Open-access Saúde, sujeito e invenção: o trabalho clínico em oncologia pediátrica*1 *1 Este artigo é um desdobramento do trabalho com mesmo título apresentado no VI Congresso de Psicopatologia Fundamental e XII Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental – Pathos & Saúde (2014).

Health, subject and invention: clinical practice in pediatric oncology

Santé, sujet et invention: le travail clinique en oncologie pediatrique

Salud, sujeto e invención: el trabajo clínico en oncología pediátrica

Gesundheit, Subjekt und Intervention: die klinische Arbeit der pädiatrischen Onkologie

健康,主体,发明:儿科癌症的临床学

Resumos

Este artigo, tendo como referência a Psicanálise e a abordagem de Canguilhem quanto à sua concepção de saúde, apresenta um fragmento clínico em oncologia pediátrica, e propõe uma discussão sobre a concepção de saúde no contexto de intervenções técnicas complexas. Este trabalho volta-se para o resgate da dimensão de sujeito revelando que a saúde, nesses pacientes, diz respeito sobretudo à possibilidade presente em cada um de criar formas possíveis de viver.

Saúde; sujeito; psicanálise; oncologia pediátrica


This paper, having Psychoanalysis and Canguilhem’s approach to health as references, presents a clinical fragment of pediatric oncology and proposes a discussion concerning the concept of health in a context of complex technical interventions. This practice is focused on redeeming the subjective dimension – revealing that health, in these patients, concerns mainly the possibility each one of them has of creating possible ways of living.

Health; subject; psychoanalysis; pediatric oncology


Cet article, ayant comme référence la psychanalyse et l'approche de Canguilhem quant à sa conception de la santé, présente un fragment clinique en oncologie pédiatrique et propose une discussion sur la conception de la santé dans le contexte d'interventions techniques complexes. Ce travail est axé sur le rétablissement de la dimension de sujet révélant que, la santé, chez ces patients, concerne surtout la possibilité présente en chacun de créer des façons possibles de vivre.

Santé; sujet; psychanalyse; oncologie pédiatrique


Este artículo, que tiene como referencia de estudio al Psicoanálisis y a la influencia teórica de Canguilhem en lo relacionado con su concepción de salud, presenta un fragmento clínico realizado en oncología pediátrica y propone una discusión sobre la concepción de salud en el contexto de las intervenciones técnicas complejas. La experiencia relatada en este artículo hace referencia a un trabajo clínico llevado a cabo en oncología pediátrica. Este trabajo se propone a rescatar la dimensión de sujeto, revelando que la salud en estos pacientes se refiere sobre todo a la posibilidad, presente en cada uno de ellos, de generar formas posibles de vivir.

Salud; sujeto; psicoanálisis; oncología pediátrica


Dieser Artikel gründet sich auf die Psychoanalyse und Canguilhems Gesundheitsbegriff. Ein klinisches Fragment der pädiatrischen Onkologie wird hier benutzt, um den Begriff der Gesundheit im Kontext komplexer technischer Interventionen zu diskutieren. Wir versuchen damit, die Dimension des Subjekts ins Licht zu rücken und zeigen auf, dass die Gesundheit der Patienten von ihrer individuellen Kapazität abhängt, mögliche Lebensweisen zu entwickeln.


本论文参照精神分析学的有关著作和法国哲学家乔治•康桂廉(Georges Canguilhem)关于健康的概念,介绍儿科癌症学临床的部分问题,在复杂的临床干预技术之外,探讨健康的概念。本论文认为,从哲学层面讲,对儿科癌症病人来说,所谓健康,就是个人能够按照自己想要的生活方式来生活,反之,就是不健康。

健康; 主体; 心理分析; 儿科癌症学


Introdução

O presente artigo levanta questões ligadas à clínica no âmbito de uma instituição de saúde num cenário onde os enormes avanços das tecnociências adquiriram grande relevância. Propõe-se uma discussão sobre o trabalho clínico desenvolvido com crianças e adolescentes em uma instituição de tratamento para o câncer. O caso em questão se refere a uma doença crônica degenerativa, o câncer infantojuvenil, a partir do qual realizamos uma leitura que nos leva a interrogar o que se compreende, neste contexto, como saúde e como doença, compreensão que determinará a perspectiva do trabalho clínico com esses pacientes. Partimos da concepção de sujeito na Psicanálise e, ao mesmo tempo, tomamos a visão de Canguilhem (1945) sobre o normal e o patológico para, através de fragmentos clínicos, ilustrarmos este debate.

