Resumo:
Este artigo visa entender o processo de formulação da Política Nacional de Humanização (PNH) por meio da análise da transição entre o Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH) e a PNH e também pela identificação de continuidades e mudanças entre o programa e a política, conhecendo alguns elementos de sua implementação. A metodologia, qualitativa, envolveu entrevistas narrativas e análise documental. Foram realizadas 11 entrevistas narrativas, sendo uma médica assessora da Saúde da Mulher, duas psicólogas que participaram do PNHAH e seis psicólogas(os) e uma assistente social da PNH, além do secretário executivo atuante na época. As entrevistas foram analisadas tematicamente em perspectiva histórica. Identificou-se a ida de profissionais da área de Saúde Mental para o Ministério da Saúde (MS) no PNHAH e na PNH, em sua maioria psicólogos, sendo que alguns, inclusive, participaram de ambos. Na análise de documentos foram privilegiados os textos da PNHAH e o da PNH. Assim como o programa, a PNH direcionou seu olhar para usuários, trabalhadores e gestores, com ênfase no trabalhador da saúde. Caracterizou-se como uma política ampla e transversal a todo o Sistema Único de Saúde (SUS) e MS, todavia, a transversalidade se constituiu como um desafio, pois enfrentou o histórico institucional da compartimentalização dentro do próprio MS.
Palavras-chave: Política de Saúde; Sistema Único de Saúde; Humanização da Assistência; Gestão em Saúde
Abstract:
This study aims to understand the construction process of the National Humanization Policy (PNH) by analyzing the transition between the National Program for the Humanization of Hospital Care (PNHAH) and PNH and by finding continuities and changes between the program and the policy given its implementation elements. The qualitative methodology involved narrative interviews and document analysis. Overall, 11 narrative interviews were conducted, with the advisor doctor of women’s health, two psychologists who participated in PNHAH, and six psychologists and one social worker from the PNH, in addition to the Executive Secretary at the time. The interviews were thematically analyzed from a historical perspective. This study found the departure of mental health professionals to the Ministry of Health (MS) in the PNHAH and PNH, most of whom were psychologists: some even participated in both. The document analysis favored PNHAH and PNH texts. As the Program, the PNH directed its gaze to users and workers and managers directed its gaze to users, workers, and managers, especially healthcare providers. This broad and transversal policy encompassed the entire SUS and MS. However, transversality constituted a challenge as the policy faced the institutional history of compartmentalization within the MS.
Keywords: Health Policy; Unified Health System; Humanization of Assistance; Health Management
Resumen:
Este artículo tiene como objetivo comprender el proceso de construcción de la Política Nacional de Humanización (PNH) a partir del análisis de la transición entre el Programa Nacional de Humanización de la Atención Hospitalaria (PNHAH) y la PNH, así como la identificación de continuidades y cambios entre el programa y la política, conociendo algunos elementos de su implementación. La metodología cualitativa involucró entrevistas narrativas y análisis documental. Se realizaron once entrevistas narrativas: a una médica asesora de Salud de la Mujer, dos psicólogos que participaron de la PNHAH y seis psicólogos y un trabajador social de la PNH, además de la secretaría ejecutiva en el entonces. Las entrevistas se analizaron de forma temática desde una perspectiva histórica. Se identificó que profesionales del área de Salud Mental acudieron al Ministerio de Salud (MS) en la PNHAH y la PNH, la mayoría psicólogos: algunos, de hecho, participaron en ambas. En el análisis documental se privilegió el texto de la PNHAH y de la PNH. Al igual que el programa, la PNH centró su atención en usuarios, trabajadores y gestores, con énfasis en los trabajadores de la salud. Se caracterizó como una política amplia y transversal en el Sistema Único de Salud (SUS) y en el MS; sin embargo, la transversalidad constituyó un desafío frente a la historia institucional de compartimentación dentro del propio MS.
Palabras clave: Política de Salud; Sistema Único de Salud; Humanización de la Atención; Gestión en Salud
Introdução
No campo da Saúde Coletiva, observa-se um grande aumento de produções científicas voltadas para o tema do sujeito, principalmente na década de 1990. Segundo Minayo ( 2001 ), essa década foi considerada a do retorno do tema do sujeito ao debate em saúde. Assim, as discussões acerca do sujeito, da qualificação da assistência em saúde, humanização, acolhimento e escuta aos usuários começaram a ganhar força, reverberando, em 2000, na XI Conferência Nacional de Saúde (CNS), cujo tema foi “Efetivando o SUS: Acesso, qualidade e humanização na atenção à saúde com controle social”.
Durante a XI CNS, vários usuários denunciaram maus tratos em serviços de saúde, principalmente nos hospitais. Demandava-se a melhoria na qualidade do atendimento, especialmente da escuta na relação entre profissionais e usuários. Em função disso, em 2000, o Ministro da Saúde (MS) convidou diversos profissionais da área da saúde mental, a maioria psicólogos, para formularem e implementarem o Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH). Elaborado em 2001, esse programa teve como objetivo melhorar a qualidade de atenção e escuta aos usuários, pois, “embora se saiba que a assistência à saúde não está centrada apenas na instituição hospitalar, é nesse espaço onde se percebe que a desumanização no cuidado com o outro se faz mais evidente” (Oliveira et al., 2006 , p. 282). Uma das estratégias utilizadas no PNHAH foi pensar a humanização para além do caráter filantrópico a ela associada.
