Ulisses Pernambucano, educador
Anita Paes Barretto
Psicóloga e educadora. Foi assistente de Ulisses Pernambucano, professora da UFPE, Secretária da Educação do Estado de Pernambuco (1962- 1964), fundadora e diretora da Divisão de Educação do Movimento de Cultura Poular
"... Ulisses não foi um esteta da linguagem, sendo, isto sim, um verdadeiro super-esteta da criatividade, da produção científica, dapesquisa social e da dinamização dos valores."
João Marques de Sá(2)
Ulisses Pernambucano faleceu aos 51 anos. De 1918, quando escreveu o primeiro trabalho publicado no Brasil sobre deficiência mental(3), a 1943, quando pronunciou sua última conferência(4), promoveu numerosas iniciativas, recrutou e incentivou o desenvolvimento de jovens valores, realizou e levou seus colaboradores a realizarem pesquisas relacionadas à Psicologia, à Antropologia, à Psiquiatria, à Educação.
Esta amplitude de interesses e conhecimentos complementares o induziu a executar uma prática psiquiátrica inovadora, uma psiquiatria social. Como escreveu José Lucena(5), ao empreender, em 1931, a reforma da Assistência a Psicopatas de Pernambuco, Ulisses Pernambucano "conseguiu pôr em funcionamento um modelo assistencial que rompia frontalmente coma tradição custodiada e de primado do hospital". Ao contrário, "conferia a prioridade à preocupação preventiva e comunitária e realizava a integração multidisciplinar indispensável."
A um psiquiatra social à altura do professor Ulisses Pernambucano, não poderia faltar o interesse pela educação, vigorosamente demonstrado tanto no campo da educação geral, quanto no campo da educação especial, de menores deficientes ou que fugiam ao andamento normal das escolas comuns.
Do ponto de vista da educação geral, foi ele diretor e também professor de dois grandes centros de educação: a Escola Normal de Pernambuco, especialmente destinada à preparação de professoras primárias, e o Ginásio Pernambucano, destinado aos secundaristas. Em ambos procedeu a reformas de alcance administrativo e pedagógico. O anacronismo encontrado nos dois estabelecimentos foi demonstrado em trabalhos de Wal-dermar Valente(6), Estevão Pinto(7) e José Lins do Rêgo(8) e mais recentemente, analisado por Paulo Rosas(9).
Ulisses Pernambucano foi nomeado Diretor da Escola Normal em 1923, cargo que ocupou até 1927. Em 1928, passou a dirigir o Ginásio Pernambucano. Não discutirei aqui a reforma do Ginásio Pernambucano. E, no que se refere à reforma da Escola Normal, limito-me a fazer considerações sobre as mudanças às quais assisti, uma vez que tive a felicidade de encontrá-lo pela primeira vez como aluna, no penúltimo ano da Escola Normal, prestes a iniciar minha vida profissional.
Do ponto de vista administrativo, a desordem já começava pelo número de alunas, elevado a 146 a iniciarem a 1ª série do Curso Normal, reunidas todas na mesma sala de aula, sem a necessária e indispensável acomodação. Situação que acarretava indisciplina, movimentação forçosamente exagerada das alunas, o que o levou várias vezes a, com certo rigor, impor sua autoridade, para diminuir a perturbação. Excusado dizer que isto foi logo resolvido: as alunas foram redistribuídas por várias salas e diferentes horários.
Uma outra medida, aparentemente óbvia mas, no momento representando inovação relevante, consistiu em colocar as alunas nas salas de aula, levando em conta a acuidade visual e auditiva de cada uma, previamente examinada. Anteriormente, a distribuição das alunas por carteiras obedecia à ordem alfabética ou de matrícula.
Ao lado das providências acima, o Professor Ulisses Pernambucano logo promoveu outras práticas, de caráter sócio-cultural.
Em primeiro lugar, criou um serviço de visitadoras escolares, treinadas para estabelecerem uma ligação entre a escola e a família. Além do Curso Normal, destinado à formação das professoras primárias, havia um centro denominado ''Curso de Aplicação", o qual reunia escolas isoladas de nível primário, onde as professorandas deveriam iniciar-se na prática pedagógica. As visitadoras escolares deveriam conhecer as necessidades das crianças matriculadas naquelas escolas, sua situação familiar, a ponto de poderem ajudar aresolver ou diminuir o problema da evasão escolar, então bastante agudo.
Daí decorreram duas medidas importantes: a criação da merenda escolar e de uma Caixa Escolar, a primeira a existir naquele tempo. A Caixa era dirigida pelas próprias professorandas, que começavam também a assumir novas responsabilidades, não didátícas, mas pedagógicas, na medida em que auxiliavam as crianças a usarem a Caixa para atenderem a suas necessidades de material escolar e de equipamentos adequados ao seu melhor aproveitamento.
Verificou-se, ainda, ser preciso instalar-se um serviço de assistência dentária, o qual logo passou a funcionar com regularidade.
