoneamento ecológico-econômico em Rondônia enquanto Henri Acselrad e Maria das Graças da Silva os conflitos resultantes da construção da barragem de Tucuruí. Em Santa Catarina, no sul do País, João Fert Neto e Julia Guivant apresentam um estudo de caso dos embates em torno da piscicultura, e na região sudeste, destacam-se os capítulos de José Leite Lopes, Sônia Oliveira, Regina Camargo, Heloisa de Moura Costa e Tânia Moreira Braga sobre os problemas nas áreas urbanas e industriais, como na região metropolitana de Belo Horizonte e na cidade de Volta Redonda, Rio de Janeiro. O livro conclui com as experiências dos pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz, Carlos Machado de Freitas, Christovam Barcellos e Marcelo Firpo de Souza Porto acerca das imbricações entre saúde coletiva e injustiças ambientais através dos casos de poluição pela indústria química.
Conflitos Ambientais no Brasil contribui para o renovado esforço de superação da dicotomia natureza-sociedade a partir das ciências sociais críticas. Re-introduz a análise política na ecologia, na medida em que não se preocupa, a partir de uma visão administrativa reducionista, com "a escassez futura dos meios que se anuncia, mas [com] a natureza dos fins que norteiam a própria vida social" (p.7). A pergunta que se faz é: para que fins se destinam os recursos naturais? A que projeto de sociedade eles servem? Essas são perguntas urgentes tendo em vista as desigualdades no acesso aos recursos dos territórios e a má distribuição dos riscos ambientais impostos por projetos homogenizadores do espaço, os quais são guiados por um modelo de desenvolvimento exportador de recursos naturais. Esse modelo, mesmo incorporando algumas medidas compensatórias e de mitigação ambiental, dá continuidade ao processo historicamente gerador de injustiça ambiental na medida em que se constrói em detrimento dos pobres e das minorias étnicas, contribuindo para a perpetuação do sub-desenvolvimento do país. Conflitos Ambientais no Brasil nos ajuda a compreender esses processos, ao mesmo tempo em que denuncia a necessidade de um pensamento sociológico crítico e mudanças na práxis sócio-política com vistas à construção de uma sociedade mais justa e democrática.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
21 Set 2005 -
Data do Fascículo
Dez 2004