No governo seguinte, esse projeto teve ampliação em duplo sentido. Ele seria estendido a todas as instâncias do Sistema Único de Saúde (SUS), não somente ao setor hospitalar, e não seria apenas um programa, mas uma política. Assim, as ações iniciadas durante a gestão do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB) intensificaram-se durante a gestão do Partido dos Trabalhadores (PT). A política se beneficiou do percurso anterior do PNHAH, sendo que alguns membros da Política Nacional de Humanização (PNH) foram consultores do referido programa (Ortona & Fortes, 2012 ). Na PNH, fortaleceram a dimensão política com foco na transversalidade, na indissociabilidade entre atenção e a gestão e na construção de autonomia dos sujeitos e dos coletivos (Brasil, 2004 ). Outro elemento que vale destacar é a presença de muitos psicólogos no programa e na política. Nos artigos publicados sobre a PNH até 2016, a maioria dos autores, 38%, são formados em Psicologia (Doricci & Guanaes-Lorenzi, 2021 ). Ou seja, os psicólogos tiveram significativa participação nos dois projetos e foram os coordenadores de ambos. Finalmente, se a PNH possui vasta publicação de documentos, cartilhas e artigos acadêmicos, do lado da PNHAH há uma escassez de material escrito; nenhum deles associa entrevistas e análise de documentos. Este estudo visa sanar essa lacuna, além de agregar um estudo do programa ainda não publicado (Ribas, 2019 ).
Além das diferenças de foco entre o PNHAH e a PNH, havia uma referência teórica de base para ambos: a Análise Institucional. Em 2003, a ideia de Apoio Institucional (Oliveira, 2012 ) foi agregada e guiou as ações da PNH, a partir de uma perspectiva de gestão compartilhada. Buscou-se alterar o modelo tradicional e vertical de coordenar, organizar e avaliar os processos de saúde (Oliveira, 2012 ).
O documento inicial, que subsidiou as discussões acerca da implementação dessa política, foi elaborado em 2003 pelo Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Em 2004, ocorreu a publicação da versão final da política, na qual se identifica que “humanizar as práticas de atenção e gestão em saúde foi para a PNH levar em conta a humanidade como força coletiva que impulsiona e direciona o movimento das políticas públicas” (Barros & Passos, 2005 , p. 570).
A Saúde Pública se tornou um campo de trabalho central para os psicólogos brasileiros. Paulatinamente, desde a década de 1980, e intensificando-se na década seguinte na esteira da Constituição de 1988, que criou o SUS, os psicólogos foram ocupando variadas funções na estrutura do Sistema. Em 2015, o número desses profissionais trabalhando no SUS era 49.412, o que correspondia a 19,53% dos psicólogos registrados no sistema Conselhos de Psicologia. (Daltro & Pondé, 2017 ). Contudo, no campo das pesquisas, a maior parte dos trabalhos publicados se atém à implementação das políticas, focalizando a atuação dos psicólogos no SUS (Daltro & Pondé, 2017 ). Poucos estudos têm contemplado as outras etapas do ciclo da política, como a entrada na agenda, a formulação da política, bem como sua avaliação após a implementação. Nessa lacuna, esta pesquisa se insere. Este estudo trabalha a etapa da formulação das políticas nacionais de saúde, iniciada formalmente em 2003, e destaca momentos relevantes que antecederam essa data e concorreram para o amadurecimento do que seria estabelecido em 2004, a saber, o Programa de Humanização no Pré-Natal e no Nascimento (PHPN) e o PNHAH.
Este artigo visa entender o processo de formulação da PNH, entendida como uma política pública histórica (Amorim, 2020 ), a partir da experiência de profissionais que dela participaram e de documentos elaborados à época, analisando, ainda, como se deu a transição entre o PNHAH e a PNH. Busca-se ainda identificar continuidades e mudanças entre o programa e a política e conhecer alguns elementos de sua implementação.
Metodologia
Esse trabalho foi realizado a partir de entrevistas e análise de documentos, tendo como foco o PNHAH e a PNH. Foi realizado um diálogo entre os documentos e as entrevistas, para que possíveis lacunas históricas e conceituais fossem preenchidas. Houve uma preocupação com o detalhamento da história da contínua construção do ideário da humanização da saúde no Brasil.
Foi realizada revisão bibliográfica exploratória no Portal Capes Periódicos, utilizando como descritores: política de humanização, formulação, Humaniza SUS. Na busca por “Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar”, encontrou-se apenas menções em textos sobre o programa, mas nenhum estudo que o tomasse como objeto central. Durante as entrevistas, foi identificado um trabalho não publicado que trazia um histórico de sua formulação e implementação (Ribas, 2019 ). Foram selecionados artigos e textos mais próximos aos acontecimentos aqui descritos, que abordassem o tema da formulação da política.
Os documentos escolhidos para a análise foram o PNHAH (Brasil, 2001a ) e a PNH (Brasil, 2004 ), buscando evidenciar aspectos em comum e diferenças. Foram entrevistados 11 profissionais que atuaram junto ao MS entre 2000 e 2010. Dentre eles, duas psicólogas que participaram do PNHAH, sendo uma que atuou na sua elaboração e coordenação e outra na implementação; e uma médica que trabalhou como assessora na área técnica da Saúde da Mulher do MS, área que iniciou o debate sobre o tema da humanização. Já em relação à PNH, entrevistou-se também o secretário executivo do MS, a diretora de programas, dois assessores e dois consultores externos, a psicóloga que coordenou a implementação da PNH na região Sudeste e a assistente social que participou da implementação da PNH em Minas Gerais ( Tabela 1 ).
