Resumo:
Este estudo tem o objetivo de conhecer e compreender a experiência da internação psiquiátrica parcial em Hospital-Dia sob a perspectiva de pacientes em momento que antecedeu a alta, com foco nas expectativas e no planejamento sobre esse evento. Participaram do estudo oito pessoas internadas em um Hospital-Dia que tinham a alta programada. Cada participante respondeu individualmente a uma entrevista aberta. Os dados foram analisados pelo método de Análise de Conteúdo Temática. Os participantes expressaram sentimentos ambíguos despertados pela proximidade da alta, como a insegurança de perder o apoio do serviço e a satisfação pelo fim do tratamento hospitalar. Observou-se a valorização de práticas e posturas que consideraram o paciente enquanto pessoa situada em uma história, abarcando relações afetivas, expectativas, frustrações e planos futuros. Conhecer como os pacientes vivenciam a alta contribui para que tal evento seja considerado um processo imbricado em uma experiência histórica e social, sinalizando a relevância do cuidado ampliado, longitudinal e integral.
Palavras-chave:
Alta Hospitalar; Serviços de Saúde Mental; Reforma Psiquiátrica; Internação
Abstract:
This study aimed to know and understand patients’ perspectives of their experiences of partial psychiatric hospitalization in a daycare hospital preceding discharge and focused on expectations and on planning about this event. In total, eight people hospitalized in a daycare hospital who were scheduled to be discharged participated in this study. Each participant answered an open interview. The data were analyzed by thematic content analysis. Participants expressed ambiguous feelings by the proximity of their discharge, such as insecurity of losing service support and satisfaction with the end of the hospital treatment. Patients appreciated the practices and postures that considered them a person situated in a story, encompassing affective relationships, expectations, frustrations, and future plans. Understanding how patients experience discharge contributes to considering this event as a process intertwined in a historical and social experience, signaling the relevance of extended, longitudinal, and comprehensive care.
Key words:
Hospital Discharge; Mental Health Services; Psychiatric Reform; Hospitalization
Resumen:
Este estudio tiene como objetivo conocer y comprender la experiencia de la internación psiquiátrica parcial en Hospital de Día desde la perspectiva de los pacientes al momento en que antecedió el alta, con enfoque en las expectativas y en la planificación sobre este evento. Participaron en el estudio ocho personas internadas en un Hospital de Día que iban a recibir el alta. Cada participante respondió individualmente a una entrevista abierta. Se utilizó el método de análisis de contenido temático. Los participantes expresaron sentimientos ambiguos despertados por la proximidad del alta, como la inseguridad de perder el apoyo del servicio y la satisfacción por el fin del tratamiento hospitalario. Se observó la valorización de prácticas y posturas que comprenden al paciente como persona con una historia, que abarca relaciones afectivas, expectativas, frustraciones y planes futuros. Conocer cómo los pacientes perciben el alta permite ubicar el evento en un proceso que involucra una experiencia histórica y social, señalando la relevancia del cuidado ampliado, longitudinal e integral.
Palabras clave:
Alta Hospitalaria; Servicios de Salud Mental; Reforma Psiquiátrica; Hospitalización
Introdução
Eventos internacionais geraram documentos considerados referências para a construção de novos modelos de atuação em saúde, como a Declaração de Alma Ata (1978) e a Carta de Ottawa (1986) (Machado, Lima, & Baptista, 2017 Machado, C. V., Lima, L. D., & Baptista, T. W. F. (2017). Políticas de saúde no Brasil em tempos contraditórios: caminhos e tropeços na construção de um sistema universal. Cadernos de Saúde Pública, 33(2), 143-161. https://doi.org/10.1590/0102-311X00129616
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). Especificamente no Brasil, a partir da década de 1970 foram propostas novas modalidades mais humanas e universais de atuar em saúde, que se tornaram possíveis por meio da Reforma Sanitária (Dimenstein, 1998 Dimenstein, M. D. B. (1998). O psicólogo nas unidades básicas de saúde: Desafios para a formação e atuação profissionais. Estudos de Psicologia, 3(1), 53-81. https://doi.org/10.1590/S1413-294X1998000100004
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).
Paralelamente, a Reforma Psiquiátrica despontou como um movimento social que lutava por condições dignas de tratamento às pessoas em sofrimento mental, pois o modelo de cuidados vigente até então era centrado na atenção hospitalar e gerava rompimento de vínculos e exclusão social por institucionalizar o cuidado, violando direitos e desterritorializando os usuários pelo confinamento (Cruz, Guerrero, Scafuto, & Vieira, 2019 Cruz, K. D. F., Guerrero, A. V. P., Scafuto, J., & Vieira, N. (2019). Atenção à crise em saúde mental: um desafio para a reforma psiquiátrica brasileira. Revista Nufen: Phenomenology and Interdisciplinarity, 11(2), 117-132. http://dx.doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol11.n02ensaio51
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; Nunes, Júnior, Portugal, & Torrenté, 2019 Nunes, M. O., Júnior, J. M. L., Portugal, C. M., & Torrenté, M. (2019). Reforma e contrarreforma psiquiátrica: análise de uma crise sociopolítica e sanitária a nível nacional e regional. Ciência & Saúde Coletiva, 24(12), 4489-4498. https://doi.org/10.1590/1413-812320182412.25252019
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).
Assim, a Reforma Psiquiátrica Brasileira avançou nas últimas décadas do século XX, sendo fruto de lutas e de uma conjuntura política favorável. Em 2001 foi aprovada a Lei nº 10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, configurando um importante marco de mudança nesse cenário assistencial, com o incentivo à criação de serviços substitutivos inseridos na comunidade, objetivando superar as práticas asilares e ampliar estratégias de cuidado sob a perspectiva da intersetorialidade (Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001 Lei Federal nº 10.216, de 6 de abril de 2001. (2001). Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Brasília, DF. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/folder/10006002642.pdf
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; Nunes et al., 2019). A Lei em questão está em consonância com o modelo biopsicossocial em saúde, que considera aspectos biológicos, psicológicos e sociais do processo saúde-doença e se contrapõe ao modelo biomédico até então vigente (Engel, 1977 Engel, G. L. (1977). The need for a new medical model: a challenge for biomedicine. Science, 196(4286), 129-136. https://doi.org/10.1126/science.847460
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), além de também estar de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) na medida em que protege as pessoas em sofrimento mental de quaisquer formas de abuso e exploração e não admite tratamentos desumanos ou degradantes (Assembleia Geral das Nações Unidas [AGNU], 1948 Assembleia Geral das Nações Unidas. (1948). Declaração Universal dos Direitos Humanos. https://www.ohchr.org/en/human-rights/universal-declaration/translations/portuguese
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).
