Resumo
A psicologia tem se consolidado, entre outras áreas de atuação, como profissão de saúde. A despeito de reconhecer-se como tal na atenção terciária e na saúde mental, carece pensar como temos construído nossas práticas em outros setores, aqui em destaque a saúde sexual e a saúde reprodutiva. A previsão de que profissionais da psicologia devem compor equipes mínimas de diversas políticas públicas de saúde sexual e saúde reprodutiva não se faz perceber diante de lacunas significativas nos currículos disciplinares e nas produções acadêmicas da área. A proposta deste texto é apresentar algumas reflexões produzidas a partir de cenas que acompanhei ao longo dos anos que me dedico a essas questões, desde a graduação até a docência. Compõem as análises situações registradas no desenvolvimento de projetos de extensão e de pesquisa, supervisão de estágio em processos psicossociais, grupos de estudos e da disciplina Psicologia, Saúde Sexual e Saúde Reprodutiva. Pretende-se, a partir dessas cenas, analisar os desafios para consolidar uma práxis psicológica alinhada à defesa dos direitos sexuais e reprodutivos, bem como o desvelar de modos de escuta que destoam do que a priori deveria ser nosso objetivo central: promoção de cuidado e escuta qualificada. Por fim, proponho alguns parâmetros de organização das nossas ações, desejosa de uma construção que seja cada vez mais partilhada por nossa categoria, orientada pelos direitos humanos e comprometida com a promoção da saúde e da autonomia das usuárias dos serviços de saúde sexual e reprodutiva no Brasil.
Palavras-chave:
Psicologia; Saúde Sexual; Saúde Reprodutiva; Direitos Sexuais; Direitos Reprodutivos
Abstract
Psychology has been consolidated, among other areas of practice, as a health profession. Regardless of its recognition as such in tertiary care and mental health, we must reflect on how phycologists have built their practices in other sectors, especially regarding sexual and reproductive health. The expectation that psychologists should compose minimum teams of different public policies on sexual and reproductive health, goes unnoticed before the significant gaps in academic programs and production in the field. Given this context, this paper presents some reflections produced from scenes observed over the years that I have been dedicating myself to these issues, from graduation to teaching. The analyzes include situations recorded during extension and research projects, internship supervision in psychosocial processes, study groups and in the Psychology, Sexual Health and Reproductive Health course. Based on these scenes, I analyze the challenges to consolidate a psychological praxis aligned to the defense of sexual and reproductive rights, and unveil ways of listening that deviate from what a priori should be our central objective: promotion of care and qualified listening. Finally, I propose some parameters to organize our actions, hoping for a construction that is increasingly shared by our category, guided by human rights and committed to promoting the health and autonomy of users of sexual and reproductive health services in Brazil.
Keywords:
Psychology; Sexual Health; Reproductive Health; Sexual Rights; Reproductive Rights
Resumen
La psicología se ha consolidado, entre otras áreas de actividad, como una profesión sanitaria. A pesar de ser reconocida como tal en el tercer nivel de atención y salud mental, es necesario pensar cómo hemos construido nuestras prácticas en otros sectores, con énfasis en la salud sexual y salud reproductiva. La estimación de que los profesionales de la psicología deban conformar equipos mínimos de las diversas políticas públicas en salud sexual y reproductiva no lleva en consideración que hay importantes vacíos en los currículos disciplinares y la producción académica en el área. El propósito de este texto es presentar algunas reflexiones a partir de escenarios que he seguido a lo largo de los años en que me he dedicado a estos temas desde la graduación hasta la docencia. Los análisis abarcan situaciones registradas en el desarrollo de proyectos de extensión e investigación, supervisión de pasantías en procesos psicosociales, grupos de estudio y de la disciplina Psicología, Salud Sexual y Salud Reproductiva. A partir de estos escenarios se pretende analizar los desafíos para la consolidación de una praxis psicológica alineada con la defensa de los derechos sexuales y reproductivos, así como el develamiento de formas de escucha que se alejan de lo que a priori debería ser nuestro objetivo central: la promoción del cuidado y la escucha cualificada. Por último, propongo algunos requisitos para la organización de nuestras acciones, con el fin de que haya una construcción cada vez más compartida en nuestro sector, basada en los derechos humanos y comprometida en la promoción de la salud y la autonomía de las usuarias de los servicios de salud mental y reproductiva en Brasil.
Palabras clave:
Psicología; Salud Sexual; Salud Reproductiva; Derechos Sexuales; Derechos Reproductivos
Introdução
Em 60 anos de ciência e profissão no Brasil, a psicologia tem expandido e capilarizado significativamente suas áreas de atuação. Com a Constituição Cidadã de 1988 e a atuação da psicologia social comunitária defendendo uma prática profissional comprometida com os direitos sociais e a transformação das desigualdades, a psicologia se aproximou das políticas públicas, passando a compor parte das equipes que atuam nos mais distintos equipamentos de assistência - saúde, educação, segurança, moradia etc. A despeito de terem se passado décadas desde então, nossa atuação nesses serviços tem sido recorrentemente documentada a partir da ausência de fundamentação teórica adequada, do desconhecimento dessas políticas, da falta de compromisso ético-político com o público que atendemos e da ausência de compreensão interseccional acerca da produção do sofrimento psicossocial (Gesser, 2013Gesser, M. (2013). Políticas públicas e direitos humanos: desafios à atuação do Psicólogo. Psicologia: Ciência e Profissão, 33(n. spe.), 66-77. https://www.scielo.br/j/pcp/a/jmLTTRQNwjmZbZr899JvJ8K/?format=pdf⟨=pt
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; Oliveira, Rodrigues, Battistelli, & Cruz, 2019Oliveira, E. C. S., Rodrigues, L., Battistelli, B. M., & Cruz, L. R. (2019). Raça e política de assistência social: produção de conhecimento em psicologia social. Psicologia: Ciência e Profissão , 39(n. spe2), e225556. https://doi.org/10.1590/1982-3703003225556
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; Paiva & Yamamoto, 2010Paiva, I. L., & Yamamoto, O. H. (2010). Formação e prática comunitária do psicólogo no âmbito do “terceiro setor”. Estudos de Psicologia, 15(2), 153-160. https://doi.org/10.1590/S1413-294X2010000200004
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; Solaterrar, 2021Solaterrar, U. S. C. (2021). Sobre AFROntar a casa-grande e botar a cara no sol: uma etnografia transviada de formas de gestão do sofrimento [Dissertação de mestrado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro].). No que tange às políticas públicas de saúde sexual e saúde reprodutiva, a psicologia se localiza na ambígua posição de categoria recomendada nas equipes multidisciplinares de grande parte dessas políticas, mas que não tem essa discussão consolidada nem nos currículos formativos, nem tampouco nas produções acadêmicas da área.
Se considerarmos o que já indicavam dados analisados por Lhullier (2013Lhullier, L. A. (Org.). (2013). Quem é a psicóloga brasileira? Mulher, psicologia e trabalho. Conselho Federal de Psicologia.) acerca da categoria profissional, em que apenas 1% declarou trabalhar com questões relativas à temática de gênero, ainda que sendo 89% feminina, constatamos que há silêncios preocupantes em nossa atuação. Silêncios que, desconfio, revelam não uma recusa a abordar temas como maternidade, parentalidade e sexualidade, até porque estes fazem parte da história da psicologia como ciência e profissão desde sua origem. Mas, sim, uma recusa em abordar essas questões a partir do âmbito dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos, da desnaturalização dessas funções e da nossa implicação com o cuidado em todos os âmbitos da reprodução, não apenas com o ciclo gravídico puerperal e com a imposição de responsabilidades marianistas sobre mulheres que procriam (Gonzaga, 2019Gonzaga, P. R. B. (2019). Sobre úteros que sangram e mulheres inteiras: uma aposta que a Psicologia pode - e deve - ser feminista, antirracista e decolonial. InP. R. B. Gonzaga , L. Gonçalves , & C. Mayorga (Orgs.), Práticas acadêmicas e políticas sobre o aborto (pp. 190-204). CRP04.).
Apontar essa lacuna implica também em destacar as produções que têm sido eclipsadas na psicologia por se ocuparem das problemáticas de saúde sexual e reprodutiva, produções que têm apresentado contribuições a partir da pesquisa (Lima, 2015Lima, M. R. P. (2015). Práticas e significados em torno da ultrassonografia obstétrica e aborto em Salvador-Brasil [Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Bahia].; Goncalves, 2019Gonçalves, L. (2019). Moralidades, justiça e interrupção voluntária da gestação: a produção de saúde mental para as mulheres como política pública de saúde integral [Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro].; Gonzaga, 2015Gonzaga, P. R. B. (2015). “Eu quero ter esse direito à escolha”: formações discursivas e itinerários abortivos em Salvador [Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Bahia].; Gonzaga & Aras, 2016Gonzaga, P. R. B., & Aras, L. M. B. (2016). O silêncio e a escuta: por uma psicologia que escute as mulheres que interromperam gestações. In A. Denega, D. S. V. Andrade, & H. M. Santos (Orgs.), Gênero na psicologia: saberes e práticas (pp. 101-125). CRP-03.; Queiroga, 1988Queiroga, M. M. (1988). A família negra e a questão da reprodução. Anais do Encontro de Estudos Populacionais, Olinda, 3(4), 323-340.; Ribeiro, 2017Ribeiro, P. B. (2017). Significados da maternidade para mulheres que vivenciaram a violência obstétrica [Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Bahia].; Senna & Sauer; 2016Senna, A., & Sauer, M. (2016). Transexualidade e saúde na cidade de Salvador. InA. Denega , D. S. V. Andrade , & H. M. Santos (Orgs.), Gênero na psicologia: saberes e práticas (pp. 140-156). CRP-03. ; Sousa & Cavalcanti, 2016Sousa, D., & Cavalcanti, C. (2016). Entre normas e tutelas: pensando (im)possibilidades da psicologia em interface com transgeneridades. In A. Degena, D. S. V. Andrade , & H. M. Santos (Orgs.), Gênero na psicologia: saberes e práticas (pp. 126-139). CRP-03. ), da extensão (Lima, Brito, & Firmino, 2011Lima, M., Brito, M., & Firmino, A. (2011). Formação em Psicologia para a atenção básica à saúde e a integração universidade-serviço-comunidade. Psicologia: Ciência e Profissão , 31(4), 856-867. https://doi.org/10.1590/S1414-98932011000400014
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; Gonzaga, Gonçalves, & Mayorga, 2019Gonzaga, P. R. B., Gonçalves, L., & Mayorga, C. (2019) Práticas acadêmicas e políticas sobre o aborto . Conselho Regional de Psicologia.); além de produções do próprio sistema conselhos (Gonzaga et al., 2019Gonzaga, P. R. B., Possari, P. D., Silva, L., & Pereira, J. (2019). Sangue, suor e empoderamento: intervenções psicossociais com jovens estudantes numa cidade do extremo sul baiano. Cadernos de Gênero e Tecnologia, 12(40), 25-44. https://periodicos.utfpr.edu.br/cgt/article/view/9269/6416
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; Zanello & Porto, 2016Zanello, V., & Porto, M. (2016). Aborto e (não) desejo de maternidade(s): questões para a Psicologia. CFP.) e que não têm recebido a devida atenção em nossos espaços de formação e atuação profissional por destacarem a necessidade de transpor abordagens circunscritas aos considerados clássicos da psicologia e/ou por se ocuparem de problemáticas consideradas espinhosas.
