Open-access Reflexo e Sombra: O Duplo e o Narcisismo em Hoffmann e Chamisso

Reflection and Shadow: The Double and the Narcissism in Hoffmann and Chamisso

Reflejo y Penumbra: el Doble y el Narcisismo en Hoffman y Chamisso

Resumo

Esta é uma pesquisa qualitativa, em formato de ensaio, que realiza o estudo comparado de duas obras literárias, de A. Von Chamisso e E. T. A. Hoffmann, e de uma anotação do diário deste último para problematizar a repercussão de algumas formas de desestabilizações do Eu na dinâmica psíquica da neurose. O foco dos textos referidos está no fenômeno do duplo na sua forma negativizada, isto é, como o desaparecimento da imagem exterior que dá suporte ao Eu. As ausências da sombra e do reflexo são entendidas como representações metafóricas de uma alteração do Eu que engendra repercussões importantes na homeostase psíquica, sobretudo nas relações sociais de troca. Explora-se daí a menção no diário de Hoffmann de instrumentos ópticos para interrogar o uso desses aparelhos como modelos metapsicológicos na psicanálise. Salienta-se, ainda, a participação de processos de natureza estética na dinâmica psíquica do infamiliar, tomando como referência a ligação entre o conto de Hoffmann e o relato de Stendhal sobre a sua estadia em Florença.

Palavras-chave: Duplo; Narcisismo; Infamiliar; Psicanálise; Literatura

Abstract

This is a qualitative research, in essay format, which performs the comparative study of two literary works, by A. Von Chamisso and E. T. A. Hoffmann, and an annotation in the latter’s diary to problematize the repercussion of some forms of destabilization of the Ego’s in the psychic dynamics of neurosis. The focus of the referred texts is on the phenomenon of the double in its negative form, that is, as the disappearance of the outer image that supports the Ego. The absences of the shadow and the reflection are understood as metaphorical representations of an alteration of the Ego that generates important repercussions on psychic homeostasis, above all in social relationships of exchange. Thus, we analyze the mention of optical instruments in Hoffmann’s diary to question the use of these devices as metapsychological models in psychoanalysis. Note, also, the participation of processes of aesthetic nature in the psychic dynamics of the uncanny, taking as reference the connection between Hoffmann’s short story and Stendhal’s account of his stay in Florence.

Keywords: Double; Narcissism; Uncanny; Psychoanalysis; Literature

Resumen

Este ensayo cualitativo realiza un estudio comparativo de dos obras literarias de A. Von Chamisso y de E. T. A. Hoffmann, junto con una anotación en el diario de este último para problematizar la repercusión de algunas formas de desestabilizaciones de la función del Yo en la dinámica psíquica de la neurosis. Los textos se centran en el fenómeno del doble en su forma negativa, como la desaparición de la imagen exterior que sostiene el Yo. Se entienden las ausencias de la penumbra y el reflejo como una representación metafórica de una alteración de la función del Yo que genera importantes repercusiones en la regulación psíquica, sobre todo en las relaciones de intercambio social. Se analiza la presencia en el diario de Hoffmann de instrumentos ópticos para discutir el uso de estos dispositivos como modelos metapsicológicos en psicoanálisis. Se destaca la reverberación de procesos de naturaleza estética en la dinámica psíquica de lo ominoso, tomando como referencia la conexión entre el cuento de Hoffmann y el relato de Stendhal sobre su estancia en Florencia.

Palabras clave: Doble; Narcisismo; Ominoso; Psicoanálisis; Literatura

Introdução

Este artigo investiga os fenômenos do duplo e do infamiliar a partir do estudo comparado do conto de E. T. A. Hoffmann (1776-1822), A história do reflexo perdido (Hoffmann, 1817/2015a), e da novela de A. Von Chamisso (1781-1838), As maravilhosas histórias de Peter Schlemihl (Von Chamisso, 1814/1980). É comentada ainda uma frase do diário de Hoffmann, citada pelo psicanalista Otto Rank (1914).

Vale destacar que as obras citadas dialogam entre si não apenas no que diz respeito às temáticas e aos recursos narrativos empregados. É possível encontrar nelas referências explícitas que remetem uma à outra: enquanto Hoffmann descreve o encontro de Erasmus Sphinker, o personagem que perdeu o reflexo, com Peter Schlemihl, que na história de Chamisso negociou a própria sombra com o diabo; Chamisso, no posfácio de seu livro, em uma carta assinada com o pseudônimo/heterônimo de seu amigo Eduard Hitzig, conjectura como deve ter sido a reação de um “escritor chamado Hoffmann” ao ler as histórias de Schlemihl pela primeira vez. Fica claro então que os dois não só eram leitores um do outro, como também estavam cientes da influência que exerciam entre si. A esse respeito, considera-se bastante instigante a forma como Rank (1914) explora as referências recíprocas entre as obras mencionadas. Por isso, realiza-se o resgate das contribuições desse autor em paralelo ao comentário das obras de Hoffmann e Chamisso.

Vale destacar que os dois textos têm como tema central o abalo da dinâmica psíquica do Eu. Ambos exploram a dependência dessa instância psíquica de um suporte imagético externo, interrogando o que poderia acontecer se esse suporte material subitamente faltasse. Pode-se dizer que se trata, nos dois casos, de uma abordagem negativada do fenômeno do duplo: em Hoffmann, problematiza-se o desaparecimento da imagem especular; já em Chamisso, da sombra.

Obviamente, tal situação constitui uma metáfora literária, que remete à intuição de um fato clínico. Não é exagero, portanto, sustentar que essas construções ficcionais influenciaram e, de certa forma, anteciparam em quase um século a abordagem psicanalítica do narcisismo, como testemunha o artigo de Rank (1914), escrito no mesmo ano do ensaio de Freud (1914/1997), Sobre o narcisismo: uma introdução.

