Acessibilidade / Reportar erro

O exame de Verificação de Cessação de Periculosidade: a importância da avaliação ampliada em um caso com conclusão contrária ao parecer da equipe assistente*1 *1Trabalho realizado no Instituto de Perícias Heitor Carrilho, Rio de Janeiro, RJ.

The cessation of dangerousness verification exam: the importance of extended evaluation in a case with conclusion contrary to the opinion of the health care team

L’examen de la vérification de la cessation de la dangerosité: l’importance de l’évaluation prolongée dans un boîtier avec une conclusion contrairement à l’opinion de l’équipe de soins de santé

El examen de verificación del cese de la peligrosidad: la importancia de la evaluación extendida en un caso con la conclusión contraria a la opinión del equipo de salud

Gutachten zur gegenwärtigen Gefährlichkeitsprognose: die Bedeutung einer erweiterten Untersuchung in einem Fall dessen Gutachten im Gegensatz zur Meinung der Betreuungsgruppe steht

鉴定精神病人社会危险性的终止:专家鉴定与卫生保健人员的意见相反的一个病例

Resumos

Trata-se de uma discussão a respeito de um caso em que um indivíduo sob medida de segurança, devido a tentativa de homicídio, foi submetido à avaliação de sua periculosidade por peritos psiquiatras. A conclusão foi de que sua periculosidade não havia cessado, divergindo da opinião de sua equipe assistente. Foram identificados relevantes fatores que implicam um maior risco de violência e reincidência criminal, demonstrados no laudo. O resultado mostra que uma avaliação criteriosa e independente é fundamental para a elaboração de um bom laudo psiquiátrico.

Psiquiatria legal; internação compulsória de doente; mental; transtornos mentais; violência


This paper discusses a case in which a man under security measures – due to attempted murder – was referred to assessment of dangerousness by expert psychiatrists. The conclusion was that his dangerousness had not ceased, diverging from the opinion of his health care team. Relevant factors were identified that implied greater risk of violence and criminal recidivism, both stated in the report. The result shows that careful and independent assessment is crucial to a good psychiatric report.

Forensic psychiatry; commitment of mentally ill; mental disorders; violence


Il s’agit d’un débat sur un cas dans lequel une personne sous mesure de sécurité en raison de la tentative de meurtre a été renvoyée à l’évaluation de sa dangerosité par psychiatres. La conclusion était que son danger n’avait pas cessé, diverge de l’opinion de votre équipe soignante. Facteurs pertinents ont été identifiés qui impliquent un risque plus élevé de violence et de la récidive criminelle, indiqué le rapport. Le résultat montre qu’un examen attentif et indépendant est fondamental pour le développement d’un bon rapport psychiatrique.

Psychiatrie médico-légale; internement obligatoire; les troubles mentaux; la violence


Esta es una discusión sobre un caso en que un individuo cumplió la medida de seguridad por intento de asesinato y después fue referido a la evaluación de su peligrosidad por peritos psiquiatras. La conclusión fue que su peligrosidad no había cesado, opinión diferente de su equipo de atención médica. Se han identificado los factores relevantes que implican un mayor riesgo de violencia y reincidencia criminal. El resultado muestra que una revisión cuidadosa e independiente es fundamental para el desarrollo de un buen informe psiquiátrico.

Psiquiatría forense; ingreso obligatorio del enfermo mental; trastornos mentales; violencia


Dieser Artikel diskutiert einen Fall, in dem ein Mann wegen versuchten Mordes von psychiatrischen Experten begutachtet wurde, um eine Gefährlichkeitsprognose zu erstellen. Das Gutachten bestätigte die Gefährlichkeit des Mannes, was im Gegensatz zur Stellungnahme seiner Betruungsgruppe stand. Dem Gutachten zufolge wurden relevante Faktoren identifiziert, die auf ein erhöhtes Risiko von Gewalt und Rückfall hindeuten. Dieses Ergebnis zeigt, wie wichtig eine gründliche und unabhängige Bewertung für die Erstellung eines psychiatrischen Gutachtens ist.

Forensische Psychiatrie; Obligatorische Internierung; Geistesstörungen; Gewalt


这是关于一个被采取安全措施的有谋杀倾向的病人的危险性的案例。由于谋杀未遂,病人被送到精神分析专家那里做评估。专家的结论是,这个病人的危险性没有终止,这个结论和心理健康中心的治疗小组的意见相反。鉴定专家书中指出病人一系列的重要因素,确认病人有更强的暴力倾向和再次犯罪的危险。结果表明,只有通过高水平的独立的鉴定,才能做出精神分析的最好的鉴定书。

精神心理分析学法医; 强制入精神病院; 精神障碍; 暴力。


Introdução

A relação entre crime e doença mental é um tema abordado há tempos, sendo recentemente estudado de forma melhor sistematizada. A evolução do conhecimento refletiu sua importância, haja vista modificações seguidas no sistema legal.

Segundo a legislação brasileira, classifica-se como inimputável: “inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento” (Código Penal Brasileiro, artigo 26). Os menores de idade possuem inimputabilidade absoluta. Além desses, os portadores de: doença mental, desenvolvimento mental retardado, desenvolvimento mental incompleto, podem ser considerados inimputáveis, se houver concomitantemente: nexo entre a doença e o delito, além do comprometimento do entendimento e da determinação do indivíduo.

A semi-imputabilidade é uma outra situação possível, que ocorre quando o indivíduo apresenta prejuízo da sua determinação, mas com manutenção do seu entendimento. Para essa situação, há a prerrogativa de o juiz optar pela medida de segurança, ou, ainda, pela redução de até um terço da pena. Essas situações podem ocorrer em indivíduos com transtornos de personalidade, alguns transtornos de humor e retardo mental leve, também devendo ser comprovado o nexo de causalidade.

A legislação atual prevê que a medida de segurança pode ocorrer na forma de internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou na forma de tratamento ambulatorial (Código Penal Brasileiro, art. 96, I e II).