As entrevistas foram realizadas no formato narrativo. Inicialmente, foi solicitado que o entrevistado relatasse livremente as suas experiências no MS, desenvolvendo um relato livre. Concomitantemente, foram anotados tópicos relevantes para que fossem aprofundados em segundo momento, com o objetivo de detalhar o que foi anteriormente exposto (Rosenthal, 2014 ).
A pesquisa foi aprovada pela Comissão de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais com o CAAE nº 14536119.9.0000.5137.
Desenvolvemos os resultados em dois eixos. No primeiro, foi trabalhada a história da humanização na saúde pública brasileira e, no segundo, realizou-se a análise comparativa dos dois documentos, visando identificar as continuidades e as mudanças, isto é, do PNHAH para a PNH.
Resultados e discussão
A história da humanização em saúde no Brasil: antecedentes históricos, percursos e efeitos
Foram identificadas diversas produções que possuem interface com a humanização em saúde. Entretanto, foram selecionadas apenas aquelas em que o conceito é enfatizado e, preferencialmente, que trabalhassem o período histórico abordado, demonstrando as inflexões pelas quais passaram e seus ecos no campo da saúde. A demarcação do início de ações voltadas para a humanização em vários âmbitos está indicada na linha do tempo da Figura 1:
Linha do tempo dos principais textos que marcaram movimentações da humanização em saúde no Brasil.
De acordo com Ribas ( 2019 ), a história da humanização remonta a 1980, quando a compreensão de saúde, pelos movimentos da Reforma Sanitária, passou a englobar um conjunto de condições subjetivas e sociais decorrentes das experiências vividas pelo sujeito, para além do âmbito biológico. Além disso, segundo o relato de Cecília, como a humanização compreende a saúde a partir de sua integralidade, ela implica um modo de funcionamento de saúde pública que necessariamente passa por ações colaborativas, de cogestão e de corresponsabilização, que são essenciais para o funcionamento do SUS.
A palavra humanização era usada no Brasil desde o início do século XX, associada ao parto. Contudo, sua presença em documentos oficiais ocorreu com a formulação do PHPN, lançado em maio de 2000 (Diniz, 2005 ). As políticas e os programas posteriormente implementados acerca da saúde da mulher buscaram inserir o tema da humanização de modo a reverter a lógica biomédica e fragmentada. De acordo com Cecília,
. . . o SUS fez muito, e faz muito, mas teve e tem enormes problemas . . . falta [o] entendimento de um cuidado que não seja baseado só na doença, na queixa-conduta, um cuidado mais integral… então todas essas dificuldades [foram] criando uma situação que eu acho [que] acaba chegando programas como . . . nos anos 90 . . . na área materno-infantil, que já começam a falar de humanização do parto.
Além da XI Conferência, o MS realizou uma pesquisa junto aos usuários do SUS entre 1999 e 2000, que evidenciou a necessidade de maior qualificação no atendimento e no acolhimento. Essa pesquisa foi apresentada na XI CNS, em 2000, que descortinou a temática em âmbito nacional.
A integralidade da atenção apareceu com força no debate dos grupos, evidenciando uma questão prática e imediata: o que a população exige do SUS é que ele seja capaz de atender aos problemas de saúde individuais e coletivos, cuidando da qualidade da saúde, e não apenas tratando das doenças e acometimentos graves com risco à vida (Brasil, 2001a a).
Conceição sintetizou um levantamento feito acerca das CNSs: “ os usuários discutiram é o seguinte: ‘nós somos uma doença. A gente não é acolhido. A gente não é atendido’ ”. Esse levantamento tornou visível os problemas relativos às gestões centralizadas, aos trabalhadores pouco valorizados e aos pedidos dos usuários para serem cuidados.
De acordo com Clarice, “ humanização no PHPN foi acesso . . ., direitos e cidadania ”, entendendo que é necessário respeitar os significados que o parto tem para a mulher, bem como devolver a ela o direito de ser mãe com segurança e humanidade (Brasil, 2001a c).
Assim, o conceito de humanização no cenário da assistência obstétrica é descrito como “um processo que inclui desde a adequação da estrutura física e equipamentos dos hospitais, até uma mudança de postura/atitude dos profissionais de saúde e das gestantes” (Brasil, 2001a c, p. 38), como a busca pela preservação da privacidade e autonomia da mulher e por uma cultura hospitalar de evitar intervenções desnecessárias.
O que é revolucionário na humanização é essa horizontalização da relação, em que a mulher participa das decisões, adequadamente informada, do que vai acontecer com o corpo dela, com o bebê dela, e ela pode fazer escolhas. Então, humanização tem muito a ver com escolhas. . . . O profissional considerar que está em risco a saúde do bebê, ele pode atropelar a autonomia da mulher.
