Qual o futuro das revistas científicas?
Quando iniciei a carreira de Editor de revistas científicas, nos princípios dos anos 1960, o sucesso da publicação era medido pela tiragem impressa. Supunha-se que quanto maior a tiragem, maior o número de leitores. As assinaturas e a distribuição física dos periódicos era, então, uma grande preocupação. Periódicos com artigos inovadores, de autores famosos e bem distribuídos, principalmente em bibliotecas públicas, eram considerados bem difundidos e lidos por muitos. Porém, nem sempre a distribuição era bem-sucedida e, apesar de autores famosos, exemplares encalhados eram destruídos.
Hoje, a biblioteca pública, com acervo físico, organizada em função da tiragem impressa e sua consequente distribuição, é obrigada a se ver com vários novos fenômenos: antes de mais nada, a Internet e, ao mesmo tempo, a escassez de espaço para o acervo e os leitores.
Além disso, mudanças tecnológicas no setor gráfico possibilitaram o crescimento vertiginoso de livros variados através de edições reduzidas. O crescente número de diferentes títulos vem acompanhado com mudanças de funções. As bibliotecas se transformaram em centros de busca e informação de textos existentes na www. A Internet aumentou substancialmente o acesso a textos não impressos e estabeleceu uma infinita rede de bibliotecas para o pobre leitor.
Com o tempo e as inovações, as revistas científicas também sofrem numerosas modificações. De forma geral, as impressas perdem relevância para as virtuais. Nessas circunstâncias, é possível e até provável que o formato revista deixe de existir. Já há revistas em portais (sites) que publicam artigos de acordo com o fluxo contínuo de chegada. Termina, assim, a periodicidade característica das revistas. Além disso, a nova forma de publicação por fluxo contínuo supera a natureza descontínua do formato revista.
Antigamente, o pesquisador frequentava a biblioteca buscando, nas estantes, as coleções de revistas que lhe interessavam. Quando eram encontradas, o pesquisador folheava número por número, buscando artigos e autores para sua pesquisa. Hoje, ele busca autor e tema, na www, sem se importar com o nome da revista. Se o artigo lhe interessar, aí ele buscará o contexto em que o artigo foi publicado. Mas, este é, cada vez mais frequentemente, um portal de pesquisa e conteúdo e não uma revista.
Há uma dinâmica lógica da difusão virtual que precisa ser compreendida pela equipe editorial, pelos autores e pelos próprios leitores. Nessa lógica, o formato revista deixa de ser dominante. As revistas cedem lugar para os portais de conteúdo. O que conta, agora, é o artigo postado, articulado a autor e tema, referências fortes para a busca. O leitor tende a buscar o autor, o título do artigo, o tema. A revista fica num segundo ou terceiro plano.
O fator de impacto, ou seja, a frequência relativa das citações de artigos, adquire crescente relevância. Artigos citados e constantes em bibliografias atraem atenção. O fator de impacto existiu desde sempre. O pesquisador sempre valorizou a bibliografia citada como fonte de informação para sua investigação. Deixou, entretanto, de ser uma referência impressionista e passou a ser medida.
Porém, o fator de impacto deixa de lado leitores anônimos, pois o que vale nessa medida é a leitura especializada, a gerar citações. Forma-se, dessa maneira, uma “sociedade de citações mútuas” a atribuir relevância e prestígio. Isso, também, sempre existiu. “Eu te cito; você me cita” sempre foi prática comum. E ainda é.
Qual o lugar do leitor anônimo, leitor simplesmente, aquele que, de alguma forma, se beneficia da leitura de um artigo, mas não faz parte desse sistema? Ele existe, é claro, e está cada vez mais presente e relevante na Internet. Por exemplo, o portal www.fundamentalpsychopathology.org, onde encontra-se, em destaque, a Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, recebeu pouco mais de 1 milhão de consultas em 2015. O pequeno (mas crescente) fator de impacto dessa revista, valorizado pelo sistema de citações (SJR = 0,20), não é proporcional às consultas.
A expansão internacional do conhecimento científico, baseada em fator de impacto, passaria, então, contraditoriamente, pela drástica redução do número de artigos publicados e pelo estímulo à publicação com significativo fator de impacto. Em outras palavras, o fator de impacto geraria fator de impacto e consagraria o autor e o veículo de publicação.
A redução de veículos de publicação — revistas e portais — sem fator de impacto reduziria o número de revistas e o custo de seu financiamento e deixaria de alimentar a perversa política de produtividade apoiada no número de publicações. “Publicar ou perecer” aumentou a demanda indiscriminada por periódicos e até por sites e estimulou a produção de artigos “mais do mesmo”. Retirar da produção o número de publicações irrelevantes provocaria uma diminuição do custo de manutenção de veículos. Isso, por sua vez, colocaria em destaque a preferência por artigos relevantes, originais e bem escritos, afastando a atração pela escrita tipo “mais do mesmo”.
Entretanto, ignorando o número de leitores leigos, ou seja, os que leem por prazer ou por benefício próprio, a política do fator de impacto fortaleceria a já exclusiva elite baseada na citação. Em outras palavras, a política vigente de publicação serve, principalmente, para alimentar um restrito clube do conhecimento citado.
