Resumos
Descreve-se, neste texto, como o trabalho com sujeitos anoréxicos e bulímicos é conduzido pela equipe interdisciplinar do Núcleo de Investigação em Anorexia e Bulimia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (NIAB-HC/UFMG). Com base no referencial teórico e metodológico da psicanálise lacaniana, procede-se à construção do caso clínico, o que permite nortear a condução do tratamento em equipe. O trabalho de construção do caso clínico é apresentado a partir dos elementos singulares isolados ao longo do processo.
Anorexia; interdisciplinaridade; psicanálise; construção do caso
In this text we describe how work with anorexic and bulimic subjects is conducted by a interdisciplinary team at the Bulimia and Anorexia Research Group at the Minas Gerais General Hospital of the Universidade Federal de Minas Gerais, Brazil . Drawing on Lacanian psychoanalysis we build a clinical case, the construction of which may be useful in carrying out treatment conducted by a multidisciplinary team. The work of building up this clinical case is presented, based on singular elements isolated during the process.
Anorexia; interdisciplinarity; psychoanalysis; case building
Cet article décrit de quelle façon le travail avec les sujets anorexiques et boulimiques est mené par l'équipe interdisciplinaire du Núcleo de Investigação em Anorexia e Bulimia (Groupe de Recherche sur l'Anorexie et la Boulimie) de l'Hôpital des Cliniques de l'Université Fédérale de Minas Gerais (NIAB-HC/UFMG). En s'appuyant sur des repères empruntés à la théorie et à la méthodologie lacanienne, on procède à la construction du cas clinique, ce qui permet de gérer le traitement en équipe. Le travail de construction du cas clinique est présenté à partir des éléments singuliers localisés au cours du processus.
Anorexie; interdisciplinarité; psychanalyse; construction du cas
En este texto se describe como un equipo interdisciplinario en el Núcleo de Investigação em Anorexia y Bulimia del Hospital das Clínicas da UFMG (NIAB-HC/ UFMG) trabaja con los sujetos anoréxicos y bulímicos. Con base en el marco teórico y metodológico del psicoanálisis lacaniano se procede a la construcción de un caso clínico, lo que permite orientar la conducta del equipo de tratamiento. El trabajo de construcción del caso clínico se presenta a partir de los elementos singulares aislados durante todo el proceso.
Anorexia; interdisciplinario; psicoanálisis; construcción del caso
Im vorliegenden Bericht wird die Behandlungsweise von magersüchtigen und an Bulimie leidende Patienten durch das interdisziplinäre Team des Forschungszentrums Núcleo de Investigação em Anorexia e Bulimia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (NIAB-HC/UFMG) dargestellt. Auf der Grundlage der lacanschen psychoanalytischen Leittheorie und -methodologie wird ein klinischer Fall entwickelt, was erlaubt, einen Leitfaden für die gemeinsame Behandlungsweise durch das Team zu entwickeln. Der Aufbau dieses klinischen Falls wird anhand von isolierten einzigartigen Elementen im Laufe des Prozesses dargestellt.
Magersucht; Interdisziplinarität; Psychoanalyse; Fallausarbeitung
Introdução
De acordo com o Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais IV Revisado (DSM IV-TR), a Anorexia Nervosa (AN) é caracterizada por recusa obstinada em manter um peso corporal mínimo, medo intenso de engordar, distorção da imagem corporal e alterações no ciclo menstrual (Jorge, 2002). Os pacientes com AN são difíceis de serem abordados na prática clínica. Um dos principais motivos é a recusa que marca a posição anoréxica (Cosenza, 2008). Essa recusa abrange não só a comida, mas também o convívio, o laço social, o encontro amoroso, o corpo feminino e, inclusive, o tratamento.
