Open-access Psicólogas(os) na Ciência: Como Estamos em 60 Anos de Profissão no Brasil

Psychologists in Science: Where We Stand in 60 Years of the Profession in Brazil

Las(os) Psicólogas(os) en la Ciencia: Dónde Estamos en 60 Años de la Profesión en Brasil

Resumo

Analisou-se a participação da Psicologia no Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (SNCTI), situando-a entre as Grandes áreas do conhecimento. Para tanto, tomou-se como referência o panorama atual de distribuição das bolsas de produtividade em pesquisa (PQ) no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Ademais, apresentou-se a distribuição das bolsas PQ por modalidade e sexo a fim de discutir as desigualdades de gênero, seja no âmbito geral da Ciência, seja internamente à Psicologia. Metodologicamente, trabalhou-se a partir do banco de pesquisadoras(es) ativas(os) disponibilizado pelo CNPq em 2019, constituído por 12.917 bolsistas PQ, incluindo todas as áreas. Observou-se a existência de desigualdades entre as grandes áreas do conhecimento no acesso aos recursos de fomento à pesquisa, particularmente no que tange à distribuição de cotas PQ. Há também desigualdades regionais e assimetrias de gênero na carreira acadêmica e de pesquisa entre homens e mulheres refletidas no quantitativo e na modalidade de bolsa PQ em todas as áreas do conhecimento e na Psicologia, em particular. A Psicologia, no conjunto de cotas disponibilizadas pelo CNPq, ao longo dos seus 60 anos de existência, detém ainda percentual pouco expressivo. Considera-se que, em alguma medida, esse cenário tem relação com o fato de a área ser historicamente marcada como profissão predominantemente feminina, como disciplina aplicada e com pouca tradição no campo científico e de produção de conhecimento.

Palavras-chave: Psicologia; Ciência e Tecnologia; Desigualdades de Gênero; Produtividade em Pesquisa

Abstract

This study analyzes the participation of Psychology in the National System of Science, Technology and Innovation (SNCTI), placing it among the major areas of knowledge. For this purpose, it took the current panorama of research productivity fellowship (PQ) distribution at the National Council for Scientific and Technological Development (CNPq) as reference. It presents the distribution of PQ grants by modality and gender to discuss gender inequalities, both in the general sphere of science and within Psychology. Data was collected from the bank of active researcher(s) made available by CNPq in 2019, consisting of 12,917 PQ fellows, including all areas. All major areas of knowledge showed inequalities in access to resources for research promotion, particularly in terms of PQ quota distribution. The results also point to regional inequalities and gender asymmetries in the academic and research career reflected in the quantity and modality of the FP grant in all areas of knowledge, especially Psychology. In the set of quotas made available by CNPq, Psychology, throughout its 60 years of existence, still holds an insignificant percentage. To some extent, this scenario stems from the fact that Psychology is historically marked as a predominantly female profession, as an applied discipline and with little tradition in the scientific field and knowledge production.

Keywords: Psychology; Science and Technology; Gender Inequalities; Research Productivity

Resumen

Se analizó la participación de la Psicología en el Sistema Nacional de Ciencia, Tecnología e Innovación (SNCTI), ubicándola entre las principales áreas del conocimiento. Para ello, se tomó como referencia el panorama actual de distribución de las becas de productividad en investigación (PQ) en el Consejo Nacional de Desarrollo Científico y Tecnológico (CNPq). Además, se buscó presentar la distribución de las becas PQ por modalidad y sexo para discutir las desigualdades de género, tanto en el ámbito general de la ciencia como dentro de la Psicología. Metodológicamente, se trabajó con base en el banco de investigadoras(es) activas(os) puesto a disposición por el CNPq en 2019, compuesto por 12.917 becarios PQ, incluyendo todas las áreas. Se observó la existencia de desigualdades entre las grandes áreas de conocimiento en el acceso a los recursos para el fomento de la investigación, especialmente en lo que se refiere a la distribución de cuotas de investigación. También existen desigualdades regionales y asimetrías de género en la carrera académica entre hombres y mujeres que se reflejan en la cantidad y modalidad de la beca PQ en todas las áreas de conocimiento y, en particular, en Psicología. En el conjunto de las cuotas puestas a disposición por el CNPq, a lo largo de los 60 años de existencia de la psicología como profesión se sigue teniendo un porcentaje poco expresivo. Se considera que, en cierta medida, este escenario está relacionado con el hecho de que el área está marcada históricamente como una profesión predominantemente femenina, como una disciplina aplicada y con poca tradición en el campo científico y de producción de conocimiento.