O fenômeno do duplo pode ser descrito como a visão de si próprio como um outro, o que implica em uma abordagem do sujeito enquanto dividido e fragmentado (Guimarães, 2018). Essa definição se aplica tanto à literatura como à psicanálise. Sustenta-se, portanto, que muitas das questões exploradas no âmbito ficcional pela literatura podem ser verificadas na práxis psicanalítica por meio da escuta e observação clínicas. Nesse sentido, esta proposta de trabalho se apoia na orientação de Freud (1907/1997) quando argumenta que é muito difícil para o psicanalista chegar a novas descobertas científicas que o poeta, ele próprio, já não as tenha enunciado por meio de uma linguagem estética e artística.

Do exposto, o duplo é tratado neste artigo simultaneamente como a manifestação de uma fase arcaica do desenvolvimento psíquico e a expressão de uma oscilação na homeostase do Eu bastante frequente na vida adulta. O duplo representa então uma atualização desse momento no qual a imagem exterior do próprio corpo não é ainda reconhecida como suporte de uma identidade de si. Tal interpretação pode ser depreendida a partir do esquema L, tal como proposto por Lacan (1985), quando cotejado pela leitura de Wallon (1995), Rank (1914) e Freud (1919/1997a). Destaca-se que, no ensaio sobre o infamiliar, Freud teorizou sobre a relação entre o Unheimliche e o duplo após o episódio ocorrido durante uma viagem de trem, quando, durante a noite, ele se assustou ao se deparar com a imagem de um senhor velho e ranzinza. Só após um instante de perplexidade e irritação ele reconheceu que aquela imagem era a sua própria refletida no vidro de uma cabine.

Sabe-se que, no curso do seu desenvolvimento, entre o 6º e o 18º mês de idade, o bebê obtém considerável ganho motor, linguístico e cognitivo, que é, em grande parte, impulsionado pela introjeção da imagem esteroceptiva do próprio corpo, que se torna, então, uma imagem proprioceptiva integrada (Wallon, 1995). Nesse período, a criança, auxiliada pela mediação do olhar de um adulto, constrói uma identidade entre a imagem no espelho e seu corpo. Doravante, ela passa a representar a si mesma como uma unidade separada e independente. Freud (1914/1997) chama essa ação psíquica que leva à formação do Eu de narcisismo, enquanto Lacan (1949/1998) a denomina estágio do espelho.

Vale a pena destacar que a asserção de uma identidade de si traz implicações significativas para a dinâmica psíquica de modo geral, sobretudo quando se tem em vista sua repercussão nas relações sociais (Freud, 1921/1997b). Entende-se que a problematização dessas reverberações dos abalos do Eu nos vínculos interpessoais constitui o núcleo das histórias de Chamisso e Hoffmann. Por isso, seus textos podem subsidiar o debate psicanalítico em torno dessa questão. Assim, apesar de se tratar de obras escritas há mais de dois séculos, elas ainda são relevantes, sobretudo quando se observa a fragilização dos vínculos sociais e afetivos ocasionada pela atual crise pandêmica, econômica e política, que infelizmente repercutirá nos próximos anos.

Uma referência importante que orienta a interpretação que se faz dos textos literários analisados é a menção neles de dispositivos óticos, como o prisma, o caleidoscópio e o espelho, que são encontrados em abundância na obra de Hoffmann, em especial na frase de seu diário, cujo comentário constitui o núcleo do primeiro tópico deste artigo. Defende-se que a análise detalhada dessa anotação ajuda a explicitar o elo entre as histórias citadas, além de corroborar a problematização de suas implicações metapsicológicas. Vale lembrar que o uso de modelos óticos constitui um recurso bastante utilizado na metapsicologia psicanalítica, sobretudo em Freud e Lacan (D’Agord, Barbosa, & Hasan, 2015).

Destaca-se que o prisma é um cristal que decompõe a luz em diferentes espectros, demostrando que a realidade das imagens é uma construção complexa que depende simultaneamente da qualidade do objeto visto, do ângulo de incidência da luz e da posição do observador. Já o caleidoscópio é um aparato formado por um conjunto móvel e articulado de lentes defratoras de luz, que produz um jogo de imagens que é transformado à medida que a configuração de seus elementos é alterada. O recurso a esses aparelhos óticos é utilizado, tanto na psicanálise como na literatura, para interrogar a dinâmica psíquica do Eu, do fenômeno do duplo e do sentimento do infamiliar (Unheimliche).

Exploram-se, ainda, os efeitos de despersonalização associada à fruição estética, que se acredita constituir uma questão implícita no conto de Hoffmann. Defende-se que o escritor alemão faz alusão ao relato de Stendhal (1817/2018) sobre uma vivência de abalo psíquico e confusão mental desencadeada durante sua visita à Florença. Chama-se atenção para o fato de o livro no qual esse relato está inserido ter sido publicado no mesmo ano do conto de Hoffmann, cuja trama também transcorre na mesma cidade. Por conseguinte, é muito provável que o último tenha lido e se inspirado no primeiro.

É proposto que a influência que as obras de artes da cidade italiana exerceram no protagonista da história de Hoffmann pode ser apontada como uma possível causa material de suas desventuras e sofrimento. A figuração negativada do duplo - a perda do reflexo - é tomada como a figuração metafórica de uma experiência de dessubjetivação presente na neurose. Acerca desse ponto, chama-se atenção para a denominada síndrome de Stendhal, quadro nosológico estabelecido na década de 1970 (Palacios-Sánchez et al., 2018) a partir do relato do escritor francês.

Trata-se de um ensaio que realiza o estudo comparado de duas obras literárias, de Hoffmann e Chamisso, e de uma anotação do diário de Hoffmann para problematizar a repercussão de algumas formas de abalos do Eu na dinâmica psíquica. Além da leitura dos livros de Rank (1914), Chamisso (1814/1980) e Hoffmann (1809/1968, 1817/2015a), dos textos freudianos que tratam do narcisismo (Freud, 1914/1997), da segunda tópica (Freud, 1921/1997b, 1923/1997) e das implicações dos processos inconscientes no campo da estética (Freud, 1919/1997a), faz referência a artigos publicados na plataforma SciELO e PePSIC, e a livros de comentadores que investigam as temáticas abordadas neste trabalho.