(Clarice)
Em decorrência do diagnóstico obtido com a pesquisa e a discussão na CNS, o MS convidou um grupo de profissionais da área da saúde mental para compor um comitê técnico com a função de criar um programa para sanar os problemas relatados pelos usuários no setor hospitalar. Os membros do comitê criaram um projeto piloto que foi aplicado em dez hospitais públicos distribuídos pelo Brasil, de diferentes realidades socioculturais, perfis de serviço e modelos de gestão, e acompanhado por uma equipe de supervisores durante cinco meses. Essa etapa visou deflagrar um processo de humanização em benefício dos usuários e profissionais, bem como produzir um conhecimento das instituições a partir da aplicação do projeto piloto, visando colher subsídios que favorecessem a disseminação da experiência para outros hospitais. O material foi analisado e, a partir dele, foi elaborado um relatório que subsidiou a construção do PNHAH (Brasil, 2001a b).
Segundo Ribas ( 2019 ), o programa teve como objetivo principal a promoção de mudanças em relação ao acolhimento e atendimento aos usuários a partir de um conjunto de ações integradas que se pautavam no fortalecimento da corresponsabilidade e participação de todos os envolvidos no processo de produção de saúde. Foi proposta a criação de grupos de trabalho de humanização nos hospitais e nas secretarias de saúde dos estados e dos municípios-sede, considerando as singularidades de cada realidade local e visando melhorar a qualidade da atenção aos usuários e as relações entre trabalhadores de saúde e gestores. Várias dificuldades foram postas ao PNHAH, pois a ideia de humanização ainda era relativamente nova, pouco precisa e explorada, estando ainda associada, à época, a ações de cunho assistencialista e voluntário e ainda muito atrelada à área materno-infantil e sob responsabilidade de áreas profissionais específicas. Nesse sentido, Rachel relata as dificuldades para implementar a humanização e para que a ideia fosse valorizada: “ Era uma coisa assim, muito desvalorizada, desqualificada, como se fosse besteira . . . perda de tempo. Não era uma coisa objetiva, palpável . . . Houve muita resistência, muito descrédito ”. Por isso, de acordo com a entrevistada, era preciso trabalhar a produção de demanda, ou seja, sensibilizar os gestores, os diretores dos hospitais e demais pessoas envolvidas.
O alcance do PNHAH foi significativo. No período final de sua implementação – junho de 2003 – contou com a participação de “535 hospitais, das 27 Secretarias Estaduais de Saúde e 88 Secretarias Municipais de Saúde” (Ribas, 2019 , p. 6).
Segundo Cecília, como o Programa funcionou até julho de 2003, “ ficou meio encavalado junto com a PNH ”. Sendo assim, tanto a coordenadora do PNHAH, quanto outras pessoas que participaram de sua formulação e implementação, permaneceram no MS durante seis meses após o início da elaboração da PNH. Carlos lembrou que algumas pessoas da PNH também trabalharam no PNHAH.
Nesse percurso, houve a elaboração do texto para discussão da PNH, em 2003, e sua versão oficial foi concluída em 2004. A PNH surgiu a partir de um movimento já iniciado pelo PNHAH: “ . . . [O PNHAH] foi a semente . . . depois, a Política Nacional [de Humanização] conseguiu fazer tudo aquilo que a gente queria, e que não conseguimos, porque era o início, porque a gente não começa do fim ” (Cecília). Hilda relatou acreditar ser
importante reconhecer que esse programa [de 2001] já trazia inquietações, ele trazia questões interessantes, existiam vários psis que estavam já envolvidos, médicos e outros cientistas sociais, enfermeiras já estavam envolvidas nesse programa nacional de humanização, e a perspectiva até então era de olhar o paciente, o que era já um avanço.
Contudo, o fato de o programa ter fomentado questionamentos importantes não foi suficiente para que ele continuasse a sua expansão e desenvolvimento nos anos posteriores. Segundo alguns entrevistados, a PNH buscou realizar uma ruptura em relação ao PNHAH, ao transformar o programa em política. Mas, como será desenvolvido adiante, tratou-se mais de uma ampliação do programa, com sua transformação em política e extensão por todos os níveis do SUS, do que de uma ruptura. Essa “ruptura” ocorreu essencialmente no nível discursivo, uma vez que, na prática, a proposta de mudança nos modelos de atenção e gestão já estava presente no PNHAH, mas não completamente desenvolvida.
Nesse sentido, Cora comentou que “ a política foi criada tomando . . . esses programas específicos, localizados não só no PNHAH, como também na humanização do parto e nascimento, que era outro programa focado numa área ”. Ou seja, houve uma renomeação de programas anteriores em políticas nacionais, oferecendo assim maior perenidade às propostas. Além disso, houve o questionamento da noção do termo de humanização por parte da nova gestão da secretaria executiva, isto é, se seria mantida a forma como estava sendo abordado ou se seria feita uma revisão do termo. Essa necessidade surgiu porque, segundo Hilda, esse conceito ainda se centrava na “ ideia do indivíduo, do ser humano, da importância de ter uma abordagem centrada no cliente e nas necessidades daquele específico indivíduo ”. Era preciso compreender a humanização enquanto olhar para “ um sujeito, que estava num momento de sofrimento e deveria ter um ambiente agradável, para um sujeito trabalhador e usuário . . . tinha que ter uma política de saúde pública que garantisse o seu direito ” (Carolina).
Entretanto, segundo Graciliano,
a gente achou na avaliação política que era mais interessante pegar, né, o feeling que vinha já há muito tempo desse setor de resistência dentro da saúde pública, né, que se chamava de humanização da Saúde Materno-Infantil, pegar isso e levar pra um projeto, que era um projeto de política nacional.
Machado aponta que o conceito de humanização foi redefinido: “ humanizar é redistribuir poder ”, isto é, o empoderamento do usuário ocorre não apenas nos colegiados e nas conferências, mas também no cotidiano do tratamento e acompanhamento na saúde.