Palabras clave: Psicología; Ciencia y Tecnología; Desigualdades de Género; Becas de Productividad

Introdução

Por ocasião da comemoração dos 60 anos da Psicologia no Brasil, objetiva-se traçar um panorama da participação da área no cenário de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) nacional, situando-a entre as grandes áreas do conhecimento. A despeito das críticas voltadas à histórica fragilidade da formação científica ao longo dos 60 anos de existência da profissão, especialmente em termos metodológicos, não resta dúvidas de que, nos últimos 20 anos, tem havido desenvolvimento e maior maturidade da comunidade científica da Psicologia, atrelados ao processo de institucionalização da pesquisa e da pós-graduação em todas as áreas do conhecimento e, em particular, do crescimento exponencial dos cursos de mestrado e doutorado em Psicologia (Tourinho & Bastos, 2010).

Assim, a Psicologia brasileira tem ocupado espaços cada vez mais amplos no cenário de CT&I e obtido reconhecimento em nível nacional e internacional em termos da produção de conhecimento, de divulgação da produção acadêmica em periódicos qualificados e da consolidação de redes de pesquisa e cooperação científica. Em decorrência disso, questiona-se cada vez mais o argumento que durante décadas apontou para o perfil profissional dominante da Psicologia brasileira em detrimento do científico. Atualmente, apesar de ainda ser caracterizada como área de conhecimento eminentemente aplicada aos mais diversos setores da sociedade, a Psicologia tem avançado não só como profissão, mas em termos do reconhecimento de sua contribuição ao desenvolvimento da pesquisa científica, da formação de recursos humanos qualificados em pesquisa, de novas tecnologias e inovação no país, bem como de seus esforços de internacionalização.

Um dos indicadores mais importantes do Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (SNCTI) no Brasil é a distribuição de bolsas de Produtividade em Pesquisa (PQ) aos pesquisadores das diversas áreas do conhecimento pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), agência vinculada ao Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicação (MCTIC), que “tem como principais atribuições fomentar a pesquisa científica e tecnológica e incentivar a formação de pesquisadores brasileiros” (MCTIC, 2016, p. 17). O órgão foi criado em 1951 e desempenha papel primordial na formulação e condução das políticas de ciência, tecnologia e inovação em três Grandes Áreas: Ciências da Vida (CV), Engenharias, Ciências Exatas e da Terra (Ecet) e Ciências Humanas, Sociais Aplicadas, Linguística, Letras e Artes (CHSSALLA). Para tanto, aporta recursos financeiros para a implementação de projetos, programas e redes de pesquisa e concede bolsas para a formação de recursos humanos no campo da pesquisa científica e tecnológica, em universidades, institutos de pesquisa, centros tecnológicos e de formação profissional, tanto no Brasil quanto no exterior.

A bolsa de PQ tem como objetivo “valorizar pesquisadores que possuam produção científica, tecnológica e de inovação de destaque em suas respectivas áreas do conhecimento e incentivar o aumento da produção científica, tecnológica e de inovação de qualidade” (CNPq, 2021, p. 1). É dividida hierarquicamente em três categorias: Sênior (PQ-SR), PQ-1 (subdividida nos níveis 1A, 1B, 1C e 1D) e PQ-2. Conforme Leite e Rocha (2017), além de ser apoio financeiro, ela é um sinal de reconhecimento pelos pares aos pesquisadores com destacada produção científica, formação de recursos humanos em pesquisa e inserção na sua área de atuação.

Entretanto, a distribuição desses recursos entre as grandes áreas do conhecimento do CNPq e entre homens e mulheres não é, de forma alguma, uniforme e equitativa. Há distorções históricas na gestão da política de CT&I e na alocação de recursos financeiros, as quais estão relacionadas às prioridades e áreas consideradas estratégicas para o desenvolvimento nacional na agenda governamental (Lemos & Cário, 2013). “O protagonismo de determinadas áreas da ciência na produção científica brasileira reflete essa lógica de pilares racionalistas que atribuem à ciência instrumental o papel de transformar a realidade” (Lopes & Lopes, 2019, p. 299). Nesse sentido, as CHSSALLA, áreas nas quais a Psicologia está situada, não são contempladas como áreas estratégicas relevantes para o desenvolvimento industrial e científico-tecnológico do Brasil. O momento atual em que vive a ciência brasileira, articulada à agenda neoliberal, com a queda drástica no orçamento do CNPq nos últimos anos, vem comprometendo não só a manutenção dos recursos para as atividades de pesquisa e funcionamento das instituições, mas também acirrando disputas internas entre as áreas, estabelecendo posições centrais para algumas e considerando outras áreas periféricas no sistema (Oliveira, 2019).