O texto segue a seguinte ordem: inicia-se com a discussão do trecho do diário de Hoffmann, realiza-se então o comentário de seu conto e, por fim, analisa-se a novela de Chamisso.

A difração do prisma

Na epígrafe que abre o segundo tópico de seu ensaio sobre o duplo, Rank (1914) transcreve uma anotação do diário de Hoffmann (1968), de 6 de novembro de 1809, na qual o escritor revela um pensamento aparentemente fortuito que lhe ocorreu durante um baile, enquanto observava os convidados. Optou-se por traduzir a frase ao pé da letra a fim de evidenciar a sua estrutura gramatical: “eu me penso meu Eu através de um prisma replicador de imagens, todas as formas que se movimentam ao meu redor são Eus e eu me irrito com aquilo que elas fazem e deixam de fazer” (Hoffmann, 1968, p. 40, tradução nossa)1.

Trata-se de uma frase densa e complexa - até mesmo confusa à primeira vista - que exige várias leituras e uma interpretação atenta. Nela, o Eu comparece em duas funções distintas, o que na língua alemã é demarcado por grafias diferentes: em minúsculo, o pronome pessoal do caso reto, que representa o sujeito da oração; já com a inicial maiúscula, o substantivo, que assume o lugar de objeto sobre o qual recai a ação.

A construção sintática de Hoffmann torna-se ainda mais inusitada ao acrescentar o possessivo relativo à primeira pessoa do singular ao Eu (objeto direto/substantivo) - que é interpretado como análogo ao Eu da segunda tópica freudiana - e ao declinar o verbo como uma ação reflexiva que retroage sobre o sujeito da oração, na condição de destinatário da ação (objeto indireto/dativo).

Dessa forma, Hoffmann constrói uma imagem caleidoscópica, dinâmica e condensada, que plasma em uma só cena uma miríade de versões de si mesmo rodopiando ao redor de um ponto de mirada, que, no entanto, não consegue apreender a si mesmo a não ser se alienando aos próprios reflexos, ainda que de forma parcial e evanescente.

Daí a irritação do escritor, que pode ser comparada ao mau humor de Freud no episódio da visita à acrópole (1936/1997), na Grécia. Freud relata que, antes de sua chegada à Atena, foi tomado por um estado de intensa irritação e impaciência, ao passo que, ao se deparar com o famoso monumento o qual ansiava visitar desde criança, ele é imerso em uma inesperada e desconcertante sensação de irrealidade. Nos dois casos, em Hoffmann e Freud, a irritação constitui uma reação subjetiva que antecede um episódio de afânise. Isto quer dizer que os sentimentos de desrealização e dessubjetivação são precedidos de algumas manifestações afetivas, que podem assumir formas diferentes e variadas. Salienta-se que alguns artistas, como é o caso de Hoffmann, esmeram-se em conjurar tais reações subjetivas a partir de seus textos, a fim de que o leitor experimente um efeito estético específico que conjuga os sentimentos de estranhamento, inquietação e vertigem.

Rank (1914) descreve Hoffmann como o escritor de língua alemã que mais se dedicou ao desenvolvimento da temática do duplo na literatura. No curto e profícuo período durante o qual se dedicou à produção literária, Hoffmann explorou a experiência do duplo de diferentes formas e perspectivas (Safranski, 2018). É lícito, portanto, sustentar que o trecho de seu diário citado seja entendido como a síntese antecipatória de seu projeto literário.

Não é à toa que essa passagem tenha inspirado uma instalação abrigada em uma sala do memorial do escritor, situado na casa onde residiu em Bamberg, na Alemanha, entre os anos de 1809 e 1815.

Essa instalação reúne vários autorretratos de Hoffmann, que, além de escritor, era cartunista, músico, advogado e crítico literário (Safranski, 2018). Os autorretratos, reproduzidos em uma superfície translúcida, são refletidos em uma série de espelhos, de forma que o visitante se sinta convocado a se colocar na posição de ponto de mirada do caleidoscópico da cena que Hoffmann descreve.

Figura 1
Instalação do Instituto E. T. A. Hoffmann (E. T. A Hoffmann-Gesellschaft, 2020).

Pontua-se que a abordagem do duplo em Hoffmann está intimamente atrelada a uma proposta de reflexão metanarrativa: os lugares de escritor, narrador e autor são questionados e tensionados no interior da história, estando, portanto, integrados a ela. Tal estratégia torna possível a experimentação de diferentes modos de organização dos enunciados que colocam em causa e subvertem o ato da enunciação. Esse artifício se deixa apreender pela pluralidade de vozes e pelo câmbio da narrativa entre personagens. Não raro, seus livros estão organizados na forma de textos dentro do texto: cartas e anotações de um diário pessoal - como em O homem de areia (Hoffmann, 1817/2015b) - ou um manuscrito misterioso perdido e o comentário de um editor, a exemplo de Os elixires do diabo (Hoffmann, 1815-1816/2016).

É lícito aproximar daí a abordagem que o escritor faz desse Eu (Ich) substantivado e objetivado da citação de seu diário com a descrição freudiana da instância psíquica homônima da segunda tópica (Freud, 1923/1997). É importante recordar que, mesmo após enfatizar que o corpo constitui a matriz inaugural do Eu, Freud define essa instância como um somatório heterogêneo de imagens introjetadas, que foram forjadas, pedaço por pedaço, em tempos cronológicos distintos, por meio do mecanismo de identificação. Daí seu caráter invariavelmente parcial: a identificação incide sobre um traço do objeto e não sobre sua totalidade.