O objetivo do tratamento inclui o restabelecimento do estado clínico, nutricional e das condições psíquicas e sociais dos pacientes. No entanto, este ideal de reestabelecimento, muitas vezes, não é possível. Apesar da ausência de evidências que mostre diferenças entre os resultados de programas mais flexíveis e os mais rígidos de tratamento para driblar essa recusa, as abordagens variam das mais coercivas às mais tolerantes (Fairburn, 2005). Dada a imprecisão etiológica e a complexidade desses quadros, existe consenso de que o tratamento seja conduzido por uma equipe interdisciplinar. Apesar dessa recomendação, não há uma indicação em relação ao modelo mais adequado de trabalho em equipe, sendo escassos os artigos que abordam a organização, funcionamento e experiências de serviços desse tipo (Vilanova & Figueiredo, 2012). Para contribuir com esse tema, buscaremos mostrar, a partir do relato de um caso, o trabalho desenvolvido no Núcleo de Investigação em Anorexia e Bulimia (NIAB).
O NIAB é um espaço dedicado à assistência a pacientes com sintomas anoréxicos e bulímicos, de todas as idades, provenientes da rede de saúde de Minas Gerais. Sua equipe é constituída por médicos clínicos, endocrinologistas, nutrólogos, psiquiatras e também por psicanalistas e nutricionistas. Trata-se de um serviço clínico cujo referencial teórico é a psicanálise lacaniana. Nele, o sujeito e suas vivências psíquicas assumem o foco das intervenções a partir da escuta analítica, em detrimento dos fenômenos isolados através da observação e da normatização classificatória. A construção do caso clínico é a proposta metodológica que tem possibilitado a efetividade de um trabalho interdisciplinar.
A política do NIAB, norteada pelo sintoma, parte do pressuposto de que há algo na manifestação sintomática que funciona como uma solução singular para o sujeito, permitindo sua adaptação e organização psíquica. A partir da construção do caso, tenta-se elucidar e transmitir o estatuto dessa solução para a equipe, respeitando-a, na medida do possível, até o momento em que o sujeito encontre saídas menos devastadoras. A elaboração de um saber sobre cada caso permite um direcionamento do tratamento compatível com a vida daquele paciente, minimizando os riscos físicos e psíquicos de seu sintoma alimentar e, ao mesmo tempo, avaliando as consequências de sua remoção. Esse entendimento promove um posicionamento da equipe a partir do princípio ético primum non nocere 1 de acordo com o qual a primeira preocupação para um médico será nunca prejudicar o seu doente. Para trabalhar esse ponto, recorreremos ao nó borromeano, proposto por Lacan em seu último ensino.
O caso Ana: a pequena equilibrista
Ana estava com 13 anos de idade quando foi trazida para tratamento pelos pais. À primeira abordagem, essa jovem se apresentava como uma ginasta muito dedicada e com planos de se tornar profissional. Já havia passado por diversas competições e, apesar das ótimas avaliações, sempre lhe diziam que ela não tinha um "corpo de ginasta". Para o último concurso, treinou muito, restringiu a alimentação e perdeu peso. Ana alcançou, assim, o "corpo de ginasta" e ganhou a competição. Desde então, intensificou a restrição alimentar e passou a perguntar, insistentemente, à mãe, se ainda tinha "corpo de ginasta". A mãe, angustiada frente ao emagrecimento da filha, não conseguia mais olhar para ela.
Desde pequena Ana é uma menina exemplar: na escola, em casa, na ginástica. Filha única de um casal jovem, nunca teve muitos amigos, preferindo a companhia da mãe, que abandonou o trabalho para cuidar da filha quando ela nasceu.
Aos três anos, Ana já conseguia ler e escrever com o incentivo da mãe. Aos sete anos, os pais se separaram. Depois disso, a mãe nunca mais se envolveu amorosamente. O pai, embora presente, não construiu com a filha um vínculo significativo.