Com a proposta de redução de leitos para internação total em hospitais psiquiátricos, as estratégias de cuidados em saúde mental foram gradativamente revistas e impulsionaram a criação e a reestruturação de diversos serviços que compõem a rede de assistência nesse campo, tais como Centros de Convivência, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), serviços de urgência e emergência (como SAMU e UPA), Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), além de serviços da atenção hospitalar, como Enfermarias especializadas em Hospitais Gerais e Hospitais-Dia (HDs). Em 2011 Portaria nº 3.088. (2011, 23 de dezembro). Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília, DF. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html
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, o Ministério da Saúde implementou a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), normatizada pela Portaria nº 3.088, com os objetivos de ampliar o acesso à atenção psicossocial da população; promover o acesso das pessoas com transtornos mentais e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas e suas famílias aos pontos de atenção; e garantir a articulação e integração dos pontos de atenção das redes de saúde no território, qualificando o cuidado por meio do acolhimento, do acompanhamento contínuo e da atenção às urgências (Macedo, Abreu, Fontenele, & Dimenstein, 2017 Macedo, J. P., Abreu, M. M., Fontenele, M. G., & Dimenstein, M. (2017). A regionalização da saúde mental e os novos desafios da reforma psiquiátrica brasileira. Saúde e Sociedade, 26(1), 155-170. https://doi.org/10.1590/S0104-12902017165827
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).
Dentre os serviços que oferecem atenção hospitalar no contexto da RAPS destacam-se os HDs, que na assistência em saúde mental devem abranger um conjunto diversificado de atividades desenvolvidas em até cinco dias da semana (de segunda-feira a sexta-feira), com uma carga horária de oito horas por dia, em modelo de internação parcial. Os HDs existem no Brasil desde a década de 1960, mas foram regulamentados apenas em 1992 Portaria nº 224. (1992, 29 de janeiro). Estabelece diretrizes e normas para o atendimento em saúde mental. Ministério da Saúde, Brasília, DF. https://saude.mg.gov.br/images/documentos/Portaria_224.pdf
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, pela Portaria nº 224, visando substituir a internação total (Ministério da Saúde, 2005 Ministério da Saúde. (2005, 7-10 de novembro). Reforma Psiquiátrica e Política de Saúde Mental no Brasil. Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas, Brasília, DF, Brasil. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Relatorio15_anos_Caracas.pdf
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco...
, 2011 Ministério da Saúde. (2011). Saúde Mental no SUS: as novas fronteiras da Reforma Psiquiátrica. Relatório de Gestão 2007-2010. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/saude_mental_fronteiras_reforma_psiquiatrica.pdf
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; Weber & Juruena, 2018 Weber, C. A. T., & Juruena, M. F. (2018). Contribuições de um hospital-dia para as redes de apoio social a pessoas com transtornos mentais. Psicología, Conocimiento y Sociedad, 8(1), 144-161. https://revista.psico.edu.uy/index.php/revpsicologia/article/view/360
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). Nesse cenário, o tratamento em HDs configura um intermédio entre o ambulatório e a internação total, preservando a convivência em comunidade e prevenindo a marginalização/exclusão do paciente psiquiátrico (Weber & Juruena, 2018 Weber, C. A. T., & Juruena, M. F. (2018). Contribuições de um hospital-dia para as redes de apoio social a pessoas com transtornos mentais. Psicología, Conocimiento y Sociedad, 8(1), 144-161. https://revista.psico.edu.uy/index.php/revpsicologia/article/view/360
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). Bettarello, Greco, Silva Filho & Silva ( 2008Bettarello, S. V., Greco, F., Silva Filho, L. M. A., & Silva, M. C. F. (Eds.). (2008). Fundamentos e Prática em Hospital-dia e Reabilitação Psicossocial. Atheneu. ) afirmam que a importância dos HDs foi observada em diversos países por esses manterem um cotidiano associado à vida do paciente, valorizarem suas relações pessoais, serem ambientes análogos aos comunitários e constituírem um tratamento voluntário.
Nesse contexto, apesar dos avanços alcançados na área da saúde mental e da reabilitação psicossocial, um dos grandes desafios do modelo substitutivo tem sido a atenção ao usuário em crise, tendo em vista os princípios da desinstitucionalização. Assim, de acordo com Silva e Dimenstein ( 2014 Silva, M. L. B., & Dimenstein, M. D. B. (2014). Manejo da crise: encaminhamento e internação psiquiátrica em questão. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 66(3), 31-46. https://pepsic.bvsalud.org/pdf/arbp/v66n3/04.pdf
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), a internação psiquiátrica, total ou parcial, tem como objetivo o reposicionamento subjetivo da pessoa e seu consecutivo retorno ao território familiar, social e afetivo após a alta hospitalar e a contrarreferência para continuidade dos cuidados no âmbito dos serviços extra-hospitalares.
Em geral, a alta hospitalar é a condição que permite a saída do paciente do serviço, englobando todas as possíveis maneiras de desvinculação do hospital. A Portaria nº 3.390 define como “alta hospitalar responsável” a transferência do cuidado, devendo ser realizada por meio de: orientação aos pacientes e familiares sobre a continuidade do tratamento, reforçando a autonomia do sujeito e proporcionando o autocuidado; articulação da continuidade do cuidado com os demais pontos da rede; e implantação de mecanismos de desospitalização, visando alternativas às práticas hospitalares (Portaria nº 3.390 Portaria nº 3.390. (2013, 30 de dezembro). Institui a Política Nacional de Atenção Hospitalar (PNHOSP) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), estabelecendo-se as diretrizes para a organização do componente hospitalar da Rede de Atenção à Saúde (RAS). Brasília, DF. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt3390_30_12_2013.html
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).
Segundo Camargo, André e Lamari ( 2016 Camargo, P. F., André, L. D., & Lamari, N. M. (2016). Orientações em saúde no processo de alta hospitalar em usuários reinternados do Sistema Único de Saúde. Arquivos de Ciências da Saúde, 23(3), 38-43. http://dx.doi.org/10.17696/2318-3691.23.3.2016.335
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), a alta hospitalar é um processo que visa desenvolver um plano de cuidado efetivo, que leve em conta precocemente as necessidades físicas e psicossociais do paciente e do cuidador após a saída do hospital. De acordo com Silva, Ribeiro & Azevedo ( 2018Silva, R. L., Ribeiro, M. A. T., & Azevedo, C. C. (2018). Concepções sobre o processo de alta hospitalar: uma revisão crítica. Tempus, 12(1), 135-146. doi 10.18569/tempus.v10i4.1975
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), tal planejamento implica em um envolvimento de todas as pessoas responsáveis pelo processo de cuidado e ocorre desde a admissão do usuário até seu retorno ao domicílio, por meio de acompanhamento pós-alta. Com relação aos aspectos subjetivos envolvidos no processo de alta, Marra, Carmagnani, Afonso & Salvador ( 1989 Marra, C. C., Carmagnani, M. I. S., Afonso, C., & Salvador, M. E. (1989). Orientação planejada de enfermagem na alta hospitalar. Acta Paulista de Enfermagem, 2(4), 123-127. https://acta-ape.org/en/article/orientacao-planejada-de-enfermagem-na-alta-hospitalar/
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) apontam que frequentemente os pacientes e seus familiares vivenciam sentimentos ambíguos, tais como a satisfação pela recuperação e volta para a casa e o medo por não se ter mais por perto a equipe responsável pelo cuidado.