Cabe destacar que é disposto em nosso Código de Ética Profissional um compromisso indubitável com a defesa e a promoção dos direitos humanos, visando promover saúde, assim como contribuir com o fim dos modos de discriminação, humilhação, violência, negligência, opressão e exploração (CFP, 2005Conselho Federal de Psicologia. (2005). Código de Ética Profissional do Psicólogo. CFP.). Os direitos sexuais e os direitos reprodutivos são parte dos direitos humanos e dispõe sobre o direito de cada indivíduo gerir sua própria sexualidade e sua potencialidade reprodutiva sem constrangimento, coerção e violência. Para isso, estipula o acesso à informação, métodos contraceptivos, proteção e tratamento de infecções sexualmente transmissíveis e o direito inalienável de gozar do mais alto padrão de atenção à saúde sexual e a saúde reprodutiva, garantido que possam escolher se, quando e com qual espaçamento desejam ter filhos, que possam experimentar a própria sexualidade sem risco nem violência e que seja, em todo tempo, garantida a autonomia e a dignidade dos sujeitos em questão (Brasil, 2013Brasil. (2013). Cadernos de atenção básica: saúde sexual e saúde reprodutiva. Ministério da Saúde.).
Os serviços de saúde sexual e saúde reprodutiva são todos aqueles que oferecem assistência nesses campos, isto é: centros de aconselhamento, testagem e acompanhamento de infecções sexualmente transmissíveis; unidades básicas de saúde, onde se realizam pré-natal, exames preventivos, distribuição e orientação sobre contracepção; maternidades e centro obstétricos, nos quais se realizam partos, acompanhamento puerperal, atenção pós-abortamento; serviços de aborto legal para os casos previstos em lei; acompanhamento a vítimas de violência sexual; serviços nos quais se realiza esterilização voluntária; bem como serviços de acompanhamento ao processo de adequação sexual da população trans. Estes são apenas alguns exemplos que nos ajudam a dimensionar que saúde sexual e reprodutiva são demandas contínuas da vida humana, assim como se constituem como campo plural, dinâmico e capilarizado em diversas demandas que podem coexistir de modo paralelo, sucessivo, transversal. A(o) psicóloga(o) atua em muitos desses espaços, ainda que haja lacunas no que tange ao repertório teórico-metodológico que dispõe para essa atuação.
A proposta deste artigo consiste em apresentar, a partir de algumas cenas, reflexões acerca dos modelos de escuta e acolhimento que temos dispensado nesses serviços diante de demandas de saúde sexual e reprodutiva. Essas cenas exemplificam alguns dos entraves que identifiquei concernentes à aproximação da psicologia às políticas de saúde sexual e reprodutiva ao longo dos anos que tenho me dedicado a essa temática. Nesse momento de revisão e reflexão sobre os 60 anos de psicologia no Brasil, sinto-me impelida a propor que pensemos coletivamente como podemos construir uma atuação alinhada aos direitos humanos, comprometida ético-politicamente e ciente das opressões que se entrecruzam nesses serviços, de modo a garantir que os serviços de saúde sexual e saúde reprodutiva não sejam espaços de reprodução de violências perpetradas por profissionais do cuidado, inclusive por nós. Ao analisar essas modalidades de escuta e acolhimento, proponho que pensemos as ausências que marcam nossos currículos formativos, o aspecto determinista com que ainda lidamos com temas como maternidade, sexualidade e reprodução, e a possibilidade de construir estratégias de escuta e acolhimento pautadas numa perspectiva interseccional de cuidado.
Tendo como base as contribuições dos feminismos negro, do feminismo decolonial, e da psicologia feminista, proponho uma abordagem de acolhimento psicossocial que esteja alinhada com a compreensão dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos como direitos humanos inalienáveis e, ainda, com uma leitura crítica sobre o caráter compulsório da sexualidade e da maternidade na nossa sociedade. Para isso, recorro à postulação da filósofa e feminista decolonial Maria Lugones (2008Lugones, M. (2008). Colonialidad y género. Tabula Rasa, (9), 73-102.) de que a organização dos Estados-nação latino-americanos se dá a partir da implementação do sistema de gênero moderno/colonial, que estabelece um instrumental de desumanização de pessoas negras e indígenas, inclusive a dissolução das possibilidades de solidariedade entre vítimas do projeto colonial.
De acordo com Jimenez-Lucena (2014Jimenez-Lucena, I. (2014). Género, sanidad y colonialidad: la mujer marroqui’y la mujer española en la politica sanitaria de España en Marruecos. In W. Mignolo, Género y decolonialidad (pp. 43-64). Del Signo.), os antagonismos coloniais são reproduzidos a partir da relação que mulheres profissionais de saúde estabelecem com aquelas que buscam os serviços e, por uma leitura racista/colonial, são consideradas inferiores, irracionais, hipersexualizadas. A solidariedade, aqui, não é possível, pois, como defende Lugones (2008Lugones, M. (2008). Colonialidad y género. Tabula Rasa, (9), 73-102.), somos leais a esse sistema de gênero colonial/moderno, que estabelece um modelo único de ser mulher, modelo branco, cis-heterossexual, maternal, jovem, cristão; modelo esse que alija a maioria das brasileiras que dependem do Sistema Único de Saúde. Não por coincidência, essas mulheres - a quem a colonialidade impôs ficções poderosas, como uma suposta tolerância à dor, maior habilidade ao parir - são a maioria das que não conseguem acessar todas as consultas de pré-natal; das que recebem menos analgesia no parto, que são impelidas à peregrinação (Leal et al. 2017Leal, M. C., Gama, S. G. N., Pereira, A. P. E., Pacheco, V. E., Carmo, C. N., & Santos, R. V. (2017). A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, 33(Suppl 1.), e00078816. https://doi.org/10.1590/0102-311X00078816.
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); das que foram esterilizadas compulsoriamente nos anos 1980 em prol do embranquecimento nacional (Damasco, Maio, & Monteiro, 2012Damasco, M., Maio, M., & Monteiro, S. (2012). Feminismo negro: raça, identidade e saúde reprodutiva no Brasil (1975-1993). Revista Estudos Feministas, 20(1), 133-151. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2012000100008
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); são maioria das que morrem por complicações pós-abortamento, que resistem a buscar os serviços por medo de humilhações e maus tratos (Góes, 2018Góes, E. F. (2018). Racismo, aborto e atenção à saúde: uma perspectiva interseccional [Tese de doutorado, Universidade Federal da Bahia].); das vítimas de mortalidade materna em razão de Covid-19 desde o início da pandemia (Souza & Amorim, 2021Souza, A. S. R., & Amorim, M. M. R. (2021). Mortalidade materna pela Covid-19 no Brasil. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, 21(Suppl. 1), 253-256. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-38292021000100253&lng=pt
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).
A produção de políticas públicas que desconsideram aspectos estruturais de opressão, como classe, raça, territorialidade, geração, sexualidade, tem implicado em políticas públicas voltadas para uma ideia universal de mulher que não alcança a maioria daquelas que buscam os serviços (Akotirene, 2019Akotirene, C. (2019). Interseccionalidade. Pólen.). Isso reverbera em pouca efetividade e pouca revisão das imagens cristalizadas que muitos profissionais carregam e reproduzem sobre essas mulheres. Assim, urge a necessidade de construir uma atuação da psicologia que lance mão da interseccionalidade como ferramenta teórico-metodológica que ajuda a compreender cada sujeito em sua formação complexa, e não sob uma perspectiva que individualiza os afetos e afetações que vivenciam a partir das desigualdades sociais e da opressão sistemática. A psicologia inserida nas políticas públicas - aqui em destaque as políticas públicas de saúde sexual e saúde reprodutiva - não deve se manter alienada das discussões que escancaram o aspecto psicossocial de produção de sofrimento mental, negando os efeitos do racismo, do sexismo, da lesbotrans-homofobia, da xenofobia, do etarismo, do classismo nas experiências de sujeitos que têm vivenciado essas violências cotidianamente.
Em entrevista a Karla Adrião, a psicóloga feminista Michele Fine defende a importância de pensarmos os estudos e intervenção na psicologia sem segmentar variáveis e grupos, desconsiderando o caráter material, efetivo e cortante das injustiças sociais. Para as autoras, a psicologia feminista tem sido um campo de construção e complexificação de fenômenos até então reduzidos a aspectos individuais e de reflexão sobre a atuação profissional para além de um escudo falacioso de neutralidade (Adrião & Fine, 2015Adrião, K. G., & Fine, M. (2015). Feminismo, Psicologia, e justiça social: um encontro possível? Uma entrevista com Michelle Fine. Psicologia & Sociedade, 27(3), 479-493. https://doi.org/10.1590/1807-03102015v27n3p479
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). Mayorga (2014Mayorga, C. (2014). Algunas contribuciones del feminismo a la psicología social comunitaria. Athenea Digital, 14, 221-236.), ao abordar experiências em projetos de pesquisa e extensão realizados em Belo Horizonte (MG), destaca que o feminismo tem contribuído com a psicologia social comunitária na concepção de intervenções ético-políticas que escapam de certezas totais e se fortificam a partir do exercício constante da reflexividade e da compreensão de que, a partir da interseccionalidade, não fazemos psicologia para determinados grupos, mas fazemos psicologia com cada grupo, a cada encontro, a partir do que nos atravessa coletivamente.
