Este número da Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, o 4º de 2016, assinala um momento de transição na Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, resultante da ausência do Prof. Manoel Berlinck, fundador da Associação e desta Revista, da qual foi editor desde sua inauguração. Para expressar a tristeza causada por sua perda entre seus muitos amigos, recomendo a leitura do belíssimo editorial de Plinio Prado “Ao Manoel Berlinck que eu conheci”, publicado no número de setembro de 2016, edição que Manoel não pôde terminar e cuja finalização devemos à também editora Sonia Costa Leite, com a cooperação de Ana Cecília Magtaz e Araide Sanches. As palavras do colega transmitem com sensibilidade a pessoa singular e inesquecível que foi Manoel. Durante o trabalho de edição deste número de dezembro de 2016, nos confrontamos com a difícil tarefa de reorganizar o trabalho que, devido a seu falecimento, sai atrasado. Além do encontro com diferentes contratempos, experimentamos, ainda, a insegurança de ter que responder à tarefa tão desafiadora de dar continuidade a uma revista que foi fundada e conduzida com tanta competência, investimento amoroso e sabedoria por Manoel.
Esse sentimento me faz relembrar uma história relatada por Nestrovski e Seligmann-Silva, na primeira linha da apresentação do excelente livro que organizaram, editado pela Editora Escuta em 2000, Catástrofe e Representação. Contam que ao ouvir o título do livro pela primeira vez, Manoel exclamou “Sem catástrofe, não há representação!”.
O surpreendente dessa afirmativa, em um momento em que os estudos sobre trauma enfatizavam o fato de que a catástrofe dificulta ou impede a representação, é notada pelos autores, e incita à reflexão e à pesquisa. Seguramente foi a experiência clínica que possibilitou essa acurada observação. Afinal o caso clínico é o fundamento do conhecimento teórico, e tão valorizado por Manoel que a própria definição da linha editorial e campo de interesse da RLPF privilegia os artigos que têm o caso clínico como fundamento da pesquisa, e não a especulação teórica vazia. Entretanto Manoel, seguindo Freud, concede que o mito de origem tem lugar no saber. Sabemos que ele escreveu sobre um mito freudiano pouco conhecido de forma muito esclarecedora, o mito que se encontra no manuscrito de 1915, descoberto tardiamente e publicado apenas em 1985, “Neuroses de transferência”, em que Freud apresenta construções que propõem uma correspondência entre a psicopatologia e o passado filogenético de nossa espécie.
A catástrofe entendida como condição da representação é o que constitui um dos pontos de interesse do manuscrito freudiano. Nele encontramos um mito das origens diverso daquele de “Totem e tabu”, mas igualmente fascinante. Enquanto no mito de “Totem e tabu”, o assassinato do tirânico chefe da horda, que privava a todos das mulheres, marca a origem da cultura, da moralidade e da religião, o mito de 1915 parte das catástrofes da era glacial que teriam jogado os hominídeos, que até então viviam em harmonia com a natureza, em intensa angústia, fome e desamparo. Só então os primatas erigem um pai da horda, justamente aquele que conseguira certo domínio sobre o mundo, inclusive sobre os princípios da linguagem. Em troca do seu saber e proteção, entretanto, exigia o domínio absoluto. Nessa forma modificada do mito, o papel do pai como proteção contra a angústia e o desamparo é colocado como precedente ao do pai tirânico e obstáculo às mulheres e ao sexo. Os dois mitos correspondem a uma longa discussão que Freud afirma sustentar, sobre qual seria a primeira, se a angústia real ou a angústia nostálgica (de ordem libidinal). A linguagem, que tem entre suas funções a de representar, é o recurso de que se dispôs para enfrentar a catástrofe e a angústia do desamparo.
Berlinck interpreta criativamente o Manuscrito freudiano, como uma “teoria geral da natureza psicopatológica da humanidade” (1999), tema que desenvolve em seu excelente artigo “Catástrofe e representação. Notas para uma teoria geral da Psicopatologia Fundamental” (1999). No seu entender, é a partir da catástrofe que surge a linguagem. Dito de outro modo, é a partir do sofrimento que se fala e se escreve.
De outra feita, foi peremptório: “o pathos manifesta uma subjetividade que é capaz, através da narrativa, do relato, do discurso, da expressão em palavras, de transformar a paixão, o assujeitamento, numa experiência” (Berlinck, 1997, s/p). As palavras podem tecer, na experiência clínica, uma possibilidade de transformar o sofrimento psíquico em trabalho e criação. No momento essa é a nossa missão: transformar o luto que vivemos pela perda irreparável do amigo e colega Manoel em trabalho de criação, e levar adiante o desejo de manter a RLPF como espaço de transmissão e compartilhamento da experiência clínica.
Referências
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Berlinck, M. T. (1997). O que é a Psicopatologia Fundamental. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, 17(2). http://dx.doi.org/10.1590/S1414-98931997000200003
» http://dx.doi.org/10.1590/S1414-98931997000200003 -
Berlinck, M. T. (1999, março). Catástrofe e representação. Notas para uma teoria geral da Psicopatologia Fundamental. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, 2(1), 9-34. http://dx.doi.org/10.1590/1415-47141999001002
» http://dx.doi.org/10.1590/1415-47141999001002 - Freud, S. (1987). Neuroses de transferência: uma síntese (rascunho do décimo segundo ensaio metapsicológico de 1915). In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1985).
- Nestrovski, A. & Seligmann-Silva, M. (2000). Apresentação. In Nestrovski, A. & Seligmann-Silva, M. (Orgs.), Catástrofe e Representação São Paulo: Escuta.
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Editores do artigo/Editors: Profa. Dra. Ana Maria Rudge e Profa. Dra. Sonia Leite
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Oct-Dec 2016
Histórico
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Recebido
15 Dez 2016 -
Aceito
16 Dez 2016