A cessação da periculosidade deve ser averiguada por meio de perícia médica (exame de verificação de cessação de periculosidade – EVCP) realizada por Perito Oficial Médico Psiquiatra. Embora as medidas de segurança tenham duração indeterminada, o juiz, quando profere a sentença, estabelece o prazo mínimo (de um a três anos). O exame de cessação deve ocorrer quando o prazo mínimo fixado terminar e será repetido anualmente enquanto a conclusão pericial for de periculosidade não cessada. Nesse contexto, a periculosidade é um conceito jurídico, e não médico, e implica a capacidade de se prever o comportamento futuro do sujeito submetido à medida de segurança (Mecler, 2010Mecler, K. (2010). Periculosidade: Evolução e aplicação do conceito. Revista Brasileira Crescimento Desenvolvimento Humano, 20(1), 70-82.).

A medida de segurança tem a função não somente de dar segurança à sociedade, para estar livre do risco de um possível comportamento violento do doente, mas deve contemplar, sobretudo, a recuperação do mesmo, uma vez que este é a maior vítima das consequências de sua doença (Abdalla-Filho e Souza, 2009Abdalla-Filho, E.; Souza, P.A. (2009). Bioética, Psiquiatria Forense e a aplicação da Medida de Segurança no Brasil. Revista Bioética, 17(2), 181-190.).

Não há diretrizes claramente definidas que possam orientar, do ponto de vista ético, o procedimento dos psiquiatras forenses na realização das perícias, tampouco direcionamento técnico específico (Abdalla-Filho, 2013Abdalla-Filho, E. (2013). Objectivity and subjectivity in forensic psychiatry. Revista Brasileira de Psiquiatria, 35(2), 113-114.). Essa carência é uma das razões que explica a pouca padronização e sistematização na avaliação de periculosidade, conceito presente tanto no incidente de insanidade mental como no EVCP, como observado no trabalho de Mecler (2010)Mecler, K. (2010). Periculosidade: Evolução e aplicação do conceito. Revista Brasileira Crescimento Desenvolvimento Humano, 20(1), 70-82..

O desenvolvimento de instrumentos de avaliação padronizados nas últimas décadas é uma maneira de sistematizar de forma mais clara e objetiva a previsão do risco de violência. Seu uso mais frequente na prática clínica pode promover maior incorporação dos itens desses instrumentos às avaliações de periculosidade. Com isso, pode-se ter uma maior confiabilidade quanto à possibilidade de indivíduos cometerem atos violentos e, como consequência, uma menor chance de recidiva criminal. Alguns instrumentos mais utilizados são a Psychopathy Checklist – Revised (PCL-R) (Hare, 1991Hare, R (1991). D. Manual for the Hare Psychopathy Checklist – Revised. Toronto: Multi-Health Systems.), a Barrat Impulsiveness Scale (BIS-11) (Barrat, 1994Barrat, E. S. (1994). Impulsiveness and agression. In J. Monahan; H. J. Steadman, Violence and Mental Disorder (pp. 61-65). Chicago: The University of Chicago Press, 1994.) e o Historical, Clinical and Risk Management Violence Risk Assessment Scheme (HCR-20) (Webster, 1995Webster, C. D.; Eaves, D.; Douglas, K.; Wintrup, A. (1995). The HCR-20 Scheme: The assessment of dangerousness and risk. Burnaby, British Columbia, Canada: Simon Fraser University and Forensic Psychiatric Services Commission of British Columbia.).

A PCL-R é uma escala que leva em conta os comportamentos, traços emocionais e características clínicas da Psicopatia, com finalidade específica de caracterizar o psicopata, em acordo com os comportamentos citados (Quadro 01).

Quadro 01
– Os 20 itens que compõem a PCL-R

A BIS-11 é autoaplicável e procura aferir as características de impulsividade, levando-se em conta os seus três principais aspectos: motor, cognitivo e ausência de planejamento, conforme explicitado (Quadro 02).

Quadro 02
– Itens de autopreenchimento da BIS-11

O HCR-20 é uma avaliação do risco de recidiva criminal futura em populações psiquiátricas e criminosas. Aborda, de maneira mais ampla, vinte itens, divididos nos aspectos: histórico, clínico e manejo de risco, aproximando-se melhor da finalidade do EVCP (Quadro 3).

Quadro 03
– Os 20 itens que compõem a HCR-20

O que se percebe é que a função do médico perito é bastante diferente da do médico assistente, haja vista que este último parte da presunção de que o seu paciente diz a verdade e necessita melhorar, de forma a estabelecer uma relação terapêutica, de confiança mútua entre as partes. Por outro lado, na situação pericial é comum o perito ter algum grau de suspeita da fala e das atitudes do periciando, devendo estar atento aos sinais e discursos que demonstrem discrepância entre o que de fato acontece e o que o periciando tenta transparecer.

Um mesmo periciando pode possuir atitudes contrárias, de acordo com a finalidade do exame. Numa perícia previdenciária que vise ao afastamento do serviço, caso seja este o interesse, o periciando pode simular sintomas ou apenas intensificar suas moléstias, a fim de ter esse possível “benefício” de ser afastado. O contrário pode acontecer se o periciando quiser voltar a trabalhar, mesmo que não esteja completamente recuperado. Em um EVCP, não são poucas as ocasiões em que o periciando procura transparecer-se calmo e assintomático, a fim de ter o benefício da cessação de periculosidade concedido.

Palomba (2003)Palomba, G. (2003). Tratado de Psiquiatria Forense civil e penal. São Paulo: Atheneu, 2003. destaca as grandes diferenças do psiquiatra forense e do psiquiatra clínico: “O clínico quer fazer o diagnóstico da doença mental, instituir o tratamento, melhorar ou curar seu paciente, enquanto o psiquiatra forense não visa ao tratamento e nem administra remédios a seu paciente; (...) preocupa-se em elucidar e instruir o processo, esclarecendo pontos fundamentais para a justa aplicação da lei” (p. 114).

Abdalla-Filho et al. (2016)Abdalla-Filho, E.; Chalub, M.; Telles, L. E. de B. (2016). Psiquiatria Forense de Taborda. Porto Alegre: Artmed. destaca a enorme diferença nos papéis do perito e do clínico, considerando fundamental evitar e extinguir o chamado “duplo agenciamento”, que consiste em um profissional atuar como clínico e como perito de um mesmo indivíduo, pois são inevitáveis os conflitos de interesse.