Intento, com esta escrita, compartilhar com nossa categoria profissional a urgência de construirmos bases sólidas para a atuação em saúde sexual e saúde reprodutiva. Coadunando com Lima, Alves, Rebouças e Grave (2019Lima, M., Alves, J. B. Rebouças, F., & Grave, L. (2019). “Caruru de balbúrdia”: supervisão compartilhada em psicologia como prática de pesquisa. In B. Medrado & M. M. Teti (Orgs.), Problemas, controvérsias e desafios atuais em psicologia social. Abrapso. https://www.abrapso.org.br/download/download?ID_DOWNLOAD=610
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), o espaço da formação é admitido aqui como campo de produção de conhecimento e que provoca a reflexão sobre as demandas pungentes na nossa categoria profissional. Para as autoras, a supervisão de estágio, tal como o ritual alimentar do Caruru na Bahia, que é produzido a muitas mãos, promove a partilha horizontal dos incômodos, das incertezas e da inventividade a que o cotidiano em políticas públicas nos convoca.
Cena 1 - O revés de um parto: a escuta docilizadora dos afetos, da dor e da indignação
A enfermaria sinalizou uma demanda e a psicóloga nos levou ao leito. Encontramos o marido no corredor, a psicóloga parou e perguntou se poderia conversar com ele e com a esposa, ele responde que sim e entramos no quarto. Trata-se de um jovem casal negro, de 25 anos. A psicóloga nos apresentou, começou a conversar com ambos, ela fica mais calada, o marido começa a desabafar, conta sua história, relata estar na cidade há seis meses, que vieram de São Paulo, mas são nascidos numa cidade pequena do baixo sul e que esse seria o terceiro filho deles. Conta a história de como sua esposa perdeu o filho. Apresentando suas queixas, sua revolta pela esposa não ter tido toda a assistência necessária, ele diz: “Eu trouxe minha esposa duas vezes na maternidade sentindo dor e a mandaram embora, só davam remédio para dor, só na sexta-feira a internaram. Ela estava de 30 semanas, que, quando foram escutar os batimentos do coração do bebê, ele já não estava batendo, já estava morto, foi a demora que fez meu filho morrer. Se eles tivessem feito o ultrassom, isso não teria acontecido”. A psicóloga escuta e começa a explicar para eles não ficarem remoendo o que poderia ou não ser feito, não ficar procurando culpados: “Você não deve procurar um culpado, não tem culpado, foi uma fatalidade, aconteceu. Vocês precisam aceitar e mudar esses pensamentos, porque só irá trazer mais sofrimento para vocês dois. O seu filho foi um anjo, não está nas mãos da gente, o que pode acontecer, mas o tempo que seu bebê ficou dentro de você, dentro da sua barriga, ele sentiu o amor de vocês, você foi uma mãe excelente”. Falou sobre os cuidados para ambos, cuidados e repouso para a esposa, falou dos filhos que estão esperando por eles, do amor, do carinho que existe entre ambos, fala sobre o luto, sobre o choro: “Chorar faz bem, é normal no luto, vocês estão vivendo o luto pela perda de seu bebê, é normal. Se sentirem vontade de chorar, chorar faz bem, alivia a alma”. Ficamos nesse leito por bastante tempo, a psicóloga conversou bastante, a moça falou pouco, quem falou mais foi o marido. Até que entra a enfermeira no quarto, perguntando se eles queriam ver o bebê. Ele falou que sim; sua esposa não queria, mas a psicóloga falou para ela que seria bom, para ela se despedir do filho, então ela aceitou ir ver o filho. Na sequência, a psicóloga perguntou para nós se queríamos ir até o necrotério da maternidade com o casal, respondemos que sim. Ela perguntou para o casal se eles queriam que nós os acompanhássemos, ambos responderam que sim, que seria muito bom ter companhia nesse momento. Fomos juntos, caminhando bem devagar, porque a moça ainda estava debilitada do parto. Chegando no necrotério, ficamos na porta, e o casal e a enfermeira entraram. Ficaram alguns minutos, depois entrou um rapaz e chamou o pai para ir com ele no cemitério enterrar o bebê, e os dois entraram no carro e foram para o enterro, só os dois, mais ninguém. Fiquei refletindo: como deve ser triste estar sozinho nesse momento (Trecho do diário de campo de uma estagiária numa maternidade pública, 2019).
O desfecho de um parto é motivo de expectativas animadoras e aterrorizantes que circundam o imaginário popular acerca do momento do nascimento. No Brasil, os terrores se aproximam cada vez mais da realidade, principalmente para mulheres negras, com baixa escolaridade e moradoras de periferias urbanas ou da zona rural. A negativa de atendimento descrita nesse relato reflete uma problemática tão recorrente para as brasileiras, que foi nomeada como “peregrinação”. Isto é, quando a mulher em trabalho de parto ou com queixa referente à gravidez ou abortamento busca um serviço de saúde e tem o atendimento negado, seja porque alegam falta de vagas ou por considerarem que sua queixa não é urgente e que ela pode aguardar em casa até que se torne urgente. Como indicam pesquisas realizadas por Leal et al. (2017Leal, M. C., Gama, S. G. N., Pereira, A. P. E., Pacheco, V. E., Carmo, C. N., & Santos, R. V. (2017). A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, 33(Suppl 1.), e00078816. https://doi.org/10.1590/0102-311X00078816.
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), mulheres negras são maioria entre as que são impelidas à peregrinação, assim como são maioria entre as que vivenciam a negação da analgesia no momento do parto e têm o direito a acompanhante violado.
Essa disparidade escancara a realidade do racismo institucional nos serviços de saúde sexual e saúde reprodutiva no Brasil, sendo fundamental explicitar que racismo institucional “É descrito como o acesso desigual por conta do pertencimento racial a bens, serviços e oportunidades, sendo normativo, mesmo sem ser legalizado” (Góes, 2018Góes, E. F. (2018). Racismo, aborto e atenção à saúde: uma perspectiva interseccional [Tese de doutorado, Universidade Federal da Bahia]., p. 25). O mito racista e desumanizante de que mulheres negras seriam mais tolerantes à dor tem sido intensamente explorado na ginecologia e na obstetrícia e, fatalmente, tem sido parte basilar de sua própria história. Reconhecido como pai da ginecologia, James Marion Sims conduziu procedimentos cirúrgicos em jovens mulheres negras visando aprimorar a técnica cirúrgica de intervenção de fístulas vaginais e, para elas, a anestesia era considerada desnecessária (Gonzaga, 2019Gonzaga, P. R. B. (2019). Sobre úteros que sangram e mulheres inteiras: uma aposta que a Psicologia pode - e deve - ser feminista, antirracista e decolonial. InP. R. B. Gonzaga , L. Gonçalves , & C. Mayorga (Orgs.), Práticas acadêmicas e políticas sobre o aborto (pp. 190-204). CRP04.). Até que ponto essas premissas ainda operam nos processos de subjetivação que orientam as práticas nos serviços de saúde sexual e reprodutiva, reforçando uma relação colonial de desumanização de mulheres negras e indígenas, de distância entre nós e elas (Jimenez-Lucena, 2014Jimenez-Lucena, I. (2014). Género, sanidad y colonialidad: la mujer marroqui’y la mujer española en la politica sanitaria de España en Marruecos. In W. Mignolo, Género y decolonialidad (pp. 43-64). Del Signo.)? Isso nos convoca a pensar quem é o sujeito psicológico, mas também quem somos nós, psicólogas, e quais representações discriminatórias e deterministas carregamos para nossas práticas sem colocá-las em questão.
Não nos compete afirmar quais fatores culminaram no desfecho que esse relato nos traz. Mas cabe pensar: qual o papel da psicóloga diante dessa perda que também é vivida com revolta? É papel da psicóloga elencar quais comportamentos e sentimentos são legítimos nesse momento? Chorar é esperado, mas suspeitar, não; questionar, jamais. Quais manuais dão conta de nos dizer o que é legítimo sentir, dizer ou fazer diante do atravessamento da dor da perda com o reconhecimento da desigualdade? A escuta psicológica não deve se prestar a uma docilização dos afetos, tampouco numa deslegitimação das queixas que os sujeitos trazem a partir da suspeição de injustiças e violências que se materializam cotidianamente. É preciso conhecer os dados que nos mostram a gravidade do racismo institucional nos serviços de saúde e, mais especificamente, a gravidade dos números de mortalidade materna no Brasil para reconhecer que o sujeito não sofre apenas pelo luto, mas também pela indignação de quem reconhece um padrão recorrente de descaso em suas experiências.
Não existem respostas fáceis para situações extremas. Esquivar-se dos dilemas que nos convocam nos serviços de saúde sexual e saúde reprodutiva apenas relega à solidão e ao silêncio os sujeitos que buscam nossa escuta. Se não acolhemos sua indignação e suas dúvidas como dores reais, se nos colocamos como apaziguadoras da angústia, ainda que a materialidade a torne imperativa, que espaço produzimos para que o outro possa ser acolhido? Em outra cena relatada pelas estagiárias, a psicóloga é chamada para noticiar o falecimento de uma bebê que havia nascido com malformação cardíaca. Mais cedo, ainda que ciente da gravidade da situação, ela havia dito a essa mãe que estava e ficaria tudo bem com suas filhas, que eram gêmeas, ainda que uma delas estivesse em quadro grave na UTI. Ao aproximarem da enfermaria onde estava essa usuária, as estagiárias decidem ficar na porta pelo movimento de pessoas - familiares e profissionais - em torno dela.
Com a porta aberta, no corredor pudemos acompanhar as falas, os comportamentos e emoções da puérpera e dos familiares, assim como também o modo como a psicóloga interveio nesse momento, acionando um discurso idealizado do papel de mãe: “Oh, mãezinha, enquanto ela esteve em vida, foi bem cuidada, lembre que sua outra bebê precisa de você, pois seu leite pode secar, amamentar é emocional”, e também o: “seja forte” repetidas vezes (Trecho do diário de campo de uma estagiária numa maternidade pública, 2019).