Deslandes ( 2004 ), uma das poucas pesquisadoras a se debruçar tanto sobre o PNHAH, quanto sobre a PNH, entende que em ambos o conceito não é claramente definido. Em análise documental, procurou apontar as características centrais do PNHAH. Segundo a autora, seriam quatro: 1) oposição à violência física, psicológica ou simbólica – entendida como negação do “outro” em sua humanidade; 2) melhoria da qualidade do atendimento, articulando os avanços tecnológicos com bom relacionamento; 3) melhoria das condições de trabalho dos profissionais; e 4) ampliação do processo comunicacional. Como se vê adiante, à exceção da primeira, a violência na assistência, derivada da XI CNS (que pautou as queixas de maus tratos nos hospitais), as demais têm presença na PNH, sobretudo as duas últimas.
Enfim, a ideia de humanização no Brasil sofreu diversas inflexões, desde as diversas ações na área da saúde da mulher e do cuidado materno-infantil, que disseminou a ideia de humanização enquanto perspectiva de cuidado integral e de autonomia do sujeito; até o entendimento da humanização como proposta de valorização dos usuários, trabalhadores e gestores no processo de produção de saúde a partir da responsabilidade compartilhada e da participação coletiva nos processos de gestão, tal como o PNHAH apontava de forma incipiente e a PNH de forma mais consistente. Nesse percurso, identificamos a XI CNS como um marco histórico que evidenciou a necessidade de maior qualificação no atendimento e no acolhimento e impulsionou o entendimento da humanização enquanto conceito e prática essencial no SUS.
As continuidades e mudanças entre o Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar e a Política Nacional de Humanização
A passagem do PNHAH para a PNH foi marcada por uma mudança discursiva em razão da entrada de uma nova gestão pois, em parte, houve a preocupação desta em demarcar seu início, inovar e ter, para si, produções que continham o seu nome. Isso porque no cenário político brasileiro há uma “busca de hegemonia política, mediante o não aproveitamento e/ou reinvenção de propostas e planos que tenham sido elaborados pelo governo anterior” (Justo, 2013 , p. 108-109).
Neste caso, nós tínhamos que ampliar . . . de um programa que era o PNHAH, para uma política . . .. E um bocado daquela coisa de que tinha que mudar os nomes, mostrar que é uma outra política, se diferenciar do que vinha antes. . . . Então aqueles primeiros meses foi a constituição disso e foi, entre aspas, o desmonte ou o fechamento do PNHAH.
(Carlos)
A Política visaria inserir o tema da subjetividade e da humanização em todos os serviços ofertados na rede pública de saúde nacional, de modo efetivo e duradouro, permanecendo menos dependente de mudanças no cenário político-eleitoral. O fato de a PNH ser uma política favoreceu sua inserção nas várias instâncias do SUS, não se restringindo ao setor hospitalar (Ribas, 2019 ). Isso foi reconhecido por Cecília como sendo um “salto” de qualidade enorme. Essa ampliação é abordada na literatura em pesquisas que abordam a implementação da PNH em todos os níveis do setor hospitalar de Atenção Primária (Silva et al., 2021 ).
A nova gestão chegou a fazer convites para alguns integrantes do grupo do PNHAH permanecerem atuando no MS e na formulação da PNH. Essa movimentação trouxe um desconforto ao grupo: “ mandaram pra gente uma carta pedindo nosso currículo pra ver se a gente podia continuar trabalhando com eles. Aí nós pedimos demissão coletiva, né, nós todos saímos fora, foi uma pena ” (Cecília).
A PNH define-se em três princípios centrais: transversalidade, indissociabilidade entre atenção e gestão, e construção de autonomia e protagonismo dos sujeitos e dos coletivos (Brasil, 2004 ). A partir daqui analisaremos esses princípios.
A transversalidade visava aumentar o grau de comunicação e intercessão no trabalho, a fim de descentralizar as ações e relações: “ Nós queremos construir o Ministério Único da Saúde porque é um bando de caixinhas e tudo isolado ” (Carlos). Nesse sentido, a noção transversal implica em uma linha de força que cria abertura para o reconhecimento da multiplicidade construtiva da realidade, para a capacidade de se deixar afetar pelas diferenças entre sujeitos e para o exercício de uma forma de comunicação que favorece maior integração e participação de pessoas e grupos (Ribas, 2019 ).
Adotar e operar com o princípio de transversalidade, portanto, vem de uma tentativa de reverter o cenário hierárquico e vertical que envolviam os processos de saúde, desde a gestão até a comunicação e interação entre seus atores (Pasche, Passos & Hennington, 2011 ). Embora o termo seja uma novidade no documento da política, a ideia que envolve o conceito já se fazia presente na prática do PNHAH, através das ações multisetoriais, pois já se apontavam os problemas da existência das relações e ações verticalizadas excessivas. Constatava-se haver
uma tendência para que os setores funcionem isoladamente entre si, como grupos ou subgrupos, constituindo seu próprio universo de interesses e objetivos particulares, sem relação com o todo organizacional. Quando essa tendência se cristaliza, cria-se uma realidade bastante difícil para a vida dos coletivos.