De acordo com Guimarães (2019), é imprescindível reconhecer que há contextos determinantes para a formação de elites no campo científico que têm domínio do espaço de produção, de circulação e de legitimação do conhecimento científico. Esses contextos privilegiam umas e desfavorecem outras áreas, ou seja, promovem, em última análise, condições desiguais de possibilidades de desenvolvimento científico e tecnológico e dos aparatos acadêmicos e institucionais na efetividade da pesquisa científica entre diferentes áreas do conhecimento, entre regiões do país, entre homens e mulheres e entre outros marcadores sociais da diferença, como classe social, raça/etnia e sexualidade.

Nesse sentido, é impossível compreender essa realidade sem associá-la ao que representa o colonialismo, o patriarcado, o sexismo e o racismo estrutural na construção histórica do conceito moderno e contemporâneo de ciência e no modo como seus aparatos institucionais funcionam no Brasil. Não à toa, observa-se a ausência de corpos não brancos nos espaços da ciência e inúmeras barreiras à representatividade e visibilidade das mulheres em termos da produção e divulgação de conhecimento. Esses desequilíbrios atingem não só as áreas das chamadas humanidades, mas também da ciência básica, tal como apontado por Alves-Brito (2020) em relação à Física e à Astronomia, constituindo as assimetrias institucionalizadas que transversalizam todos os campos científicos e que servem de base para a materialização das próprias políticas científicas no país.

Dessa forma, a distribuição das bolsas PQ revela aspectos importantes sobre áreas estratégicas e prioritárias definidas nas políticas governamentais e nos ajudam a traçar um diagnóstico de como a Psicologia se situa nesse cenário em relação às outras áreas do conhecimento. Como diz Baumgarten (2007), “atuais políticas de ciência e tecnologia no Brasil e sua adequação, considerando nosso contexto de semiperiferia e as desigualdades regionais e sociais do país” (p. 22), não podem ser desconsideradas no entendimento desse panorama de distribuição de bolsas de produtividade em pesquisa entre as diversas áreas do conhecimento e do lugar residual ocupado pela Psicologia nesse cenário.

Partindo do objetivo inicial de traçar um panorama de distribuição das bolsas PQ entre as Grandes Áreas de conhecimento pelo CNPq, busca-se, ademais, apresentar essa distribuição entre as Grandes Áreas por modalidade de bolsa, sexo e região do país, a fim de discutir as desigualdades de gênero, seja no âmbito geral da ciência, seja especificamente da Psicologia.

Metodologia

Este trabalho tomou como base a metodologia e os resultados de uma tese de doutorado sobre o cotidiano de mulheres bolsistas PQ da Psicologia. Procedeu-se, inicialmente, com a coleta de dados no banco de pesquisadoras(es ativas(os) disponibilizado pelo CNPq em julho de 2019, constituído por 12.917 bolsistas PQ, incluindo todas as áreas: CV, Ecet e CHSSALLA. Essa etapa, de cunho quantitativo, consistiu na análise descritiva dos dados referentes aos bolsistas PQ de cada área do conhecimento, dando especial atenção às CHSSALLA e à Psicologia. Este estudo obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande Norte (UFRN), sob o Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 32033620.0.0000.5537, de acordo com o parecer nº 4.072.688.

