O atual número especial da Revista Psicologia: Ciência e Profissão tem por finalidade afirmar o compromisso ético-político da Psicologia no cenário nacional no enfrentamento às violências dirigidas às pessoas LGBTIs, dando visibilidade às produções acadêmicas que demonstram o desenvolvimento da ciência psicológica em direção à proteção e aos cuidados que garantam a dignidade, a autonomia e a emancipação das pessoas com orientações sexuais e identidades de gênero que fogem do padrão cisheteronormativo.
A Psicologia brasileira tem sido alvo de ataques articulados por diversos setores da sociedade alinhados a um projeto conservador e fundamentalista de manutenção da hegemonia cisheteronormativa e do rechaço aos estudos da área de sexualidade e gênero que desnaturalizam concepções biologizantes, desconstroem a rigidez dos papéis sexuais, despatologizam as orientações sexuais e as identidades de gênero.
A construção dos corpos, regulação das práticas e delimitação dos gêneros multiplicam-se no controle da reprodução e em rituais de concepção. Desta feita, as normas sexuais são fundamentais na construção das tecnologias de poder em nossa sociedade, e os desviantes são produzidos enquanto categoria pela mesma estratégia que os pune constantemente (Cassal, Garcia González, & Bicalho, 2011Cassal, L. C. B., Garcia González, A. M., & Bicalho, P. P. G. (2011). Psicologia e o dispositivo da sexualidade: Biopolítica, identidades e processos de criminalização. Psico, 42(4), 465-473., p. 467).
Eles têm endereço, cor, escolaridade, uma determinada maneira de ocupar o espaço urbano, estes “desordeiros” (Bicalho, Rossotti, & Reishoffer, 2016Bicalho, P. P. G., Rossotti, B. G. P. P., Reishoffer, J. C. (2016). A pesquisa em instituições de preservação da ordem. Polis & Psique, 6(n.spe.), 85-97. https://doi.org/10.22456/2238-152X.61384
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). Também têm orientação sexual e identidade de gênero: os que devem ser presos, vigiados, controlados ou exterminados, expostos a todo um conjunto de exclusões e violações sistemáticas. Vidas corrigíveis e assassináveis.
De acordo com Baptista (1999)Baptista, L. A. (1999). A atriz, o padre e a psicanalista: Os amoladores de facas. In L. A. Baptista, Cidade dos sábios (pp. 45-49). São Paulo: Summus,, discursos hegemônicos tomam a diferença e a existência fora da norma como negativos, transformando sujeitos em carentes de cuidado e dignos de pena, que podem ainda ser eliminados por sua condição dita menos humana. Diversas práticas discursivas desqualificam determinados modos de existir e eliminam potências de vida. Neste sentido, o autor fala dos “amoladores de facas” – atores sociais que, com seus discursos, constroem condições de possibilidade para a eliminação de determinados grupos, pois atuam como “enforço” das normas – exercícios de poderes que tornam possível a emergência e a manutenção de determinada regra enquanto verdade (Foucault, 1999Foucault, M. (1999). Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes.). O que transforma tais modos de existência como perigosos e que precisam ser constantemente repreendidos ou mesmo eliminados?
Historicamente, a atenção dada pela psicologia às temáticas de gênero e sexualidade nos estudos dos indivíduos e de seus processos é atravessada por uma perspectiva cisheteronormativa, ou seja, uma perspectiva que tem a matriz heterossexual como base das relações de parentesco e a matriz cisgênera como organizadora das designações compulsórias e experiências das identidades de gênero; ambas produzindo efeitos que são naturalizados em nossa cultura, a partir da constituição de uma noção de normalidade em detrimento da condição de anormalidade, produzindo a abjeção e ocultamento de experiências transgressoras e subalternas. Essa perspectiva cisheteronormativa da psicologia produz descrições universalizantes dos processos tidos como naturais e a patologização da diferença, ao tratá-la como casos desviantes da norma (Mattos, & Cidade, 2016Mattos, A., Cidade, M. L. R. (2016). Para pensar a cisheteronormatividade na Psicologia: lições tomadas do transfeminismo. Periódicus, 5(1), 132-153. http://dx.doi.org/10.9771/peri.v1i5.17181
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Através das Resoluções CFP no 01/99 e CFP no 01/18, o Conselho Federal de Psicologia tem alcançado posição de protagonismo no enfrentamento às violências LGBTIfóbicas em curso no cotidiano da sociedade brasileira. As psicólogas e psicólogos brasileiros são instados ao compromisso ético a fim de construir nos seus espaços de atuação (cada vez mais ampliados e heterogêneos) uma Psicologia que problematize e enfrente a naturalização dos preconceitos, estigmas e processos de exclusão e patologização que atingem as pessoas com distintas orientações sexuais e identidades de gênero.