Em saúde mental, a alta hospitalar é uma importante estratégia de reabilitação psicossocial e de articulação com os dispositivos da rede para promover a atenção continuada no território. Entretanto, segundo Guedes, Olschowsky, Kantorski e Antonacci ( 2017 Guedes, A. C., Olschowsky, A., Kantorski, L. P., & Antonacci, M. H. (2017). Transferência de cuidados: processo de alta dos usuários de um centro de atenção psicossocial. Revista Eletrônica de Enfermagem, 19(42). https://doi.org/10.5216/ree.v19.43794
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), a definição de alta ainda está atrelada ao modelo hospitalar e seu ideal de cura. Assim, um dos pontos fundamentais para o avanço no processo de alta em saúde mental é a presença de uma rede que dê suporte ao usuário na continuidade dos cuidados após a saída do hospital. Chung et al. ( 2017 Chung, D. T., Ryan, C. J., Hadzi-Pavlovic, D., Singh, S. P., Stanton, C., & Large, M. M. (2017). Suicide rates after discharge from psychiatric facilities: A systematic review and meta-analysis. JAMA psychiatry, 74(7), 694-702. https://doi.org/10.1001/jamapsychiatry.2017.1044
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) apontam que as taxas de suicídio são altas após a alta de internação psiquiátrica, reforçando a importância do apoio ao usuário após a saída do serviço.
Entretanto, segundo Macedo et al. ( 2017 Macedo, J. P., Abreu, M. M., Fontenele, M. G., & Dimenstein, M. (2017). A regionalização da saúde mental e os novos desafios da reforma psiquiátrica brasileira. Saúde e Sociedade, 26(1), 155-170. https://doi.org/10.1590/S0104-12902017165827
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), apesar da proposta de articulação entre os serviços da RAPS, há fragilidades na atuação intersetorial, o que prejudica o apoio ao usuário que acabou de receber alta. Segundo Xiao, Tourangeau, Widger e Berta ( 2019 Xiao, S., Tourangeau, A., Widger, K., & Berta, W. (2019). Discharge planning in mental healthcare settings:A review and concept analysis. International Journal of. Mental Health Nursing, 28(4), 816-832. https://doi.org/10.1111/inm.12599
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), o planejamento da alta é um processo contínuo que começa com uma avaliação rápida inicial no ingresso do usuário no hospital e que integra todo o plano de tratamento. Desse modo, para os autores, trata-se de um processo complexo e multifacetado que está associado a menor taxa de reinternação e à continuidade dos cuidados na rede extra-hospitalar.
Nota-se a relevância dos serviços substitutivos desenvolvidos ao longo dos anos da Reforma Psiquiátrica no cenário brasileiro, entendida enquanto um processo inacabado marcado por avanços e retrocessos. A concretização das práticas propostas pelo movimento enfrenta obstáculos que reforçam a necessidade atual de lutar pelos direitos das pessoas em sofrimento mental e pela superação da lógica do confinamento (Amarante & Nunes, 2018 Amarante, P., & Nunes, M. O. (2018). A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Ciência & Saúde Coletiva, 23(6), 2067-2074. https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.07082018
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). Em 2017, foi aprovada Portaria n. 3.588, que coloca o foco da política de saúde mental nos modelos de assistência fechados e de longa permanência (Amarante & Nunes, 2018 Amarante, P., & Nunes, M. O. (2018). A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Ciência & Saúde Coletiva, 23(6), 2067-2074. https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.07082018
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; Portaria nº 3.588, 2017 Portaria nº 3.588. (2017, 21 de dezembro). Altera as Portarias de Consolidação nº 3 e nº 6, de 28 de setembro de 2017, para dispor sobre a Rede de Atenção Psicossocial, e dá outras providências. Brasília, DF. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt3588_22_12_2017.html
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegi...
; Rocha & Salerno, 2018 Rocha, R. M. G., & Salerno, C. B. (2018). Pesquisa documental sobre o Hospital Psiquiátrico Espírita Cairbar Schutel. Memorandum, 34, 82-103. https://periodicos.ufmg.br/index.php/memorandum/article/view/6860/4414
https://periodicos.ufmg.br/index.php/mem...
). A Nota Técnica nº 11/2019 Nota Técnica nº 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS. (2019). Esclarecimentos sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas. Brasília. https://pbpd.org.br/wp-content/uploads/2019/02/0656ad6e.pdf
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reafirma a portaria citada ao referendar mudanças como a reinserção de hospitais psiquiátricos na RAPS, o incentivo ao uso da eletroconvulsoterapia (ECT) e o aumento de vagas em comunidades terapêuticas custeadas pelo Estado. Assim, vislumbra-se um cenário de tensionamento político e ideológico, pois, conforme aponta a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) (2019 Associação Brasileira de Saúde Coletiva. (2019). Sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas. https://abrasco.org.br/sobre-as-mudancas-na-politica-nacional-de-saude-mental-e-nas-diretrizes-da-politica-nacional-sobre-drogas/
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), vem ganhando força uma onda contrarreformista que sustenta premissas contrárias ao que vem sendo recomendado ao longo de três décadas de Reforma Psiquiátrica brasileira.
Da revisão realizada, foram observados poucos estudos que abordam a questão da alta hospitalar no contexto da saúde mental, como fazem Chung et al. ( 2017 Chung, D. T., Ryan, C. J., Hadzi-Pavlovic, D., Singh, S. P., Stanton, C., & Large, M. M. (2017). Suicide rates after discharge from psychiatric facilities: A systematic review and meta-analysis. JAMA psychiatry, 74(7), 694-702. https://doi.org/10.1001/jamapsychiatry.2017.1044
https://doi.org/10.1001/jamapsychiatry.2...
), Guedes et al. ( 2017 Guedes, A. C., Olschowsky, A., Kantorski, L. P., & Antonacci, M. H. (2017). Transferência de cuidados: processo de alta dos usuários de um centro de atenção psicossocial. Revista Eletrônica de Enfermagem, 19(42). https://doi.org/10.5216/ree.v19.43794
https://doi.org/10.5216/ree.v19.43794...
) e Xiao et al. ( 2019 Xiao, S., Tourangeau, A., Widger, K., & Berta, W. (2019). Discharge planning in mental healthcare settings:A review and concept analysis. International Journal of. Mental Health Nursing, 28(4), 816-832. https://doi.org/10.1111/inm.12599
https://doi.org/10.1111/inm.12599...
). Considerando os desafios do cuidado ao paciente em crise no paradigma da desinstitucionalização, os HDs são uma alternativa que permite que o usuário continue se relacionando com sua comunidade e mantenha seus vínculos, ressignificando o momento de alta, uma vez que o paciente não está isolado de seu contexto, como ocorre em uma internação total. Nessa conjuntura, objetivou-se compreender a experiência da internação psiquiátrica parcial em Hospital-Dia sob a perspectiva de pacientes em momento que antecedeu a alta, com foco nas expectativas e no planejamento sobre esse evento
Método
Local
O estudo se deu em um Hospital-Dia Escola de uma cidade de médio porte do interior do estado de São Paulo que funciona como campo de ensino e pesquisa. A partir da aproximação das pesquisadoras com o contexto de estudo foi obtida a informação de que o serviço tem capacidade de atendimento de até 16 pacientes no modelo da internação parcial, funciona das 7h30 às 17h e é composto por duas equipes multiprofissionais, a saber: 1) equipe fixa composta por dois médicos psiquiatras, um psicólogo, um assistente social, um terapeuta ocupacional, dois enfermeiros, dois auxiliares de enfermagem, um técnico de enfermagem e três agentes administrativos (n=13); 2) equipe móvel, composta por profissionais em formação – seis médicos residentes, um aprimorando em Psicologia, um aprimorando em Serviço Social, um estagiário de Enfermagem, um aprimorando e um estagiário de Terapia Ocupacional (n=11). O serviço conta, ainda, com atividades desenvolvidas por colaboradores e voluntários.