Resultados e discussão

Tabela 1
Distribuição das Bolsas PQ por grande área de conhecimento e região do país

Tabela 2
Distribuição das bolsas PQ por modalidade e sexo nas grandes áreas de conhecimento do CNPq

Em termos da distribuição das bolsas PQ/CNPq por Grande Área do Conhecimento e região do país, observamos uma enorme disparidade por sexo, região e modalidade da bolsa. Dentre as 12.917 bolsas PQ/CNPq existentes, a maior parte (42%) se concentra nas CV (n=5.401), seguida das Ecet (n=4.181), representando 32%, e por fim, CHSSALLA (n=3.335), área de menor prestígio na ciência nacional, que tem sofrido muitos ataques no atual governo federal e que detém apenas 25,8% das cotas. Verificamos que o eixo Sul-Sudeste, apesar das diferenças entre ambas as regiões, recebe, historicamente, mais cotas de bolsa. A região Nordeste ocupa o terceiro lugar. Contudo obtém número de bolsas indiscutivelmente inferior ao segundo lugar. As regiões Norte e Centro-Oeste recebem menos recursos. Nota-se que as CHSSALLA recebem o menor quantitativo de bolsas em todas as regiões do país e que a situação é ainda pior para as(os) bolsistas das CHSSALLA que atuam no Nordeste, Norte e Centro-Oeste, regiões que sofrem sequelas das estratégias desenvolvimentistas adotadas por governos brasileiros desde a década de 1930, que visavam à industrialização do país e resultaram na desigualdade das atividades produtivas - na região Sul e Sudeste - em relação às demais regiões (Guimarães, 1997).

Sobre a distribuição das bolsas PQ por sexo, os dados mostraram diferenças significativas entre mulheres e homens no país. Nota-se, primeiramente, que as mulheres ainda são minoria na ciência brasileira. Do total de 12.917 bolsas nas três Grandes Áreas, 8.316 (64,4%) são ocupadas por homens e somente 4.601 (35,6%) pelas mulheres. A segunda conclusão indica proporção mais alta de mulheres bolsistas em áreas profissionais historicamente associadas ao trabalho doméstico, familiar, reprodutivo e ao cuidado. Por outro lado, observa-se a concentração de homens em disciplinas científicas ligadas à política, ao setor econômico e ciências da natureza, o que remonta, de acordo com Olinto (2012), Leta (2003) e Tabak (2002), a uma segregação horizontal, ou seja, a proporção maior de um dos sexos em algumas áreas profissionais. Dessa forma, nota-se que, nas Ecet, há desproporção significativa entre homens e mulheres nas áreas de astronomia, engenharias, física, matemática e química. Nas CV, as mulheres são minoria na agronomia e zootecnia, mas, por outro lado, se destacam na enfermagem, fisioterapia e saúde coletiva. Já nas CHSSALLA, as mulheres se destacam na Antropologia, Arquitetura e Urbanismo, Artes, Ciência da Informação, Comunicação, Educação, História, Letras, Linguística, Psicologia, Serviço Social e Turismo.

A terceira conclusão é de que há desigualdade na distribuição entre homens e mulheres nas três grandes áreas, levando em conta a modalidade de bolsa PQ. Desse modo, as mulheres estão em desvantagem significativa em comparação aos bolsistas homens no nível PQ-2 e nos níveis mais privilegiados da carreira (PQ-1 e PQ-SR). É possível observar que a desigualdade entre homens e mulheres atinge quase o dobro em quase todas as modalidades de bolsa PQ. Essa desvantagem para as pesquisadoras certamente se relaciona aos obstáculos enfrentados por elas na carreira científica brasileira (Oliveira et al., 2021).

No âmbito específico das CHSSALLA, o panorama de distribuição de bolsas PQ adquire tonalidades mais equilibradas, tal como pode ser observado nas Tabelas 3, 4 e 5.

Tabela 3
Distribuição das bolsas PQ/CNPq das CHSSALLA por sexo e subáreas

Tabela 4
Distribuição de bolsistas PQ/CNPq das CHSSALLA por sexo e região

Tabela 5
Distribuição de bolsistas PQ/CNPq das CHSSALLA por sexo e modalidade de bolsa PQ