Ana foi recebida no NIAB por um médico clínico que, desde então, participou ativamente em seu tratamento. Ela havia perdido mais de 10% do peso nos últimos 3 meses e apresentava um IMC2 de 15 por causa da restrição alimentar. Apesar do diagnóstico de Anorexia Nervosa do tipo restritivo, o que mais preocupou o clínico foi a angústia de Ana que aumentava ao longo dos atendimentos. Diante do pedido da mãe de uma prescrição dietética, para que Ana se alimentasse, o clínico sugeriu que a jovem fizesse um diário que abarcasse seus sentimentos e pensamentos durante a semana. Ela se restringia, no entanto, a escrever um relato concreto dos alimentos ingeridos. A dificuldade de falar sobre o que a afligia motivou a entrada de um analista no tratamento.
Atendida por um analista do serviço, Ana retraiu-se rapidamente, após um primeiro momento em que se apresentou como ginasta modelo, com planos para o futuro. Sua recusa em falar e sua angústia crescente ensejou a inclusão da mãe no tratamento. Ansiosa por falar, a mãe já havia relatado em entrevistas separadas, que Ana tinha crises nas quais gritava, chorava e agarrava-se a ela, pedindo-lhe desculpas por estragar tudo, referindo-se a um tempo em que era pequena e agradava à mãe. A filha não conseguia ficar longe dela e passou, também, a imitar seus gestos, tal como um reflexo especular. Quando questionada pela mãe, a jovem dizia querer perder o mesmo tanto de calorias que ela. Frequentemente, Ana era tomada por movimentos automáticos em que batia as mãos no ar, como se tentasse secá-las, e só parava quando a mãe as segurava. Fazia abdominais durante pequenas ausências da mãe e dependia do comando dela para fazer coisas cotidianas, como, por exemplo, servir-se no café. Ana impunha diversas condições para se alimentar e sair de casa. Tudo devia seguir uma programação rígida para evitar as crises. Ela exigia que a mãe lhe dissesse várias vezes que comesse, assegurando-lhe que o alimento lhe faria bem. Caso contrário, ela não comia e, assim, a culpa por estragar tudo era atribuída à mãe. Sem conseguir atender às exigências da filha, a mãe encontrava-se extenuada.
Nessa época, o analista já havia iniciado a construção do caso a partir de supervisões individuais e discussões com a equipe, o que permitiu o isolamento de elementos que apontavam para o diagnóstico estrutural de psicose. A jovem mantinha a restrição alimentar e quase não falava. Mesmo os atendimentos com o médico clínico, com o qual Ana inicialmente se mostrou mais acessível ao diálogo, começaram a ficar difíceis devido à recusa a falar.
A hipótese para o trabalho analítico foi, nesse momento, levada para discussão com a equipe do NIAB. O conjunto dos elementos apresentados por mãe e filha indicava o atendimento conjunto das duas, já que a jovem demonstrava, com sua angústia e sua dependência com relação à presença física da mãe, uma grande dificuldade em fazer consistir seu corpo. Assim, embora a equipe visasse possibilitar uma separação entre filha e mãe e a construção de recursos próprios de sustentação, nesse caso, esse objetivo só seria alcançável seguindo as indicações de Ana. Ou seja, consentindo com o único suporte disponível para ela naquele momento: a presença física da mãe. Desde então, iniciou-se um segundo tempo do atendimento, em que a mãe falava e Ana a observava, imitando seus movimentos.
Ao mesmo tempo, a jovem foi encaminhada para o atendimento psiquiátrico, na ausência da mãe. A postura esvaziada de saber desse profissional parece ter permitido que Ana retomasse a fala, desenvolvendo uma boa relação transferencial com o médico. Nesse novo espaço, o psiquiatra acolhia o sofrimento da jovem e, com uma escuta cuidadosa e interessada, ressaltava elementos que pudessem permitir a Ana a construção de sua história de vida. A jovem apresentava um romance familiar empobrecido e um relato restrito às agruras do cotidiano, sem conseguir elaborar o que lhe ocorria. No entanto, o novo arranjo do atendimento teve como efeito o apaziguamento de Ana, que voltou a se alimentar. No curso dos atendimentos, ela demonstrou interesse pela profissão do pai, brincando com a construção de uma empresa fictícia que criara quando criança e levando para a consulta a logomarca reformulada. Essa logomarca tinha uma clara referência ao nome de Ana, o que indicava uma tentativa de construção de um suporte para além da mãe.