Trata-se de um vínculo periculoso, no qual está em jogo o papel social do profissional da Psicologia na sociedade brasileira que vem se consolidando [mais] numa atuação que visa a emancipação e a garantia de direitos [...] [e menos na contribuição] para a prevalência do sofrimento, do sentimento de rejeição, do preconceito, enfim da homofobia (Sposito, 2012Sposito, S. E. (2012). Psicologia, sexualidade e religião: Ligações perigosas. Revista de Psicologia da UNESP, 11(1), 100-104., p. 103).
É na atualidade que se encontram as forças que bifurcam e fazem a diferença na história, apontando para o futuro. A atualidade, assim, configura um esboço, e não um desenho com contorno definido (Bicalho, 2013Bicalho, P. P. G. (2013). Ditadura e democracia: qual o papel da violência de Estado? In Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (Org.), Entre garantia de direitos e práticas libertárias (pp. 13-34). Porto Alegre: Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul.). E é neste esboço que se procura fazer da linguagem científica uma ferramenta para produzir novas histórias que sirvam para repensar e refazer nosso presente e, dessa forma, entender como se é capaz de promover rachaduras nos estratos históricos estabelecidos para, enfim, produzir novidades.
Nos artigos desse número especial estão presentes as marcas desse enfrentamento, bem como a insistência cotidiana das inúmeras expressões de violências que são dirigidas a essas pessoas. Cada artigo, em sua particularidade, traz um traço da dor e das lutas que a Psicologia enfrenta no seu cotidiano para pesquisar e atuar junto às pessoas LGBTIs. Reunir esse material significa aglutinar forças, compor afinidades, estreitar caminhos e produzir lastro para os desafios vindouros.
Referências
- Baptista, L. A. (1999). A atriz, o padre e a psicanalista: Os amoladores de facas. In L. A. Baptista, Cidade dos sábios (pp. 45-49). São Paulo: Summus,
- Bicalho, P. P. G. (2013). Ditadura e democracia: qual o papel da violência de Estado? In Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (Org.), Entre garantia de direitos e práticas libertárias (pp. 13-34). Porto Alegre: Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul.
- Bicalho, P. P. G., Rossotti, B. G. P. P., Reishoffer, J. C. (2016). A pesquisa em instituições de preservação da ordem. Polis & Psique, 6(n.spe.), 85-97. https://doi.org/10.22456/2238-152X.61384
» https://doi.org/10.22456/2238-152X.61384 - Cassal, L. C. B., Garcia González, A. M., & Bicalho, P. P. G. (2011). Psicologia e o dispositivo da sexualidade: Biopolítica, identidades e processos de criminalização. Psico, 42(4), 465-473.
- Foucault, M. (1999). Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes.
- Mattos, A., Cidade, M. L. R. (2016). Para pensar a cisheteronormatividade na Psicologia: lições tomadas do transfeminismo. Periódicus, 5(1), 132-153. http://dx.doi.org/10.9771/peri.v1i5.17181
» http://dx.doi.org/10.9771/peri.v1i5.17181 - Sposito, S. E. (2012). Psicologia, sexualidade e religião: Ligações perigosas. Revista de Psicologia da UNESP, 11(1), 100-104.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
8 Maio 2020 -
Data do Fascículo
2019