O Código de Ética Médica, em seu artigo 93, veda o médico assistente de ser perito de seu próprio paciente, o que reafirma a diferença brutal das funções e conflitos inerentes a atuações tão diversas.

O presente caso se refere a um exame de Verificação de Cessação de Periculosidade realizado em indivíduo cumprindo medida de segurança, devido a homicídio, modalidade tentada por duas vezes. O parecer da equipe assistente foi favorável à desinternação, porém essa opinião não foi compartilhada pelos peritos que realizaram o exame. Por se tratar de um estudo de laudo de periciando internado em medida de segurança, não houve necessidade de termo de consentimento, pois todos os dados foram extraídos do laudo pericial. O estudo foi autorizado pela direção do serviço onde o paciente estava internado.

Relato do caso

Histórico do caso

E.C.O, 60 anos, masculino, branco, casado, Ensino Médio incompleto, natural e procedente do Rio de Janeiro/RJ.

O examinando encontra-se internado há um ano para o cumprimento de Medida de Segurança, devido ao artigo 121 com artigo 14 do Código Penal Brasileiro (homicídio, na modalidade tentada). Possui duas filhas adultas e três irmãos, que não o visitam.

Já trabalhou como auxiliar de escritório, trabalhador da construção civil, pintor, dentre outros empregos informais. Relatou ser aposentado por tempo de serviço como policial ferroviário pela Rede Ferroviária Federal e possuidor de cursos de desenho mecânico, de montador e de chapeador. Sua procuradora é sua esposa.

Seu histórico de alterações comportamentais se iniciou em 1995, tendo internações psiquiátricas em 2000 e 2007, devido a episódios de exaltação do humor, agitação, logorreia, hiperatividade e heteroagressividade. Antes da internação, fazia acompanhamento psiquiátrico irregular.

Parecer da equipe assistente

O parecer diz que o examinando é portador de SIDA e que é atendido em ambulatório especializado. Participa de oficinas terapêuticas e de atendimentos individuais. É tranquilo, interage com funcionários e internos, participa do banho de sol. Utiliza saídas terapêuticas há oito meses, sem intercorrências, indo para a casa de sua mãe num bairro distante de onde morava.

Os familiares do examinando não avalizam a possibilidade de ele retornar ao seu bairro, pois sofre ameaças na comunidade, devido aos fatos pelos quais foi julgado.

A equipe técnica vem construindo um projeto terapêutico de saída com a participação da genitora e do próprio examinando. A possibilidade de saída definitiva do Hospital de Custódia é vislumbrada para que passe a residir com a esposa e a genitora, na casa desta, em bairro onde não estaria ameaçado. Há equipe de Saúde Mental local, sendo a opinião da equipe técnica de o que reúne condições para desinternação.

Exame do Estado Mental

O examinando adentra à sala de exame de forma tranquila e cortês. Magro, branco, calvo, aparentando idade compatível com a cronológica. Identifica-se e informa data e local corretamente. Entende que está cumprindo Medida de Segurança, em suas palavras, “Proteção dada pelo Estado ao preso que cometeu um crime por sentença proferida por um juiz de Direito”. Sabe que este exame visa à desinternação.

Perguntado sobre a razão da internação, inicia discurso prolixo, afirmando que tudo começou com o casamento da filha: “foi o dia mais feliz da minha vida, reformei dois apartamentos, era um estado de muita alegria”, que hoje compreende como “euforia” (sic). Após o casamento “desembrenhou” pelas ruas do Rio de Janeiro, participando de rodas de samba, usando álcool e drogas, envolvendo-se com diversas mulheres. Passou semanas sem voltar para casa, quando teve notícia de que sua sogra estava doente. Ao visitá-la em hospital, emocionou-se com a situação e voltou para casa. Ao retornar, iniciou discussão com um borracheiro e o agrediu, “rasgando a sua barriga e joelhos” (sic) com um estilete que levava consigo, pois considera seu bairro “perigoso”. Apanhou das pessoas que viram a discussão e foi detido por um policial. Diz que esse policial o persegue, e que já se desentenderam outras vezes. Acredita que só não foi morto porque a arma do policial falhou nas três vezes que tentou atirar.

Relata que tudo aconteceu por causa de sua doença mental, que nessa época havia abandonado os remédios e só se conscientizou sobre a necessidade de tratamento após ser preso. Descreve situações compatíveis com episódios maníacos, em pregações religiosas, dons especiais, gastos exagerados, viagens não programadas e comportamento sexual desinibido. Irrita-se durante o exame, quando lhe são perguntados detalhes sobre uma das crises. Confronta os examinadores de forma autoritária e prefere mudar de assunto, elevando o tom de voz. Falou sobre os diversos empregos que teve, frequentemente saía de alguns por discussões com o patrão e desentendimentos em situações corriqueiras e aparentemente banais.

Sobre o seu estado atual, acredita estar bem, “Só tomo Diazepam e um antialérgico. Não uso o Ácido Valproico há seis meses. Provavelmente viram que eu não preciso desse remédio”.

Afirma que na opinião da esposa e das filhas ele não vai bem, diz que ele tem uma ideia e quer uma coisa de um jeito, elas dizem que não é assim e “logo sai briga”. Altera o tom de voz nesse momento, afirmando que “em casa tem discussão mesmo”.

Sobre seu histórico de violência, envolveu-se em brigas diversas vezes, pois “não leva desaforo para casa”. Teve problemas com um policial civil em 2007, que chama de folgado e que queria intimidá-lo: “não estou nem aí, não me importo com quem quer que seja, não aceito o que não acho certo”.

Sobre a relação com os demais internos, acredita ser boa, gostam de lhe pedir conselhos. Cita Salmos e diz que os orienta com a Bíblia. Na última semana, recebeu dez notícias ruins sobre morte e isso foi lhe “pressionando”. Em certo momento, teve certeza da morte da mãe, começando a chorar e a bater nas grades desesperadamente. Necessitou ser medicado, mas logo melhorou. Conta episódio de muita raiva quando foi acusado de ter estuprado um interno. Negou reação violenta, apesar da raiva, e isolou-se na ocasião.