Diante da evidente melhora, a equipe optou por separar o atendimento de mãe e filha. Ela sentiu-se logo muito aliviada com essa separação, desobrigando-se de frequentar os atendimentos conjuntos com a mãe, sempre muito tensos. Nesse terceiro tempo, Ana deixa de participar dos atendimentos da mãe sem resistência. Ana se sentia bem e apresentava projetos para o futuro. A única queixa era a de um pesadelo recorrente em que as pessoas a reprovavam e brigavam com ela, o que a fazia despertar durante a noite. Após dois anos, Ana confessou que voltara a se sentir mal. Estava incomodada com o aumento do peso e com a falta de controle com a alimentação. Contou que não conseguia identificar em quais momentos estava realmente com fome, temendo ser acusada de gulosa quando comia. Por isso, precisava do auxílio da mãe para organizar sua dieta. O psiquiatra insistiu que o problema não parecia ser o peso e a comida. Relembrou os pesadelos em que as pessoas brigavam com ela e sugeriu que, talvez, a questão fosse a necessidade de agradar as pessoas (a mãe). Ana concordou e, nos atendimentos seguintes, se mostrou menos angustiada. Em nova discussão do caso, descobriu-se que essa intervenção não foi narrada para a mãe como de praxe. Dessa forma, evidenciou-se que a introdução de um novo sentido para Ana sobre o que lhe ocorria permitiu a criação de um intervalo entre ela e a mãe. Essa manobra parece tê-la distanciado, momentaneamente, do sentido mortífero associado à identificação maciça com o desejo materno.
Há algum tempo, Ana abandonou a ginástica olímpica. A jovem ganhou peso e está obesa. No entanto, parece que não se dá conta disso. Diferente da mãe, que permanece preocupada com o corpo da filha, Ana diz que se sente muito bem. Ela continua os estudos e pretende fazer vestibular para engenharia. Está mais alegre e interage melhor com os colegas. Na escola, retomou a postura de liderança dos trabalhos e atividades. Apesar do ótimo desempenho, sua infantilidade é notável, sobretudo no que diz respeito à sexualidade. Ela recrimina os colegas que usam bebidas alcoólicas e prefere não participar das festas com jovens de sua idade. Atualmente, Ana tem 16 anos e os seus atendimentos prosseguem regularmente. Ela ainda não encontrou uma solução para lidar com a fragilidade de sua estrutura psíquica, o que provoca a impressão de que ela se equilibra em uma corda bamba, dada a precariedade das identificações imaginárias que a sustentam.
A construção do caso
A história relatada pela mãe de Ana, assim como seus sintomas, permitem sustentar a hipótese de uma foraclusão do Nome-do-Pai.3 A mãe nunca se voltou para algo além da filha, apresentando-se apenas como mãe, uma mãe "toda", sem faltas. Não houve a entrada de um terceiro que rompesse a completude imaginária entre as duas, deixando Ana desalojada do universo simbólico. Na ausência de recursos simbólicos para construir um corpo, restou à jovem o recurso imaginário. Assim, Ana permaneceu enraizada em uma relação especular com a mãe, fadada às significações particulares induzidas por seu desejo caprichoso.
No texto "De uma questão preliminar de todo tratamento possível da psicose" (1957-1958/1998a), Lacan fala da identificação "pela qual o sujeito assumiu o desejo da mãe", localizando-a como uma forma de compensação imaginária (p. 572). A ideia de compensação imaginária foi abordada por Lacan, em O seminário. Livro 3. As psicoses (1955-1956/2002), a partir do estudo de Hélène Deutsch sobre o mecanismo como se presente em pacientes esquizofrênicos. Essa psicanalista propõe que esses sujeitos, antes de apresentarem os fenômenos elementares como delírios e alucinações, passam por um período em que se adaptam perfeitamente à realidade através de uma imitação exterior (Maleval, 2009, p. 268-269).