O discurso corrente sobre saúde derivado do paradigma biomédico sustenta-se na objetividade científica, onde o espaço para a emergência do sujeito é restrito. Tal discurso, como assinala Clavreul (1983), toma a doença como objeto de interesse e o paciente como objeto de intervenção, transfomando a relação “médico-paciente” em uma relação “instituição médica--doença” (p. 49). Na atualidade nos deparamos com algumas transformações nas práticas em saúde, onde ganha expressão um discurso que ao apostar principalmente na eficácia da técnica tende a limitar o espaço da clínica. Gori & Del Volgo (2003) observam que os avanços tecnológicos resultaram em uma mudança de espaços, transportando a medicina do hospital para o laboratório de pesquisa. Nesse contexto, a saúde parece situar-se no intervalo das medicações e prescrições médicas medida pela ausência ou remissão da doença, almejando um retorno a uma “normalidade” perdida.

Em oncologia, particularmente, o paciente é entendido como saudável quando considerado “sem evidência de doença”, isto é, quando se constata a ausência de tumores malignos através dos exames de imagem (tomografias, ressonâncias magnéticas). Mesmo nesses casos os pacientes vivenciam um processo que traz sempre marcas duradouras decorrentes do tratamento, como amputações, cirurgia de retirada dos olhos acometidos pela doença, sequelas neurológicas, efeitos tardios dos quimioterápicos e radioterapia (lesões cardícas, renais, hepáticas, auditivas, entre outros), além dos efeitos psíquicos para o paciente e sua família. Restam ainda aqueles que não conseguirão alcançar o estatuto de “sem evidência de doença”. Como compreender o que deve sustentar-se como “saúde” neste contexto?

Clavreul (1983) assinala a oposição entre o discurso médico e o discurso da Psicanálise em relação ao lugar que se oferece a dimensão subjetiva. Segundo o autor, o discurso da ciência não reserva lugar senão para aquilo que é objetivo e mensurável, já a Psicanálise busca justamente resgatar a dimensão do sujeito, o que pode operar uma subversão ao introduzir uma questão para o discurso médico. Subverter significa sustentar uma posição diferente, que acolhe a demanda do discurso médico sem, no entanto, ter que a ele responder, apontando assim um “furo no saber como possibilitador do aparecimento do sujeito do inconsciente” (Lambert, 2003). Dessa maneira, na contramão do discurso hegemônico sobre a saúde, a Psicanálise procura resgatar aquilo que tende a ficar de fora da relação “médico-paciente” e/ou “cura-doença”, a saber: o sujeito desejante, sua história e seu lugar na cena enunciativa. Aposta-se então que ao considerar a dimensão desejante no contexto das doenças busca-se o sujeito no contexto do doente. É por esse caminho que pretendemos interrogar o que é saúde.

Os fragmentos clínicos derivados da prática cotidiana com crianças e adolescentes mostram que esses pacientes têm suas vidas abaladas pelo surgimento inesperado de uma doença potencialmente letal, o que provoca efeitos traumáticos importantes. Trata-se, como assinala Costa (2014), do encontro com algo que sequer pode ser enunciado, deixando esses sujeitos sem possibilidades de simbolizar, isto é, de dar algum sentido à experiência traumática. Todavia, temos observado que o esforço psíquico desses pacientes, mesmo aqueles que têm a vida perto do fim, se mostra através da capacidade de construção, por diferentes maneiras, de algum sentido em torno desse “buraco” deixado pelo aparecimento do câncer e todas as perdas decorrentes deste. A capacidade de invenção dessas crianças e adolescentes aparece na medida em que nos colocando em posição de escutá-los reconhecemos seus recursos singulares de enfrentamento.

Com os questionamentos presentes neste artigo não pretendemos, evidentemente, ignorar ou questionar a episteme do saber médico-científico nem os recursos técnicos de que lança mão para o cuidado do paciente e para sua possível cura. No entanto, pensamos que, embora a radicalidade da tecnologia e dos protocolos seja indispensável, a complexidade dos eventos físicos e psíquicos que envolvem o adoecer humano demanda uma compreensão dos processos simbólicos aí envolvidos.

