Acessibilidade / Reportar erro

Algumas Reflexões sobre a Psicologia no Brasil

Considerations on Psychology in Brazil

Reflexiones sobre la Psicología en Brasil

A Psicologia no Brasil existe desde o século XIX. Trata-se de uma longa história da qual selecionaremos neste editorial, para uma compreensão panorâmica, alguns aspectos da consolidação institucional e profissional da psicologia nas últimas décadas.

Grosso modo, os cursos universitários regulares de Psicologia foram iniciados no Brasil na década de 1950 e a profissão foi regulamentada na década seguinte. Deste então, o crescimento de cursos e de profissionais atingiu o significativo número de 325.052 psicólogos cadastrados no Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2018). Tal expansão foi evidentemente acompanhada do aumento dos cursos de Graduação em Psicologia e da sedimentação da pesquisa por meio de um sistema de Pós-Graduação vigoroso. No que tange à profissão, os desafios para a formação são imensos no processo de expansão, como analisa Yamamoto (2012)Yamamoto, O. H. (2012). 50 anos de profissão: responsabilidade social ou projeto ético-político?. Psicologia: Ciência e Profissão, 32(spe), 6-17. https://dx.doi.org/10.1590/S1414-98932012000500002
https://dx.doi.org/10.1590/S1414-9893201...
, na construção de um projeto ético-político para a profissão que se articule com projetos societários mais amplos.

No âmbito da Pós-Graduação, investigações no amplo espectro temático e prático da Psicologia são realizadas pelos mais de 90 Programas de Pós-Graduação brasileiros, em níveis de Mestrado e Doutorado, acompanhadas da instauração de um pujante sistema de publicações seriadas acadêmicas, atendendo aos rigorosos critérios de avaliação e tramitação editorial, com desafios ainda a serem enfrentados, principalmente no que tange à formulação de políticas de qualificação do sistema (Tourinho & Bastos, 2010Tourinho, E. Z., & Bastos, A. V. B. (2010). Desafios da pós-graduação em Psicologia no Brasil. Psicologia: Reflexão e Crítica, 23(Suppl.1), 35-46. https://dx.doi.org/10.1590/S0102-79722010000400005
https://dx.doi.org/10.1590/S0102-7972201...
).

O número especial do periódico Psicologia: Ciência e Profissão, que o leitor acessa livremente neste momento, fornece para o público anglófono uma imagem da Psicologia produzida no Brasil. Há mais de um século, a produção textual acadêmica tem alcançado visibilidade por meio de publicações periódicas criteriosas em suas formas de tramitação editorial. O acesso a estas produções foi ampliado pela consolidação dos sistemas informacionais digitais, em especial, a internet. Se, de um lado, o acesso livre e sem custos para o leitor propiciado pela web torna os conteúdos do periódico acessível a uma enorme parte da população mundial, a língua tem sido, por outro lado, um limitador e apenas a população lusófona tem se valido da produção elaborada no Brasil para reflexão e diálogo.

Os pesquisadores da comunidade acadêmica brasileira se deparam, nas últimas décadas, com a insistente questão de publicar em língua inglesa e em periódicos de grandes empresas editoriais voltadas para a produção acadêmica. Duas questões entrelaçadas envolvendo aspectos variados. A publicação em língua inglesa justifica-se pela amplitude de seu alcance. Também este aspecto tem sido a justificativa maior para publicação em periódicos de grandes empresas editoriais ou em periódicos inseridos nos indexadores destas mesmas empresas. O fator de impacto – dispositivo bibliométrico resultante do indexador de uma dessas empresas – tem sido utilizado como instrumento de valoração dos pesquisadores. Trata-se do avanço da gestão empresarial que hierarquiza a produção investigativa por meio critérios empresariais pouco vantajosos para a produção de países do sul.

O Brasil, em contraste, tem se notabilizado pelo Acesso Aberto (Open Access) como política de difusão e desenvolvimento da produção nacional (Science-Metrix, 2018Science-Metrix. (2018). Analytical Support for Bibliometrics Indicators Open access availability of scientific publications. Montréal: Science-Metrix Inc. Recuperado de http://www.science-metrix.com/sites/default/files/science-metrix/publications/science-metrix_open_access_availability_scientific_publications_report.pdf
http://www.science-metrix.com/sites/defa...
) e apresenta atualmente a maior porcentagem de acesso gratuito e sem barreiras se comparada ao total de publicações do país. No que diz respeito à produção acadêmica de Psicologia, a quase totalidade dos conteúdos encontra-se livre para acesso do leitor. Exemplo desse acesso é o portal de Periódicos Eletrônicos de Psicologia (PePSIC) da Biblioteca Virtual em Saúde, hospedado no sítio http://pepsic.bvsalud.org/. O estabelecimento de um padrão editorial sofisticado e a criação de indexadores que facilitam o acesso aos conteúdos também foram objetos de interesse e as transformações foram profundas nas últimas décadas.