No caso, essa identificação pode ser evidenciada nos relatos de que Ana foi uma criança perfeita: aprendeu a ler precocemente e sempre foi uma aluna brilhante, inclusive na ginástica olímpica. De alguma forma, isso reflete a captura da jovem pelas expectativas da mãe, que era pedagoga e sempre se interessou por ginástica olímpica. Neste sentido, ser uma ginasta permite que Ana construa, ainda que de uma forma frágil, um corpo. Um corpo em uma dimensão puramente imaginária que funcionava como uma extensão do corpo materno. Assim, podemos localizar a ginástica olímpica e a própria anorexia como uma forma de construção corporal a partir da amarração entre o imaginário e o real. Vale destacar a singularidade dessa anorexia que, em vez de funcionar como uma solução para proteção diante de um Outro materno devorador, acaba deixando a paciente ainda mais colada à mãe. A vida de Ana caminhava sem grandes problemas enquanto sua realidade estava enquadrada conforme o discurso materno. No momento em que ela atinge o "corpo de ginasta" idealizado, encarnando o espectro máximo do desejo narcísico da mãe, o quadro psicótico se desestabiliza. A nomeação "corpo de ginasta" dada pelo júri convoca a jovem ao campo do Outro, assumindo um estatuto enigmático, o que a deixa em um vazio de significação. Na falta do recurso simbólico do Nome-do-Pai para responder a esse enigma, abre-se um buraco no imaginário e um gozo desregulado e sem sentido retorna no real do corpo.
O modelo lacaniano para o entendimento das psicoses envolve a foraclusão do significante Nome-do-Pai (P0), que implica a não inscrição de uma significação fálica (φ0). Os fenômenos associados ao P0 são os transtornos das palavras, da enunciação, do pensamento e as alucinações verbais, enquanto aqueles associados ao φ0 são as disfunções corporais, as ideias delirantes ligadas à sexualidade e ao corpo, assim como algumas passagens ao ato como as automutilações (Miller, 2003). No caso Ana, o desencadeamento obedece à temporalidade lógica proposta por Lacan para o entendimento do desencadeamento do quadro psicótico de Schreber: chamado ao significante Nome-do-Pai (corpo de ginasta)→ formação de P0 (perplexidade)→ formação de φ0 (desabamento do corpo imaginário). Dessa forma, podemos localizar a presença de ambos os grupos fenomenológicos, embora aqueles relacionados ao φ0 ganhem uma maior visibilidade no caso.
Ao que tudo indica, o fato da mãe não ter podido olhar para a filha emagrecida na ocasião da competição intensificou a desestabilização do quadro. A ausência desse olhar fez cair a referência através da qual Ana se sustentava, revelando um buraco no Outro que já não respondia mais. Vale lembrar que, na época do desencadeamento, Ana estava próxima à puberdade, fase delicada em que algo irrompe como um excesso que já não pode ser tratado pela imagem. A impossibilidade de Ana de colocar-se como ser sexuado pode ser constatada através de sua infantilidade e do rechaço de tudo o que se relaciona com a sexualidade.