Além disso, Ulisses Pernambucano dinamizou o dia-a-dia da Escola, estimulando valores e o potencial das alunas, que se organizaram, as que assim o quiseram, em um jornal escolar e um orfeão.
Se essas providências administrativas tiveram inequívocos efeitos pedagógicos, devo salientar ainda sua própria atuação didática. Tive a felicidade de tê-lo como professor de Psicologia, em 1924. Sua maneira de ensinar fugia ao padrão convencional dos demais docentes. Não se limitava à transmissão dos conhecimentos. Valorizava-os com suas observações pessoais, colocação de novos problemas, dialogando com as alunas, despertando interesse e entusiasmo generalizado pela Psicologia. Sua escolha como paraninfo da turma, no final de 1924, foi o resultado de sua prática pedagógica, de seu relacionamento com as alunas, democrático, sem deixar de ser exigente.
Em 1925, instalando o Instituto de Psicologia, criado por lei estadual, aprovado por sua provocação, localizado inicialmente no então Departamento de Saúde do Estado, Ulisses Pernambucano recrutou alguns de seus primeiros colaboradores entre as ex-alunas, recém concluintes da Escola Normal, cujo interesse pela Psicologia tinha sido mais evidente. Laureada da turma e, por tal razão, nomeada de imediato professora do Estado - conforme a legislação então vigente - fui uma das colaboradoras de Ulisses Pernambucano, desde os primeiros momentos do Instituto de Psicologia.
No Instituto de Psicologia, Ulisses Pernambucano prosseguiu sua ação pedagógica, executando um programa de treinamento de seus auxiliares, seja na aplicação e interpretação dos testes psicológicos então correntes, seja levando-os a adaptá-los e padronizá-los para a realidade do Recife. Escrever e publicar eram exigências com as quais Ulisses Pernambucano não transigia. Dessa maneira, já em 1927 era possível publicar um livro contendo resultados de pesquisas levadas a efeito no Instituto: Estudo psicotécnico de alguns testes de aptidão(10). Destaco, ainda, entre os trabalhos realizados pelo professor Ulisses Pernambucano, ou por sua iniciativa e supervisão, a Revisão Pernambucana da Escala Métrica de Inteligência, a de Bi-net-Simon-Terman(11), a utilização do Psicodiagnóstico de Rorschach antes mesmo da industrialização de suas pranchas(12) e as médias de estatura dos escolares de Pernambuco(13).
Quanto à educação especial, recebeu de Ulisses Pernambucano o maior interesse, empenhando-se em seu estudo e prática, no decorrer de toda sua vida profissional. O fato é que, em 1918, ao concorrer em concurso público à cátedra de Psicologia da Escola Normal de Pernambuco, apresentou como tese um estudo pioneiro no Brasil: Classificação das crianças anormais. A parada do desenvolvimento intelectual e suas formas. A instabilidade e a astenia mental. Apesar de ser classificado em 1º lugar, foi indicado apenas como professor substituto. Já então defendia com veemência a necessidade de um tratamento médico-pedagógico das crianças que de alguma forma se afastavam da situação comum, considerada normal.
Chamado, finalmente, à Escola Normal, cuja direção assumiu em 1923, ao lado das iniciativas reformadoras já mencionadas, Ulisses Pernambucano incluiu a proposta - que apresentou ao Governo do Estado - da criação de uma escola especial, destinada à educação das crianças anormais, conforme a linguagem então corrente para designar os portadores de deficiência mental. O projeto implicava a inclusão de uma nova unidade entre as que compunham o Curso de Aplicação. Deste modo, as alunas con-cluintes - as professorandas - passariam a ter a oportunidade da prática necessária para trabalharem com crianças deficientes. Para ele estava claro que a nova disciplina facilitaria às alunas enfrentar o exercício profissional futuro, ao identificarem crianças com dificuldades de aprendizagem, fossem as dificuldades devidas aalgum grau de retardamento no seu desenvolvimento mental, a fatores emocionais ou a outros fatores perturbadores do comportamento.
O Governo acatou a proposta. Ato do Governador Sérgio Loreto, de 27 de janeiro de 1925, formalizou a instituição da primeira escola especial de Pernambuco, para a qual fui nomeada no dia seguinte. Seguiu-se uma fase preparatória para tomar possível a implantação da escola, através de estudos intensivos e de pesquisas realizadas junto aos escolares que freqüentavam as escolas públicas, procurando identificar os que apresentavam dificuldades de aprendizagem. Em 15 de junho do mesmo ano seria criado o Instituto de Psicologia - também ele a primeira instituição no gênero, no Brasil - o que facilitaria os estudos sobre a questão.
A Escola não chegou a funcionar como entidade própria, mas suas finalidades foram preenchidas pelo Instituto de Psicologia.