A desvantagem das CHSSALLA em relação às CV e Ecet na ciência nacional tem raízes alicerçadas na hierarquia entre os saberes que se estabeleceram no berço da ciência ocidental, que é um campo de disputas e de lutas internas. Segundo Hochman (1994), “O campo científico é um lugar de luta desigual, entre agentes diversamente dotados de capital, portanto, desigualmente capazes de impor seus produtos e se apropriarem do resultado do trabalho científico produzido pelos pares/concorrentes” (p. 212). Nessa lógica, as CHSSALLA constituem uma Grande Área de conhecimento que recebe menos investimento, que registra menor número de cotas, representando somente 25,8% do total geral de pesquisadoras e pesquisadores no país (são 3.335 entre as 12.917 bolsas). A situação tende a se agravar para bolsistas das regiões Nordeste, Centro-Oeste e Norte, dada a concentração de bolsas nas regiões Sul e Sudeste. Em relação à distribuição entre homens e mulheres, ainda que apresente subáreas com maior concentração de mulheres e outras com maior número de homens, como é o caso da administração, economia e filosofia, proporcionalmente, há mais equidade nas CHSSALLA do que nas CV e Ecet. Contudo, ainda assim, os homens ocupam maior quantidade de cotas do que as mulheres, em particular nas regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste.

Quanto à modalidade de bolsa, nota-se um percentual expressivo de mulheres em todos os níveis da bolsa PQ, mostrando uma distribuição mais equilibrada do que nas outras áreas. A despeito disso, Cunha (2021) destacou que existe, nas CHSSALLA, outro tipo de desequilíbrio quando se analisa a distribuição por raça. Segundo a autora, a desvantagem é ainda maior quando nos referimos às bolsistas PQ negras e indígenas (e demais homens não brancos). Em termos da raça declarada, há uma concentração de pesquisadoras e pesquisadores brancas(os) que representam 69,84% das cotas PQ/CNPq nas humanidades.

Essa desvantagem para as pesquisadoras certamente se relaciona aos obstáculos enfrentados por elas na carreira científica brasileira (Oliveira, Melo, Rodrigues, & Pequeno, 2021). Uma desvantagem que é ainda maior quando nos referimos às bolsistas PQ negras e indígenas (e demais homens não brancos). Em termos da raça declarada, há uma concentração de pesquisadoras e pesquisadores brancas(os) que representam 69,84% das cotas PQ/CNPq nas humanidades (Cunha, 2021).

Esse desequilíbrio de gênero e raça se articula a uma estrutura sexista e racista que compõe o trabalho acadêmico-científico no Brasil. A sub-representação de homens e, especialmente, de mulheres negras e indígenas na ciência tem suas raízes na violenta classificação social e epistêmica do projeto moderno colonial que se mantém atual em função da colonialidade de poder. Segundo Quijano (2000), a colonialidade é um dos eixos constitutivos e específicos do padrão de poder atual que se alicerça na imposição de classificar a população a partir da ideia de raça, “uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial” (p. 1) e que, desde então, permeia cada dimensão da existência social: 1) trabalho e seus produtos; 2) natureza e seus recursos de produção; 3) sexo e seus produtos e a reprodução da espécie; 4) subjetividade e seus produtos; e 5) autoridade e seus instrumentos. As sequelas dessa injustiça social e epistêmica no campo da ciência brasileira são visíveis em maior intensidade entre as mulheres-pesquisadoras negras e (indígenas), sendo elas vítimas do que Carneiro (2005) denomina por epistemicídio: um processo persistente de produção de pobreza cultural e inferiorização intelectual que, por meio de diferentes mecanismos, deslegitima, rebaixa a capacidade cognitiva e compromete a autoestima das(os) sujeitas(os) negros desde a entrada destes no processo educacional.

Distribuição de bolsa PQ/CNPq na Psicologia

A Psicologia sofre os efeitos das assimetrias presentes na distribuição das cotas entre as grandes áreas de conhecimento. Contudo detém o segundo maior número de cotas, o que corresponde a quase 10% do total de bolsas das CHSSALLA, sendo superada apenas pela Educação.

Tabela 6
Distribuição das bolsas PQ/CNPq por sexo dentre as subáreas das CHSSALLA

Tabela 7
Distribuição de bolsistas PQ/CNPq por sexo e modalidade de bolsa na Psicologia