Apesar da ausência de fenômenos como alucinações auditivas ou ideação delirante sistematizada, na medida em que o caso foi sendo construído, esclareceu-se que todo o movimento do sujeito girava em torno de uma tentativa de construção corporal após a catástrofe imaginária que marcou o desencadeamento. Nesse caso, ocorreu um desprendimento do registro imaginário, fazendo com que o corpo se desarmasse. Esse entendimento conduziu à hipótese de uma estrutura psicótica esquizofrênica. A presença de um Outro invasivo e persecutório que pôde ser observado, por exemplo, nos pesadelos em que as pessoas a olhavam e a acusavam de gulosa, permitiu um avanço da hipótese diagnóstica em direção à esquizofrenia paranoide.4
Para Ana, o corpo apresentava um estatuto puramente imaginário, sem intermediação simbólica. Afinal, na ausência do Nome-do-Pai, a nomeação "corpo de ginasta" não responde a uma significação fálica. Dessa forma, ela pode se localizar em apenas um dos polos: o de uma imagem vazia, caracterizado pela onipotência narcísica que marca o momento em que ela atinge o "corpo de ginasta", ou o do objeto degradado, sem qualquer valor fálico. Nesse caso, como não há uma intermediação do ideal do eu, o que aparece é uma disjunção no eu ideal: de um lado temos uma imagem vazia, sem carne, sem volume, ou seja, i com o parêntese vazio - i( ) - e de outro, o objeto rebotalho a. Na medida em que ocorre o tratamento, algo disso vai sendo restituído, o que pode ser percebido quando Ana começa a ter queixas somáticas, apresentando uma vertente de corpo mais libidinizado.
A localização de Ana no lugar de objeto degradado pode ser evidenciada no momento em que ela é invadida por pensamentos de que ela não valia nada e estragara tudo, o que pode ser atestado pela presença de fenômenos melancólicos no caso. Quanto a isso, Nieves Soria ressalta que, frequentemente, podemos localizar uma vertente melancólica nas diversas estruturas psicóticas, tendo em vista que, em algum momento, todo psicótico se localiza no lugar de resto devido à ausência de uma significação fálica (Dafunchio, 2008, p. 233).
Ana já não sabia mais o que queria e tenta buscar nessa mãe toda uma resposta. A jovem passa a se preocupar em contar as calorias que entravam e saíam a partir da referência do corpo materno. Organizava dietas e cronogramas que incluíam a mãe, na tentativa de manter uma homeostase que não poderia ser rompida pelo apelo do Outro, cuja presença era sentida como invasiva e perturbadora. Tudo o que se mexia do lado do Outro, tudo o que fazia multiplicar suas demandas, tudo o que tornava a situação instável ou imprevisível, fazia emergir as crises na jovem. Nesse contexto, a organização de cronogramas, a exigência da voz e do olhar materno e o ato de se fazer como uma imagem especular da mãe revelam uma tentativa de criar uma medida para o gozo sem sentido através de uma amarração entre os registros imaginário, real e simbólico.
O caso de Ana mobilizou toda a equipe do NIAB dada a gravidade, o colorido fenomenológico e os impasses na condução do tratamento. A ideia que prevalecia na equipe em relação à condução do caso era da importância de se encontrar uma estratégia de separação do par mãe e filha. A conduta do analista, ao receber mãe e filha juntas, foi questionada, gerando um ponto de discordância e tensionamento entre os profissionais. No entanto, diante da singularidade do caso, o analista manteve sua orientação. A construção do caso evidenciou, a posteriori, que o atendimento em conjunto foi uma tática adotada no intuito de manter o único ponto de apoio operante para Ana, o que possibilitou a transferência com o analista que sustentou a inclusão de outro profissional em seu tratamento.
Em uma das supervisões com a psicanalista Nieves Soria, trabalhou-se, a partir da clínica nodal, na tentativa de localizar mais precisamente os elementos do caso e avançar na lógica singular de tratamento de gozo adotado pelo sujeito. Como esclarece Nieves,5 a ausência de um quarto elemento (Nome-do-Pai) na psicose não permite que os registros imaginário, real e simbólico sejam amarrados borromeanamente, conforme ocorre na neurose. Assim, um dos elementos pode se soltar sem que os outros se soltem. No caso da esquizofrenia, o registro que se solta é o imaginário, o que explica a catástrofe imaginária e a perda da realidade no momento do desenlaçamento.6 A interpenetração do real e do simbólico seria responsável pelos fenômenos elementares como, por exemplo, as alucinações auditivas (Figura 1).