A partir daí, considera-se plausível descrever o Eu como uma espécie de caleidoscópio das identificações amealhadas durante a vida. Os investimentos libidinais do passado que se tornaram anacrônicos, obsoletos ou insustentáveis são lentamente realocados e transformados pelo trabalho do luto. Trata-se de um processo moroso que, em função da inércia da libido, não acontece sem a mobilização de uma considerável cota de dor e sofrimento. Como resultado desse trabalho, as memórias associadas a traços dos objetos abandonados que serviram de suporte às experiências de satisfação do passado tornam-se gradativamente parte integrante do Eu. Abre-se, então, uma via para que novos investimentos aconteçam. No entanto, tais investimentos estão condenados a assumir a forma de uma atualização das lembranças metabolizadas do passado (Freud, 1917/1997, 1923/1997).

Conclui-se do exposto que o Eu não é tratado por Freud como sinônimo de sujeito. Ele é abordado a partir de uma relação de equivalência com os objetos externos do mundo que foram investidos libidinalmente. Por isso, na psicanálise, o Eu não é o lugar de uma verdade latente e recôndita ou de uma essência imanente, duradoura, unitária e coesa, como está posto na tradição romântica.

O Eu também não é uma instância inata. Ele é o produto de uma ação psíquica que geralmente acontece nos primeiros meses de vida e que se desdobra durante toda a vida. Sua instauração produz ganho na mobilidade da libido e na regulação da economia psíquica, ao mesmo tempo em que estabelece a possibilidade de uma asserção de si e da assunção de um lugar de endereçamento.

Pode-se conjecturar que, ao perscrutar, no limite da vertigem, os diferentes avatares e facetas do Eu, Chamisso e Hoffmann oferecem um material bastante profícuo para se questionar e enriquecer a concepção psicanalítica de sujeito, tal como propõe Lacan (1985). O psicanalista francês se apoia na diferença entre os dois pronomes da primeira pessoa do singular do seu idioma materno, Je e moi, para situar o lugar do sujeito do inconsciente. Assim, no esquema L, Lacan localiza o Je, o sujeito do Inconsciente, no lugar do Isso (Es) da segunda tópica Freudiana, no eixo denominado simbólico, o eixo do grande Outro, escrito em maiúsculo, no original, em francês, Autre, A; enquanto o moi está no eixo imaginário, o da identificação.

Deduz-se daí que a existência do Eu está alicerçada em uma relação de alienação à imagem de outro(s) eu(s): moi’s. Na álgebra de Lacan (1985), o eu é sobreposto ao outro - designado pela inicial a, o pequeno outro, escrito em minúsculo - e desdobrado em uma relação dual especular, como se percebe na Figura 2:

Figura 2
Esquema L (Lacan, 1985, p. 307).

Propõe-se interpretar a frase do diário comentada a partir desse esquema lacaniano. O Eu substantivado de Hoffmann seria, portanto, equivalente ao eu/moi/a. Pode-se afirmar, a partir daí, que, ao decompor as figurações do Eu no eixo imaginário, Hoffmann pavimenta o caminho para que algo da ordem do sujeito no eixo do Inconsciente possa se manifestar. Assim, o fenômeno do duplo, na condição de uma experiência literária estética, pode ser tomado como um momento de abalo, desdobramento e ultrapassagem do eixo imaginário, quando o sujeito se percebe disjunto das imagens que servem de suporte ao Eu, ainda que por um instante fugaz.

Do exposto, é importante sublinhar que nada permite sustentar que, uma vez constituído, o Eu se consolide como uma estrutura monolítica, rígida e inalterável. De acordo com Freud (1914/1997, 1923/1997), o Eu tem uma dinâmica bastante maleável, que está articulada à fantasia. Tal plasticidade é necessária para a manutenção da homeostase psíquica. Em função disso, mesmo em situações consideradas normais, alterações no funcionamento do Eu são frequentes, como se percebe em alguns tipos de paramnésias.

Deve-se destacar ainda que, por meio do mecanismo da identificação, o Eu incita o engajamento do sujeito em um amplo leque de modalidades de relações de trocas sociais, que vão desde o enamoramento apaixonado à rivalidade agressiva (Freud, 1921/1997b, Lacan, 1949/1998). Pode-se inferir que uma alteração suficientemente intensa e profunda da estrutura do Eu venha a acarretar o comprometimento dessa dinâmica.

De qualquer modo, seja de forma temporária ou permanente, patológica ou normal, essas variações ou perturbações abrem caminho para que sejam exploradas algumas nuances da organização do Eu que nem sempre são acessíveis à observação direta. Nesse ponto, o psicanalista tem muito a aprender com a ficção literária fantástica de Hoffmann e Chamisso.

Acredita-se que a abordagem que Hoffmann faz do fenômeno do duplo pode ser dividida em duas vertentes: uma que explora as manifestações da loucura e que evidencia os fenômenos de desagregação e inflação do Eu, tais como os delírios e alucinações; outra que busca dar vazão às paixões, dramas e paradoxos que envolvem a realização do narcisismo nas neuroses.

Dentro das referências trazidas por Rank (1914), são exemplos de textos do primeiro grupo Os elixires do diabo e O homem de areia. No segundo grupo, situam-se, além do conto que será comentado a seguir, os seguintes textos: Princesa Bambilla, A escolha da noiva, O coração empedernido e O duplo. As obras dos dois grupos, todavia, estão correlacionadas de modo bastante orgânico, de onde se deduz a existência de um liame lógico entre elas.

Essas considerações mais gerais sobre a obra do escritor alemão servem de introdução ao comentário de seu conto A história do reflexo perdido (Hoffmann, 1817/2015a).

A perda do reflexo especular

O conto em questão se vale de alguns temas recorrentes na obra do escritor alemão: o pacto com o diabo, a coalescência entre o sagrado e o profano, e a irrupção súbita de uma paixão avassaladora e impossível. Seu foco, contudo, está em outro lugar. Hoffmann interroga a dependência do Eu em relação a um elemento externo corriqueiro, sensível e cotidiano: a projeção do próprio corpo no espelho (Freud, 1914/1997). Dessa forma, defende-se que a referida história remete ao drama de um sujeito neurótico, que sofre um abalo narcísico bastante impactante e desorganizador. As questões que a história coloca podem ser traduzidas da seguinte forma: o que aconteceria se, subitamente, essa imagem desaparecesse? Quais seriam as consequências? O que poderia lhe servir de substituto ou equivalente?