A nossa escuta não deveria impelir a urgências - ver o corpo do filho, a preocupação com a prole que espera em casa, a produção de leite, a aceitação do inaceitável, a necessidade da força como único caminho - mas, talvez, acolher as incertezas, a fragilidade, os silêncios, os gritos, a dor manifesta com os recursos de que dispõem os sujeitos diante do que os atravessa. Sujeitos, ali, desprovidos de individualidade e reduzidos à função parental - o que se explicita no recorrente modo de chamar as mulheres internadas de mães ou mãezinhas, apagando o que demarca sua individualidade, seus próprios nomes. Sujeitos vivendo a tristeza de enterrar um filho numa terra estranha, na solidão extrema, no vazio de levar para casa uma filha que, ao nascer, perdeu a irmã e no desamparo de não ser acolhido naquilo que os atravessa. Como podemos demandar desses sujeitos força ou tranquilidade? Como podemos dizer qual o curso mais rápido ou mais fácil para o luto? Como podemos construir um manejo que considere a singularidade desse sujeito e também os aspectos estruturais do que os fere?
De acordo com Solaterrar (2021Solaterrar, U. S. C. (2021). Sobre AFROntar a casa-grande e botar a cara no sol: uma etnografia transviada de formas de gestão do sofrimento [Dissertação de mestrado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro].), urge uma reestruturação das bases que temos definido para nossas práticas de cuidado em psicologia. De acordo com o autor, para acolher o sujeito em sua angústia, precisamos reconhecer a historicidade, a coletividade e o tempo/espaço onde essa angústia é produzida e atualizada. Ainda nesse sentido, ele estipula três dimensões que devem ser alvo de nossa atenção. A primeira delas, a dimensão simbólica, demanda que reconheçamos o sujeito em sua singularidade compreendendo esta como uma expressão da sociedade em que ele se insere. Nas palavras do autor:
1) Dimensão Simbólica: nível da linguagem em seus diferentes modos de expressão escrita, verbal, gestual, corporal para ser possível desmontar as hierarquias de poder/saber coloniais que se estabeleceram entre quem está no lugar de quem cuida, o profissional, e quem está no lugar de quem é cuidado, o paciente, usuário etc., privilegiando e centralizando a linguagem verbal, falado e contada de acordo com uma perspectiva linear, acumulativa, racional e ocidental de história e partir de termos e expressões técnicas, formatadas, enquadradas. Em termos práticos, esse nível aponta para a necessidade de escutar de fato e não apenas a ouvir as diversas linguagens que uma pessoa traz consigo nos atendimentos que realizamos, uma linguagem que fala além dela, que é também ancestral, geracional, uma linguagem que fala de seu tempo, seu lugar, que fala sobre o hoje, mas também fala sobre o ontem. A escutar a linguagem da sua cor/raça, do seu gênero, sexo, classe, território, enfim, escutar seu lugar de origem e seu lugar de fala (Solaterrar, 2021Solaterrar, U. S. C. (2021). Sobre AFROntar a casa-grande e botar a cara no sol: uma etnografia transviada de formas de gestão do sofrimento [Dissertação de mestrado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro]., p. 242).
A suspeição pelo descaso teria outro lugar na escuta psicológica se compreendemos que ela denuncia a continuidade histórica de assimetrias racistas nas práticas de cuidado. Inclusive porque essas histórias não são tão excepcionais como gostaríamos de acreditar. O racismo institucional alinhado a práticas de violência obstétrica tem tornado nascimentos em momentos de despedidas, situação que se agravou ainda mais com a pandemia de Covid-19. De acordo com o Grupo Brasileiro de Estudos de Covid-19 e Gravidez (2020), até junho de 2020, a cada 100 casos de mortalidade materna em razão de Covid-19 no mundo, 77 eram mulheres brasileiras (Nakamura et al, 2020Nakamura-Pereira, M., Amorim, M. M. R., Pacagnella, R. C., Takemoto, M. L. S, Penso, F. C. C., Rezende-Filho, J. (2020). Covid-19 and maternal death in Brazil: An invisible tragedy. Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, 42(8), 445-447.). Em 2021, foram registrados 911 casos de mortalidade materna em razão de Covid-19 apenas até o mês de maio, com média de 47,9 óbitos semanais, o que já supera em demasia os números registrados ao longo de 2020 quando tivemos 544 vítimas fatais com média semanal de 12,11
1
Recuperado de https://agencia.fiocruz.br/sites/agencia. fiocruz.br/files/u34/boletim_covid_2021-semanas_20-21-red.pdf
(Fiocruz, 2021). Cabe destacar que esses índices podem ser significativamente maiores. Ao se debruçarem sobre dados produzidos entre 29 de dezembro e 31 de agosto de 2020, Souza e Amorim (2021Souza, A. S. R., & Amorim, M. M. R. (2021). Mortalidade materna pela Covid-19 no Brasil. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, 21(Suppl. 1), 253-256. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-38292021000100253&lng=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
) apontam que:
foram notificados 9.609 casos de SRAG em gestantes e puérperas, sendo 4.230 (44,0%) consideradas positivas para Covid-19. Dessas, 553 gestantes e puérperas foram a óbito, sendo 354 (64,0%) vidas perdidas pela Covid-19. Quando se compara a frequência de doentes por SRAG sem e com Covid-19, observa-se uma taxa de mortalidade por Covid-19 (8,4%) maior que a por SRAG por outras causas ou não determinadas (3,7%). Essa taxa pode ser ainda maior devido a fatores como subnotificação, dificuldades na realização dos exames laboratoriais e possíveis resultados falsos negativos (Souza & Amorim, 2021Souza, A. S. R., & Amorim, M. M. R. (2021). Mortalidade materna pela Covid-19 no Brasil. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, 21(Suppl. 1), 253-256. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-38292021000100253&lng=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s... , p. 259).
Nas análises produzidas por Souza e Amorim (2021Souza, A. S. R., & Amorim, M. M. R. (2021). Mortalidade materna pela Covid-19 no Brasil. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, 21(Suppl. 1), 253-256. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-38292021000100253&lng=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
), despontam como fatores que agudizam esses já alarmantes índices os reconhecidos problemas crônicos no âmbito da saúde da mulher no Brasil, bem como pré-natal deficitário, violência obstétrica, dificuldade de acessar os serviços, a falta de recursos e leitos, e, ainda, a desigualdade racial. O racismo estrutural implica nas condições prévias de saúde das mulheres negras e contribui para o agravante índice de que o risco de mortalidade materna por Covid-19 é duas vezes maior para esse grupo do que para mulheres brancas.
Cena 2: “Não existe Lei Maria da Penha que nos proteja”: a escuta investigativa/punitiva
A psicologia faz parte da equipe mínima prevista para o acompanhamento de casos de interrupção gestacional, seja nos casos previstos por lei, nos de abortamento espontâneo e naqueles em que a demanda se dá por complicações após interrupção realizada de modo inseguro (Brasil, 2011Brasil. (2011). Atenção humanizada ao abortamento: norma técnica (2a ed.). Série A, Normas e Manuais Técnicos, Caderno nº 4. Ministério da Saúde.). De acordo com Diniz, Medeiros e Madeiro (2017Diniz, D., Medeiros, M., & Madeiro, A. (2017). Pesquisa Nacional de Aborto 2016. Ciência & Saúde Coletiva, 22(2), 653-660. https://doi.org/10.1590/1413-81232017222.23812016
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
), uma a cada cinco mulheres brasileiras realizará uma interrupção voluntária da gravidez durante os anos de sua vida fértil. Esse número provavelmente é ainda maior se considerarmos que os dados foram produzidos apenas com mulheres alfabetizadas e das zonas urbanas do país. Abortar num país que criminaliza a prática não é decisão fácil, ainda mais quando consideramos que a penalização, antes de ser jurídica, é social e marcadamente religiosa (Gonzaga, 2015Gonzaga, P. R. B. (2015). “Eu quero ter esse direito à escolha”: formações discursivas e itinerários abortivos em Salvador [Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Bahia].). São inúmeros os fatores que levam mulheres a essa decisão, e é preciso aprimorar nossas lentes analíticas para entender o abortamento como fenômeno complexo, e não apenas como desvio do comportamento maternal esperado para mulheres ou, ainda, um modo de ocultar relações sexuais consideradas impróprias.
Ao exercício da sexualidade das mulheres, têm sido atribuídos adjetivos que às caracterizam, por exemplo, como irresponsáveis e promíscuas, por exercerem a sexualidade que, repito, não é crime no Brasil. Sobre a deliberação pelo aborto, outros adjetivos têm sido colados às mulheres, tais como “criminosas”, “monstruosas”, “assassinas”, empobrecendo absolutamente a possibilidade de compreensão de todos esses elementos. Estas posições performáticas tenho caracterizado como violências psicológicas contra as mulheres, e atribuo a isso boa parte dos fatores de risco que podem não somente produzir algum dano psíquico às mulheres cissexuais, como impedir o acesso destas e dos homens transexuais aos cuidados integrais à saúde (Gonçalves & Sposito, 2019Gonçalves, L., & Sposito, S. H. (2019). A posição do Conselho Federal de Psicologia sobre a ADPF-442 em audiência no Supremo Tribunal Federal. In P. R. B. Gonzaga, L. Gonçalves, & C. Mayorga (Orgs.), Práticas acadêmicas e políticas sobre o aborto (pp. 98-106). CRP04., p. 105).