São oferecidos atendimentos individuais, psicoterapia de grupo, reuniões comunitárias, atividades físicas, terapia ocupacional, reuniões familiares e atenção a egressos. O tempo médio de internação de um paciente no HD é de três a quatro meses. Quando tem início o tratamento, a equipe estima o período de duração da internação sem a participação do usuário. Esse período é revisto semanalmente em um grupo chamado de “mini equipe”, composto pelo usuário, seu profissional de referência e outros usuários, tendo como premissa uma atuação marcada pela horizontalidade e pela integralidade. Nesses encontros são discutidas questões como os avanços percebidos até então, os objetivos a serem alcançados e as expectativas em relação à alta. As altas só ocorrem quando já se tem definido onde o usuário continuará o acompanhamento e ocorrem, em geral, às sextas-feiras, em um momento de confraternização com a presença dos membros da equipe e dos demais usuários. Após a alta, os pacientes podem retornar ao serviço para participar de determinados grupos, que são identificados como “pós-alta”, dos quais participam usuários e antigos usuários.
Participantes
Participaram deste estudo oito pessoas internadas no HD que tinham perspectiva de receber alta hospitalar em aproximadamente uma semana a contar do dia da entrevista. Os participantes foram selecionados pelos seguintes critérios de inclusão: ter ao menos 18 anos e dispor de tempo, interesse e condições clínicas/cognitivas para participar do estudo. Visando caracterizar os participantes do estudo, será apresentado um quadro de acordo com informações fornecidas no momento das entrevistas. Para preservar as identidades, todos os nomes são fictícios.
Nome | Idade | Estado Civil | Filhos | Escolaridade | Profissão | Internações Anteriores |
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Poliana | 55 | Viúva | Três filhas | Ensino Fundamental Completo | Copeira | 1 x Hospital Geral |
Ícaro | 53 | Divorciado | Três filhos | Ensino Médio Completo | Corretor de Imóveis | 4 x Hospital Geral |
Romeu | 38 | Solteiro | Não | Ensino Médio Completo | Motorista de Caminhão/Aposentado |
10 x Hospital Psiquiátrico 4 x Hospital Geral 1 x Comunidade Terapêutica |
Eva | 38 | Casada | Dois Filhos | Ensino Superior Completo | Dentista | 0 |
Sofia | 36 | Solteira/Amasiada | Um Filho | Ensino Fundamental Incompleto | Auxiliar de Cozinha | 0 |
Clarissa | 63 | Casada | Dois Filhos | Ensino Fundamental Incompleto |
Costureira Revendedora Recepcionista Outros |
8 x Hospital Geral |
Isadora | 53 | Casada | Dois Filhos | Ensino Fundamental Incompleto |
Lavradora Doméstica Vendedora |
4 x Hospital Psiquiátrico |
Fabiano | 59 | Solteiro | Não | Ensino Fundamental Incompleto | Ajudante Geral | 0 |
Instrumentos
Foi utilizada uma entrevista aberta com um breve roteiro orientador e um questionário sociodemográfico elaborado pelas pesquisadoras. Assim, inicialmente foram coletados dados sociodemográficos dos participantes, como: nome completo, idade, escolaridade, estado civil, se o participante tinha filhos e quantos, qual o motivo da internação atual, entre outros. Em seguida, a pesquisadora apresentava a questão norteadora: “Você pode me contar como está sendo este momento para você, sabendo que receberá alta do HD em breve?”.
A fim de explorar os desdobramentos da questão norteadora, o referido roteiro continha temas a serem abordados caso não surgissem espontaneamente: a história de vida da pessoa vinculada ao diagnóstico de saúde mental; a trajetória de cuidados em saúde mental; a vivência da internação atual, incluindo as atividades das quais participou; a forma como avalia o período da internação e o que considera que contribuiu para possível melhora; e as expectativas com relação à alta e ao futuro.
Procedimentos de Coleta e de Análise de Dados
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Antes do início das entrevistas, foi apresentado aos participantes o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Foram explicados os objetivos da pesquisa, o caráter voluntário da participação e a possibilidade de rejeição à participação sem que houvesse prejuízos. As entrevistas ocorreram entre março e junho de 2019, e foram entrevistados todos os pacientes que corresponderam aos critérios de inclusão e que aceitaram participar voluntariamente.
Para a coleta de dados foi realizada uma entrevista aberta e individual com cada participante, seguindo o roteiro elaborado pelas pesquisadoras, em uma sala do HD com adequada condição de privacidade. As entrevistas foram gravadas em áudio por meio de um aplicativo de voz para smartphones e transcritas na íntegra manualmente pela pesquisadora em um documento do Microsoft Word.
A análise dos dados seguiu a abordagem qualitativa em pesquisa, utilizando-se a Análise de Conteúdo Temática (Bardin, 2011Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo (3a ed.). Edições 70. (Trabalho original publicado em 1977). ), composta por três etapas, sendo elas: 1) Pré-análise : leitura flutuante das entrevistas e contato exaustivo com o material e seu conteúdo; 2) Exploração do material : processo de transformação dos dados, feito por meio de recortes, agregação e enumeração das unidades de sentido, entendidas como expressões sobre determinados temas, passíveis de serem agrupadas em categorias excludentes, possibilitando a obtenção de uma representação do conteúdo capaz de esclarecer ao pesquisador as características do texto; 3) Tratamento dos resultados e interpretação: categorização dos resultados brutos, inferências partindo dos recortes e agrupamentos do conteúdo em unidades de sentido e, por fim, interpretação do conteúdo que se pretende analisar. Não foram utilizados softwares para o tratamento do conteúdo. A discussão dos resultados foi realizada a partir da interlocução com a produção acadêmica da área da saúde coletiva e da saúde mental.
Resultados e Discussão
Os resultados serão apresentados a partir de recortes das entrevistas visando ilustrar a experiência dos participantes em momento que antecedeu a alta hospitalar, com foco nas expectativas e no planejamento sobre este evento. Os relatos de Sofia e Clarissa ilustram o sentimento de medo e insegurança em relação à proximidade da alta:
Muito medo [de ter alta] . Mas eu também não posso ter o HD pro 1 1 Foram realizadas transcrições literais das falas dos entrevistados, podendo haver marcas de oralidade nos trechos apresentados. resto da vida. . . . Tentar usar lá fora as ferramenta que eles me ensinaram aqui. . . . [A alta] me assusta porque aqui você sabe que você pode contar com todo mundo. Ao contrário que lá fora você pede pelo amor de deus um socorro, eles te afundam mais (Sofia).