Seus planos para o futuro são voltar para casa, mas antes ficará com sua mãe, já que sofre ameaças no bairro de origem. Afirma que tomará os medicamentos, sem demonstrar convicção da necessidade, pois acredita estar bom, mas “São os médicos que sabem”.

Súmula psicopatológica

Consciente e orientado globalmente. Atitude confrontativa e autoritária, procurando dominar a entrevista. Humor hipertímico, com modulação afetiva congruente. Tom de voz elevado em momentos, discurso eloquente, prolixo e autorreferente. Pensamento agregado, com curso, ritmo e forma inalterados. Normotenaz, normovigil, memória preservada. Irritável, pouco tolerante a frustrações, mau controle dos impulsos. Sem alterações de sensopercepção. Crítica sobre a doença prejudicada.

Discussão

Conforme análise dos peritos do caso em tela, concluiu-se que o examinando é portador de Transtorno Afetivo Bipolar, além de manifestar traços patológicos de personalidade narcísicos e explosivos. Seu exame psíquico, associado ao relatado em seu prontuário e também com as informações colhidas por meio de terceiros (membros da equipe técnica e familiares) foram a base para esse diagnóstico.

A análise dos documentos médico-legais disponíveis revelou que o examinando está em correto acompanhamento e uso regular de Ácido Valproico 1500mg/d, apesar de ter dito que não estava usando essa medicação. A equipe assistente revelou que mãe e filhas possuem relação de medo com o mesmo, pois há histórico de frequentes agressões verbais e possivelmente físicas.

Como já enunciado, o HCR-20 é um instrumento de avaliação do risco de comportamento violento futuro em populações psiquiátricas e criminosas. Sua forma ampliada e dividida nos aspectos: histórico, clínico e manejo de risco, aproxima-se melhor da finalidade do Exame de Verificação de Cessação de Periculosidade, que os outros instrumentos até aqui desenvolvidos e apresentados na introdução. Devidamente validado no Brasil (Telles et al., 2009Telles, L. E. B.; Day, V. P.; Folino, J. O.; Taborda, J. G. V. (2009). Reliability of the Brazilian version of HCR-20 Assessing Risk for Violence. Revista Brasileira de Psiquiatria, 31(3), 253-256.), nos faz crer que os itens que o compõem devem ser sempre considerados durante o EVCP.

No caso em tela, há expressivo histórico de violência, problemas com drogas e álcool, histórico de comportamento de grande risco durante as crises e também fora delas, devido à personalidade. O exame clínico revelou crítica prejudicada sobre a necessidade de tratamento, irritabilidade e dificuldade para controle de impulsos quando frustrado, reagindo desproporcionalmente.

Quanto ao manejo do risco do caso em questão, há considerável possibilidade de exposição a fatores desestabilizadores, pois possui apoio familiar precário, centrado exclusivamente na genitora, alto risco para estresse e não adesão à terapêutica, dada sua pouca crítica sobre a doença.

Concluiu-se pela não cessação da periculosidade, com manutenção das saídas terapêuticas monitoradas. Foi recomendado trabalho multidisciplinar terapêutico, social e familiar, para otimizar os pontos modificáveis e considerados de risco de violência no exame.

A falta de padronização do EVCP é notável na Psiquiatria Forense, como documentado nos estudos de Mecler (2010)Mecler, K. (2010). Periculosidade: Evolução e aplicação do conceito. Revista Brasileira Crescimento Desenvolvimento Humano, 20(1), 70-82.. Ela é uma consequência direta da ausência de diretrizes claramente definidas para orientar, do ponto de vista ético e técnico, o procedimento dos peritos na realização dos exames de verificação de cessação de periculosidade (Taborda et al., 2012Taborda, J. G. V.; Chalub, M.; Abdalla-Filho, E. (2012). Psiquiatria Forense. Porto Alegre: Artmed, 2012.; Abdalla--Filho et al., 2016). Essa carência acarreta uma ausência de padronização e sistematização na avaliação de periculosidade, que necessita ser aprofundada e estudada em pesquisas futuras.

Uma avaliação adequada, completa e replicável não é algo simples de realizar, haja vista os inúmeros fatores a serem considerados. Há divergências relevantes de sistemas psiquiátrico-forenses pelo mundo, o que demonstra a árdua tarefa de sistematização, como estudado por Abdalla-Filho et al. (2003Abdalla-Filho, E.; Engelhardtb, W. (2003). A prática da psiquiatria forense na Inglaterra e no Brasil: uma breve comparação. Revista Brasileira de Psiquiatria, 25(4), 245-248. e 2006Abdalla-Filho, E.; Bertolote, J.M. (2006). Sistemas de psiquiatria forense no mundo. Revista Brasileira de Psiquiatria, 28(sII), s56-s61.).

Valença et al. (2011)Valença, A. M.; Mendlowicz, M. V.; Nascimento, I.; Moraes, T. M.; Nardi, A. E. (2011). Retardo mental: periculosidade e responsabilidade penal. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 60(2),144-147. relataram dificuldades para reinserção de doentes mentais em medida de segurança. Preparação adequada da equipe e inclusão de família são fundamentais. Muitos estudos apontam as comorbidades como cruciais no risco de reincidência criminal, pois doença mental isolada nem sempre representa risco (Bonta et al., 2009Bonta, J.; Law, M.; Hanson, K. (2009). The prediction of criminal and violent recidivism among mentally disordered offenders: A meta-analysis. Psychological Bulletin, 123(2), 123-142.; Valença & Moraes, 2006Valença, A. M.; Moraes, T. M. (2006). Relação entre homicídio e transtornos mentais. Revista Brasileira de Psiquiatria, 28(Supl II), S62-68.; Valença et al., 2015)Valença, A. M.; Meyer, L. F.; Freire, F., Mendlowicz, M. V.; Nardi, A. E. (2015). A forensic-psychiatric study of sexual offenders in Rio de Janeiro, Brazil. Journal of Forensic and Legal Medicine, 31(1), 23-28.. Dentre as comorbidades mais citadas nos estudos estão os transtornos de personalidade, o abuso de substâncias, histórico de violência e má adesão (Bonta et al., 2009Bonta, J.; Law, M.; Hanson, K. (2009). The prediction of criminal and violent recidivism among mentally disordered offenders: A meta-analysis. Psychological Bulletin, 123(2), 123-142.; Valença & Moraes, 2006Valença, A. M.; Moraes, T. M. (2006). Relação entre homicídio e transtornos mentais. Revista Brasileira de Psiquiatria, 28(Supl II), S62-68.; Whittington et al., 2013Whittington, R.; Hockenhull, J. C.; McGuire, J.; Leitner, M.; Barr, W.; Cherry, M. G.;… Dickson, R. (2013). A systematic review of risk assessment strategies for populations at high risk of engaging in violent behaviour: Update 2002-8. Heath Technology Assessment, 17(50), 12-44.; Valença et al., 2015)Valença, A. M.; Meyer, L. F.; Freire, F., Mendlowicz, M. V.; Nardi, A. E. (2015). A forensic-psychiatric study of sexual offenders in Rio de Janeiro, Brazil. Journal of Forensic and Legal Medicine, 31(1), 23-28. todas presentes neste caso.