A restrição do acesso aos serviços se configura como um agravante aos riscos que já estão demarcados na condição de clandestinidade do abortamento. Em sua tese de doutoramento, Góes (2018Góes, E. F. (2018). Racismo, aborto e atenção à saúde: uma perspectiva interseccional [Tese de doutorado, Universidade Federal da Bahia].) constata que mulheres negras, diante de complicações decorrentes de uma prática insegura de interrupção gestacional, postergam a ida aos serviços de saúde por receio de constrangimentos, maus tratos e humilhações. O reconhecimento dos espaços que deveriam promover cuidado como potenciais espaços de violação de direitos tem impacto na saúde e na finalização desses itinerários abortivos. Como a autora indica, mulheres negras têm três vezes mais chances de morrer em razão de complicações pós-abortamento do que mulheres brancas. Esses medos estão longe de ser infundados. Uma das interlocutoras da minha tese de doutorado narra a forma como foi tratada ao vivenciar um aborto espontâneo:
Foi horrível, eu não gostei de nada, não gostei da sensação, abortei e foi uma das coisas piores de sofrer racismo na maternidade. Porque eu tomei um abortivo no primeiro mês, depois eu não tomei mais, então não rolou. Então, só porque eu era preta, a médica disse que eu tinha tomado algum abortivo, e eles me trataram muito mal, eu fui espancada dentro do hospital. Eu saí de lá com um hematoma aqui (aponta pra mão) desse gesto aqui (bate com dois dedos e aperta a veia da mão) pra puxar a veia e enfiar a agulha. A mulher batia, e eu tava acordando e desacordando de dor e de alguma droga que tinham me dado. Então eu tava assim, e ela dizendo: “vai dizer agora que eu tô batendo em você?” e ela tava me torturando. A enfermeira me torturou na sala de curetagem e a médica me chamou de assassina, eu nunca vou esquecer isso. Ela: “você tomou o quê? Você tá drogada? Você fumou alguma coisa?” E eu não conseguia articular, eu nunca tinha sentido uma dor daquela, gente, eu era jovem, eu tinha 21 anos. E aí ela falou um negócio e eu cuspi na cara dela, que era a única ação que eu tinha pra me defender, e ela foi pra dar na minha cara e alguém segurou ela e começou a falar: “você é maluca?”. Aí eu comecei a gritar, e ela disse: “leva essa assassina pra sala de curetagem”. Se fosse uma mocinha branca, eu duvido que tivesse passado por isso. Então a gente tem essas marcas todas, tenho todas essas marcas dentro de mim. Nós, pretas, passamos por coisas, tipo, a médica, ela ia fazer um exame de toque, eu fiquei com um canal cortado, as paredes de arranhão. São formas de se vingar e de manifestar seu racismo, né, e eu era inocente, eu não tinha feito nada, eu só era preta e pobre e tava numa maternidade pública. “Ah, na hora de foder não doeu”. E tome a torturar, tortura psicológica e tortura física. Então foi apavorante descobrir a gravidez, continuá-la, perder os filhos e ir pra maternidade, foi tudo ruim, talvez os piores momentos da minha vida (Iyá Adetá2 2 Nome fictício atribuído à interlocutora para publicação da tese e de produções decorrentes deste trabalho. , aos 39 anos, encontro realizado em fevereiro de 2019).
A experiência que Iyá Adetá aponta como um dos piores momentos de sua vida transcorre sem que apareça, em nenhum momento, a figura da psicóloga. Ao entrevistar psicólogas que atuavam em maternidades públicas de Salvador, elas me narraram que só atendiam casos de abortamento quando eram convocadas pela equipe de enfermagem a partir de algum comportamento lido como inapropriado ou preocupante (Gonzaga & Aras, 2016Gonzaga, P. R. B., & Aras, L. M. B. (2016). O silêncio e a escuta: por uma psicologia que escute as mulheres que interromperam gestações. In A. Denega, D. S. V. Andrade, & H. M. Santos (Orgs.), Gênero na psicologia: saberes e práticas (pp. 101-125). CRP-03.). Divergindo do que preconiza a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento (2011Brasil. (2011). Atenção humanizada ao abortamento: norma técnica (2a ed.). Série A, Normas e Manuais Técnicos, Caderno nº 4. Ministério da Saúde.), parece que estamos numa posição holográfica nessas equipes mínimas, talvez porque outras categorias profissionais desconheçam nosso papel nesses cenários, talvez porque seja tema desconhecido também por nós.
A atuação da psicologia em políticas públicas demanda das profissionais o reconhecimento da história da nossa profissão e da história das relações sociais no nosso país. A tortura, física e psicológica, como nomeia Iyá Adetá, se dá pelo exercício do poder de que profissionais de saúde gozam não apenas por sua função historicamente prestigiada, mas por sua posição de classe e raça que os outorga a uma condição de parâmetro de humanidade calcada no lado oculto da colonialidade, aquele que justifica o horror pela adequação daqueles(as) considerados(as) outros(as) (Lugones, 2008Lugones, M. (2008). Colonialidad y género. Tabula Rasa, (9), 73-102.). Vigilantes de uma moral cristã, burguesa, cis-heteronormativa, racista e patriarcal, esses se tornam agentes de investigação e punição, ávidos por executar as sentenças que introjetaram ao longo de suas vidas. Januário Silva, Moreira e Gonzaga (2019Silva, A. C. J., Moreira, L. E., & Gonzaga, P. R. B. (2019). Entre o risco da morte e o medo da denúncia: mulheres indiciadas por abortamento a partir de denúncias de profissionais de saúde. Cadernos de Gênero e Diversidade, 5(3), 165-189. https://doi.org/10.9771/cgd.v5i3.30596
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) apontam que o sigilo profissional é direito da paciente e dever do profissional de saúde, previsto na Constituição Federal de 1988 e no Código Penal de 1940. A despeito disso, ao analisar a jurisprudência de Minas Gerais e São Paulo, as autoras constatam que denúncias contra mulheres que abortam são majoritariamente protagonizadas por profissionais da saúde que acessaram essas mulheres em exercício de sua função.
A psicologia, durante muito tempo, operou em prol da adequação ao modelo capitalista, da redução da subjetividade aos modelos biomédicos, em defesa de parâmetros burgueses de higienização social, controle populacional, categorização de indivíduos e desresponsabilização do Estado, psicologizando problemáticas estruturais (Gesser, 2013Gesser, M. (2013). Políticas públicas e direitos humanos: desafios à atuação do Psicólogo. Psicologia: Ciência e Profissão, 33(n. spe.), 66-77. https://www.scielo.br/j/pcp/a/jmLTTRQNwjmZbZr899JvJ8K/?format=pdf⟨=pt
https://www.scielo.br/j/pcp/a/jmLTTRQNwj...
), logo não devemos nos precipitar em supor que superamos essas concepções. Numa das cenas nas quais isso se materializa, as estagiárias recebem, junto à psicóloga, o encaminhamento de uma adolescente que foi admitida no serviço em razão de abortamento que ocorreu em casa. A mãe telefonou e foi orientada a levar a filha e o produto da expulsão à unidade.
Após as orientações, nos dirigimos à enfermaria onde ela estava esperando os exames junto com a mãe. A preceptora perguntou o que ocorreu e logo a mãe relatou a situação. Foi possível perceber em sua fala algumas contradições com o relato que haviam nos passado. Em nenhum momento deixou a filha responder às perguntas, até o momento que ela precisou sair do quarto e a psicóloga se dirigiu à adolescente perguntando como ela estava se sentindo naquele processo. Ela disse: “tô indo”, a aparência dela era de sofrimento, estava cabisbaixa e encolhida na cama. A psicóloga pontuou: “não se sinta mal, você não sabia, não é verdade? Logo não tinha como se cuidar, se você não sabia, então não tinha culpa de nada, fica bem”, e saímos da sala. Mais uma vez achei que a psicóloga foi violenta, porque claramente ela acreditava que a moça havia feito o aborto, e dizer que ela não devia se sentir mal porque não sabia de nada é apostar que, se ela fez premeditadamente, a angústia e a culpa vão aumentar. Me entristece, principalmente porque, após a consulta, ela nos conduziu para a discussão dos motivos que fizeram a fala mãe da adolescente parecer contraditória e, em algum momento, disse: “levem a sua culpa por assassinato de um incapaz” (Trecho do diário de campo de uma estagiária numa maternidade pública, 2019).
O incômodo que a estagiária explicita no relato foi compartilhado por todas durante a reunião de supervisão. Qual o princípio que organiza essa intervenção? Quem definiu que essa adolescente e sua mãe são assassinas? Compete a nós, em nosso exercício profissional, desejar pela punição de um sujeito que não foi oficialmente declarado culpado? Ainda mais grave: compete a nós a produção de um manejo que promova nesse sujeito a agudização do mal-estar que pressupomos estar vivenciando? A escuta que ambiciona investigar e/ou punir mulheres em situação de abortamento é uma ferramenta perniciosa que transborda as barreiras disciplinares, mas é especialmente grave quando praticada por nós, psicólogas. Pressupõe-se que nossa participação nessas equipes possibilita um espaço de cuidado livre de julgamentos e estereótipos, que seremos capazes de conduzir um acolhimento que respeite a autonomia da mulher, que poderemos revisitar com elas os sentidos da maternidade, a sexualidade, possíveis situações de violência e o significado dessa gravidez que foi interrompida (Brasil, 2011Brasil. (2011). Atenção humanizada ao abortamento: norma técnica (2a ed.). Série A, Normas e Manuais Técnicos, Caderno nº 4. Ministério da Saúde.). Estamos cientes disso? Preconiza ainda o Conselho Federal de Psicologia, no 4º artigo da Resolução nº 8, de 7 de julho de 2020Conselho Federal de Psicologia. (7 jul. 2020). Resolução n. 8, de 7 de julho de 2020. Diário Oficial da União. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2020/07/Resolu%C3%A7%C3%A3o-CFP-n%C2%BA-082020.pdf
https://site.cfp.org.br/wp-content/uploa...
:
Em relação à mulher, seja ela cisgênero, transexual ou travesti, e à pessoa com expressões não binárias de gênero, dentre outras, considerados os aspectos de raça, etnia, orientação sexual, deficiência, a psicóloga e o psicólogo contribuirão para:
-
não intensificar processos de medicalização, patologização, discriminação, estigmatização;
-
não usar instrumentos, métodos, técnicas psicológicas que criem, mantenham, acentuem estereótipos;
-
não desenvolver culturas institucionais discriminatórias, assediadoras, violentas;
-
não legitimar ou reforçar preconceitos;
-
não favorecer patologizações e revitimizações; e
-
não prejudicar a autonomia delas.
Ainda que seja preciso consolidar, na nossa formação, um debate sobre a atuação da psicologia na saúde sexual e reprodutiva, é digno de nota que os conselhos federal e estaduais têm avançado e provocado a categoria a rememorar o princípio ético básico de não causar malefício nem coadunar com outrem que o faça. Para compreender isso, precisamos recusar a postura de detentoras de verdade que assumimos diante do que nos mobiliza. A interrupção gestacional é uma realidade no Brasil e no mundo. Humilhar, constranger e perseguir as mulheres não mudará esse fato, e tais condutas jamais devem ser consideradas como postura aceitável para um profissional no exercício de sua função. Ao nos distanciarmos de uma prática promotora de direitos humanos - isso inclui os direitos sexuais e reprodutivos - perpetuamos padrões de violação, negligência e maus tratos que ampliam a solidão vivenciada por essas nesses serviços e reforçam a representação comum para elas de que os serviços de saúde são espaços a serem evitados, o que agudiza potencialmente a vulnerabilização dessas mulheres e de suas redes diante de problemas de saúde ou de situações de violência.