Tais são os problemas com os quais se depara Erasmus Sphinker, um alemão de 27 anos, casado e pai de um filho pequeno, que vivia feliz e em paz com a sua família até partir em uma viagem para realizar um antigo sonho: conhecer Florença, a cidade italiana berço da Renascença.

Defende-se que, nesse ponto, o conto traz uma referência implícita ao livro de M.-H. B. Stendhal (1783-1842), Viagem à Itália: Roma, Nápoles e Florença (1817/2019), publicada no mesmo ano do conto de Hoffmann. O relato do escritor francês descreve uma vivência de alucinação, confusão mental, despersonalização e vertigem desencadeada pelo contato com as obras de arte em sua visita a Florença.

Na década de 1970, o relato de Stendhal inspirou a formulação de um transtorno psiquiátrico que recebeu o seu nome e o da cidade italiana onde esteve. Assim, a síndrome de Stendhal, de Florença ou hiperculturamia é descrita como uma doença que acomete pessoas que apreciam obras de arte com valor estético fora do comum. Segundo especialistas, dois fatores contribuem para o desenvolvimento dessa síndrome: o estrangeirismo e a expectativa criada previamente em relação ao encontro com obras célebres (Loureiro, 2005, Palacios-Sánchez et ali, 2018, Stitou, 2019).

Essas duas premissas estão presentes na história de Hoffmann. É lícito perguntar se as vivências de Erasmus não seriam fruto de um estado de confusão mental, a exemplo do acontecido com Stendhal. Por conseguinte, o conto interroga uma dimensão obscura e ameaçadora da arte, que remete à dinâmica psíquica do infamiliar (Das Unheimliche) (Freud, 1919/1997a). Percebe-se que, na história, o belo não apazigua nem acalma. Antes disso, inquieta, na medida em que conjura uma dimensão do sujeito até então oculta e latente, mas que, insuflada por uma experiência estética, torna-se desperta. Nas palavras de Freud (1919/1997a), o infamiliar, também denominado estranho inquietante, remete àquilo que deveria permanecer oculto, mas que se torna manifesto. Ele resulta de um movimento de regressão a um momento primário de constituição do Eu, o narcisismo primário.

Já em Florença, em uma festa, Erasmus se depara com Giulietta, uma mulher misteriosa e sedutora, a quem compara a um anjo do quadro de Rafael. Erasmus se apaixona subitamente pela moça e, aos poucos, deixa-se enredar em seus caprichos. No fim da festa, já de manhã, ele acompanha Giulietta até sua casa. Nessa ocasião, é abordado por um médico misterioso, o Doutor Dapertutto, cuja relação com Giulietta lhe parece ao mesmo tempo íntima e obscura. Da mesma forma que a moça italiana, Dapertutto tinha intensa capacidade de influência, dom que, segundo ele mesmo, era utilizado para curas e tratamentos de saúde. Pode-se dizer que, no conto, o médico encarna um modo de relação com o saber que não reconhece falhas ou limites. Dessa forma, o par Giulietta/Dapertutto representa duas facetas de um mesmo fenômeno, a sugestão: a sedução pela beleza e o enamoramento, no primeiro caso, e o amor pelo saber e a autoridade, no segundo.

Como que por acaso, após os encontros com Giulietta, Erasmus invariavelmente encontra Dapertutto. Constata-se que, enquanto a primeira demanda uma entrega incondicional do protagonista, o segundo indica suas falhas - como Erasmus se vestia, se portava e o que dizia -, salientando a necessidade de corrigi-las para estar à altura do amor da moça.

Pode-se tomar, então, esse personagem como a figuração de uma dimensão do Supereu, que desempenha uma função de crítica do Eu a partir da posição de ideal simbólico. Seu nome reverbera a dimensão escópica onipresente dessa instância psíquica (Freud, 1923/1997). Dapertutto, em italiano, significa aquilo que está em toda a parte.

Friederich, companheiro de viagem de Erasmus, o alerta para o risco de se deixar capturar pelas artimanhas de uma cortesã e de um vigarista. Nesse ponto, é esboçada a explicação mais trivial dos acontecimentos. Tratar-se-ia de uma dupla de impostores buscando tirar vantagem de um viajante.

Em uma festa, por ciúmes de Giulietta, Erasmus se envolve em uma briga. Na luta, o protagonista perde a consciência, recobrando-a no leito da amada. Ela o adverte do risco à sua vida caso permanecesse na cidade. Não tardaria para que o rival agredido na noite anterior buscasse revanche. O protagonista deveria, portanto, partir imediatamente.

Em um momento de intimidade antes da despedida, após trocas de juras de amor eterno, Giulietta revela o desejo de possuir Erasmus para sempre junto a si. Ela faz então um estranho pedido: que sua imagem no espelho permanecesse com ela. Já que não era possível ter a alma e o corpo do amado, que ela guardasse consigo pelo menos o seu reflexo.

Esse é o ponto culminante da história. De forma cinematográfica, Hoffmann descreve o encontro de olhares dos amantes no espelho. Desenha-se, nesse momento, um quiasma composto pelo encontro de duas retas que marcam o ponto de desvanecimento da perspectiva do personagem principal, no limite entre o ver e o ser visto, entre sujeito e objeto (Quinet, 2002).

Erasmus, cético, pergunta como o reflexo de seu próprio corpo poderia ser separado dele. Pensando se tratar de uma metáfora poética, ele consente com o pedido de Giulietta e, horrorizado, observa sua imagem no espelho agir de forma dessincronizada em relação aos seus próprios movimentos: seu reflexo se debruça sobre Giulietta para abraçá-la enquanto ele se dirigia à saída.