Este número especial situa-se nesta conjuntura. Os textos foram traduzidos à língua inglesa com o intuito de ampliar o acesso a leitores interessados nos temas abordados e pesquisados pela comunidade de pesquisadores brasileiros. Os tópicos aqui expostos constituem, dada a dimensão do projeto, uma pequena amostra da produção nacional.

O envolvimento da Psicologia brasileira com as questões sociais é uma marca relevante da produção psicológica. A abordagem psicossocial se revela em alguns dos trabalhos aqui expostos. Como exemplo do interesse pelo entrelaçamento da Psicologia com a dimensão social e política, os três primeiros textos selecionados resultam de investigações dirigidas para as dimensões públicas e políticas de experiências sociais e subjetivas relevantes no Brasil contemporâneo.

O artigo A Estratégia Gestão Autônoma da Medicação e a Inserção da (A)normalidade no Discurso da Cidadania analisa a Gestão Autônoma da Medicação por meio do discurso dos atores do sistema de saúde mental no âmbito da promoção da cidadania. A autonomia e a cogestão como horizonte da ação política mostram-se especialmente ricas na emancipação de usuários do sistema de saúde mental das técnicas disciplinares próprias as saberes especialistas médico-psicológicos. A dimensão política da autonomia se revela na produção subjetiva e a cogestão se articula à emancipação e à cidadania construída na participação democrática.

Para enriquecer as possibilidades de ação política e de emancipação social, as considerações presentes no artigo Comunidade Porvir: Emancipação Social e Configurações Comunitárias em um Ponto de Cultura direcionam seu foco para as políticas culturais brasileiras. Embora a orientação para supressão de desigualdades sociais e emancipação social esteja presente nas formulações das políticas culturais, a concepção de sujeito neoliberal pressuposta em sua elaboração tem servido à manutenção da desigualdade social, quer pela apropriação de fundos públicos por empreendimentos privados, quer para formação de militantes para partidos políticos que, no miúdo de suas práticas, despolitizam temas candentes como raça e gênero. Os modos de subjetivação articulados com as produções comunitárias e políticas estiveram presentes no reconhecimento oficial de cultura para os que obtiveram a denominação de Ponto de Cultura. Neste sentido, a investigação se vale dos regimes de sensibilidade e processos de subjetivação para analisar políticas culturais no Brasil.

A democracia participativa demanda a criação de instrumentos consistentes que fortaleçam as ações voltadas para os direitos humanos. O trabalho Linha do Tempo das Políticas Públicas de Educação e Saúde para Enfrentamento dos Problemas de Escolarização apresenta o instrumento virtual homônimo, cujo propósito é fornecer acesso aos três níveis da legislação referente às políticas públicas e educação e saúde relacionadas à escolarização. O instrumento também relaciona a legislação à produção acadêmica e fornece consistência às análises das dimensões políticas e ideológicas da supracitada legislação. A atuação profissional em Psicologia foi profundamente afetada pela Constituição “Cidadã” de 1988. O campo de trabalho aberto pelos equipamentos criados a partir das diretrizes emanadas da Constituição açambarca a maioria das psicólogas e psicólogos em atuação no Brasil. O conhecimento dos meandros da legislação atinente aos problemas de escolarização bem como das análises acadêmicas constitui certamente contribuição significativa para a participação profissional sustentada em políticas democráticas essenciais à vida em coletividade.

A atuação da Psicologia por segmentos sociais minoritários se expressa no artigo Pessoas em Situação de Rua no Brasil. Revisão sistemática. A pesquisa indica que entre 2006 e 2016 o maior percentual de artigos, dissertações e teses voltadas para este segmento foram classificados na área da Psicologia. O trabalho chama atenção para a heterogeneidade desta população e a variedade de experiências e de condições de vida. Estudo que indica, entre os muitos aspectos relevantes, os discursos estigmatizantes da mídia, a carência de pesquisa sobre gênero e sexualidade, a dimensão que culpabiliza e individualiza indivíduos a respeito de fenômenos oriundos do campo social e político, as relações da população de rua com os equipamentos de saúde e assistência social. Tal mapeamento das pesquisas acadêmicas da população de rua enriquece as formas de convivência social e a produção de políticas públicas que garantam o exercício dos direitos desta população.