Apostamos em um trabalho em que crianças e adolescentes sejam convidados a inventar saídas singulares diante das dificuldades impostas pela doença, pois ainda que o funcionamento orgânico não responda como o esperado nos protocolos terapêuticos, esses pacientes manisfestam que são capazes de criar novas formas de estar na vida. Impõe-se, assim, alargar o conceito de saúde, entendendo que essas invenções têm papel fundamental no tratamento. De certo modo, apontando para além da técnica e do funcionamento orgânico, encontramos elementos preciosos para pensar o que pode ser saúde neste contexto.

A clínica contemporânea no contexto das sociedades tecnocientíficas

Partimos de questões suscitadas pela prática clínica em uma instituição de tratamento para o câncer infantojuvenil. Cabe-nos discutir o que pode ser a clínica em um contexto como este, com suas problemáticas específicas.

A clínica nos leva a um olhar para o outro (Szapiro, 2013). Em Hipócrates, lembra a autora, as tekhné cliniké, as habilidades práticas, “correspondiam à atividade — técnica — de inclinar-se em direção àquele que sofre” (p. 8). Encontramos então nos primórdios da prática médica a compreensão da técnica, ou tékhnai, designando uma ação, “um saber adquirido pela aprendizagem”. A técnica ali não se referia a uma aplicação da ciência tal como a entendemos hoje nas sociedades tecnocientíficas onde os homens nela depositam toda a sorte de expectativas, até mesmo a “superação de seus limites, inclusive da sua própria condição de finitude” (p. 13).

A primazia que o conhecimento tecnocientífico adquiriu hoje vem produzindo um declínio da clínica. Castel (1987) chama atenção sobre o declínio de uma clínica no sentido das tekhné cliniké hipocrática em favor do objetivismo crescente onde, ele diz, “os indivíduos concretos são decompostos segundo tal ou qual quadro objetivo” (p. 63). A primazia do objetivismo na prática clínica médica dos nossos dias pode ser igualmente identificada na proliferação de práticas psicológicas objetivistas que apresentam uma concepção naturalista do humano e que compreendem a saúde como alcance de performance e eficácia.

É aí, a nosso ver, que reside a diferença, que se faz como resistência da clínica psicanalítica quanto à direção do trabalho. Através da Psicanálise, buscamos resgatar a dimensão de sujeito que ali está, em meio aos procedimentos e protocolos de tratamento. A esse respeito, Batistela (2007) destaca a crítica de Canguilhem sobre o reducionismo da concepção biomédica:

é compreensível que a medicina necessite de uma patologia objetiva, mas uma pesquisa que faz desaparecer seu objeto não é objetiva. (...) A clínica coloca o médico em contato com indivíduos completos e concretos, e não com seus órgãos ou funções. (Canguilhem, 2006, apud Batistela, 2007, pp. 53-55)

Assistimos hoje a uma espécie de “contra-clínica” que, diante dos recursos cada vez mais eficazes e disponíveis de supressão da dor, recusa o sofrimento como parte da condição humana (Szapiro, 2013). Nesse contexto o paciente é objetivado na negatividade da doença, isto é, ele passa a só existir como doente. O que se sabe dele é o que se sabe de seu estado mórbido. Assim, sobressai a pergunta: em meio a tanto sofrimento, que lugar o sofrimento ocupa?

O esforço de escutar algo para além da doença e da cena ensurdecedora provocada pelos quadros mórbidos, sobre os quais a técnica é aplicada, é o espaço que uma clínica orientada pela Psicanálise procura “encontrar”, embora em meio a um contexto onde prepondera uma clínica tecnicista que desconsidera a dimensão simbólica do humano.

Nesse sentido, pensar o que podemos compreender como saúde requer considerar que a história singular de cada sujeito deve ocupar um lugar relevante no tratamento. Encontramo-nos, então, com o pensamento de Georges Canguilhem no seu debate acerca do conceito de saúde.

O que é saúde para Canguilhem?

O conceito sobre o que seria um funcionamento orgânico normal nos indivíduos foi discutido por Canguilhem (1978) em sua clássica obra O normal e o patológico. Examinando profundamente esse conceito, o autor nos oferece argumentos que nos auxiliam a pensar sobre a ideia de saúde, bem como o que esta ideia implica na clínica.