(Brasil, 2001b , p. 44)
Para enfrentar essas relações verticalizadas, o PNHAH promoveu a “constituição de um grupo estável de profissionais, de natureza polisetorial, igualitária e democrática” (Brasil, 2001a b, p. 40). Tal aspiração seria buscada por meio dos Grupos de Trabalho de Humanização Hospitalar, que eram tidos como espaços coletivos de escuta e que trabalhavam junto à gestão hospitalar, visando, assim, a integração de diversos setores. Ribas ( 2019 ) afirma que o Programa, embora restrito aos hospitais, buscava fortalecer a participação, cooperação e responsabilidade no desenvolvimento das relações de trabalho e de atendimento, à proposta de trânsito e de diálogo. Assim, a operacionalização da transversalidade fazia-se presente, mesmo que essa expressão não aparecesse no documento do Programa. A ausência do conceito no texto pode indicar, como veremos no Quadro 1 , que a percepção do problema existia, mas que as ações ainda eram incipientes, tendo sido posteriormente incorporadas na PNH.
Quando se pensa no segundo princípio da política, indissociabilidade entre atenção e gestão, percebe-se que este também já está posto no PNHAH, pois o incentivo à gestão participativa e à democratização dos modelos de gestão dos coletivos eram práticas muito buscadas pelo programa. Compreendia-se que para melhorar a qualidade de atendimento ao usuário era preciso, em última instância, transformar a realidade e as relações também a nível gerencial. De acordo com Cecília, “ O elemento básico [do PNHAH] era a formação de grupos que se articulavam em rede… de fazer uma multiplicação das ações de humanização . . . melhoria das relações de trabalho… formas de gestão mais participativa ”. Lygia, que trabalhava com o referencial das Clínicas do Trabalho, enfatizou esse aspecto: “ Se tinha então como direção mais importante era essa indissociabilidade entre gestão e cuidado ”.
Em razão de esse olhar da humanização para os modos de atenção e gestão ser novo dentro do campo da saúde brasileira, os atores do Programa encontraram dificuldades para implementá-lo e, por isso, foi preciso realizar um trabalho de sensibilização, na tentativa de fazer com que a temática encontrasse um espaço mais fértil para ser desenvolvida.
Era mudar uma lógica de cuidado, uma lógica de trabalho ofertado na rede, né! Então a gente viveu toda essa dificuldade, acompanhamos a secretaria no momento de sensibilizar, né?! Esse é um passo importante: sensibilização. Nós trabalhamos muito nessa etapa: como sensibilizar os gestores, os envolvidos, os hospitais – porque é preciso convencer o diretor de que vale a pena.
(Rachel)
Justo ( 2013 , p. 133) avalia que a PNH é inovadora porque proporcionou, pela primeira vez, “a entrada do trabalhador como elo fundamental ao processo de cuidado e à humanização da saúde”. Essa interpretação estava presente nos entrevistados da gestão de 2003 ao acentuarem que o PNHAH tinha como ponto central os usuários, mais precisamente a melhoria na qualidade de atenção e escuta destes. Porém, o PNHAH também incluía os trabalhadores, buscando compreender e garantir suas necessidades, como espaços de debate e de participação nas tomadas de decisão, isto é, ambientes propícios para que seu trabalho e sua saúde fossem assegurados e desenvolvidos. Por isso, tanto o PNHAH quanto a PNH possuem diretrizes de educação permanente; democratização; gestão participativa; coletividade; autonomia e protagonismo; e valorização da dimensão da subjetividade (Brasil, 2001a b; Brasil, 2004 ), alinhando os conhecimentos técnicos à postura ética e acolhedora. Dessa forma, os trabalhadores e usuários seriam beneficiados, e isso é focalizado nos dois documentos. Ainda, no PNHAH, entende-se que a dimensão subjetiva do usuário deveria ser considerada pelos profissionais de saúde para que a humanização fosse efetivada nos serviços de saúde.
Do ponto de vista do profissional, considerar essas dimensões [da subjetividade que cercam o profissional de saúde] permite oferecer a ele melhores condições de enfrentar o desgaste provocado pelo constante contato com a dor, com o sofrimento e com os limites e as dificuldades na realização de seu trabalho.
(Brasil, 2001b , p. 53)
Outro aspecto importante que diz respeito a uma ampliação refere-se ao terceiro princípio da PNH: construção de autonomia e protagonismo de sujeitos e coletivos. Apesar de essa questão ganhar notoriedade no documento da política, o programa trazia anteriormente o desejo de realizar intervenções institucionais que desenvolvessem a autonomia e cidadania de todos os atores envolvidos nos processos de saúde, abarcando gestores, trabalhadores e usuários (Brasil, 2001a b). Enquanto o PNHAH trazia a ideia de a “instituição como um todo assumir o lugar de sujeito protagonista” (Brasil, 2001a b, p. 13), a PNH colocou o usuário no centro de seu processo de saúde, tornando-se, assim, uma “política incentivadora do protagonismo dos sujeitos” (Brasil, 2004 , p. 11). Na Política, para que se construa a autonomia e o protagonismo dos sujeitos, é mister que todos os atores estejam envolvidos nos processos de saúde, ou seja, precisa haver coconstituição, coprodução e cogestão, estando esses elementos pautados na responsabilidade e corresponsabilidade (Guedes, Pitombo & Barros, 2009 ). O Quadro 1 explicita de forma breve os três princípios discutidos na PNH e a forma como estavam anteriormente inseridos no PNHAH.