Antes de partir para a Alemanha, Erasmus procura Dapertutto para lhe contar o ocorrido e pedir ajuda. O médico o aconselha a cortar os laços com tudo aquilo que o separa de Giulietta. Oferece-lhe então um medicamento para que seu filho e sua esposa sejam mortos sem dor ou sofrimento. Indignado, o protagonista faz violentas imprecações contra o médico que o insuflava a assassinar a própria família.

A partir desse trecho, identificam-se em Dapertutto outras características marcantes do Supereu (Überich): ele se propõe a proteger a integridade do Eu do protagonista, além de acenar com a promessa futura de satisfação libidinal. Nesse sentido, tal instância pode ser considerada herdeira do complexo Édipo: ela é a amálgama dos ditos proibitivos do incesto e, ao mesmo tempo, a expectativa de sua realização (Freud, 1923/1997).

Na condição de uma camada que se separa do Eu, o Supereu assume características próprias, autonomizando-se, a exemplo da imagem especular de Erasmus. É interessante indagar, a partir daí, quais seriam as relações entre o fenômeno do duplo e a constituição do Supereu, uma vez que a valência psíquica do duplo muda de configuração nas diferentes fases do desenvolvimento individual (Freud, 1919/1997a; Rank, 1914; Wallon, 1995), tal como o mecanismo de um caleidoscópio.

No caminho para casa, Erasmus para em uma taverna para descansar. Percebe que a ausência de seu reflexo em um espelho próximo à sua mesa fora notada pelos demais clientes do estabelecimento. Os comentários se espalham e se tornam cada vez mais estridentes, ao ponto de ser obrigado a deixar o local às pressas, temendo pela sua própria vida. Já em casa, constata, da parte de sua mulher e de seu filho, o mesmo desprezo que testemunhara na taverna. A primeira não reconhece nele o homem com quem se casou; o segundo não o aceita mais como uma figura de autoridade. O pequeno Erasmus faz chacota do pai, desenhando nele bigodes com carvão enquanto dormia.

Em desespero, sofrendo com o descaso de sua família e a separação de Giulietta, Erasmus vê a amante florentina surgir em seu quarto no meio da noite. Seria uma alucinação ou uma aparição real? Ela mostra ao protagonista seu reflexo. Diz estar cuidando dele como se fosse o próprio amado, mas que sentia sua falta e que não suportava mais viver sem ele. Ela lhe suplica que siga a recomendação de Dapertutto. Assim, em breve, os dois estariam juntos novamente. Ao contrariá-la, Erasmus testemunha os olhos de Giulietta, vermelhos, repletos de ódio, inflamar e soltar raios.

Logo em seguida, surge o doutor Dapertutto, que lhe apresenta um contrato. Consta no documento que Erasmus concordava em ceder ao médico o direito sobre a vida de sua mulher e de seu filho. Em troca, seu reflexo lhe seria restituído e ele poderia novamente se unir a Giulietta. Erasmus recusa mais uma vez a oferta e declara consentir com o fardo de viver sem reflexo, sem família e sem amor pelo resto da vida.

Ao relatar esses episódios para a esposa, ela o aconselha a viajar pelo mundo em busca de seu reflexo. Erasmus se torna, então, um andarilho errante. Nas suas viagens, ele encontra um companheiro de andanças, Peter Schlemihl, que, assim como acontecera com ele em relação ao seu reflexo, havia perdido a própria sombra. Os dois estabelecem um pacto: um emprestaria ao outro a parte que lhe faltava. No entanto, a sociedade se mostra pouco produtiva. Nem a sombra de Erasmus satisfazia as necessidades de Schlemihl, nem o reflexo deste servia àquele.

Pode-se argumentar que cada pessoa estabelece uma relação única e particular com os avatares de seu duplo, em que se suporia a existência de uma dinâmica ou homeostase narcísica particular para cada sujeito. Daí se deduziria que, nesse território, não há um modelo ideal que seja comum a vários indivíduos ou uma referência na realidade com a qual se possa orientar uma retificação. Cabe perguntar as consequências dessa ideia na clínica: nos chamados transtornos de autoimagem, como a anorexia, e na melancolia, a partir da incidência particular do Supereu nessa conjuntura psíquica. Talvez seja necessário pensar para cada sujeito uma forma única e individual de suplência como uma direção possível de cura. A novela de Chamisso comentada a seguir permite dar prosseguimento na avaliação dessa hipótese de trabalho.

A ausência da sombra

Peter Schlemihl é o nome do protagonista do livro As maravilhosas histórias de Peter Schlemihl, de A. Von Chamisso (1814/1980). Nascido na França e radicado na Alemanha desde criança, Chamisso se dedicou à escrita de poemas e, em menor escala, de textos em prosa, como no caso da novela em questão.

De início, chama atenção o artifício utilizado pelo escritor para narrar a história. Schlemihl é apresentado como uma pessoa real, que confia a Chamisso um manuscrito no qual registrou a história de sua vida. Nele, o protagonista conta os motivos que o levaram à proscrição e os detalhes de sua errância pelo mundo. Trata-se, portanto, de um texto de alguém que viveu a maior parte da sua vida afastado do convívio social e que, na velhice, se dirige a alguém de sua confiança como última aposta de concretização de um endereçamento.

Rank (1914) ressalta a homofonia entre os nomes Chamisso e Schlemihl para defender que o narrador das Histórias maravilhosas seria, na verdade, um duplo do escritor. Schlemihl, de acordo com Rank, era a forma como Chamisso costumava ser chamado pelas pessoas de seu círculo mais próximo. Rank cita uma carta de Chamisso ao irmão, na qual o escritor se refere a um personagem do Talmud - o livro sagrado dos judeus - chamado Schlemihl. Trata-se de uma pessoa azarada, que invariavelmente se envolvia em situações desastrosas.