Canguilhem (1945) assinala que o funcionamento orgânico normal não existe como uma lei generalizada, mas que só pode ser mensurado individualmente, tomando como referência o indivíduo em relação a si próprio em situações diversas. Portanto, algo do singular, do particular de cada história se impõe. A saúde, segue o autor, não deve ser compreendida como um retorno ao funcionamento orgânico anterior, mas como a capacidade de tolerar variações das normas habituais, de modo que “o homem só é verdadeiramente são quando é capaz de muitas normas, quando é mais que normal” (p. 183). Saúde seria, portanto, “a capacidade de superar crises orgânicas para instaurar uma nova ordem fisiológica diferente da antiga” (p. 183), trata-se daquilo que Canguilhem chamou de “capacidade normativa”.

O funcionamento orgânico, ressalta Canguilhem, não retorna a uma norma adequada e sim cria uma norma diferente, no sentido de restabelecer o equilíbrio do organismo. Isso é ser normativo. É precisamente neste ponto que tomamos o conceito de saúde canguilheminiano como sendo a possibilidade de criação e invenção de “formas possíveis” (Canguilhem, 1945, p. 45) e singulares de estar na vida.

Nos termos de Canguilhem (1978), “estar em boa saúde é poder cair doente e se recuperar” (p. 160). Trata-se, portanto, de “um luxo biológico” (p. 160), que no contexto do tratamento oncológico e dos efeitos psíquicos traumáticos que este produz, trata-se também de um luxo psíquico. Pois o sujeito, mesmo diante de alterações drásticas em suas normas habituais, pode instituir novas formas de estar na vida, transformando os obstáculos em meios de ação, de forma a retomar, aos poucos, uma participação ativa em sua própria vida. A saúde aparece nesse contexto como uma possibilidade de criação do sujeito de novas ficções e novas normas para si, que “fazem com que a vida valha a pena” (Gori, 2003, p. 85) mesmo em um contexto de dor e sofrimento. Mas o exercício da capacidade criativa não emerge por meio de um trabalho ortopédico na clínica, como advertia Lacan (1957-1958/1999), e sim por meio de um trabalho que tenha como perspectiva o resgate do estatuto de sujeito.

Diante de quadros crônicos e potencialmente mortais, talvez precisemos procurar a saúde não através da perspectiva da cura e de um retorno ao ‘normal’, mas na saúde como capacidade de inventar, de criar novas possibilidades para si, mesmo diante de situações graves de perda de normas anteriores. Coelho e Almeida Filho (1999) assinalam que “uma terapêutica deve respeitar o novo modo de vida instaurado pela doença, não agindo intempestivamente no sentido do retorno ao normal” (p. 45).

Desse modo, encontramos no oferecimento de um espaço de palavra o lugar mais fecundo para as invenções de nossos pacientes. O que denominamos como espaço de palavra pode ser entendido como a oferta de uma escuta vazia de saber prévio, isto é, de uma escuta que não se antecipa ao sujeito, mas que o deixa falar. É na medida em que o sujeito fala — seja através da palavra, seja na brincadeira — que ele poderá tecer sua história singular nesse tratamento e sustentar seu desejo, que é o que o impele à vida. Barros (2013) assinala que “o que pode se contrapor à morte não é a vida, mas sim o desejo”. Isso é o que possibilita a criação de novas formas de estar na vida. O desejo é a matéria-prima dos recursos simbólicos que os pacientes inventam para fazer frente à radicalidade da doença.

Novas formas de vida – o que inventam crianças e adolescentes?

As alterações impostas na vida dos pacientes infantojuvenis e de seus familiares surgem quase sempre de maneira inesperada e abrupta, acarretando um efeito traumático. No adoecimento por câncer, algo escapa à simbolização do aparato psíquico e permanece como um excesso que é “inassimilável” (Lacan, 1964/2008, p. 60) para o sujeito, pois, por mais que se tente, não é possível encontrar palavras que deem conta de representá-lo por completo. Para Costa e Cohen (2012), a doença oncológica na infância e na juventude é um acontecimento que dificulta a simbolização que se caracteriza pelo “encontro com o real (tyché), já que o sujeito está sem palavras” (p. 60).