Além disso, há uma discordância operacional entre o PNHAH e a PNH. No Programa, buscou-se institucionalizar a implementação por meio de ações junto às secretarias estaduais e às várias secretarias municipais. Ou seja, os elementos de implementação estavam presentes no documento de implementação do Programa. Havia uma proposta de multiplicação progressiva do PNHAH mediante o apoio das secretarias estaduais, municipais e dos 94 hospitais já capacitados, um protocolo de avaliação permanente, grupos de multiplicadores distribuídos por regiões e cronograma das ações. Na Política, o entendimento foi de que não deveria haver sua institucionalização e, por isso, não operariam por meio de portarias. Foi uma estratégia para fazer jus à dimensão instituinte da Política, ou seja, a não institucionalização foi utilizada para evidenciar a dimensão dialógica da PNH (Justo, 2013 ), considerada histórica por Amorim ( 2020 ) justamente por ser uma política pública instituinte na cultura institucional. Existem diferentes perspectivas sobre esse aspecto. Boa parte dos formuladores da Política, especialmente os ligados à academia universitária, defendem com convicção não terem feito-a institucionalizada por portarias.
De fato, a opção do grupo por não institucionalizar a PNH por meio de portarias gerou diversas tensões no MS. No início da implementação da política, tal inovação dificultou alguns repasses de investimento e aderência entre os atores dentro do próprio ministério. Conforme Graciliano,
Nós enquanto estivemos como equipe, à frente da Política Nacional, nós nunca permitimos que houvesse uma portaria que institucionalizasse a PNH . . . . E isso dentro do Ministério criava uma enorme tensão. Ela tinha uma certa invisibilidade no projeto institucional que era intencional . . . . Aos poucos a gente foi, sempre que havia uma brecha, a gente foi tentando construir algum tipo de vínculo, né, para fazer valer esse princípio da transversalidade, né, fazer valer essa abertura comunicacional que em última instância era o sentido principal da PNH.
O desejo de criar essa abertura comunicacional foi o que motivou o grupo a continuar se opondo à prática ministerial de operar mediante portarias. Segundo Conceição, a PNH “ não foi uma portaria instituída burocraticamente. Ela foi, de fato, um movimento. E eu acho que ela não morre, sabe? Como política, rizoma, ela tá aí ”. Conceição trabalhou até 2012 na Rede Cegonha, “ que bebeu da fonte da PNH, todas as suas diretrizes foram como política transversal à Rede Cegonha, materializou essas diretrizes, e a gente passou da PNH para a Rede Cegonha ”.
Entre os formuladores da PNHAH, a visão é outra. Cecília considera que teria sido importante haver um espaço de institucionalização da humanização, pois “ se você não tem um lugar institucional, as pessoas não te respeitam e não te reconhecem. E você precisa desse lugar, e isso não é assujeitamento, é possível você criar trânsito ”. Nesse sentido, institucionalizar não invalidaria o caráter transversal, mas abriria ainda mais espaço para que o diálogo entre iguais e diferentes ocorresse. Mesmo entre os formuladores da PNH havia dissidências. Carolina, que trabalhou na política, também problematizou a orientação da não institucionalização da PNH, pois ao mesmo tempo que se
afirma um jeito de fazer política, por contágio, por micropolítica, . . . também se perde num certo sentido, no cenário que é muito marcado por ter dinheiro, por ter portaria, você vai perdendo potência, conforme você deixa de ser prioridade para o gestor que está sentado lá.
Deslandes ( 2005 ), que estudou a humanização nos dois projetos, participou de um debate em periódico com dois dos principais formuladores da PNH e apontou algumas questões. Em primeiro lugar, questiona a opção da PNH em não demarcar um conceito definido do que é a humanização, impossibilitando assim a criação de uma “imagem-objetivo” clara, que permitisse ações definidas que estivessem presentes em todos os níveis do cuidado em saúde. Em segundo lugar, afirma que “este projeto somente se realiza se for tomado como um modo de gestão, um modo de realizar a atenção em saúde, uma pr á xis. Carece, portanto, de estratégias não só de produção, mas de reprodução deste modelo” (Deslandes, 2005 , p. 403). Vale ressaltar que tanto os formuladores do programa, quanto a pesquisadora, que questionam a opção de não institucionalizar a política, valorizam o que foi feito.
Cora relatou que em 2016 ocorreu um desmonte de toda a equipe de consultores da política que estavam espalhados pelo Brasil. Os contratos foram desfeitos, restando apenas a coordenação geral da PNH e um pequeno núcleo técnico em Brasília (DF) que, posteriormente, também foi encerrado. Não havendo mais recurso no Ministério após o desmonte,
a gente continuou autônomo. Já fizemos vaquinha, com as pessoas que são mais engajadas, para não deixar fechar a rede HumanizaSUS, que se transformou num movimento ne? Deixou de ser uma política de Estado e se transformou num movimento social, porque, na verdade, o que a gente sempre colocou como meta é que a Humanização se transformasse numa política de Estado, e não de governo.
(Cora)
Apesar do desmonte do SUS que atingiu a PNH, ela permanece como uma espécie de ideia-força. Em artigo recente, a “perspectiva da PNH” é evocada para que se mantenha uma vigilância ativa da nossa capacidade de resistir ou re-existir frente aos desmontes que têm sido impostos ao SUS (Barros, Santos-Filho & Monecchi, 2023 ).