À essa observação, Rank (1914) associa outro comentário de Chamisso que, dirigindo-se ao seu amigo Fouqué, conta um episódio no qual, durante uma viagem, o escritor perdeu todos os seus pertences, inclusive as botas. Seu interlocutor, em tom de troça, pergunta-lhe se por acaso ele não teria perdido a própria sombra. Essas seriam duas situações deflagradoras da narrativa ficcional desenvolvida no livro.

Rank (1914), que também era judeu, acrescenta a seguinte anotação: no judaísmo, Schemihl pode significar tanto uma criança amada por deus como um natimorto. Daí a conexão da etiologia do nome do personagem com a dinâmica narcísica que o autor explora no último capítulo de seu ensaio. Isto é: a ambivalência, o caráter mortífero e a intensa libidinização que marca a relação do sujeito com a própria imagem.

Uma vez aceita a tese de que Schlemihl constitui um duplo de Chamisso, ressalta-se um recurso narrativo estratégico do texto. A presença de cartas trocadas entre o escritor e seus amigos, supostos interlocutores reais, que fazem as vezes de prelúdio e posfácio. Uma dessas cartas é endereçada a Eduard Hitzig, a quem Chamisso se refere como seu alterego “Bessrer Ich” (Von Chamisso, 1814/1980, p. 217), um Eu melhorado, numa tradução literal, o que remete ao lugar de ideal que eventualmente as figurações do duplo assumem (Freud, 1914/1997). Outra carta é dirigida ao já citado Fouqué. Os três discutem se o texto deve ou não ser publicado e as consequências éticas dessa decisão. Esse recurso da troca de cartas que envolve tanto pessoas reais como fictícias constitui a moldura da história. Percebe-se então que, por meio da constituição de duplos, Chamisso tece uma rede de endereçamentos que estabelece a refração entre fantasia e realidade.

Vale salientar que, da mesma forma que Hoffmann faz referência a Schlemihl no seu conto de 1817, a carta de E. Hitzig, datada de 1827, inserida no posfácio do livro e endereçada a Chamisso, revela que o escritor não só conhecia o conto abordado no tópico anterior, como também se punha a imaginar como teria sido a reação de Hoffmann ao ler o manuscrito de Schlemihl pela primeira vez.

A novela conta a repercussão na vida de P. Schlemihl de certo acontecimento. Em uma viagem de negócios a uma ilha turística, enquanto aguardava a entrevista com um cliente, o protagonista resolve participar de uma excursão guiada nas montanhas. Durante o passeio, ele testemunha uma cena que desperta sua curiosidade. Havia no grupo um velho bastante magro que portava um sobretudo cinza e trazia consigo uma sacola de couro. Schlemihl nota que ele, discretamente, sem alarde, realizava os desejos dos participantes do grupo, bastando para tanto que fossem verbalizados. O velho então abria a sacola e retirava de dentro aquilo que acabara de ser solicitado: um esparadrapo, um telescópio, uma barraca e, por fim, um cavalo. O protagonista se admira: não era concebível que aqueles objetos coubessem na sacola, nem que entre os membros da excursão somente ele tivesse reparado naquele disparate.

Confuso e irritado, Schlemihl resolve abandonar o passeio e retornar à pousada. No caminho, já distante do grupo, percebe que o velho o seguia. Em dado momento, ele se aproxima e lhe dirige a palavra. Diz que não conseguiu deixar de reparar na sua sombra: uma bela, ampla e pujante sombra. Propõe então um negócio: qualquer coisa ou quantia pela sombra.

Schlemihl, que nunca havia parado para avaliar a própria sombra, fica intrigado com a inesperada oferta. Sua sombra seria por acaso um bem do qual seria possível vender ou trocar? Como alguém poderia se separar de uma projeção do próprio corpo? O velho responde que isso era problema dele, que cabia a ele providenciar o recolhimento do produto negociado. Reticente, na certeza de escutar uma recusa como réplica, o protagonista faz sua contraproposta: a sombra pela sacola. O velho, sem pensar duas vezes, aceita o trato. Perplexo, Schlemihl observa o velho se abaixar, enrolar e dobrar a sombra, colocá-la debaixo do braço e partir.

Sua primeira avaliação é que havia feito um negócio extremamente vantajoso. Afinal, qual o valor de uma sombra? Qual sua serventia? Não tardaria para que logo mudasse de ideia. Ainda no trajeto de volta à hospedaria, várias situações o fazem se arrepender da transação. Schlemihl percebe que havia se tornado uma pessoa abjeta. Todos ao seu redor notam a ausência de sua sombra: as mulheres o evitam e lhe dirigem olhares esquivos de comiseração, as crianças caçoam e riem dele, os homens não escondem seus sentimentos de desprezo e revolta.

Schlemihl pensa: como algo tão singelo, quase imaterial, poderia fazer tanta diferença? Inicialmente, tenta compensar sua vergonha distribuindo por onde passa moedas que são retiradas aos borbotões da sacola mágica. Para se proteger do contato social e se recompor, ele se abriga em um quarto da hospedaria. De noite, já mais calmo, tenta mais uma vez sair pela rua, mas o resultado não é diferente. De volta aos seus aposentos, tenta recompensar a falta da sombra comprando produtos caros e de luxo, valendo-se da ajuda de um funcionário da hospedaria chamado Bendel, que se torna, a partir de então, seu criado e único amigo.

Aqui o narrador estabelece o contraste entre o peso e o volume das riquezas, e o caráter quase etéreo da sombra. Fica evidente a incomutabilidade entre os dois: nada poderia ocupar o lugar da sombra ausente. Schlemihl chega a contratar um artista para desenhar sua sombra, mas o artifício se mostra pouco prático, pois a cópia não tinha o dinamismo da imagem original. Logo ficava evidente a tentativa de fraude, o que contribuía para exacerbação da sua vergonha.