Nesse cenário, acreditamos que as invenções realizadas pelos pacientes ocorrem como uma tentativa e um esforço de construção de algum sentido diante do abalo de suas referências e de sua própria imagem. Trata-se, nos parece, de uma tentativa de bordejar esse excesso através da construção de saídas criativas que instituem novas formas de estar na vida. A todo esse processo chamamos também de saúde, nesse sentido sublinhando que mesmo em meio à doença e em alguns casos, mesmo com a vida perto do fim, os pacientes, uma vez investidos como sujeitos, podem criar maneiras de seguir vivendo. A psicanálise constrói sua escuta a partir dessa possibilidade, por isso procura oferecer um espaço de palavra, para que alguma construção de sentido da experiência desprazerosa aconteça. Almeida Barros (2000) considera que diante de uma experiência traumática o que a psicanálise pode oferecer é “uma escuta que possibilite à criança/sujeito simbolizar pela palavra, nomeando esta ruptura (...) e significando sua perda, de modo a integrá-la na sua história, no seu discurso” (p. 91).

No campo da saúde diante do que se acentua com o declínio da clínica em favor do predomínio da técnica, é urgente o trabalho de resgate do sujeito. Como Gori & Del Volgo (2003) assinala, embora as ciências médicas tenham progredido quanto ao estudo das doenças, suas práticas jamais devem se reduzir “a uma pura e simples aplicação desse saber tecnocientífico (...) elas devem levar em conta os sofrimentos humanos, irredutíveis às doenças” (p. 73).

A saúde, como possibilidade de criação de novas normas, se revela para além do saber tecnocientífico e sua intervenção no funcionamento orgânico. Quando o sujeito advém, a saúde pode se revelar de maneiras diversas, mesmo quando as normas da vida encontram-se em falência. Ao tomar a palavra e a brincadeira das crianças e dos adolescentes em tratamento, testemunhamos o trabalho do sujeito de apontar para fora da cena de horror e de inventar novos modos de continuar vivendo.

No contexto da prática clínica junto à oncologia pediátrica, vemos que a invenção de novas formas de estar na vida pode se manifestar através de brincadeiras, da fantasia e de um saber que os pacientes constroem acerca da doença. São modos de lidar com a angústia através do trabalho simbólico, através da palavra. A saúde, então, reside também nos menores detalhes das invenções dos pacientes.

O fragmento que apresentamos abaixo1 ilustra o trabalho clínico desenvolvido com crianças e adolescentes que, tomando-os como sujeitos, procura situar a saúde na perspectiva que necessariamente deve compreender o que é particular ao humano na singularidade do seu adoecer.

Do câncer às novas descobertas

No cenário de um tratamento que se estende no tempo e que acarreta perdas importantes na vida, entendemos com Canguilhem (1945) que o retorno a uma norma de vida anterior à doença nunca ocorre, ainda que se sobreviva. Os adolescentes em tratamento para osteossarcoma2 na instituição em questão nos fornecem alguns dados importantes para compreendermos a saúde como a invenção de novas formas de vida. O efeito desnorteador desse diagnóstico é vivenciado por todos os adolescentes que chegam aos nossos cuidados, em maior ou menor intensidade. Algo da experiência do trauma é vivido pelo sujeito e seus familiares. A situação traumática, como Freud (1926[1925]/1976) descreveu, é causada por uma quantidade de tensão que se impõe à economia psíquica do sujeito como um excesso rompendo com e que ele chamou de “escudo protetor” do aparelho psíquico. Diante de um acontecimento inesperado, Lacan diria, diante do real do acontecimento, que não tem mediação simbólica possível, como o surgimento de um câncer, o trauma se instala e a angústia passa a ser vivida pelo Eu.

Lavínia, 16 anos, viveu com muita dificuldade a indicação de desarticulação coxo-femural, uma cirurgia radical que faz a retirada de toda a extensão da perna. Durante meses a paciente e sua família resistiram à realização do procedimento, que é parte fundamental da tentativa de cura do osteossarcoma. Lavínia comparecia aos atendimentos e contava sua história, falava do medo do câncer desde a infância e da radicalidade do que é pensar em perder um pedaço de si. Como instituir novas formas de viver diante desse horror? Parecia difícil demais, quase impossível. Por vezes consentia com a cirurgia, no entanto, quando estava prestes a entrar no centro cirúrgico, tanto ela, quanto seus familiares demonstravam de forma contundente que não seria possível, suspendendo a cirurgia. A equipe médica perdia a paciência e se angustiava ao ver as possibilidades de cura diminuírem de maneira drástica. Perguntavam-se se valeria a pena continuar tratando Lavínia.