Entretanto, a idéia da escola especial continuou no pensamento do professor Ulisses Pernambucano. Ao proceder à reforma da Assistência a Psicopatas, fundou em 1932 a Liga de Higiene Mental de Pernambuco, a qual funcionava em relação íntima com a Assistência a Psicopatas mas, ao mesmo tempo, com independência. Dois anos após, em 1934, chegou a lançar, no âmbito da Liga de Higiene Mental, a pedra fundamental da escola que idealizara. Face a dificuldades políticas crescentes e carência de recursos, o projeto somente veio a ser concretizado em 1941, com a instituição, pelo Estado de Pernambuco, da Escola Especial Aires Gama, da qual fui a primeira diretora. A implantação da Escola Especial Aires Gama ocorreu sem sua supervisão oficial, posto que em 1935, acusado de ser comunista, tinha sido destituído de todos os cargos públicos que ocupava - "a bem do serviço público" - e, em seguida, preso.
Sem os meios para continuar seu trabalho no Estado, Ulisses Pernambucano decidiu, juntamente com alguns dos seus auxiliares médicos, passar à iniciativa privada, criando o Sanatório Recife, o qual continua a funcionar até hoje. Ao lado do Sanatório Recife instalou uma pequena escola para portadores de deficiências mentais, entregando-me a responsabilidade de fazê-la funcionar.
A Escola Especial Aires Gama é hoje denominada Escola Especial Ulisses Pernambucano, por influência de antigos colaboradores seus e participantes da Liga de Higiene Mental.
Embora não seja o aspecto mais relevante da obra do professor Ulisses Pernambucano, quero salientar o pioneirismo de sua contribuiçãso para o estudo e a prática da educação especial no Brasil, a partir da tese apresentada ao concurso para a Escola Normal, em 1918. Pioneirismo por vezes contestado, atribuindo-se a Helena Antipoff os primeiros passos no mesmo sentido. Reafirmado, no entanto, pela grande educadora, criadora no Brasil do Instituto Pestalozzi - do qual se originaram as APAEs- e de tantas outras iniciativas, de inquestionável alcance pedagógico e psicológico: reafirmação que escutei pessoalmente da professora Helena Antipoff, em seminários e congressos ocorridos no Sul e Sudeste do país, dos quais igualmente participei.
Notas
(1) Exposição adaptada para publicação como artigo, apresentada no Simpósio Comemorativo do Centenário de Nascimento de Ulisses Pemambucano, promovido pelo Hospital Ulisses Pernambucano (Secretaria de Saúde do Estado de Pernambuco), Recife, 06-08 de fevereiro de 1992.
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Referências bibliográficas
- (2)MARQUES DE SÁ, J. Abertura do Ciclo de Estudos sobre Ulisses Pernambucano. In: Ciclo de Estudos sobre Ulisses Pernambucano, p. 13-24, Recife, Academia Pernambucana de Medicina, 1978.
- (3) PERNAMBUCANO, U. Classificarão das Crianças Anormais. A Parada do Desenvolvimento Intelectual e suas Formas. A instabilidade e a Astenia Mental. Recife, Imprensa Industrial, 1918.
- (4) PERNAMBUCANO, U. A Ação Social do Psiquiatra. In: Neurobiologia, 6(4)153-160, Recife, 1943.
- (5) LUCENA, J. Ulisses Pernambucano e Sua Escola de Psiquiatria Social. In: Ciclo de Estudos sobre Ulisses Pernambucano, p. 145-175, Recife, Aca-demia Pemambucana de Medicina, 1978.
- (6) VALENTE, W. Mestre de Fisiologia Nervosa e Fundador da Escola de Psiquiatria do Recife. In: Ciclo de Estu-dossobre Ulisses Pernambucano, p. 103-113, Recife, Academia Pernambucana de Medicina, 1978.
- (7) PINTO, E. Ulisses Pernambucano e a Escola Normal de Pernambuco. In: Estudos Pernambucanos Dedicados a Ulisses Pernambucano, Recife, Jornal do Commércio, 1937, p. 49-50.
- (8) RÊGO, J. L. Do Ulisses Pernambucano, Homem de Espírito Público. In: Estudos Pernambucanos Dedicados a Ulisses Pernambucano, Recife, Jornal do Commércio, 1937, p. 7-8.
- (9) ROSAS, P. Contribuição de Ulisses Pemambucano e seus Colaboradores para a Psicologia Aplicada no Brasil. In: Psicologia, 11(3)17-33, São Paulo, 1985.
- (10) PERNAMBUCANO, U. e BARRETO, A. P. Estudos Psicotécnico de Alguns Testes de Aptidão. Recife, Imprensa Industrial, 1927.
- (12) BORGES, J. C. Cavalcanti. Investigação Psicológica Sobre a Personalidade de Epilépticos. Recife, Edição do Autor, 1936.
- (13) PERNAMBUCANO, U. As Médias de Estatura de Escolares de Pernambuco. Recife, Imprensa Industrial, 1927.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
25 Set 2012 -
Data do Fascículo
1992