A única coisa que eu falo pra você, que eu estou chateada comigo é com esse meu [não querer fazer] nada. . . . Tá vazio. É o nada junto com o vazio, entendeu? . . . Eu queria continuar [no HD]. Tem que ir com o nada e com o vazio, né? (Clarissa)
Os relatos ilustram o sentimento de desamparo diante do momento da alta, de forma que as participantes não conseguiam vislumbrar pontos de auxílio fora do hospital, o que as fazia querer continuar no HD. Essa falta de perspectiva pode estar relacionada à fragilidade das redes de apoio de pacientes psiquiátricos, que tendem a ser pequenas, com relações conflituosas e instáveis, o que constitui fator de vulnerabilidade à saúde e pode contribuir para agravar o sofrimento mental (Hengartner et al., 2017 Hengartner, M. P., Klauser, M., Heim, G., Passalacqua, S., Andreae, A., Rössler, W., & von Wyl, A. (2017). Introduction of a Psychosocial Post‐Discharge Intervention Program Aimed at Reducing Psychiatric Rehospitalization Rates and at Improving Mental Health and Functioning. Perspectives in Psychiatric Care, 53(1), 10-15. https://doi.org/10.1111/ppc.12131
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).
Segundo Mendes et al. ( 2019 Mendes, V. C., Tisott, Z. L., Souto, V. T., Terra, M. G., Siqueira, D. F., & Rodrigues, B. V. (2019). Percepção sobre a alta hospitalar de pessoas internadas em unidade de atenção psicossocial. Revista Brasileira em Promoção da Saúde, 32. https://doi.org/10.5020/18061230.2019.9394
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), após a alta hospitalar as pessoas passam pelo desafio de buscar alternativas para superar obstáculos ainda existentes, os quais podem ter favorecido o adoecimento anterior à internação. Nesse sentido, as entrevistas suscitaram reflexões acerca da importância da continuidade dos cuidados no âmbito das famílias e da rede extra-hospitalar, buscando o restabelecimento da rotina, a identificação das necessidades do usuário e de sua família, o fortalecimento da rede de apoio e a elaboração de projetos terapêuticos que levem em conta a trajetória de vida da pessoa. Nessa lógica, reduzir a alta hospitalar ao momento pontual em que o paciente conclui seu tratamento e deixa o HD pode fazer com que essa importante transição não seja vivenciada em seu caráter de processo, ou seja, imbricada em uma experiência histórica e social, abarcando as vivências anteriores à internação, as vivências no próprio HD e as expectativas quanto ao retorno à rotina familiar e social.
Ampliando seu relato, Sofia descreveu as circunstâncias que se relacionavam ao seu processo de adoecimento, que levou à internação atual:
Aí em 2008 me deu depressão pós-parto. Aí meu marido me traiu e foi embora de casa. . . . Só que eu achei que tinha sarado. . . . Em 2015 veio o falecimento da minha mãe. Aí eu não consegui subir mais. . . . aí eu descobri depois que minha mãe faleceu que eu não sou filha do meu pai que me criou. . . (Sofia)
Sofia relatou ter vivenciado uma sequência de acontecimentos difíceis de muito sofrimento e que, segundo ela, colaboraram para a necessidade de internação no HD, que visou o seu cuidado e o reposicionamento subjetivo diante das potências e limites de sua condição. Seu relato, apesar de singular e único, encontra correspondência nas outras entrevistas realizadas, apontando que o contexto de emergência do sofrimento mental é atravessado por situações de violência, abandono, desconfiança, luto, vulnerabilidade social, fragilidade das relações e mudanças significativas nos vínculos estabelecidos ao longo da vida.
A análise das circunstâncias que levaram ao adoecimento reiterou que as problemáticas envolvendo o sofrimento mental abarcam diferentes situações de vulnerabilidade, de forma que se faz necessária uma atuação singular, contextualizada, multidimensional, em diálogo com a realidade e implicando os participantes como protagonistas e atores de transformação (Amarante & Nunes, 2018 Amarante, P., & Nunes, M. O. (2018). A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Ciência & Saúde Coletiva, 23(6), 2067-2074. https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.07082018
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; Kantorski & Cardano, 2017 Kantorski, L. P., & Cardano, M. (2017). Diálogo Aberto: a experiência finlandesa e suas contribuições. Saúde em Debate, 41(102), 494-505. https://doi.org/10.1590/0103-1104201711203
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). Nesse sentido, Borgna ( 2011Borgna, E. (2011). Prefácio. In M. T. Ferla (Ed.), O homem da morte impossível e outras histórias: Psicopatologia Fenomenológica (pp. 09-14) (G. W. Tostes, trad.). Artesã. ) propõe uma visão ampliada da pessoa, considerando o contexto em que se insere e compreendendo o processo de crise como inserido em um lugar dentro de uma história.
Como contraexemplo de uma prática ampliada, Clarissa compartilhou uma experiência pregressa de cuidados em saúde mental na qual, a partir de sua perspectiva, teve sua vivência reduzida a diagnósticos psiquiátricos, o que desencadeou consequências significativas no seu processo saúde-doença: “ me taxaram de bipolar . . . e esquizofrênica. Quando na verdade eu tinha tido apenas uma depressão pós-parto. Um pequeno erro médico [risos irônicos] que me custou a vida ”. Segundo Borgna ( 2011Borgna, E. (2011). Prefácio. In M. T. Ferla (Ed.), O homem da morte impossível e outras histórias: Psicopatologia Fenomenológica (pp. 09-14) (G. W. Tostes, trad.). Artesã. ), nas ações em saúde mental deve-se reconhecer a importância do diagnóstico em psiquiatria, mas não o considerar absoluto, pois é preciso ir além e ampliar o olhar para conteúdos da história de vida, emocionais e interpessoais, que diferem de um caso para outro. Os relatos dos participantes apontam a importância de integrar o uso do diagnóstico a práticas que contextualizem a história clínica da pessoa em seu percurso de vida a partir de uma aproximação de sua realidade, compreendendo qual é sua rede de apoio, como é seu gerenciamento de tempo, quais são seus planos para o futuro e suas necessidades.
Logo, entende-se a importância das proposições da Reforma Psiquiátrica acerca da mudança de paradigma, propondo um olhar para a pessoa em sua integralidade, considerando suas singularidades e oportunizando um cuidado no qual se tenha como foco o desenvolvimento de espaços de relacionamento e de troca em que os pacientes possam criar nova qualidade relacional, favorecendo o acolhimento, a solidariedade, o contexto social e a construção conjunta de sentidos, o que permite a expressão tanto de suas partes saudáveis, quanto de suas partes traumáticas (Desviat, 2018Desviat, M. (2018). Coabitar a Diferença: Da Reforma Psiquiátrica à Saúde Mental Coletiva. Zagodoni. ). Alguns participantes do estudo perceberam no HD uma forma de atuação que levava em conta tais proposições, de forma que a proximidade da alta chegava a causar insegurança pelo temor de não encontrarem fora do serviço o mesmo suporte e acolhimento.