Cena 3: “No fim das contas, é tudo Ismália”: imagens cristalizadas e a escuta comprometida/generalista
Foi solicitado pela enfermeira o atendimento de uma menina de 14 anos que estava passando por uma curetagem. Dirigimo-nos à menina, que estava sozinha nesse momento, e a psicóloga perguntou como estava se sentindo. Ela disse que bem, que foi uma surpresa, que estava em estado de choque, salientou que a mãe que não estava bem e que demonstrava estar abalada. A psicóloga pontuou: “às vezes, para a mãe da gente, é difícil nos ver crescendo e fazendo coisas de adultos, dá um tempo para ela conseguir entender tudo também”. Entendemos que o direcionamento da intervenção dela era motivado porque ela acreditava que a curetagem ocorreu pela existência de restos fetais, entretanto, ao olharmos posteriormente o prontuário, tratava-se de uma suspeita de câncer no útero, a retirada foi do possível nódulo (Trecho do diário de campo de uma estagiária numa maternidade pública, 2019).
A hiperssexualização de meninas e mulheres negras e indígenas tem fomentado a naturalização de violências, a negação de cuidados básicos e a violação de direitos que deveriam ser invioláveis (Gonzaga, 2019Gonzaga, P. R. B. (2019). Sobre úteros que sangram e mulheres inteiras: uma aposta que a Psicologia pode - e deve - ser feminista, antirracista e decolonial. InP. R. B. Gonzaga , L. Gonçalves , & C. Mayorga (Orgs.), Práticas acadêmicas e políticas sobre o aborto (pp. 190-204). CRP04.). Nessa cena, a psicóloga, ao saber da realização da curetagem, produz automaticamente duas imagens consolidadas: trata-se de um aborto resultante de uma relação sexual consentida pela adolescente. De onde vem essas certezas? No Código Penal Brasileiro, estipula-se que qualquer intercurso sexual com pessoa de idade inferior a 14 anos deve ser considerado estupro. Ainda assim, a abordagem com que essa garota de exatos 14 anos é recebida deixa pouca margem para que ela diga o que lhe aconteceu, consolidando-se como um espaço para que a psicóloga afirme o que ela supõe saber. Essa certeza é tão eficaz no silenciamento de sujeitos que o “atendimento” termina sem que se desfaça o engano. A menina estava com suspeita de câncer, e essa angústia, esse medo, essa dor não foi abordada, porque, ao encontrá-la, o que a psicóloga viu foi sua suposta adultez. E se fosse efetivamente uma curetagem em razão de um aborto incompleto, caberia a certeza de que essa menina estava “fazendo coisas de adulto” em vez de permiti-la falar sobre como havia chegado até esse desfecho? Retomo a proposta de Solaterrar (2019) de uma revisão da escuta e do cuidado, destacando a segunda dimensão que o autor nos aponta:
2) Dimensão Estética: nível da imagem, da representação imagética, dos estereótipos e retratos preconcebidos que nos tomam por meio de flashes automáticos que criam fotografias instantâneas ao vermos uma pessoa, nível do olhar que não se confunde com a mera visão superficial e colonizada. Aqui se aposta no desmonte das categorizações apressadas que se faz ao olharmos para alguém que chega até nós e traz consigo um corpo com um cabelo, lábios, cor, boca, forma de andar, se posicionar, parar, modo de gesticular e se comportar. Em termos práticos, indica-se o investimento na (des)construção de outras imagens sobre essa pessoa, que não fiquemos apenas com a imagem automatizada e estereotipada, que possamos ir além da velha “primeira impressão”. Como fazer isso? Dando a oportunidade para que a pessoa nos apresente essas outras imagens de si através de fotografias, imagens que escolher para falar de si, cenas e retratos que nos permita alcançar que a estrada vai além do que se vê (Solaterrar, 2021Solaterrar, U. S. C. (2021). Sobre AFROntar a casa-grande e botar a cara no sol: uma etnografia transviada de formas de gestão do sofrimento [Dissertação de mestrado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro]., p. 243).
É preciso politizar nosso olhar para aprimorar nossa escuta. Ao defender uma psicologia que se pretende neutra, ocultamos as representações racistas, classistas, capacitistas, etaristas, cis-heteronormativas, xenofóbicas, gordofóbicas que introjetamos, ao longo de nossas vidas, que, em muitas situações, como na cena descrita acima, anulam a realidade do sujeito para fazer vigorar o que acreditamos ser real. Akotirene (2019Akotirene, C. (2019). Interseccionalidade. Pólen.) destaca que a construção de políticas públicas de proteção à mulher é voltada para mulheres distintas daquelas que buscam os serviços e, no caso de meninas e mulheres negras e indígenas, a hiperssexualização tem produzido uma negativa sistemática da veracidade de suas denúncias ou de espaço para que possam ao menos enunciá-las.
A isso devemos sinalizar que a violência tem sido considerada um problema global de saúde pública que, além de onerar o Estado no que tange ao cuidado diante dos agravos, é responsável por desdobramentos que afetam a saúde física e psíquica dos sujeitos envolvidos (Dahlberg & Krug, 2006Dahlberg, L. L., & Krug, E. G. (2006). Violência: um problema global de saúde pública. Ciência & Saúde Coletiva, 11(suppl.), 1163-1178. https://doi.org/10.1590/S1413-81232006000500007
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
). No Brasil, seguindo uma tendência que marca o território latino-americano, a violência contra mulheres consiste num grande desafio para que avancemos rumo à igualdade de gênero. Schraiber, d’Oliveira e Portella (2009Schraiber, L. B., d’Oliveira, A. F. P., & Portella, A. P. (2009). Violência de gênero no campo da saúde coletiva: conquistas e desafios. Ciência & Saúde Coletiva , 14(4), 1019-1027. https://doi.org/10.1590/S1413-81232009000400009
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) alertam que persiste a negação histórica da violência contra mulheres como problema de saúde que deve ser objeto de intervenção científica e profissional. Essa negação tem sido fissurada pelas contribuições de pesquisadoras feministas que apontam o caráter falacioso de que essas violências seriam de domínio do privado, defendendo a máxima feminista de que o privado também é político (Adrião & Fine, 2015Adrião, K. G., & Fine, M. (2015). Feminismo, Psicologia, e justiça social: um encontro possível? Uma entrevista com Michelle Fine. Psicologia & Sociedade, 27(3), 479-493. https://doi.org/10.1590/1807-03102015v27n3p479
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; Mayorga, 2014Mayorga, C. (2014). Algunas contribuciones del feminismo a la psicología social comunitaria. Athenea Digital, 14, 221-236.).
Essa não é uma premissa consolidada, haja vista as recentes investidas do poder público contra as políticas de educação sexual de crianças e adolescentes, alegando que essas seriam questões restritas ao âmbito familiar (Corrêa & Kalil, 2020Corrêa, S., & Kalil, I. (2020). Políticas antigénero en América Latina: Brasil - ¿La catástrofe perfecta? Asociación Brasileña Interdisciplinar de SIDA. https://sxpolitics.org/GPAL/uploads/Ebook-Brasil%2020200204.pdf
https://sxpolitics.org/GPAL/uploads/Eboo...
). Oferecer ações que promovam saúde sexual e saúde reprodutiva para adolescentes e jovens, principalmente estudantes da rede pública de ensino, é dever do Estado e direito desse grupo social, que carece de acesso a informações sobre o funcionamento do seu corpo, sobre consentimento, sobre afetividade e sexualidade, sobre respeito e modos de proteção de si e de suas possíveis parcerias afetivo-sexuais. Na experiência de extensão relatada por Lima et al. (2011Lima, M., Brito, M., & Firmino, A. (2011). Formação em Psicologia para a atenção básica à saúde e a integração universidade-serviço-comunidade. Psicologia: Ciência e Profissão , 31(4), 856-867. https://doi.org/10.1590/S1414-98932011000400014
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
), oficinas de promoção de saúde sexual e saúde reprodutiva possibilitaram um espaço formativo para estudantes de psicologia no âmbito da atenção básica. Os resultados desse projeto entre 2007 e 2010 são admiráveis: “capacitaram-se 308 graduandos CPL - Psico, entre eles, mais recentemente, alguns do BI de humanidades e de saúde, que realizaram 149 oficinas, atingindo 4.550 jovens estudantes, com distribuição de 8.500 preservativos masculinos e femininos” (Lima et al., 2011Lima, M., Brito, M., & Firmino, A. (2011). Formação em Psicologia para a atenção básica à saúde e a integração universidade-serviço-comunidade. Psicologia: Ciência e Profissão , 31(4), 856-867. https://doi.org/10.1590/S1414-98932011000400014
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
, p. 863).
Em 2018, implementei um projeto de extensão que visava, entre outras ações, replicar a oficina Árvore dos Prazeres, a mesma que foi utilizada por Lima et al., (2011Lima, M., Brito, M., & Firmino, A. (2011). Formação em Psicologia para a atenção básica à saúde e a integração universidade-serviço-comunidade. Psicologia: Ciência e Profissão , 31(4), 856-867. https://doi.org/10.1590/S1414-98932011000400014
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
), e que está no documento do Programa Saúde e prevenção nas escolas: atitude pra curtir a vida (Brasil, 2005Brasil. (2005). Saúde e prevenção nas escolas: atitude pra curtir a vida. Ministério de Saúde.). Em uma dessas oficinas, próximo ao fechamento do encontro, percebemos algumas estudantes rindo e cochichando. Provocamos que elas compartilhassem conosco, já que era uma tarde de trocas, ao que uma delas nos diz:
tem uma menina aqui na escola, agora ela tem 14 anos, aí vocês tavam falando de proteção em sexo oral, e a gente lembrou que ela fica contando agora que ela foi abusada quando tinha 12 anos, mas não foi, ela foi pra casa de um menino que era namorado dela e, chegando lá, os amigos dele tavam lá também, e ela fez sexo oral nos quatro. Antes ela contava de boa, agora fica querendo aparecer que foi abusada, que ela não queria. Aí ela fica usando isso como desculpa pra não fazer sexo oral no namorado dela de agora, fica dizendo que tá traumatizada (Relato da Oficina Árvore dos Prazeres, 2018) (Gonzaga, Possari, Silva, & Pereira, 2019Gonzaga, P. R. B., Possari, P. D., Silva, L., & Pereira, J. (2019). Sangue, suor e empoderamento: intervenções psicossociais com jovens estudantes numa cidade do extremo sul baiano. Cadernos de Gênero e Tecnologia, 12(40), 25-44. https://periodicos.utfpr.edu.br/cgt/article/view/9269/6416
https://periodicos.utfpr.edu.br/cgt/arti... , p. 34).