É óbvio que os veículos de publicação deveriam cuidar de seus leitores, tanto os especialistas quanto os leigos. Deveriam, por exemplo, ter muito precisas missões, principalmente relevantes e originais; deveriam ser poliglotas, ou seja, publicar artigos em diversas línguas, e deveriam ter um claro projeto de difusão. Deveriam estimular a publicação de textos bem escritos em todas as línguas, pois, atualmente, abundam, por exemplo, artigos escritos em pobre inglês mal redigido. Textos e veículos de publicação com missões pouco definidas, imprecisas e sem originalidade deveriam ser desestimulados, pois atraem artigos banais.
Por outro lado, a exigência de publicar artigos somente em inglês é retrógrada, pois ignora tanto o autor quanto o leitor leigo nessa língua. Assim, por exemplo, a evidente expansão do público leitor em português, no mundo, seria ignorada. Supor que o inglês é a única língua confiável do ponto de vista científico talvez represente uma visão correta para o exclusivo “clube da citação”, mas, ignorando a complexidade linguística do mundo e os avanços tecnológicos da tradução, ela é eminentemente restrita e tacanha. Além disso, não estimula a escrita e a leitura em outras línguas. A Internet, por sua vez, facilita a publicação de artigos em diversas línguas. Assim, por exemplo, este Editorial é publicado concomitantemente em português, inglês, francês e espanhol, no portal da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental.
Artigos, inclusive os científicos, almejam o mais amplo e diverso público leitor. É bom não se esquecer, entretanto, que o número de citações é um mero indicador da difusão. Portais contendo revistas e artigos precisam enfatizar sua natureza internacional contendo textos em diversas línguas. Veículos de livre acesso deveriam ser estimulados, pois os de acesso pago ou restrito não só limitam drasticamente as consultas como estão voltados para o lucro e não para a difusão do conhecimento. Os veículos de publicação precisam ser permanentemente divulgados na rede social; terem “Newsletters” articuladas a listas de endereços e serem indexados no maior número de diversas bases de dados internacionais, que passariam a indexar portais e não só revistas. Os veículos deveriam publicar artigos de autores escritos em diversas línguas e seus artigos deveriam ser avaliados por revisores internacionais.
Os veículos deveriam, ademais, se ligarem a redes setoriais, como a World Association of Medical Editors (WAME), onde são frequentemente apresentadas ideias úteis para o aperfeiçoamento da difusão científica.
Os veículos precisariam revelar a existência de uma base financeira a partir de fontes idôneas. Periódicos e portais de medicina e de saúde, por exemplo, financiados por laboratórios farmacêuticos, indicam um comprometimento incompatível com o conhecimento desinteressado. Entretanto, essa não é uma regra. Há laboratórios, como o Synthelabo francês, que contribuem, de maneira efetiva, para o avanço do conhecimento científico. Além disso, os veículos de difusão precisam buscar recursos para garantir sua existência, independentemente de financiamento público. Este precisa ser considerado um prêmio e não um dever de Estado.
Os recursos do Estado não podem ficar permanente e constantemente comprometidos para manter projetos que atendem uma parte da elite. Deveriam ser empregados visando à melhoria das condições básicas de vida da maior parte da população. Numa sociedade, como a brasileira, onde há evidente escassez de recursos para a educação, a saúde, a segurança pública, o transporte, as condições sanitárias (como a água e o lixo) e os cuidados com o ambiente, os recursos empregados para o desenvolvimento da difusão da ciência e da tecnologia deveriam ser empregados cuidadosamente e com parcimônia. Projetos de veículos de difusão de pesquisa científica e tecnológica voltados para a população em geral deveriam ser buscados, reconhecidos e premiados. Nesse sentido, a redução da publicação de revistas e a migração dos artigos para portais de pesquisa com projetos bem formulados tornariam menos dispendiosa a difusão do saber.
Os veículos deveriam conter, entre outros projetos, a publicação de artigos de autores iniciantes; estimular a publicação de artigos em coautoria entre pesquisadores de Iniciação Científica, mestrandos, doutorandos, doutores e pós--doutores. Em outras palavras, eles deveriam cuidar não só de autores famosos, mas de pesquisadores iniciantes e da produção em grupo. Deveriam, também, cuidar do aperfeiçoamento e da renovação da equipe editorial dos veículos.
Finalmente, a administração dessa nova configuração não poderia, principalmente, ser feita de forma autoritária. As instituições públicas e privadas responsáveis por essa nova dinâmica deveriam exercer suas funções e papéis com grande sensibilidade e delicadeza de modo a perceber as fraquezas, os pontos de resistência e as dificuldades que impedem o crescimento da leitura de artigos, estimulando mudanças e aperfeiçoamento e não destruindo os fracos. Mas, principalmente, essa configuração depende, em grande parte, da flexibilidade criativa. Não deveria se transformar, portanto, num conjunto de regras rígidas. Cada veículo de publicação deveria ser tratado como singularidade precisando de atenção, cuidado e estímulo.
Afinal, a política de internacionalização do conhecimento científico é um ideal a ser buscado de forma desigual e combinada e não imposta sem respeito pelos responsáveis por sua difusão.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Jan-Apr 2016
Histórico
-
Recebido
15 Dez 2015 -
Aceito
16 Jan 2016