Tabela 8
Distribuição de bolsistas PQ/CNPq da Psicologia por sexo e região

Apesar dessa representatividade na Grande área das CHSSALLA, a primeira evidência das desigualdades na subárea é o padrão de distribuição das bolsas na Psicologia por região do país. O eixo Sul-Sudeste, como sempre, concentra grande parte das cotas PQ, reproduzindo a lógica do SNCTI, isto é, os recursos vinculados à ciência e tecnologia tendem a ser distribuídos de forma a reforçar as já existentes desigualdades regionais. Em segundo lugar, do total de bolsas concedidas pelo CNPq, a Psicologia detém somente 314 das 12.917 cotas, o que representa uma participação modesta, indicando que parece não gozar de importância estratégica nas políticas científicas. Isso evidencia que, embora tenha havido uma expansão significativa da pós-graduação e da taxa de novos doutores, docentes e pesquisadores na área, de acordo com o Diagnóstico das CHSSALLA no Brasil, realizado pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE, 2020), “existe também um relativo desconhecimento, por parte da percepção pública, da equivalente imprescindibilidade e relevância de profissionais e conhecimentos qualificados e especializados nos campos das chamadas humanidades e Ciências Sociais” (p. 19) e, consequentemente, dos benefícios que as CHSSALLA produzem nos planos econômico e social, contribuindo para o fortalecimento da democracia e da cidadania. Concordamos com Lopes e Lopes (2019):

A visão tecnicista nas políticas de fomento limita as condições de progresso da ciência para determinadas áreas. As políticas de C&T, pensadas para dar suporte à lógica de acumulação capitalista, se materializam em editais das agências de fomento com linhas de pesquisa, requisitos e condições de participação restritivas a pesquisadores das ciências humanas, sociais aplicadas e linguística nos editais, em um processo vicioso que se autorreforça (p. 301).

A terceira evidência é que, embora a Psicologia seja marcada por menor desequilíbrio de gênero, levando em consideração a importante presença de pesquisadoras bolsistas PQ, internamente, a realidade de pesquisadora(e)s negras e indígenas é ainda mais desfavorável. Em função dessa sub-representação, dificilmente ocupam posições de liderança na condução das atividades de CT&I no país. Segundo Cunha, Dimenstein e Dantas (2021), essa situação está atrelada ao histórico da área, majoritariamente ocupada pela população branca, pertencente às elites, e do fato de as mulheres negras terem menos acesso ao ensino superior e às atividades de ensino e pesquisa nas instituições acadêmicas.

Ao levar em consideração a distribuição por sexo e modalidade da bolsa na Psicologia, percebe-se que as mulheres representam quase o dobro dos homens em termos quantitativos. Há também maior distribuição de pesquisadoras em todas as modalidades de bolsa PQ. No entanto, nota-se que a vantagem das mulheres perde força no topo da carreira, notadamente nas modalidades PQ1A e PQ1B, nas quais o número de mulheres e homens quase se equipara. Embora, a distribuição das bolsas entre mulheres e homens nesses níveis PQ não apresente diferença estatística significativa, essa realidade chama atenção em se tratando de uma área tradicionalmente ocupada pelas mulheres.

Se compararmos o número expressivo de mulheres que concluíram a graduação em Psicologia no país - 89%, de acordo com o Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2012) -, observa-se que um pequeno contingente de mulheres se direciona à carreira acadêmico-científica, sobretudo comparando-se às egressas que optam pelo campo profissional da Psicologia (Lhullier, 2013). Sendo uma área considerada “feminina” - notadamente pelo maior número de mulheres e pela associação às tarefas do cuidado -, ainda traz, de forma bastante arraigada,, certos discursos e concepções científicas que reforçam as desigualdades de gênero que classificam hierarquicamente os gêneros e com frequência são utilizados para justificar a incompatibilidade da “natureza” das mulheres para o trabalho científico, objetivo e competitivo. Como apontado em estudo anterior, “a conciliação entre o tempo dedicado à ciência e à família tem sido apontado como um dos principais aspectos que dificultam a inserção, a permanência e a progressão das mulheres na carreira científica” (Cunha et al., 2021, p. 92). Em razão disso, discorreremos a seguir, sucintamente, sobre a feminização da Psicologia e seu impacto no âmbito científico.

Na Psicologia brasileira, o reconhecimento das peculiaridades de uma profissão marcada predominantemente por mulheres aparece somente no ano de 1975 com a publicação do estudo realizado por Sylvia Leser de Mello (Bastos & Gondim, 2010; Castro & Yamamoto, 1998). A partir de então, várias pesquisas foram empreendidas pelo CFP nos anos de 1988 e 2012, pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) a pedido do CFP no ano de 2004 e pelo grupo de trabalho de Psicologia organizacional e do trabalho vinculado à Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (Anpepp) no ano de 2010 (Lhullier & Roslindo, 2013).