A gravidade do delito, a história criminal e a história psiquiátrica do periciando, são critérios considerados de grande importância em vários estudos realizados nos últimos anos (Bonta et al., 2009Bonta, J.; Law, M.; Hanson, K. (2009). The prediction of criminal and violent recidivism among mentally disordered offenders: A meta-analysis. Psychological Bulletin, 123(2), 123-142.; Menezes, 2001Menezes, R. S. (2001). Homicídio e Esquizofrenia: Estudo de fatores associados. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Medicina: Ciências Médicas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Porto Alegre, RS.; Moscatello, 2001Moscatello, R. (2001). Recidiva criminal em 100 internos do Manicômio Judiciário de Franco da Rocha. Revista Brasileira de Psiquiatria, 23(1), 34-35.; Achá et al., 2011Achá, M.F.F.; Rigonatti, S.P.; Saffi, F.; Barros, D.M; Serafim, A.P. (2011). Prevalence of mental disorders among sexual offenders and non-sexual offenders. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 60(1), 11-15.; Fazel & Yu, 2011Fazel, S.; Yu, R. (2011). Psychotic disorders and repeat offending: Systematic review and meta-analysis. Schizophrenia Bulletin, 37(4), 800-810.; Telles et al., 2011Telles, L. E. B.; Folino, J. O.; Taborda, J. G. V (2011). Incidência de conduta violenta e antissocial em população psiquiátrica forense. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, 33(1), 3-7.; Valença et al., 2013Valença, A. M.; Nascimento, I.; Nardi, A. E (2013). Relationship between sexual offences and mental and developmental disorders: A review. Archives of Clinical Psychiatry, 40(3), 97-104.; Whittington et al., 2013Whittington, R.; Hockenhull, J. C.; McGuire, J.; Leitner, M.; Barr, W.; Cherry, M. G.;… Dickson, R. (2013). A systematic review of risk assessment strategies for populations at high risk of engaging in violent behaviour: Update 2002-8. Heath Technology Assessment, 17(50), 12-44.; Ghoreishi et al., 2015)Ghoreishi, A.; Kabootvand, S.; Zanganib, E.; Bazargan-Hejazi, S.; Ahmadi, A.; Khazaie, H. (2015). Prevalence and attributes of criminality in patients with schizophrenia. Journal of Injury and Violence Research, 7(1), 7-12.. Acreditamos que os dados desses antecedentes, precariamente organizados no prontuário do periciando, dificultaram um parecer técnico consubstanciado e amplo, como é o ideal e preconizado.

Valença et al. (2006Valença, A. M.; Moraes, T. M. (2006). Relação entre homicídio e transtornos mentais. Revista Brasileira de Psiquiatria, 28(Supl II), S62-68., 2013Valença, A. M.; Nascimento, I.; Nardi, A. E (2013). Relationship between sexual offences and mental and developmental disorders: A review. Archives of Clinical Psychiatry, 40(3), 97-104. e 2015Valença, A. M.; Meyer, L. F.; Freire, F., Mendlowicz, M. V.; Nardi, A. E. (2015). A forensic-psychiatric study of sexual offenders in Rio de Janeiro, Brazil. Journal of Forensic and Legal Medicine, 31(1), 23-28.) procuraram relacionar fatores de risco para comportamento violento. Os itens clínicos, como observados neste exame pericial, especialmente a presença de sintomatologia produtiva, a recaída da doença, falta de insight e distorções cognitivas são fatores que contribuíram para a conclusão pericial de não cessação da periculosidade. A necessidade de um controle clínico adequado é fundamental para evitar a reincidência na população de doentes mentais. O comportamento impulsivo, as dificuldades com raiva e agressão, precária habilidade social foram outros itens significativos encontrados nesses estudos, o que ainda é claro e evidente no periciando em tela.

Alden et al. (2007), acompanharam uma coorte de 358.118 nascidos vivos entre 1944 e 1947 e pesquisaram as prisões por ofensas sexuais, com ou sem agressão física, cinquenta anos depois, considerando presença de doenças mentais, abuso de substância e transtornos de personalidade. Os indivíduos psicóticos, esquizofrênicos ou não, somente tinham risco aumentado quando houve comorbidade com transtornos de personalidade ou abuso de substâncias. Isoladamente, não havia risco aumentado. Eles também encontraram aumento de risco de violência em populações com transtornos mentais de origem orgânica. Outros estudos também descreveram dificuldades no manejo clínico da agressividade/impulsividade na literatura em pacientes com esses transtornos (Monteiro et al., 2015Monteiro, V. L.; Barreto, F. J. N.; Rocha, P. M. B.; Prado, P. H. T.; Garcia, F.D., ... Neves, M. C. L. (2015). Managing severe behaviour symptoms of a patient with anti-NMDAR encephalitis: Case report and findings in current literature. Trends in Psychiatry and Psychotheray, 37(1), 47-50.; Oliveira et al., 2015Oliveira, G. C.; Madeira, M. C.; Celmer, M. D. (2015). Alterações de comportamento na encefalite herpética: um caso polimórfico e de difícil manejo. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 64(1), 307-310.). O periciando apresenta, além de traços patológicos da personalidade, histórico de abuso de substâncias e episódios de violência prévios, como ele próprio relatou, não estabilização do seu transtorno mental, além de infecção por HIV, doença clínica que pode favorecer neurinfecções ou agir diretamente sobre o sistema nervoso central, embora não demonstráveis em nosso caso.