Nas entrevistas, realizadas às vésperas da alta, ao lhes ser oferecido um espaço de escuta, os participantes puderam revisitar e compartilhar experiências anteriores em outros serviços especializados em saúde mental, como ilustram os recortes abaixo:
A gente levantava às sete. Tinha dez minutos pra deixar a cama esticadinha, o lençol na beliche, os edredom dobrado, travesseiro arrumadinho, e se desse tempo fumava um cigarro . . . se não, fazia um papel de notificação. . . . notificação significa um castigo. Quinze pras duas levantava, fumava um cigarro, lavava o rosto, escovava os dente, fumava um cigarro. Reunião até quatro e vinte. Aí a gente já era livre. Tinha uma hora de religião. Aí a gente gostava. Aí podia fumar à vontade (Romeu).
Mas as pessoa te dar atenção, conversar com você. . . você não espera isso de ninguém lá do lado de dentro [se refere ao hospital psiquiátrico onde ficou internada anteriormente em regime de internação total] , do lado de fora, porque não tem! Né? Você é tratada como um interno mesmo, e é isso aí mesmo (Isadora).
Romeu descreveu sua experiência em uma Comunidade Terapêutica particular e explicitou vivências marcadas por autoritarismo, controle, obrigatoriedade da execução de tarefas, pouca liberdade de expressão e viés religioso, que violavam os direitos garantidos pela DUDH e pela Lei nº 10.216. A rotina foi descrita com base nos horários nos quais ele podia fumar um cigarro, que provavelmente configurava um momento de satisfação e conexão com aquilo que reconhecia de si.
Já o relato de Isadora remete à sua experiência em um hospital psiquiátrico de internação total. Depreende-se que, durante o período em que esteve em tal instituição, ela sentiu necessidades como as de conversar e ser escutada. Entretanto, nas relações de cuidado, percebeu-se sendo tratada como um “interno”, não se sentindo vista enquanto uma pessoa em sua integridade. Borgna ( 2011Borgna, E. (2011). Prefácio. In M. T. Ferla (Ed.), O homem da morte impossível e outras histórias: Psicopatologia Fenomenológica (pp. 09-14) (G. W. Tostes, trad.). Artesã. ), ao abordar relações de cuidado, aponta a necessidade de considerar a pessoa dentro de seu contexto, que está sempre encrustado em qualquer história de adoecimento, para além da doença. Na mesma direção, Tostes ( 2013 Tostes, G. W. (2013). Resenha do livro – O homem da morte impossível e outras histórias: psicopatologia fenomenológica. Revista do NUFEN, 5(2), 115-119. https://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2175-25912013000200008
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) pontua que uma prática que não escuta a pessoa em sua dimensão de sentido, pautada apenas em uma necessidade de racionalizar as experiências humanas, pode ser ineficaz e até violenta. Para conseguir ajudar, uma pessoa precisa sair de uma posição racional e se reencontrar com fatores decorrentes de questões tão humanas quanto às de quem precisa de ajuda.
A participante Clarissa, assim como Isadora, também relatou suas experiências anteriores de internações totais em hospitais psiquiátricos. A partir da experiência no HD, ela pôde comparar alguns aspectos do cuidado recebido nas diferentes instituições:
[No HD é] Muito melhor . . . você vem, tem o seu cafezinho, né, tem café, tem leite, tem chá, tem o seu gosto. Aí você tem a sua cadeira. . . . Você tem direito a ir no banheiro na hora que você quer. . . nos hospitais [psiquiátricos de internação total] muitas vezes a gente andava cagada, mijada. . . . Não tem algum lugar ou enfermeira pra trocar o camisolão. . . . Todos aqui [no HD] , médicos, enfermeiros, todos têm um respeito pela gente, tem alguns que tem carinho pela gente (Clarissa).
Em seu comparativo, Clarissa apontou que no HD experienciou relações intersubjetivas em que se percebia reconhecida enquanto pessoa com valor e que merecia ser cuidada. Clarissa referiu, ainda, que no HD dispunha de um lugar que era reconhecido como seu , tanto por si quanto pelas demais pessoas do entorno, o que reflete o reconhecimento da sua pessoalidade e das suas necessidades. A partir das entrevistas percebeu-se que os participantes reconheciam o investimento do serviço no estabelecimento de vínculos e na construção de uma esfera afetiva, pautada pelo respeito e pela dignidade. Tal investimento está atrelado a um reconhecimento e valorização das pessoas a partir do encontro com o outro, em relações intersubjetivas a partir das quais puderam abordar expectativas, frustrações, retomada das histórias de vida e dos planos para o futuro, que no âmbito da saúde mental configuram aspectos estreitamente relacionados com o processo de adoecimento e recuperação.
Historicamente, o hospital psiquiátrico tem sido visto como um lugar de alienação, de afastamento, de exclusão social, da miséria e do “louco” (Oliveira, 2019 Oliveira, M. P. (2019). O que dizem as vozes da loucura? Jamaxi, 3(2), 20-31. https://periodicos.ufac.br/index.php/jamaxi/article/view/3308
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), daquele destituído de voz e razão, desconsiderado em sua dignidade e, portanto, passível de ser submetido a condições precárias de alimentação e higiene, o que se atualiza no relato de Clarissa sobre as internações passadas. Observa-se que, apesar de mais de 30 anos de Reforma Psiquiátrica em curso, as conquistas advindas desse movimento são ameaçadas pela reprodução de modelos de atuação pautados na lógica manicomial que, na tentativa de “humanizar” os usuários, tira deles a liberdade e a singularidade que os tornam humanos (Emerich & Yasui, 2016 Emerich, B. F., & Yasui, S. (2016). O hospital psiquiátrico em diálogos atemporais. Interface, 20(56), 207-216. https://doi.org/10.1590/1807-57622015.0264
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). Assim, prevalecem posturas nas quais o profissional detém a verdade sobre o que é melhor para o paciente, objetificando e destituindo seu caráter de pessoa, não levando em conta suas necessidades mais básicas (Desviat, 2018Desviat, M. (2018). Coabitar a Diferença: Da Reforma Psiquiátrica à Saúde Mental Coletiva. Zagodoni. ), de forma que as experiências simples como as de ter o café disponível, ou de poder ir ao banheiro quando quiser, se tornam muito valorizadas.
Sofia, ao relatar sua trajetória no campo da saúde mental, contou que antes da internação no HD tinha em mente um modelo de tratamento psiquiátrico pautado e restrito na contenção física ou medicamentosa dos sintomas, comumente associado aos antigos manicômios, como ilustra o recorte a seguir:
Aí me chamaram, falei: “eu não vou, não vou, não aceito internação”. . . . eles falam muito o negócio do [fala o nome de um hospital psiquiátrico] , te amarrar, te dopar. . . . Cheguei [no HD] , não conversava com ninguém, não colocava os problema pra fora. . . . aí de repente foi começando a soltar os problema (Sofia).