Em 2021, teve início o Censo da Psicologia Brasileira (CPB), levantamento em andamento realizado em parceria com a Associação Brasileira de Psicologia Organizacional e do Trabalho (SBPOT), com o Grupo de Trabalho Configurações do Trabalho na Contemporaneidade e com o GT/ANPEPP - Psicologia Organizacional e do Trabalho. Os resultados dessas pesquisas anteriores ratificaram o fato de ser uma profissão eminentemente feminina, constituindo respectivamente: 87% (CFP, 1988); 89% (CFP, 2012); 91% (IBOPE/CFP, 2004); 83,3% (Bastos, Gondim, & Rodrigues, 2010) dos profissionais com condições legais para o exercício profissional no Brasil.

No entanto, estudos desenvolvidos por Rosemberg (1983), Castro e Yamamoto (1998), Lhullier e Roslindo (2013) e, mais recentemente, por Cunha et al. (2021) demonstram que, apesar da predominância feminina na área profissional da Psicologia, existe uma segmentação interna que aponta para o privilégio dos homens no campo acadêmico-científico, a qual não pode deixar de ser destacada como questão paradoxal, dada a majoritariedade das mulheres na área. Ao analisar a distribuição entre homens e mulheres na Psicologia dos países latino-americanos, Denmark (1998) observou que, no início do desenvolvimento da Psicologia latino-americana, a maioria das mulheres optava por atuar na Psicologia aplicada, enquanto os psicólogos predominavam na área científica e no corpo editorial de periódicos reconhecidos. Segundo a autora, isso se relacionava ao fato de a profissão não fornecer provimentos suficientes à manutenção da unidade familiar - tradicionalmente associada aos homens - sendo, por muito tempo, apenas um complemento da renda familiar trazido pelas mulheres.

No Brasil, ainda que a expansão do Sistema Nacional de Pós-Graduação (SNPG) e o aumento do nível educacional das mulheres tenham proporcionado a presença significativa do público feminino nos programas de pós-graduação, ainda não é possível assegurar o alcance das mulheres em posições estratégicas para o planejamento e desenvolvimento da ciência nacional. Não à toa, representam apenas 16% da equipe do Conselho deliberativo ou, ainda, 34% da diretoria executiva e somente 1,5% do total de pesquisadoras na área da Psicologia com bolsas PQ vinculadas ao CNPq (Cunha, 2021).

A “feminização” da profissão (Richter & Griesel, 1999, p. 134) e suas implicações, motivaram o CFP, em 2013, a realizar a pesquisa “Quem é a psicóloga brasileira”, com vistas a investigar os efeitos da presença hegemônica de mulheres sobre o exercício da Psicologia brasileira e refletir sobre a diversidade das diferentes mulheres que compõem a categoria profissional. Os dados ratificaram o largo predomínio de psicólogas, que representavam nove em cada dez profissionais que exerciam profissionalmente a Psicologia no Brasil. Além disso, constatou-se que se tratava de jovens mulheres e, em sua maioria, autodeclaradas brancas. No que diz respeito ao exercício da profissão, havia evidente fragilidade do mercado de trabalho, em termos de condições oferecidas ao conjunto de psicólogas(os). Os dados possibilitaram aos autores inferir que a realidade das psicólogas não difere dos problemas enfrentados pela maioria das mulheres brasileiras e as relações desiguais entre os gêneros.

As pesquisas subsequentes destacaram duas questões particulares da área: em primeiro lugar, que a psicologia se desenvolve mais no campo profissional do que no científico e, em segundo, que a ciência e a profissão psi se estabeleceram na realidade brasileira tendo as mulheres como suas principais representantes (Yamamoto, Fernandes, & Costa, 2013). O caráter feminino da profissão é, portanto, determinante do modo como a prática psicológica se constituiu no Brasil, por ter, historicamente, uma competência técnica associada ao cuidar. As pesquisas realizadas por Castro & Yamamoto (1998) e Rosemberg (1983) demonstraram como o caráter feminino da prática psicológica brasileira foi determinante para o delineamento de uma segmentação interna entre psicólogas e psicólogos. Há um significativo contingente de psicólogas que optam por especializações, formação pós-graduada de natureza aplicada às exigências do mercado. Por outro lado, há um menor número de psicólogas na pós-graduação stricto sensu, conhecida por ser o espaço privilegiado da produção de conhecimento e da pesquisa científica no Brasil.