Uma metanálise de 27 estudos sobre o risco de reincidência criminal avaliou doente mentais psicóticos, doentes mentais não psicóticos e indivíduos sem doença mental (Fazel & Yu, 2011Fazel, S.; Yu, R. (2011). Psychotic disorders and repeat offending: Systematic review and meta-analysis. Schizophrenia Bulletin, 37(4), 800-810.). O número total de indivíduos dos 27 estudos foi de 3.511 psicóticos, 5.446 não psicóticos e 71.552 saudáveis. A razão de risco foi considerada significativa quando comparados psicóticos e saudáveis, com o valor de 1,6. Porém, somente quatro desses estudos comtemplaram essa variável e em nenhum deles foi considerada a presença ou a ausência de comorbidades, fator considerado crucial em muitos outros estudos (Bonta et al., 2009Bonta, J.; Law, M.; Hanson, K. (2009). The prediction of criminal and violent recidivism among mentally disordered offenders: A meta-analysis. Psychological Bulletin, 123(2), 123-142.; Valença & Moraes, 2006Valença, A. M.; Moraes, T. M. (2006). Relação entre homicídio e transtornos mentais. Revista Brasileira de Psiquiatria, 28(Supl II), S62-68.; Alden et al., 2007Alden, A.; Brennan, P.; Hodgins, S.; Mednick, S. (2007). Psychotic disorders and sex offending in a danish birth cohort. Archives of General Psychiatry, 64(11), 1251-1258.; Whittington et al., 2013Whittington, R.; Hockenhull, J. C.; McGuire, J.; Leitner, M.; Barr, W.; Cherry, M. G.;… Dickson, R. (2013). A systematic review of risk assessment strategies for populations at high risk of engaging in violent behaviour: Update 2002-8. Heath Technology Assessment, 17(50), 12-44.; Valença et al., 2015)Valença, A. M.; Meyer, L. F.; Freire, F., Mendlowicz, M. V.; Nardi, A. E. (2015). A forensic-psychiatric study of sexual offenders in Rio de Janeiro, Brazil. Journal of Forensic and Legal Medicine, 31(1), 23-28..

Os itens sociais e ambientais, com destaque para o abuso de substâncias, histórico de abuso pessoal, ausência de suporte familiar mínimo e outros estressores são destacados como preditores de risco de violência, pois somados aos poucos recursos psíquicos e cognitivos em geral dos doentes, os tornam suscetíveis a agir de forma descontrolada, como verificado em diversos trabalhos (Bonta et al., 2009Bonta, J.; Law, M.; Hanson, K. (2009). The prediction of criminal and violent recidivism among mentally disordered offenders: A meta-analysis. Psychological Bulletin, 123(2), 123-142.; Menezes, 2001Menezes, R. S. (2001). Homicídio e Esquizofrenia: Estudo de fatores associados. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Medicina: Ciências Médicas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Porto Alegre, RS.; Moscatello, 2001Moscatello, R. (2001). Recidiva criminal em 100 internos do Manicômio Judiciário de Franco da Rocha. Revista Brasileira de Psiquiatria, 23(1), 34-35.; Telles et al., 2011Telles, L. E. B.; Folino, J. O.; Taborda, J. G. V (2011). Incidência de conduta violenta e antissocial em população psiquiátrica forense. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, 33(1), 3-7.; Whittington et al., 2013Whittington, R.; Hockenhull, J. C.; McGuire, J.; Leitner, M.; Barr, W.; Cherry, M. G.;… Dickson, R. (2013). A systematic review of risk assessment strategies for populations at high risk of engaging in violent behaviour: Update 2002-8. Heath Technology Assessment, 17(50), 12-44.).

Coid et al. (2015)Coid, J.W.; Yang, M.; Ullrich, S.; Hickey. N.; Kahtan. N.; Freestone, M. (2015). Psychiatric diagnosis and differential risks of offending following discharge. International Journal of Law and Psychiatry, 38(1), 68-74. procuraram identificar fatores associados à violência após a alta em população psiquiátrica forense que cumpriu medida de segurança, em um seguimento de seis e 12 meses. Avaliou os itens do HCR-20 e concluiu que oito dos vinte itens não puderem prever violência com valor significativo, segundo a análise estatística aplicada. Desses oito, quatro se referiram à variável histórico, o que é bastante relevante e animador, pois nos faz crer que não podemos condenar/prejulgar um doente mental, sendo a presença de transtorno mental possivelmente um fator de menor valor preditivo para violência.

Por outro lado, apenas um desses itens eram relacionados à clínica do transtorno, os “sintomas ativos de doença mental”, sabidamente polimórficos e, dependo do sintoma, como os negativos da esquizofrenia, são até protetores de comportamento violento, embora péssimos para o prognóstico do doente. Esses dados reforçam a suma importância de um exame clínico pericial de alta qualidade, pois podem se mostrar como dos melhores preditores de violência.

O doente mental pode ser mais perigoso que os “não doentes” em situações específicas, como naquelas onde há presença de transtorno de personalidade e abuso de substâncias. Conforme mostrado acima, é contrário às evidências científicas prejulgar o doente mental como um sujeito de já aumentado risco se comparado à população. Naturalmente, há situações em que o mesmo, especialmente se não tratado e não medicado, se relaciona a um risco e à prática de atos ilícitos, muitas vezes com prejuízo do seu entendimento e de sua determinação. É por essa razão que o doente mental é contemplado no Código Penal Brasileiro e, se observados tais prejuízos, pode ser destinado a cumprir Medida de Segurança em vez da pena.