Schlemihl resolve contar ao criado o ocorrido no fatídico dia do passeio nas montanhas. Pede para que ele perfaça o trajeto, encontre o velho com sobretudo cinza e, então, em seu nome, proponha que o negócio seja desfeito. Ao retornar, Bendel confirma ter encontrado os objetos descritos - a barraca, o telescópio e o cavalo -, mas que ninguém das redondezas dava notícia do velho. Todavia, quando se preparava para retornar, diz que fora abordado por essa pessoa, que o incumbiu de transmitir o seguinte recado: a transação não seria desfeita, no momento oportuno um novo negócio seria proposto.

Schlemihl forja então um plano. Com ajuda de Bendel, adquire um castelo na localidade próxima e passa a se relacionar com a população local à distância, na condição de um rico benfeitor. Um novo criado é contratado entre os locais para facilitar as tratativas. O protagonista se apaixona pela filha do intendente do vilarejo e propõe casamento.

Tudo parecia correr bem, até o momento em que a falta de sua sombra é descoberta. Schlemihl é traído pelo novo criado, que além de desviar o dinheiro destinado às benfeitorias, alerta o intendente, pai da noiva, da situação desprezível de seu mestre. O intendente impõe o prazo de três dias para que Schlemihl comparecesse pessoalmente e apresentasse sua sombra. Expirado o prazo, a mão de sua filha em casamento seria concedida ao seu antigo criado, o detrator. Desesperado, Schlemihl foge para a floresta e, no final do terceiro dia, volta a encontrar o velho, que lhe propõe uma nova troca: a sombra pela alma.

O protagonista recusa o negócio e, a partir de então, se torna um andarilho. Aos poucos, descobre o gosto pela ciência e passa a se dedicar a expedições pelo mundo. Aqui a referência ao cientista e explorador prussiano A. Von Humboldt (1769-1859) se torna evidente. Vale lembrar que a figura do viajante na tradição romântica reverbera a condição errante do desejo, que não tem objetivo final ou porto seguro. Assim, pela via da sublimação intelectual, Schlemihl consegue estabelecer um tratamento à libido desinvestida das relações sociais.

Já velho, de volta a sua terra natal, enquanto se preparava para uma nova viagem, Schlemihl é acometido por uma severa doença tropical. Após desfalecer, acorda convalescente em uma instituição de saúde, um Schlemihlium, que fora construído com seus recursos e, para sua surpresa, é administrado por seu fiel amigo Bendel e sua antiga noiva, agora viúva. Nenhum dos dois o reconhece e ele não toma a iniciativa de se apresentar, permanecendo anônimo. Uma vez curado, Schlemihl prossegue com suas expedições. Antes de partir, registra suas memórias por escrito e as confia aos cuidados do escritor A. Von Chamisso.

Considerações finais

Destacou-se durante o trabalho como as duas obras de Chamisso e Hoffmann dialogam entre si. Esse fato foi evidenciado a partir da análise da frase do diário do último e do resgate dos comentários de Rank. Tomando-se o esquema L como modelo, sugeriu-se que o fenômeno do duplo se apresenta como uma desestabilização momentânea do eixo da identificação, que desfaz o vínculo entre o Eu e as imagens que lhe servem de suporte. Por meio dessa operação, percebe-se a relação genética e estrutural que há entre as manifestações do duplo, o Eu, seus ideais (Eu ideal e ideal do Eu) e o Supereu.

Nesse sentido, o sentimento do infamiliar (Unheimliche) associado ao fenômeno do duplo pode ser tomado tanto como um instante de fragilização psíquica como uma possibilidade de realização de um novo arranjo subjetivo. A partir das referências à experiência de Freud na Acrópole, de Stendhal em Veneza e ao conto de Hoffmann, apontou-se que algumas formas de abalo na função do Eu culminam no desencadeamento de um efeito estético específico, que pode atordoar, mas que, ao mesmo tempo, é capaz de franquear uma mudança de posição subjetiva.

Baseado nessa assertiva, constatou-se a construção de um arranjo mais promissor pelo personagem da novela de Chamisso, que encontrou uma suplência à ausência da sombra na pesquisa científica e na escrita. No caso da história de Hoffmann, o conto se encerra com Sphinker na posição de errância, sem deixar claro se ele foi capaz de desenvolver alguma forma de tratamento para a ausência de seu reflexo. Salienta-se daí as duas valências psíquicas da errância: ela pode eventualmente assumir a forma de uma potência produtiva associada ao desejo, mas também desempenhar o papel de um fator desagregador. Nesse último caso, ela pode significar se perder na própria língua, culminando no estreitamento das possibilidades de endereçamento e transmissão (Martins, 2014, Rosa, 2016).

Por isso, o ser visto, notado e escutado adquire valor político. Há, então, dois extremos: a dependência de uma sanção imediata do olhar do outro pode configurar uma situação de instabilidade, dependência e alienação; da mesma forma que a ausência de um olhar que reconhece e autoriza pode condenar o sujeito à invisibilidade e ao silêncio.

Assim, a ausência da sombra de Schlemihl pode ser interpretada como uma representação ficcional do preconceito e da discriminação. A sombra constitui a metáfora para uma marca narcísica que condiciona as relações intersubjetivas. Desse modo, o preconceito tem como meta abalar esse alicerce fundamental, dificultando a assunção de uma identidade de si e perpetuando a exclusão.

Sustentou-se, por fim, que, apesar de sua falta de consistência, tal identidade desempenha papel crucial na modulação das relações discursivas. Daí a analogia entre a alma, o reflexo e a sombra. O primeiro termo remete a uma essência subjetiva, que, da perspectiva da psicanálise, é efêmera e pontual, pois deriva dos efeitos do significante e da pulsão. Tal essência encontra em uma imagem virtual do corpo próprio, do qual a sombra e o reflexo são avatares, uma forma de se objetivar e perpetuar.

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    No original: “Ich denke mir mein Ich durch ein Vervielfältigungs-Glas - alles Gestalten die sich um mich herum bewegen sind Ichs und ich ärgere mich über ihr tun und lassen” (Hoffmann, 1968, p. 40).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    23 Set 2020
  • Aceito
    03 Nov 2021
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