Isso, em parte, corresponde ao fato de que as instituições formadoras, especialmente as privadas, que são maioria no país, focam apenas no ensino e negligenciam o investimento na pesquisa, em uma postura investigativa voltada à produção do conhecimento em Psicologia (Oliveira & Yamamoto, 2017). Entretanto, entre os aspectos recorrentes na literatura mundial concernentes à realidade das mulheres na ciência, seguramente sobressaem as condições desiguais impostas às mulheres na carreira científica. Os estudos que analisam a participação feminina na ciência apontam para uma segregação que as direciona para áreas específicas de atuação, como a Psicologia, e para as posições mais baixas no aparelhamento das políticas científicas de diversos países (Alonso, Diz, & Lois, 2016; Leta, 2003).

Em diversas áreas da ciência, as mulheres representam uma porção significativa no conjunto de recursos humanos, porém sua representatividade nos indicadores das políticas científicas é insuficiente. Esses estudos evidenciam que, após o doutoramento, a porcentagem de pesquisadoras diminui quando comparada aos homens. A queda percentual começa imediatamente após a graduação e cai de maneira drástica no nível de pós-doutorado, prejudicando a inserção e a consolidação da carreira acadêmica em instituições de ensino superior (Alonso et al., 2016; Leta, 2003; Tabak, 2002). As responsabilidades impostas pela dinâmica doméstico-familiar, historicamente associada às mulheres, estão no centro dessa questão, afinal, o tempo dedicado às atividades de cuidado impacta diretamente no desempenho das produções acadêmicas de muitas pesquisadoras, situação que foi fortemente agravada com a chegada da pandemia da Covid-19 em 2020 (Tait, Feltrin, & Souza, 2021; Candido et al., 2021; Amaral, 2021).

Porém, nesses 60 anos de existência da Psicologia brasileira, o questionamento quanto à posição da área e de suas/seus pesquisadoras(es) no cenário da ciência nacional, merece mais esforços de investigação. Na psicologia, as particularidades dos gêneros muitas vezes são negligenciadas, e esse “descuido” reforça a tradição de pouca representatividade no campo científico e de produção de conhecimento em relação às áreas mais competitivas no cenário nacional. No entanto, em nosso favor, cientistas feministas da Psicologia têm denunciado a trajetória androcêntrica, sexista e classista da área (Mattos, 2015; Mayorga, 2014) e têm proposto uma nova trajetória em busca da desconstrução de ideias universais e machistas que impedem a Psicologia, enquanto ciência e profissão de mulheres (e de alguns homens), de lutar por maior expressão no SNCTI do país.

Considerações finais

Este estudo apontou a existência de desigualdades entre as grandes áreas do conhecimento no acesso aos recursos de fomento à pesquisa, particularmente no que tange à distribuição de cotas PQ. Há também gritantes desigualdades regionais que refletem características do SNCTI, o qual está atrelado às políticas econômicas de crescimento adotadas pelo país nas últimas décadas. Nesse sentido, essa realidade denota padrões de produção de conhecimento articulados com as estruturas econômicas e de poder que beneficiam certas áreas consideradas estratégicas, para orientar determinadas políticas de desenvolvimento. Notam-se assimetrias de gênero na carreira acadêmica e de pesquisa entre homens e mulheres, refletidas no quantitativo e na modalidade de bolsa PQ, associadas às barreiras enfrentadas pelas mulheres de todas as áreas do conhecimento e na Psicologia, em particular. A Psicologia, no conjunto de cotas disponibilizadas pelo CNPq, ao longo dos seus 60 anos de existência, detém ainda percentual pouco expressivo (2,4%). Considera-se que, em alguma medida, esse cenário relacione-se ao fato de a área ser historicamente marcada como profissão predominantemente feminina, como disciplina aplicada e com pouca tradição no campo científico e de produção de conhecimento.

Referências

  • Errata
    No artigo “Psicólogas(os) na Ciência: Como Estamos em 60 Anos de Profissão no Brasil”, com número de DOI: 10.1590/1982-3703003262958, publicado na Revista Psicologia: Ciência e Profissão, 42 (n.spe): primeira página, seção do artigo:
    Onde se lia:
    “Dossiê”
    Leia-se:
    “Artigo”

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2022
  • Aceito
    26 Abr 2022
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