Conforme muitos estudos (Menezes, 2001Menezes, R. S. (2001). Homicídio e Esquizofrenia: Estudo de fatores associados. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Medicina: Ciências Médicas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Porto Alegre, RS.; Abdalla-Filho et al., 2002Abdalla-Filho, E., Garrafa, V. (2002). Psychiatric examination on handcuffed convicts in Brazil: ethical concerns. Develop World Bioethics, 2(1), 28-37.; Alden et al., 2007Alden, A.; Brennan, P.; Hodgins, S.; Mednick, S. (2007). Psychotic disorders and sex offending in a danish birth cohort. Archives of General Psychiatry, 64(11), 1251-1258.; Mecler, 2010Mecler, K. (2010). Periculosidade: Evolução e aplicação do conceito. Revista Brasileira Crescimento Desenvolvimento Humano, 20(1), 70-82.; Valença, 2011Valença, A. M.; Mendlowicz, M. V.; Nascimento, I.; Moraes, T. M.; Nardi, A. E. (2011). Retardo mental: periculosidade e responsabilidade penal. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 60(2),144-147.), o adequado tratamento e a correta identificação de doentes mentais são capazes de evitar ocorrência de crimes. Ou seja, a medida de segurança bem utilizada e aplicada de forma correta e eficaz, é uma excelente maneira de reduzir o risco para o doente mental e para a sociedade, pois bem tratado e adequadamente reinserido, incorrerá em redução de reincidência criminal, agindo-se em fatores tratáveis e preveníveis. Inclusive, considerando-se o aspecto do doente, o nome medida terapêutica se mostraria mais adequado, especialmente pela existência da possibilidade do tratamento ambulatorial.

Um dos grandes problemas percebidos por Taborda, 2001Taborda, J. G. V (2001). Criminal justice system in Brazil: Functions of a forensic psychiatrist. International Journal of Law and Psychiatry, 24(4-5), 371-86., é a dissociação completa entre os sistemas de saúde mental e o sistema penal psiquiátrico-forense. Não há uma adequada comunicação entre ambos, e sequer há comunicação de dados de forma mínima, sejam os prontuários ou mesmo o registro de passagem pelos serviços de saúde de indivíduos em medida de segurança. Essa dissociação não é exclusividade brasileira, mas pode ser observada em outros países da América Latina, e há uma tendência de um grande período de internação em hospitais penais/casas de custódia, muito além do que seria o necessário (Taborda, 2006Taborda, J. G. V (2006). Forensic psychiatry today: A Latin American view. World Psychiatry, 5(2), 96.).

O parecer favorável da equipe assistente é, em geral, fator positivo para a cessação da periculosidade, como demonstrado por Mecler (2010)Mecler, K. (2010). Periculosidade: Evolução e aplicação do conceito. Revista Brasileira Crescimento Desenvolvimento Humano, 20(1), 70-82.. Todavia, o exame pericial deve ser criterioso e neutro. É por essa razão que a conclusão do perito pode ser divergente do parecer da equipe assistente, como aconteceu no presente caso, haja vista a explicitação de diversos fatores desestabilizadores e preditivos de risco de violência, devidamente abordados nesta discussão.

Uma reorganização do sistema pericial oficial brasileiro em que o perito fosse treinado para esse tipo de exame e conscientizado da importância da avaliação detalhada dos conhecidos itens preditores de risco de violência traria maior qualidade aos EVCP. Se essa possível reorganização contemplasse o perito com um maior tempo para as entrevistas, acesso regular e organizado ao prontuário médico do paciente com antecedência, aliado a um registro unificado dos antecedentes médicos dos brasileiros, obteríamos maior qualidade de informações e também poderíamos buscar muitos dos dados faltantes através desse sistema.

Conclusões

Por meio deste estudo, pudemos observar o caso de um Exame de Verificação de Cessação de Periculosidade em que o periciando teve sua periculosidade considerada não cessada, o que divergiu da opinião da equipe que o assistia.

A avaliação de itens estudados e validados em instrumentos e pesquisas científicas em psiquiatria forense, como: expressivo histórico de violência, gravidade do delito, abuso de substâncias, traços patológicos de personalidade, apoio familiar precário, má adesão terapêutica, aliados a um exame clínico que revelou irritabilidade, impulsividade e pouca crítica sobre a sua doença podem fornecer substrato a um elevado risco de recidiva de comportamento violento e, por isso, tais itens devem ser abordados em todos os EVCP que deveriam ter uma sistematização mínima.

A recomendação de saídas terapêuticas monitoradas e a intensificação de um trabalho multidisciplinar foram descritas na conclusão do laudo e se fazem necessárias para se possibilitar a desinternação precoce e o cumprimento da função de reinserção social da medida de segurança.

Mas permanece a dúvida: o sistema psiquiátrico-forense brasileiro permite a adequada abordagem para casos como este? Somente estudos de seguimento, com amostras maiores de pacientes que cumpriram medida de segurança, poderão responder a esta e outras questões sobre esse tema.