O nó que rateia na esquizofrenia: o imaginário se solta, deixando o real e o simbólico interpenetrados
No caso de Ana, antes do desenlaçamento, o registro imaginário não ficava totalmente solto, dada sua amarração com o real possibilitada pela ginástica olímpica e, em seguida, pela anorexia (Figura 2). Nesse contexto, observamos o estatuto singular que a ginástica olímpica assume para esse sujeito, o que difere da observação genérica da literatura médica de que essa carreira representa um fator de risco para o desenvolvimento de transtornos alimentares.
No momento do desenlaçamento, o imaginário se solta, ainda que parcialmente, o que deixa o real e o simbólico interpenetrados. Essa interpenetração explicaria a perplexidade, índice de certa desorganização do pensamento relatado como uma "confusão" mental, assim como a paralisação da jovem frente à invasão do real sem mediação simbólica ou imaginária. Na tentativa de refazer a amarração de sua estrutura psíquica, Ana lança mão da contagem de calorias, da voz e do olhar materno e da imitação especular, o que pôde impedir, pelo menos em certo momento, uma soltura completa do imaginário (Figura 3).
O acolhimento do psiquiatra, a partir de uma posição esvaziada de saber, permitiu que Ana retomasse a fala e fosse, finalmente, escutada em vez de simplesmente escutar a mãe. Assim, foi sendo construída uma relação transferencial em que a jovem se localizava no lugar de quem sabe, o que permitiu uma reconstrução egoica a partir da via do saber em uma espécie de paranoização. 7 Ao se localizar no lugar de quem sabe, Ana pode, pelo menos parcialmente, localizar algo do gozo no campo do Outro, o que a deixa mais apaziguada na medida em que esse gozo não retorna mais tão intensamente sobre o seu próprio corpo. É importante destacar que se trata de um conhecimento com um estatuto imaginário, que não toca o real do sexo.
Chama a atenção o momento em que Ana passa a se interessar, mais precisamente, pela profissão do pai. Essa identificação com a profissão paterna pode ser entendida como um recurso ao pai imaginário, o que, de alguma forma, difere da identificação com o desejo materno. Apesar de ainda ser um recurso imaginário, a engenharia pode funcionar como uma nomeação que se aproxima mais do campo simbólico, permitindo que Ana prescinda um pouco dos fenômenos de corpo. A logomarca criada por ela parece ser uma alternativa mais interessante, por poder englobar não só o simbólico e o imaginário, mas também tocar o real. No entanto, embora essa marca pudesse funcionar como um reenlaçamento bem-sucedido dos registros, como observamos em outros casos,8 há algo aí da insondável decisão do ser que impede que o sujeito se aproprie de uma forma mais consistente desse recurso.
Na construção do caso, também foi constatado o efeito da intervenção do psiquiatra quando ele associa incômodo de Ana com a necessidade de agradar a mãe, rejeitando a associação do incômodo com a forma do corpo ou com a comida. Essa intervenção pela via do sentido permite-lhe localizar um outro sentido que a distancia, pelo menos momentaneamente, do sentido mortífero do desejo materno. Um ponto de investigação que vem sendo atualmente explorado é a função da obesidade para esse sujeito. Existe a possibilidade de que esse ganho de peso funcione como uma barreira ao Outro materno invasivo.
Retomando a localização topológica dos elementos do caso, não podemos dizer que Ana criou alguma suplência consistente para manter o registro imaginário amarrado com o real e simbólico. Apesar disso, algumas tentativas da jovem merecem ser localizadas. Na psicose, o soltura do nó pode ser corrigida exatamente no local onde ela acontece ou, ainda, em outros pontos. Nesse contexto, poderíamos localizar a obesidade como uma possibilidade de amarração entre o real e o imaginário. O posicionamento de Ana no lugar de quem detém o saber, assim como as intervenções pela via do sentido, estariam localizados entre o imaginário e o simbólico. Dessa forma, existiram aí possibilidades de manter uma amarração que, ainda que precariamente, permitiria certa estabilidade do quadro, como a verificada atualmente (Figura 4).