A naturalização da violência sexual, especialmente quando envolve alguém do convívio da vítima, tem sido um dificultador significativo para que consigamos um número fidedigno sobre a magnitude da violência sexual no Brasil. Casos como o descrito no relato, contados entre risos e suspeição, desestimulam que meninas e mulheres denunciem ou, ainda, que se quer nomeiem certas experiências como violência. Nesse momento, interrompemos o fluxo que seguia o fechamento da oficina e interpelamos as adolescentes sobre o que significa consentimento e sobre como é difícil reconhecer que alguém a quem dispensamos confiança pode ser um abusador. Entre as que riam, algumas insistiam que o problema seria essa garota, que ela teria um histórico que abonava os adolescentes envolvidos. Entre as demais, algumas passaram a sinalizar o desconforto diante do tom como as colegas contavam essa história (Gonzaga et al., 2019Gonzaga, P. R. B., Possari, P. D., Silva, L., & Pereira, J. (2019). Sangue, suor e empoderamento: intervenções psicossociais com jovens estudantes numa cidade do extremo sul baiano. Cadernos de Gênero e Tecnologia, 12(40), 25-44. https://periodicos.utfpr.edu.br/cgt/article/view/9269/6416
https://periodicos.utfpr.edu.br/cgt/arti...
). É importante salientar que a risada não vulnerabiliza apenas que tem sua história narrada, mas reforça para todas, inclusive para as que riem, a crença de que há um compromisso tácito de propriedade que outorgam aos rapazes/homens quando se envolvem com estes. Expõe todas a uma crença perniciosa de que não podem reclamar se sua desistência não foi respeitada ou se não conseguiram expressar isso verbalmente.
Cabe destacar que essas meninas eram majoritariamente negras. Crescem com o reforço perverso de uma imagem hipersexualizada sobre seus corpos, sobre sua sexualidade, sobre sua potência reprodutiva (Gonzaga, 2019Gonzaga, P. R. B. (2019). Sobre úteros que sangram e mulheres inteiras: uma aposta que a Psicologia pode - e deve - ser feminista, antirracista e decolonial. InP. R. B. Gonzaga , L. Gonçalves , & C. Mayorga (Orgs.), Práticas acadêmicas e políticas sobre o aborto (pp. 190-204). CRP04.; Lugones, 2008Lugones, M. (2008). Colonialidad y género. Tabula Rasa, (9), 73-102.). A presença da psicologia nesse espaço consolida um compromisso ético-político de revisão de relações de poder que estão há muito operantes e cristalizadas, possibilita que futuras(os) psicólogas(os) compreendam que a sexualidade está para além de determinismos biológicos ou psicológicos, estando entrelaçada em ficções poderosas que reforçam assimetrias estruturais que potencializam ou interditam a condição de sujeito dos indivíduos. Nesse sentido:
Recusar o debate sobre sexualidade no ambiente escolar não irá cessar a prática sexual, mas sim fortalecer condutas abusivas, desprotegidas, mal informadas e violências contra crianças e adolescentes. Relatos de abuso sexual, muitas vezes justificado e naturalizado como vimos nessa experiência, acontecem todos os dias e a escola deve ser um lugar seguro para que meninas e adolescentes possam reportar caso vivenciem isso (Gonzaga et al., 2019Gonzaga, P. R. B., Possari, P. D., Silva, L., & Pereira, J. (2019). Sangue, suor e empoderamento: intervenções psicossociais com jovens estudantes numa cidade do extremo sul baiano. Cadernos de Gênero e Tecnologia, 12(40), 25-44. https://periodicos.utfpr.edu.br/cgt/article/view/9269/6416
https://periodicos.utfpr.edu.br/cgt/arti... , p. 38).
Um desses casos veio à tona em 2020, com a notícia da criança de 10 anos que estava grávida em razão de estupros cometidos desde os seus 6 anos de idade em São Mateus. A despeito desse caso e de a interrupção da gravidez estar assegurada entre os permissivos legais garantidos pelo Código Penal de 1940, essa criança teve acesso negado em seu estado de origem e precisou ir até Pernambuco para realizar o procedimento. Na capital, Recife, foi aguardada por pessoas que expressavam seu descontentamento com o desfecho da situação, rezavam, gritavam, ameaçavam, enquanto alegavam estar ali em defesa da vida. Cena semelhante ocorreu em 2009 com a excomunhão da equipe médica e da mãe de uma criança de 9 anos que realizou uma interrupção gestacional após ser estuprada pelo padrasto. Esses casos, separados por mais de uma década, revelam a continuidade da precariedade dos serviços de aborto legal e de prevenção a agravos decorrentes de violência sexual no Brasil.
Ao analisar dados de diversos países sobre violência sexual, Dahlberg e Krug (2006Dahlberg, L. L., & Krug, E. G. (2006). Violência: um problema global de saúde pública. Ciência & Saúde Coletiva, 11(suppl.), 1163-1178. https://doi.org/10.1590/S1413-81232006000500007
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) destacam que é fundamental reconhecer que aspectos culturais impactam significativamente nos registros desses casos, sendo muito comum a compreensão de que uma violência não fatal não deve ser reportada, sendo a vítima desestimulada a denunciar por vergonha, medo, insegurança e autorrecriminação. Nesse sentido, cabe salientar que a integridade dessas duas meninas, aviltadas pela exposição pública que agudiza a materialização da violência, são ilustrações ainda ínfimas dos casos que nem ao menos chegam aos serviços ou, se chegam, são apenas recusados por justificativas simplórias. Em pesquisa realizada com profissionais e gestores de nove serviços da rede municipal de saúde em Fortaleza, capital do Ceará, Moreira, Vieira, Cavalcanti, Silva e Feitoza (2020Moreira, G. A. R., Vieira, L. J. E. S., Cavalcanti, L. F., Silva, R. M., & Feitoza, A. R. (2020). Manifestações de violência institucional no contexto da atenção em saúde às mulheres em situação de violência sexual. Saúde e Sociedade, 29(1), e180895. https://doi.org/10.1590/S0104-12902020180895
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) constataram que, para a maior parte dos profissionais entrevistados, a violência sexual muitas vezes não é perceptível no cotidiano do serviço por geralmente não aparecer como demanda explícita, o que as autoras concluem que é ainda mais difícil de ser feito quando os abusadores são familiares, parceiros ou pessoas do convívio da vítima.
Justamente por se tratar de um fenômeno complexo e de gravidade crônica no nosso país, a violência sexual é objeto de algumas políticas públicas e deve ter atenção de profissionais que atuam nessa rede (Moreira et al, 2020Moreira, G. A. R., Vieira, L. J. E. S., Cavalcanti, L. F., Silva, R. M., & Feitoza, A. R. (2020). Manifestações de violência institucional no contexto da atenção em saúde às mulheres em situação de violência sexual. Saúde e Sociedade, 29(1), e180895. https://doi.org/10.1590/S0104-12902020180895
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; Silva et al., 2019Silva, J. G., Branco, J. G. O., Vieira, L. J. E. S., Brilhante, A. V. M., & Silva, R. M. (2019). Direitos sexuais e reprodutivos de mulheres em situação de violência sexual: o que dizem gestores, profissionais e usuárias dos serviços de referência?1. Saúde e Sociedade , 28(2), 187-200. https://doi.org/10.1590/S0104-12902019180309
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). A Norma Técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes de Violência Sexual Contra Mulheres e Adolescentes (Brasil, 2012Brasil. (2012). Norma Técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes de Violência Sexual Contra Mulheres e Adolescentes. Caderno nº 6. Ministério da Saúde.) prevê que a atenção a mulheres e adolescentes que vivenciaram essa situação deve ser interdisciplinar, com uma articulação intersetorial que favoreça a continuidade do cuidado e da assistência. Também estabelece que o atendimento, o acesso à contracepção de emergência e a interrupção gestacional decorrente de estupro não devem estar condicionados à realização da denúncia formal, ou seja, ao registro do Boletim de Ocorrência. Essa foi uma grande conquista para as mulheres, mas que infelizmente sempre esbarrou em inúmeras dificuldades para ser implementada de modo eficaz. Numa das primeiras reuniões que tive com a psicóloga que seria a preceptora do estágio, perguntei se na maternidade realizavam interrupções gestacionais nos casos previstos em lei. Ela me respondeu que, em caso de estupro, faziam mediante apresentação do Boletim de Ocorrência e realização do exame de corpo de delito. Questionei se essa era uma exigência condicionante, considerando que a legislação vigente indicava que não era obrigatório, ao que ela me respondeu: “não sei disso, não, aqui a lei é outra”.
Infelizmente, a lei tem sido outra em grande parte do nosso território nacional. Entre profissionais e gestores entrevistados por Moreira et al. (2020Moreira, G. A. R., Vieira, L. J. E. S., Cavalcanti, L. F., Silva, R. M., & Feitoza, A. R. (2020). Manifestações de violência institucional no contexto da atenção em saúde às mulheres em situação de violência sexual. Saúde e Sociedade, 29(1), e180895. https://doi.org/10.1590/S0104-12902020180895
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), foi significativa a compreensão de que a violência sexual é um problema de segurança pública, e não de saúde, como se a coexistência fosse inviável. Silva et al. (2019Silva, J. G., Branco, J. G. O., Vieira, L. J. E. S., Brilhante, A. V. M., & Silva, R. M. (2019). Direitos sexuais e reprodutivos de mulheres em situação de violência sexual: o que dizem gestores, profissionais e usuárias dos serviços de referência?1. Saúde e Sociedade , 28(2), 187-200. https://doi.org/10.1590/S0104-12902019180309
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), ao investigarem gestores, profissionais e usuárias de serviços de proteção à mulher sobre a garantia e promoção dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos, identificaram que, para os gestores, há dificuldade de implementar satisfatoriamente as políticas de humanização da assistência, o que acreditam ter origem na formação deficitária dos profissionais, para além dos problemas dos serviços em si. A afirmação da psicóloga sobre a exigência da denúncia formal desvela uma confusão sobre o papel que ocupamos nas equipes que acolhem vítimas de violência sexual. Essa confusão emerge do desconhecimento das normativas que orientam esses serviços, mas também da abordagem reducionista e limitada acerca dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos que recebemos nos currículos de graduação. Esses documentos não são apresentados, tampouco a literatura que tem se ocupado desses fenômenos numa perspectiva interdisciplinar e focada na atenção a partir das políticas públicas.