Referências

  • Abdalla-Filho, E. (2013). Objectivity and subjectivity in forensic psychiatry. Revista Brasileira de Psiquiatria, 35(2), 113-114.
  • Abdalla-Filho, E.; Bertolote, J.M. (2006). Sistemas de psiquiatria forense no mundo. Revista Brasileira de Psiquiatria, 28(sII), s56-s61.
  • Abdalla-Filho, E.; Chalub, M.; Telles, L. E. de B. (2016). Psiquiatria Forense de Taborda Porto Alegre: Artmed.
  • Abdalla-Filho, E.; Engelhardtb, W. (2003). A prática da psiquiatria forense na Inglaterra e no Brasil: uma breve comparação. Revista Brasileira de Psiquiatria, 25(4), 245-248.
  • Abdalla-Filho, E., Garrafa, V. (2002). Psychiatric examination on handcuffed convicts in Brazil: ethical concerns. Develop World Bioethics, 2(1), 28-37.
  • Abdalla-Filho, E.; Souza, P.A. (2009). Bioética, Psiquiatria Forense e a aplicação da Medida de Segurança no Brasil. Revista Bioética, 17(2), 181-190.
  • Achá, M.F.F.; Rigonatti, S.P.; Saffi, F.; Barros, D.M; Serafim, A.P. (2011). Prevalence of mental disorders among sexual offenders and non-sexual offenders. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 60(1), 11-15.
  • Alden, A.; Brennan, P.; Hodgins, S.; Mednick, S. (2007). Psychotic disorders and sex offending in a danish birth cohort. Archives of General Psychiatry, 64(11), 1251-1258.
  • Bonta, J.; Law, M.; Hanson, K. (2009). The prediction of criminal and violent recidivism among mentally disordered offenders: A meta-analysis. Psychological Bulletin, 123(2), 123-142.
  • Barrat, E. S. (1994). Impulsiveness and agression. In J. Monahan; H. J. Steadman, Violence and Mental Disorder (pp. 61-65). Chicago: The University of Chicago Press, 1994.
  • Brasil. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM n. 1.931, de 17 de setembro de 2009 – Código de Ética Médica.
  • Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Lei n. 7.209 de 11 de julho de 1984, que altera dispositivos do decreto-lei n. 2.848, de 07 de dezembro de 1940 – Código Penal.
  • Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Lei n. 13.105 de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil.
  • Coid, J.W.; Yang, M.; Ullrich, S.; Hickey. N.; Kahtan. N.; Freestone, M. (2015). Psychiatric diagnosis and differential risks of offending following discharge. International Journal of Law and Psychiatry, 38(1), 68-74.
  • Fazel, S.; Yu, R. (2011). Psychotic disorders and repeat offending: Systematic review and meta-analysis. Schizophrenia Bulletin, 37(4), 800-810.
  • Ghoreishi, A.; Kabootvand, S.; Zanganib, E.; Bazargan-Hejazi, S.; Ahmadi, A.; Khazaie, H. (2015). Prevalence and attributes of criminality in patients with schizophrenia. Journal of Injury and Violence Research, 7(1), 7-12.
  • Hare, R (1991). D. Manual for the Hare Psychopathy Checklist – Revised Toronto: Multi-Health Systems.
  • Mecler, K. (2010). Periculosidade: Evolução e aplicação do conceito. Revista Brasileira Crescimento Desenvolvimento Humano, 20(1), 70-82.
  • Menezes, R. S. (2001). Homicídio e Esquizofrenia: Estudo de fatores associados Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Medicina: Ciências Médicas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Porto Alegre, RS.
  • Monteiro, V. L.; Barreto, F. J. N.; Rocha, P. M. B.; Prado, P. H. T.; Garcia, F.D., ... Neves, M. C. L. (2015). Managing severe behaviour symptoms of a patient with anti-NMDAR encephalitis: Case report and findings in current literature. Trends in Psychiatry and Psychotheray, 37(1), 47-50.
  • Moscatello, R. (2001). Recidiva criminal em 100 internos do Manicômio Judiciário de Franco da Rocha. Revista Brasileira de Psiquiatria, 23(1), 34-35.
  • Oliveira, G. C.; Madeira, M. C.; Celmer, M. D. (2015). Alterações de comportamento na encefalite herpética: um caso polimórfico e de difícil manejo. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 64(1), 307-310.
  • Palomba, G. (2003). Tratado de Psiquiatria Forense civil e penal São Paulo: Atheneu, 2003.
  • Taborda, J. G. V.; Chalub, M.; Abdalla-Filho, E. (2012). Psiquiatria Forense Porto Alegre: Artmed, 2012.
  • Taborda, J. G. V (2001). Criminal justice system in Brazil: Functions of a forensic psychiatrist. International Journal of Law and Psychiatry, 24(4-5), 371-86.
  • Taborda, J. G. V (2006). Forensic psychiatry today: A Latin American view. World Psychiatry, 5(2), 96.
  • Telles, L. E. B.; Day, V. P.; Folino, J. O.; Taborda, J. G. V. (2009). Reliability of the Brazilian version of HCR-20 Assessing Risk for Violence. Revista Brasileira de Psiquiatria, 31(3), 253-256.
  • Telles, L. E. B.; Folino, J. O.; Taborda, J. G. V (2011). Incidência de conduta violenta e antissocial em população psiquiátrica forense. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, 33(1), 3-7.
  • Valença, A. M.; Mendlowicz, M. V.; Nascimento, I.; Moraes, T. M.; Nardi, A. E. (2011). Retardo mental: periculosidade e responsabilidade penal. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 60(2),144-147.
  • Valença, A. M.; Moraes, T. M. (2006). Relação entre homicídio e transtornos mentais. Revista Brasileira de Psiquiatria, 28(Supl II), S62-68.
  • Valença, A. M.; Meyer, L. F.; Freire, F., Mendlowicz, M. V.; Nardi, A. E. (2015). A forensic-psychiatric study of sexual offenders in Rio de Janeiro, Brazil. Journal of Forensic and Legal Medicine, 31(1), 23-28.
  • Valença, A. M.; Nascimento, I.; Nardi, A. E (2013). Relationship between sexual offences and mental and developmental disorders: A review. Archives of Clinical Psychiatry, 40(3), 97-104.
  • Whittington, R.; Hockenhull, J. C.; McGuire, J.; Leitner, M.; Barr, W.; Cherry, M. G.;… Dickson, R. (2013). A systematic review of risk assessment strategies for populations at high risk of engaging in violent behaviour: Update 2002-8. Heath Technology Assessment, 17(50), 12-44.
  • Webster, C. D.; Eaves, D.; Douglas, K.; Wintrup, A. (1995). The HCR-20 Scheme: The assessment of dangerousness and risk Burnaby, British Columbia, Canada: Simon Fraser University and Forensic Psychiatric Services Commission of British Columbia.
  • Financiamento/Funding: Os autores declaram não terem sido financiados ou apoiados / The authors have no support or funding to report.
Editores do artigo/Editors: Prof. Dr. Claudio E. M. Banzatto e Profa. Dra. Rafaela Zorzanelli

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    20 Jan 2015
  • Aceito
    21 Mar 2016
Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental Av. Onze de Junho, 1070, conj. 804, 04041-004 São Paulo, SP - Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: secretaria.auppf@gmail.com