Por fim, quando no início dessa seção foi dado destaque à ideia de mudança discursiva, pretendeu-se demonstrar que, embora a narrativa do grupo da nova gestão defendesse trazer algo inteiramente novo, demarcando assim sua chegada ao Ministério, isso não aconteceu efetivamente. O que se deu foi uma ampliação do que já estava presente no PNHAH, o que indica que os documentos e as ações referentes ao Programa e à Política apresentam mais continuidades do que descontinuidades. Essa continuidade foi, inclusive, posteriormente reconhecida em uma publicação sobre o verbete “humanização”, cinco anos após a publicação da PNH, por duas das lideranças desse processo (Passos & Barros, 2009 ). Cecília, que coordenou o PNHAH, também ofereceu uma interpretação:
Então eu valorizo demais a Política Nacional de Humanização. Acho que tudo que tem na política é fruto do que a gente tem de melhor [no PNHAH] de possibilidade, as diretrizes, o método de inclusão, o posicionamento transversal, os dispositivos… que a gente usou tudo! . . . eles mantiveram a positividade do conceito de humanização, de mudança das práticas de cuidado e de gestão.
Assim, a PNH consolidou e ampliou e o que vinha sendo construído pelo PNHAH, abastecendo-se também da tradição de outros processos anteriores, especialmente da área materno-infantil. Levando em consideração a lamentável tradição brasileira de descontinuidade de ações e políticas a cada mudança de gestão (Araújo & Souza, 2019 ), pode-se considerar que a retomada, por parte da PNH, da construção produzida anteriormente, foi um avanço político.
Conclusão
A ideia da humanização tem uma longa trajetória no Brasil, desde o início do século XX. O conceito de humanização emergiu na área da Saúde da Mulher e da Atenção Materno-Infantil, estabelecendo-se como proposta de mudança dos modelos de atenção e gestão na saúde pelo PNHAH, que defendeu a participação de trabalhadores de saúde nos processos de gestão, sendo, por fim, potencialmente capilarizado por todo o SUS a partir da PNH. Identificou-se como o PNHAH trabalhou de modo significativo dois dos três princípios centrais da PNH. Quanto ao primeiro, a transversalidade, apresentou um diagnóstico preciso da verticalização e segmentação da gestão, mas avançou menos nas ações nessa direção. Já a PNH, ao trazer a Política para dentro da Secretaria Executiva, procurou lidar com o problema da segmentação desde o início, focalizando o trabalho no princípio da transversalidade.
Acentuou-se a importância de entendermos aspectos históricos de continuidade e mudanças entre os dois processos aqui trabalhados. A continuidade entre ambos é patente na comparação entre seus documentos e pelo fato de vários profissionais terem participação em ambos. Fica evidenciada a importância da ampliação da humanização para todos os níveis de atenção no SUS, avaliação comum por parte de todos os entrevistados.
Entretanto, houve controvérsias que circularam entre a perspectiva de institucionalização da humanização na assistência hospitalar e a defesa de uma ampliação por contágio e sem portarias feita na PNH. Este trabalho não explorou os resultados dessas diferentes estratégias. Um estudo de avaliação dos resultados dessas opções poderia nos trazer uma visão mais definitiva sobre esse debate.
Esta pesquisa ressalta a importância da realização de estudos que investiguem os processos de formulação de políticas de saúde para lançar nova luz sobre as experiências bem-sucedidas, ou não, de implementação e execução delas. A reconstituição desse processo de formulação de política pública, dentro de recuperação histórica mais estendida, é uma contribuição relevante deste trabalho. Ressaltamos o protagonismo dos profissionais de saúde mental, com destaque para os psicólogos, na construção tanto do PNHAH, quanto da PNH, lembrando que ambos tiveram na coordenação psicólogas. Esse foco no protagonismo dos psicólogos nesse processo ainda não foi contemplado pela literatura, e o resgate dessa história pode favorecer o interesse de pesquisadores da área a se voltarem a estudos em outras dimensões do ciclo da política.
Finalmente, é preciso destacar que, no recente cenário de desmonte das políticas públicas brasileiras, a humanização, particularmente na PNH, pode ser uma importante chave de entrada para recolocar os princípios do SUS na agenda e no cotidiano das Unidades Básicas de Saúde, hospitais ou onde mais se produzir saúde – e sujeitos. Nosso retorno à normalidade democrática será um facilitador nessa construção.
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Como citar
Ferreira Neto, J. L., Ferreira, M. E. C, Oliveira, M. E. C., & Penido, C. M. F. (2024). A Formulação da Política Nacional de Humanização e seus Antecedentes Históricos. Psicologia: Ciência e Profissão , 44 , e268625, 1-14. https://doi.org/10.1590/1982-3703003268625
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How to cite
Ferreira Neto, J. L., Ferreira, M. E. C, Oliveira, M. E. C., & Penido, C. M. F. (2024). The National Humanization Policy Construction Process and its Historical Background. Psicologia: Ciência e Profissão , 44 , e268625, 1-14. https://doi.org/10.1590/1982-3703003268625 .
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Cómo citar
Ferreira Neto, J. L., Ferreira, M. E. C, Oliveira, M. E. C., & Penido, C. M. F. (2024). La Construcción de la Política Nacional de Humanización y sus Antecedentes Históricos. Psicologia: Ciência e Profissão , 44 , e268625, 1-14. https://doi.org/10.1590/1982-3703003268625
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Nov 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
13 Out 2022 -
Aceito
17 Jan 2024