Os efeitos paliativos da medicalização da queixa escolar são evidenciados por meio da análise psicológica histórico-cultural adotada no trabalho Enfrentando as Queixas Escolares: o Desenvolvimento da Atividade Voluntária para a Psicologia Histórico-Cultural. A regulação da criança tem sido, com frequência alta, demandada nas escolas na forma de queixas escolares em consonância com um maquinário classificatório de tipo médico psicológico. A investigação sobre a constituição da atividade voluntária e a emergência da autorregulamentação na criança deslocam a questão do universo das técnicas paliativas com uso de drogas para a construção de ferramentas psicológicas que valorizam os processos educacionais em articulação com o desenvolvimento cultural. A relevância da pesquisa para a formação profissional em Psicologia é evidente para todos os que se preocupam de fato com os processos educacionais.

As transformações recentes na legislação brasileira sobre a guarda compartilhada e a presença da Psicologia nos equipamentos judiciários motivaram a pesquisa Guarda Compartilhada: as Vivências de Filhas Adolescentes. O relato das experiências de algumas adolescentes fornece indícios empíricos que podem garantir o exercício da parentalidade, após a dissolução conjugal. A judicialização do cotidiano vem, gradativamente, se fortalecendo no Brasil abrindo um campo de reflexões sobre as formas de convivência. Aqui, a reflexão e a prática psicológica em conexão com os operadores do direito, assistentes sociais e outros profissionais enriquecem as intervenções e estratégias para lidar com os sofrimentos emanados da reconfiguração familiar.

A promoção do cuidado integral à gestante e à puérpera preconizada nas políticas públicas foi enfocada no trabalho Fatores de Risco e Proteção Associados à Depressão Pós-Parto no Pré-Natal Psicológico, que expõe reflexões indicativas da necessidade de escapar ao exclusivismo da apreensão biomédica do fenômeno a fim de concretizar as diretrizes das políticas públicas. O conhecimento dos fatores de risco e de proteção da depressão pós-parto é relevante para o planejamento e a execução de ações preventivas na fase pré-natal embora aspectos individuais e culturais matizem a vivência da maternidade. O trabalho contribui, portanto, para a atuação na Psicologia Clínica e da Saúde.

A aplicação de jogos e simulações constitui tecnologia exposta no artigo Desenvolvimento de Competências na Gestão de Conflitos em um Hospital Geral. A simulação por computador com fins educacionais para o discernimento e a elaboração de competências de gestão de conflitos e feedback foi descrita e analisada indicando potencial da ferramenta para avaliar e desenvolver estilos gerenciais. O estudo apresenta suas limitações e indica a necessidade de aprimoramento, além de exemplificar a variedade dos interesses e das ferramentas inovadoras no campo da intervenção psicológica.

A prática clínica bem consolidada na Psicologia encontra novos questionamentos em Ressignificações de Sujeitos com Paraplegia Adquirida: Narrativas da Reconstrução da Imagem Corporal. Os processos de reconstrução da imagem corporal e da identidade foram descritos e analisados a partir da experiência com oito sujeitos com paraplegia adquirida, produzindo dados e reflexões para a magra produção relativa aos aspectos psíquicos dos sujeitos com paraplegia adquirida.

Refletir sobre a formação em Psicologia é prática salutar e própria à atividade acadêmica. O estudo Relações entre Preconceito e Crenças sobre Diversidade Sexual e de Gênero em Psicólogos/as Brasileiros/as indica aspectos relevantes sobre o preconceito contra diversidade sexual e de gênero entre psicólogas e psicólogos em atuação. Valendo-se de escalas de preconceito e de crença o estudo indica média baixa de preconceito extremo que nos alerta para as referências de não discriminação e de combate a quaisquer formas de violência próprias à profissão. A vinculação entre preconceitos e perspectiva teórica demanda reflexão sobre a formação em Psicologia no sentido de garantia de direitos.