Pelo relato de Sofia, observamos que, apesar da resistência inicial devido aos sentimentos de medo e insegurança despertados pelos hospitais psiquiátricos, com o passar dos dias a experiência de cuidados no HD foi lhe permitindo rever seus preconceitos e expectativas sobre essa modalidade de tratamento. Infere-se que a interação com os profissionais e demais pacientes possibilitou um movimento gradual de abertura e apresentação de si aos outros e, consequentemente, reconexão e reapresentação a si mesma, como também aponta o relato de Isadora:
Não queria vir porque eu já tava cansada, né, e eu pensava que não ia adiantar. . . . O começo é difícil, né, porque você tem que se enturmar, né. . . . Eu não gostava de ficar na roda, né [atividades em grupo] . . . . Mas sabe o que aconteceu? Enterti conversando, né, os outro conversando comigo. . . . Com os outro eu passei a nem ver o pobrema que eu tinha, de não ficar no meio dos outros (Isadora).
No trecho acima, Isadora faz menção às atividades em grupo, compartilhando que sua participação contribuiu para um processo de transformação da forma como reagia ao tratamento, visto que encontrou um lugar de acolhimento e de liberdade para expressão de si e, a partir disso, pôde redimensionar seus problemas. Os espaços grupais contribuem para que o indivíduo tome consciência de que existe enquanto um ser social e constituem um lugar de troca de experiências que permite que os participantes estabeleçam laços de solidariedade (Guanaes & Japur, 2001 Guanaes, C., & Japur, M. (2001). Fatores terapêuticos em um grupo de apoio para pacientes psiquiátricos ambulatoriais. Revista Brasileira de Psiquiatria, 23(3), 134-140. https://doi.org/10.1590/S1516-44462001000300005
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). A análise desvelou que os espaços de convivência, escuta e acolhida promovidos pelo HD foram importantes para a reabilitação psicossocial de alguns pacientes por oportunizarem relações de trocas interpessoais. Nelas, puderam se perceber tanto sendo ajudados como capazes de ajudar, resgatando sentimentos de pertença e autonomia diante da vida, o que contribuiu para a retomada da esperança, a revisão das perspectivas de futuro e a instauração de um estado de confiança diante da proximidade da alta, como ilustram os seguintes recortes de Poliana, Romeu e Eva:
Eu tô contente de tá indo [embora]. . . . Eu vou sair daqui bem fortalecida. Bem confiante . . . . E tem outros objetivos pra mim. Comprar um apartamento agora . . . . Melhorar cada vez mais a minha relação com a minha família . . . . e vou saber lidar melhor também a partir de agora nas minhas relações (Poliana).
Agora eu tô querendo dar um tempo, descansar minha cabeça, fazer meu tratamento igual eu fazia uma vez por mês, que agora eu confio nos profissionais, que são os mesmos que atendem lá no [serviço ambulatorial em que realizava acompanhamento antes da internação] , e vim uma vez por mês [no HD]. . . . ou quando der vontade de vim, mas eu não tenho mais o medo de enfrentar meus problemas sozinho (Romeu).
Eu não tava dirigindo, meu marido que tava indo ao mercado, levar as crianças no médico, fazendo tudo. E agora eu vou conseguir fazer de novo o que eu fazia (Eva).
Poliana, após ter passado por experiências de convivência nas quais se sentiu acolhida, afirmou estar fortalecida para investir em seus objetivos e relações pessoais. Já Romeu afirmou que queria voltar a fazer o tratamento ambulatorial pelo qual passou anteriormente, que ganhou outro enquadramento após a experiência de tratamento no HD, visto que ele pôde desenvolver outro tipo de relação com os profissionais durante a internação. Assim, reitera-se a importância de haver espaços fora do HD que ofertem a possibilidade encontrada por Romeu de construção compartilhada da vida, já que sentir-se acompanhado parece ter sido de grande ajuda para a sua melhora.
Já Eva, imaginando o momento após a alta, relatou que se sentia capaz de retomar atividades que havia deixado de fazer, demonstrando esperança e se projetando em lugares fora do serviço. Nota-se que Eva conta com uma rede de apoio mais fortalecida – com seu marido e filhos –, o que possibilita o desenvolvimento de relações e a construção de espaços de compartilhamento da vida. As redes de apoio social são a soma das relações significativas para a pessoa e são importantes para a reinserção na sociedade, a reabilitação e o resgate da autonomia. Quando a rede de apoio é estável, ativa e confiável, o indivíduo é protegido em sua vida diária, sua autoestima é mantida (ou construída), e os processos de recuperação de saúde são acelerados (Brusamarello et al., 2011Brusamarello, T., Guimarães, A. N., Labronici, L. M., Mazza, V. A., & Maftum, M. A. (2011). Redes sociais de apoio de pessoas com transtornos mentais e familiares. Texto Contexto Enfermagem, 20(1), 33-40. doi 10.1590/S0104-07072011000100004
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).
A análise das entrevistas apontou que os pacientes, após vivenciarem um tratamento que lhes permitiu viver experiências de cuidado com a possibilidade de construir relações interpessoais pautadas pela horizontalidade e integralidade, percebendo-se enquanto pessoa humana para além de um diagnóstico, puderam compreender a importância de retornarem para seus contextos e retomarem suas vidas, condições indispensáveis para preservação da saúde mental. Os participantes mencionaram que, no HD, puderam desenvolver outros e novos recursos para lidar com a situação de sofrimento mental, conforme trechos abaixo:
Meu pai, ele é alcoólatra, e ele bebia e começava a repetir as coisa, e conversar comigo alto, eu ia pro meu quarto, tomava remédio. . . . Ontem ele já tava alterado . . . e eu num gosto. . . . Aí eu peguei e falei assim: “ó, tô indo deitar.” Então hoje eu já aprendi a lidar com as coisas que me atingem. Com as ferramentas que eu tive aqui, e eu já comecei a usar elas (Romeu).
[No começo] eu queria remédio pra aliviar aquela dor no peito que eu tava sentindo. . . . Foi na conversa. . . . Foi me ensinando técnicas pra sair dessa. . . . Vamos dizer, do remédio. . . . Então aqui eles ensinaram técnicas. Que é a respiração, conversar. . . . ouvir. Me dava crise aqui dentro, . . . aí eles não davam remédio porque diz que iam conversar e saber por que que tava dando a crise . . . . (Sofia)
A partir dos relatos dos participantes sobre a experiência no HD, observou-se um cenário de valorização e investimento em outros recursos além do cuidado biológico, estando afinado com o modelo biopsicossocial, o que foi valorizado pelos pacientes como recurso de ajuda no processo de tratamento. Diversas iniciativas vêm sendo praticadas em diferentes países do mundo a partir dessas premissas, configurando alternativas ao modelo hegemônico de tratamento, partindo de princípios como: tratamento precoce e domiciliar sempre que possível, evitação da internação hospitalar, planejamento da alta desde o início da intervenção, oferta de estratégias de autoconhecimento e desenvolvimento de competências e inclusão de pessoas da família ou do convívio do paciente no tratamento (Johnson, 2013 Johnson, S. (2013). Crisis resolution and home treatment teams: an evolving model. Advances in Psychiatric Treatment, 19, 115-123. https://doi.org/10.1192/apt.bp.107.004192
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; Kantorski & Cardano, 2017 Kantorski, L. P., & Cardano, M. (2017). Diálogo Aberto: a experiência finlandesa e suas contribuições. Saúde em Debate, 41(102), 494-505. https://doi.org/10.1590/0103-1104201711203
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). Mostram-se potentes intervenções que incluem as redes de apoio e os contextos das pessoas, auxiliando a movimentação de suas vidas.