As fragilidades da formação escancaram como temos produzido em excesso profissionais que são especialistas em determinadas abordagens teóricas, mas precários no que tange à compreensão de fenômenos complexos que não cabem em leituras dicotômicas ou deterministas. As reverberações dessas lacunas afetam diretamente como mulheres vítimas de violência sexual poderão elaborar essas experiências e acessar seus direitos básicos, como apontam Silva et al. (2019Silva, J. G., Branco, J. G. O., Vieira, L. J. E. S., Brilhante, A. V. M., & Silva, R. M. (2019). Direitos sexuais e reprodutivos de mulheres em situação de violência sexual: o que dizem gestores, profissionais e usuárias dos serviços de referência?1. Saúde e Sociedade , 28(2), 187-200. https://doi.org/10.1590/S0104-12902019180309
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):
Para as mulheres usuárias dos serviços pesquisados, permanecem os sentimentos de insegurança para acessar as instituições, o medo de não terem suas demandas atendidas, sofrendo mais uma violência e promovendo uma verdadeira peregrinação na busca por assistência e direitos, além do temor de dar seguimento à denúncia e ao processo judicial (pp. 198-199).
Considerações encruzilhadas: vamos juntas?
A situação dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos no Brasil não está consolidada. Desde que essas cenas aconteceram, foram muitos os retrocessos que tornaram os desafios aqui analisados ainda mais urgentes. A Norma Técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes de Violência Sexual Contra Mulheres e Adolescentes (Brasil, 2012Brasil. (2012). Norma Técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes de Violência Sexual Contra Mulheres e Adolescentes. Caderno nº 6. Ministério da Saúde.) chegou a ser revogada pela Portaria nº 2.282, de 27 de agosto de 2020, que tornou a notificação de estupro à autoridade policial obrigatória, além de orientar a equipe a propor à mulher a visualização do feto por meio do exame de ultrassom. Essa prática, como Lima (2015Lima, M. R. P. (2015). Práticas e significados em torno da ultrassonografia obstétrica e aborto em Salvador-Brasil [Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Bahia].) evidencia a partir de etnografia realizada em serviço de saúde de Salvador, constitui um modo de coerção e violência psicológica contra mulheres que já se encontram em situação de vulnerabilidade física e psíquica nesse cenário. Movimentos sociais e categorias de profissionais de saúde pressionaram uma revisão desse documento, que foi revogado em 23 de setembro de 2020 com a publicação da Portaria nº 2.561.
A volatilidade dessas políticas não deve nos impelir a um território de alienação diante do desafio que está posto: direitos sexuais e direitos reprodutivos estão em um território de disputas históricas. A definição da autonomia na gestão da própria sexualidade e da potencialidade reprodutiva é aspecto fundamental para a experiência da dignidade humana e não deve ser subtraído de nenhum sujeito, sob nenhuma circunstância. Estamos muito distantes desse cenário, sem dúvidas, mas a distância deve impulsionar que sigamos a caminhada. Muitas cenas como as que foram descritas aqui continuam acontecendo nos serviços de saúde sexual e saúde reprodutiva de todo o Brasil. Continuam impedindo o acesso de homens trans a exames preventivos; continuam impelindo mulheres negras à peregrinação; negando a mulheres indígenas o direito ao acompanhante; continuam chamando de gravidez na adolescência casos de gestação decorrentes de estupro; continuam reduzindo transsexuais e travestis ao mapeamento de infecções sexualmente transmissíveis, desconsiderando seu direito à saúde integral; continuam estigmatizando trabalhadoras do sexo e ignorando a demanda de mulheres lésbicas e bissexuais por métodos de prevenção; continuam negando a sexualidade de pessoas idosas e de pessoas com deficiência, comprometendo seu direito à informação e proteção. Continuam tornando algumas histórias inaudíveis e alguns sujeitos invisíveis.
Para uma escuta que fomente direitos e promova saúde, a psicologia precisa se haver com aquilo que tem se negado a enxergar, precisa compreender quais verdades introjetadas têm limitado nossas intervenções, precisa aceitar a complexidade do fenômeno que nos convoca, ainda que sem palavra dita. Para Solaterrar (2021Solaterrar, U. S. C. (2021). Sobre AFROntar a casa-grande e botar a cara no sol: uma etnografia transviada de formas de gestão do sofrimento [Dissertação de mestrado, Universidade do Estado do Rio de Janeiro].), precisamos nos atentar à dimensão metafísica do cuidado:
nível do não-dito, do impossível, dos silêncios, daquilo que não se pode apalpar, cheirar, escutar, olhar direta e concretamente. Nível da realidade como aquilo que sempre nos escapa, nível da verdade como aquilo que não existe. Nível daquilo que sobra, que escapa, que resta e está sempre por ser dito, nível, enfim, da falta que não se deve confundir com o vazio, pois se trata de uma falta que produz desejo, faz caminhar e constrói possibilidades de futuro. Para essa dimensão, se incentiva que nos questionemos sobre o nosso lugar de fala, nossos marcadores enquanto sujeitos/as, nossos atravessamentos, nossas afetações, privilégios e as moralidades que nos constitui para nos questionarmos como a geração, cor, gênero, sexo, território e classe a que pertenço tem lido essa pessoa e colocarmos em suspensão as teorias de gente que vamos construindo a cada encontro, parta tomá-las do lugar de eternas hipóteses que, como tal, devem sempre ser postas à prova a fim de não reproduzirmos lógicas estruturais de violência, opressão e colonização. Portanto, esse é o nível da intuição, do sentimento, dos cheiros, das sensações, o nível do entre, do dentro e do fora, do paradoxo, da intersubjetividade (p. 423).
Nesse encontro entre a(o) profissional e o sujeito que demanda a escuta, precisamos reconhecê-lo em sua individualidade, sem recorrer a presunções fáceis que o reduzam a uma função. Isso implica romper com a constante nomeação de mulheres parturientes e puérperas como mãe, mãezinha. Se nomeamos o sujeito a partir desse lugar, interditamos a possibilidade de que ele nos diga como essa experiência o afeta. Espaço para dizer que nem a perda é necessariamente fonte de dor, nem o nascimento é a priori motivo de felicidade. Cabe recuar de nossas certezas burguesas, cristãs, marianistas e cis-heteronormativas de maternidade para deixar falar aquela mulher, que pari ou aborta, a partir da sua realidade de classe, de raça, das possibilidades que seu território e sua história lhe outorgam. A pressuposição de que sabemos o que determinada experiência significa para um indivíduo retira deste a possibilidade de elaborar por si, com acompanhamento cuidadoso, quais receios, inseguranças, alegrias ou dúvidas o estão atravessando.
Para um manejo cuidadoso/acolhedor, é necessário que recuemos das respostas fáceis que visam apaziguar conflitos históricos ou negar a violência que o outro nos anuncia; também devemos relembrar que nossa função na esfera da saúde é proporcionar cuidado, e não produzir um manejo investigativo/punitivo que visa aplicar no outro nossas crenças. Escutar as demandas da saúde sexual e da saúde reprodutiva nos convoca a dar alguns passos atrás, reconhecer que talvez tenhamos poucas respostas a dar, mas que, se conseguirmos produzir uma escuta realmente qualificada e atenta às questões que nos trazem, as respostas talvez sejam menos importantes do que imaginamos. Escutar como meio de promoção de cuidado e acolhimento é, teoricamente, o que nós, psicólogas(os), sabemos fazer. A urgência dessas demandas é evidenciar se escutamos o sujeito ou apenas o eco de nossas próprias certezas.
A escuta, assim, não é uma transposição do modelo clínico convencional, não está circunscrita a um espaço determinado ou a uma vertente teórica definida. Antes disso, é um movimento de reflexividade contínua (Mayorga, 2014Mayorga, C. (2014). Algunas contribuciones del feminismo a la psicología social comunitaria. Athenea Digital, 14, 221-236.), que se dá pela abertura da(o) profissional às interpelações que a própria rotina dos serviços nos apresenta. Interpelações que nos abrem a escutar o que significa sexualidade, prazer, gravidez, perda, luto, maternidade, paternidade, para cada sujeito que adentra a esse espaço com receio de ser novamente alvo das violências estruturais que já marcam a maioria de nós. Violências como racismo, sexismo, cis-heteronorma, xenofobia, gordofobia, capacitismo, etarismo, que têm sido utilizadas como catracas sociais impedindo o acesso de determinados grupos ao direito inalienável à saúde. Como nos indica Góes (2018Góes, E. F. (2018). Racismo, aborto e atenção à saúde: uma perspectiva interseccional [Tese de doutorado, Universidade Federal da Bahia].), o exercício da sexualidade e da potencialidade reprodutiva de modo livre e autônomo implica em garantir que as pessoas tenham outros direitos, muitos dos quais básicos, garantidos. Isso inclui o enfrentamento e a eliminação das formas de descriminação de raça, gênero, sexualidade, território e geração.
Essas interpelações que nos convocam para além das salas de aula, dos serviços, dos consultórios, nos impulsionam a um posicionamento enquanto categoria irrefutavelmente comprometida com a defesa dos direitos humanos - o que significa também a defesa dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos. Ignorar a urgência das questões referentes à saúde sexual e a saúde reprodutiva no Brasil implica em manter uma hierarquia de relevância que ignora problemas que afetam centralmente mulheres, principalmente negras e indígenas, a população LGBTQIAP+, pessoas que são dependentes do SUS e que estão, historicamente, em situação de vulnerabilização. Acredito que nos próximos 60 anos da psicologia poderemos nos aproximar cada vez mais dessas e de tantas outras questões sobre as quais nos silenciamos, poderemos reconhecer os equívocos que cometemos na gênese de nossa ciência e profissão contra esses grupos, comprometendo sua saúde, sua autonomia e sua dignidade; e que, principalmente, possamos, a partir dessas vozes, construir outros paradigmas de ciência psicológica. Assim, acredito que poderemos converter nossas reflexões, nossa práxis e nossa força em prol de uma realidade na qual essas violências não sejam cenas cotidianas nos serviços de saúde sexual e reprodutiva nos quais nos inserimos. Por esses 60 anos que estão por vir, sigamos construindo, a cada dia e a muitas mãos, caminhos emancipatórios para todas/todes/todos.
Referências
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Nome fictício atribuído à interlocutora para publicação da tese e de produções decorrentes deste trabalho.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
10 Jun 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
06 Abr 2022 -
Aceito
26 Abr 2022