Passamos então a escutar de maneira mais frequente também essa família, que enfrentava um abalo narcísico importante, tal como sublinhou Freud (1914/2010) ao descrever o narcisismo primário. O narcisismo dos pais está sempre encarnado em seus filhos, de modo que são levados a atribuir a estes todas as perfeições. Assim, assinala Freud (1914/2010), “as coisas devem ser melhores para a criança do que foram para seus pais, ela não deve estar sujeita à doença, morte, renúncia à fruição da vontade...” (p. 37). O abalo narcísico se coloca na medida em que Lavínia não só não realizará os sonhos não vividos dos pais, como ela de fato se depara com o pior, pelo qual eles próprios nunca passaram. Eis que sua filha, que representava seu ideal e quem nada deveria sofrer, estava prestes a perder a perna. Os pais dessa paciente também precisavam inventar outras maneiras de estar com e de reconhecer Lavínia.

A paciente, ao longo de seus atendimentos, falava sobre sua vida, sobre seus encontros e desencontros amorosos, sobre questões familiares e, através de algumas piadas, podia conjugar a vida com a perda da perna. Lavínia ria ao pensar como seria comprar um par de sapatos e usar apenas um. Foi dessa maneira que a paciente começou a se aproximar dessa perda de outra forma, pois percebia que mais valia viver e seguir tentando lidar com tais questões do que desistir da cirurgia e, por conseguinte, da própria vida. Lavínia passou a falar de seu interesse em computação, vislumbrando cursos e trabalhos nesse sentido. Pensou como poderia dirigir sem a perna. E em meio a doença, passou a enxergar alguma brecha para inventar algo diferente.

Realizou a cirurgia semanas depois; apresentou algumas complicações no pós-operatório, mas pôde continuar falando, simbolizando e confidenciou que, diante do grande impacto causado pela doença até aquele momento, a realização da cirurgia havia sido a opção mais difícil, mas ao mesmo tempo a mais “libertadora”. Lavínia havia se deparado com uma realidade que lhe impunha um severo limite, ou uma “escolha forçada” como diria Lacan (1964/2008): a perna ou a vida. Diante de tal circunstância, o trabalho possível foi o de falar até que se tornasse possível a construção de saídas antes inviáveis. A paciente, já sem a perna, pôde retornar para falar sobre a sua maneira de estar na vida apesar da falta de uma parte de si. Sua preocupação passou a ser o tão esperado fim do tratamento quimioterápico para se dedicar aos estudos e a sua profissionalização. Lavínia queria, finalmente, poder viver fora do hospital.

As invenções dos pacientes, em última instância, parecem ser a maneira singular que apresentam para seguir adiante. São construções muitas delas precárias, transitórias, que serão retomadas e, possivelmente, reconstruídas em algum outro momento. A orientação desse trabalho não se dá no sentido de perseguir saídas bem-sucedidas e vitoriosas como uma determinação a priori. O principal esforço realizado nesta clínica é o de reservar um espaço de palavra para que o sujeito possa advir em meio ao real que atravessa sua experiência. Dito de outro modo, através das palavras de uma paciente de nove anos, “é como estar diante de um buraco que não dá para tampar, mas que para não cair dentro e acabar ficando por lá, dá para construir coisas em volta dele: árvores, plantas, uma casa...”. A aposta do trabalho é no que ainda é possível construir e desejar diante do limite radicalmente imposto pela doença.

Trata-se de oferecer um cuidado que busca não negar a dimensão de singularidade do sofrimento que precisa ser escutada. Somente assim compreendemos que algo do desejo possa se manter e sustentar a vida. É nessa brecha que vislumbramos a possibilidade de, tomando de outro modo o conceito de saúde, poder acompanhar o paciente no acontecimento da sua doença buscando ajudá-lo a restituir a si mesmo a sua humanidade.

Referências

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  • 1
    O fragmento clínico pertence à pesquisa “Da sobrevida à vida: considerações sobre crianças e adolescentes com câncer a partir da Psicanálise”, pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa do INCA (CEP/INCA).
  • 2
    Tumor sólido mais comum em adolescentes, que tem como tratamento a realização de quimioterapia pré-operatória, cirurgia conservadora ou radical e quimioterapia adjuvante.
  • Financiamento/Funding : As autoras declaram não terem sido financiadas ou apoiadas / The authors have no support or funding to report.

Editado por

  • Editores do artigo/Editors : Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck e Profa. Dra. Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    30 Nov 2014
  • Aceito
    19 Jan 2015
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