O binarismo de gênero disseminou-se amplamente em nossas vidas. A investigação Polifonia na Produção do Binarismo de Gênero em Brincadeiras na Primeira Infância observou crianças entre 30 e 36 meses em suas brincadeiras e relações com adultos para mapear a produção de significados de gênero em brincadeiras. Embora o processo de convencionalização seja matizado e polifônico, as brincadeiras consideradas como tecnologias sociais binarizam o sexo e o gênero reproduzindo distribuição de poder, semiotizando o mundo, o outro e a si mesmo na chave binária. A visibilização de processos de binarização do sexo e do gênero em crianças revela os artifícios de constituição subjetiva calcada nesta oposição e abre caminho para a instituição de processos educativos mais autônomos no que diz respeito a tal divisor.

Com abordagem fenomenológica, o texto A Vivência da Sexualidade de Pessoas que Vivem com HIV/AIDS descreve experiências que refletem sobre a vida amorosa e a sexualidade de pessoas que vivem com o HIV. As formas de enfrentamento são descritas em uma dimensão experencial. A vertente histórica que valoriza a experiência subjetiva em sua dimensão vivencial e singular se revela neste estudo como uma prática viva entre profissionais da Psicologia.

Focando as táticas e estratégias de enfrentamento da violência, o artigo As Táticas e Estratégias de Enfrentamento da Violência entre Jovens em Timon-MA revela a dimensão cotidiana da política participativa. Ao expor como os jovens em situação de vulnerabilidade social na cidade de Timon, MA, pensam e modificam seu dia a dia, se reapropriam dos espaços em que circulam, isto é, ao narrar como estes jovens lidam cotidianamente com a violência, a participação política se revela no imbricamento da dimensão cultural, econômica e histórica com a pessoal, grupal e vivencial, e a transformação social se apresenta no horizonte de ação dos sujeitos.

O amplo espectro de teorias, campos de investigação, métodos e propostas de intervenção é marca do conjunto da produção investigativa de pesquisadoras e pesquisadores em Psicologia no Brasil presente nesta publicação. Ficam patentes as contribuições do conhecimento da Psicologia com políticas públicas, instituições de saúde, educação, assistência, garantia de direitos e com justiça social que demandam não apenas novos referenciais teóricos, mas, também, criatividade metodológica e o encontro com novos campos de trabalho.

Encontramos neste número referências a autores como Michel Foucault, Jacques Rancière, Michel de Certeau, Lev Vigotski, dentre outros, apresentados por investigadoras e investigadores brasileiros inseridos no campo institucional da Psicologia, de forma consistente, produzindo análises relevantes dos processos de subjetivação e participação política. Revelam-se, entre as metodologias utilizadas nestes artigos, a etnografia, a análise do conteúdo, a pesquisa-ação, a análise estatística, a observação participante. Tal riqueza metodológica, aliada ao destemor do diálogo aberto com a Filosofia e as Ciências Sociais, expressa o vigor da prática investigativa em Psicologia em curso no Brasil e apresenta os desafios para a inserção do conhecimento da Psicologia em temáticas da realidade brasileira. Desejamos a todos e todas uma excelente leitura!

Referências

  • Errata

    Na edição 38.4, no editorial “Algumas Reflexões sobre a Psicologia no Brasil”, na página 619 onde se lê “A aplicação de jogos e simulações constitui tecnologia exposta no artigo Desenvolvimento de Competências na Gestão de Conflitos em um Hospital Geral. A simulação por computador com fins educacionais para o discernimento e a elaboração de competências de gestão de conflitos e feedback foi descrita e analisada indicando potencial da ferramenta para avaliar e desenvolver estilos gerenciais. O estudo apresenta suas limitações e indica a necessidade de aprimoramento, além de exemplificar a variedade dos interesses e das ferramentas inovadoras no campo da intervenção psicológica.”, o correto é: “A aplicação de jogos e simulações constitui tecnologia exposta no artigo “Criação de uma Simulação para o Desenvolvimento de Competências em um Hospital”. A simulação por computador com fins educacionais para o discernimento e a elaboração de competências de gestão de conflitos e feedback foi descrita e analisada indicando potencial da ferramenta para avaliar e desenvolver estilos gerenciais. O estudo apresenta suas limitações e indica a necessidade de aprimoramento, além de exemplificar a variedade dos interesses e das ferramentas inovadoras no campo da intervenção psicológica.”.” O referido artigo, por um erro interno, não entrou na edição 38.4, mas sim no fluxo continuo de 2019 da Revista Psicologia: Ciência e Profissão.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2018
Conselho Federal de Psicologia SAF/SUL, Quadra 2, Bloco B, Edifício Via Office, térreo sala 105, 70070-600 Brasília - DF - Brasil, Tel.: (55 61) 2109-0100 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: revista@cfp.org.br