Conclusão
Apesar da orientação do NIAB ser norteada por uma mesma ética e por uma mesma política, ao buscar estratégias de tratamento a partir da singularidade de cada caso, o serviço se desdobra em vários. Ou seja, para cada caso, existe um serviço. Dessa forma, a tentativa de formalização do trabalho desenvolvido pelo NIAB só é possível quando tomamos a dimensão do caso a caso. O relato apresentado evidencia essa perspectiva e reflete o caráter dinâmico e contínuo da metodologia de trabalho.
Referências bibliográficas
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- Miller, J.-A. (2003). La psicosis ordinaria: la convención de Antibes. Buenos Aires: Instituto Clínico de Buneos Aires/Paidós.
- Quinet, A. (2006). Teoria e clínica da psicose (3a ed.). Rio de Janeiro: Forense Universitária.
- Vilanova, A. & Figueiredo, A. C. (2012, set.). 'La Comunitá La Vela': a psychoanalytically oriented approach to eating disorders. Rev. latinoam. psicopatol. fundam., São Paulo, 15(3), suppl.1, 704-717.
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Editor do artigo/Editor: Manoel Tosta Berlinck
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Financiamento/Funding: Os autore declaram não ter sido financiados ou apoiados/ The authors have no support or funding to report.
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O que significa, basicamente, em primeiro lugar, não fazer mal.
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IMC ou índice de massa corporal é uma medida para se determinar se alguém está acima ou abaixo dos parâmetros ideais de peso para sua estatura. Neste caso, o valor indica uma desnutrição moderada.
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3
O termo foraclusão é utilizado no campo jurídico como processo prescrito, ou seja, aquele que já não cabe mais recurso, uma vez que se perdeu o prazo. Lacan utiliza esse termo para designar a rejeição do significante Nome-do-Pai, mecanismo fundamental na gênese da psicose, introduzindo-nos na dimensão da lei e de sua proscrição. Então, a foraclusão do Nome-do-Pai presente na psicose indica que o sujeito está fora da lei simbólica, proscrita pela carência do significante, que nessa estrutura não estará presente para permitir a formulação da metáfora edípica. Vale destacar que, embora na construção do caso, aventemos a possibilidade da não transmissão desse significante através da fala materna, há algo nesse mecanismo que diz respeito à escolha do sujeito. Foi o que Lacan, ao desenvolver a teoria da casualidade da psicose, ressaltou ao dizer que sempre há algo de "insondável" nessa "decisão do ser" (Lacan, 1998b, p. 179).
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Aqui estamos trabalhando com o entendimento da esquizofrenia paranoide a partir da psicanálise lacaniana, o que é diferente daquele da psiquiatria que exige a presença de fenômenos como alucinações, delírios, discurso desorganizado, embotamento afetivo e abulia para o diagnóstico.
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5
Para um maior aprofundamento sobre a clínica nodal das psicoses, conferir o livro Confines de las psicosis (Dafunchio, 2008).
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Como neste momento do texto estamos trabalhando com a clínica dos nós, optamos por escrever desenlaçamento ao invés de desencadeamento.
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7
Para esclarecimento do processo de paranoização na evolução da esquizofrenia conferir Teoria e clínica da psicose (Quinet, 2006).
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Lacan, em O seminário. Livro 23. O sinthoma (1975-1976/2007), destaca que a escrita e a obra de Joyce exercem uma função de compensação da carência paterna, recompondo o seu ego. Para Joyce, o ego não é um ego narcísico/corporal uma vez que é sustentado pela escrita e não pelo corpo. Assim, sua escrita tem uma função reparadora, tecendo o imaginário e instaurando uma segunda amarração entre o real e o simbólico, o que impede que o imaginário se esvaie.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jul-Sep 2014
Histórico
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Recebido
05 Set 2013 -
Aceito
17 Nov 2013