Seria também importante que os encaminhamentos feitos pelo HD garantissem que os pacientes seguissem acompanhados por uma rede extra-hospitalar.
No entanto, o cenário atual é de tensionamento político e ideológico, com iniciativas que visam o escasseamento de equipamentos extra-hospitalares (Abrasco, 2019). Dimenstein et al. ( 2012 Dimenstein, M., Amorim, A. K. A., Leite, J., Siqueira, K., Gruska, V., Vieira, C., . . . Bezerril, M. C. (2012). O atendimento da crise nos diversos componentes da rede de atenção psicossocial em Natal/RN. Polis e Psique, 2(3), 95-127. https://doi.org/10.22456/2238-152X.40323
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) afirmam que é importante a existência de serviços em rede que operem na continuidade de cuidados e na gestão integrada de casos. Faz-se necessária a integração entre a atenção primária, secundária e terciária, além da articulação com redes de usuários, famílias e comunidades.
A análise do material apontou para a importância do desenvolvimento de relações de cuidado nas quais os pacientes possam ver uns aos outros enquanto pessoas que compartilham tanto necessidade de serem acolhidas, compreendidas e ouvidas, quanto potência de se ajudarem mutuamente. Nessa direção, o serviço estudado utiliza estratégias que parecem oferecer tal possibilidade de cuidado, apontadas pelos participantes como favorecedoras da melhora e do resgate da potência de vida, tais como as “mini equipes”, as demais atividades grupais, o cuidado com os momentos do cotidiano, o cuidado com a despedida no momento da alta e a oportunidade de retorno em atividades disponíveis para antigos usuários. Seria interessante que os participantes pudessem desfrutar de espaços de convivência que compartilham de tais premissas na continuidade do tratamento após a alta.
Considerações finais
Este estudo teve como objetivo compreender a experiência da internação psiquiátrica parcial em Hospital-Dia sob a perspectiva de pacientes em momento que antecedeu a alta, com foco nas expectativas e no planejamento sobre esse evento. A partir de entrevistas abertas e individuais, foi possível perceber que o adoecimento mental estava atrelado à evolução de acontecimentos relacionados a questões críticas da vida dos participantes que perpassavam situações como as de violência, desconfiança, vulnerabilidade social, fragilidade das relações e mudanças significativas dos vínculos.
Em seus relatos, diante da proximidade da alta, os pacientes fizeram referência às experiências anteriores de cuidado em saúde mental em diferentes serviços e as abordaram comparativamente à experiência atual do HD. Pode-se perceber a valorização, no tratamento atual, do investimento em práticas e posturas que consideraram o paciente um ser humano situado em uma história, abarcando relações afetivas, expectativas, frustrações, história de vida e planos para o futuro. Assim, ganha relevância o cuidado ampliado, que promove o encontro com o outro, com o reconhecimento enquanto pessoa digna e que merece respeito, para além de seu quadro psicopatológico.
Os espaços de convivência, em geral, foram enfatizados pelos participantes como favorecedores de melhora. Alguns deles mencionaram que tinham planos de voltar ao HD para participar de grupos que recebem egressos, indicando o desejo de cultivar os vínculos criados. A proximidade da alta despertou, ainda, sentimentos ambíguos, tais como insegurança por deixar de contar com o apoio do serviço e satisfação pelo fim do tratamento hospitalar, mostrando-se um processo multifacetado e complexo. Infere-se que a possibilidade de vivenciar o reconhecimento de sua humanidade e dignidade, tanto nas relações com outros pacientes quanto com profissionais, contribuiu para o reposicionamento dos participantes em suas trajetórias, atualizando suas expectativas sobre o desenrolar da vida após a saída do hospital.
Enquanto aspectos do tratamento que ensejaram a retomada da vida – segundo os participantes –, foram observados o incentivo à autonomia, o reconhecimento da pessoalidade, a potência de se sentir cuidado e cuidando. Tais aspectos estiveram relacionados à renovação da esperança e ao reposicionamento subjetivo diante da vida, o que aponta para a importância da continuidade do cuidado nos equipamentos extra-hospitalares após a alta. Entretanto, observa-se que o cenário atual das políticas em saúde mental é de redução dos investimentos nessas modalidades de cuidado e retomada da centralidade hospitalar, que, apesar de ter sua importância, não pode ser considerada como a principal forma de tratamento.
Considera-se uma limitação do estudo o fato deste estar circunscrito a um HD e a oito usuários. Além disso, pondera-se que o fato de as entrevistas terem sido realizadas dentro do próprio HD, ainda durante a internação, pode ter influenciado no teor das contribuições apresentadas sobre a referida instituição. Compreende-se que novos estudos podem ser conduzidos visando ampliar estas análises, incluindo, por exemplo, entrevistas com os profissionais, o acompanhamento longitudinal de todo o processo de internação no serviço e o acompanhamento dos participantes após a alta hospitalar.
Este trabalho traz contribuições no que tange ao reconhecimento da alta hospitalar não apenas como um momento pontual do tratamento, mas sim como processo justaposto a uma experiência histórica e social, influenciado pelas vivências e expectativas dos pacientes. Além disso, vislumbra-se a potência da criação de relações em saúde pautadas no acolhimento e no reconhecimento da pessoalidade como caminho para a melhora de usuários de serviços de saúde mental, contribuindo para o desenvolvimento de práticas mais humanas e integrais de realizar o cuidado.
Referências
- Amarante, P., & Nunes, M. O. (2018). A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Ciência & Saúde Coletiva, 23(6), 2067-2074. https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.07082018
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Foram realizadas transcrições literais das falas dos entrevistados, podendo haver marcas de oralidade nos trechos apresentados.
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Como citar
Arruda, J. N. F., Frateschi, M. S., & Cardoso, C. L. (2024). Expectativas e Planejamento da Alta em Saúde Mental: Perspectiva dos Pacientes. Psicologia: Ciência e Profissão, 44, 1-174. https://doi.org/10.1590/1982-3703003261323 -
How to cite
Arruda, J. N. F., Frateschi, M. S., & Cardoso, C. L. (2024). Expectations and Planning for Mental Health Discharge: Patients’ Perspective. Psicologia: Ciência e Profissão, 44, 1-14. https://doi.org/10.1590/1982-3703003261323 -
Cómo citar
Arruda, J. N. F., Frateschi, M. S., & Cardoso, C. L. (2024). Expectativas y Planificación del Alta en Salud Mental: Perspectiva de los Pacientes. Psicologia: Ciência e Profissão, 44, 1-14. https://doi.org/10.1590/1982-3703003261323
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
17 Abr 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
21 Fev 2022 -
Aceito
05 Set 2022