Resumos
O objetivo do artigo é pensar a clínica psicanalítica com casos que se configuram como patologias do narcisismo. Com base na teorização de A. Green sobre o caráter mortífero das organizações narcísicas, assim como as contribuições de S. Ferenczi e D. W. Winnicott, examinaremos as vicissitudes de uma relação primária fusional com o objeto materno. A análise de uma vinheta ilustra as dificuldades de manejo clínico no contexto de regressão à dependência e reação terapêutica negativa.
Palavras-chave Narcisismo; trauma; patologias narcísicas; psicanálise
The article aims to investigate the specificity of psychoanalytic treatment of narcissistic pathologies. Based on the theory of A. Green about the deadly nature of narcissistic organizations, as well as the contributions of S. Ferenczi and D. W. Winnicott, we examine the vicissitudes of a primary fusional relationship with the maternal object. A vignette illustrates the clinical difficulties in the context of regression to dependence and negative therapeutic reaction.
Keywords Narcissism; trauma; narcissistic pathologies; psychoanalysis
L'objectif de cet article est de réfléchir sur la spécificité du traitement psychanalytique sur la base de cas qui se configurent en tant que pathologies du narcissisme. En prenant comme base la théorie de André Green sur la dimension mortifère des pathologies narcissiques, ainsi que les théories de S. Férenczi et D. W. Winnicott, on examine les vicissitudes d'une relation primaire fusionnelle avec l'objet maternel. L'analyse d'une vignette clinique illustre les défis du traitement clinique liés aux cas de la régression à la dépendance et à la réaction thérapeutique négative.
Mots clés Narcissisme; traumatisme; pathologies du narcissisme; psychanalyse
El objetivo de este artículo es pensar en el tratamiento psicoanalítico de los casos que se configuran como patologías narcisistas. Basados en la teoría de A. Green, sobre de la naturaleza mortal de las organizaciones narcisistas, así como también en las contribuciones de Ferenczi y de D. W. Winnicott, examinaremos las vicisitudes de una relación primaria fusional con el objeto materno. El análisis de una viñeta ilustra las dificultades del manejo clínico en el contexto de regresión a la dependencia y la reacción terapéutica negativa.
Palabras clave Narcisismo; trauma; patologías narcisistas; psicoanálisis
Ziel des Artikels ist die Berücksichtigung der Spezifik der klinischen Psychoanalyse in Fällen narzisstischer Erkrankungen. Basierend auf der Theorie von A. Green über die tödliche Natur narzisstischer Veranlagungen, sowie der Beiträge von Ferenczi und D. W. Winnicott, untersuchen wir die Wechselwirkungen in einem primär mütterlichen Beziehungsrahmen. Die Analyse einer Vignette zeigt die Schwierigkeiten bei der klinischen Behandlung im Kontext einer Regression in Abhängigkeit und negative therapeutischer Reaktion.
Schlüsselwörter Narzissmus; Trauma; Narzisstische Erkrankungen; Psychoanalyse
Introdução
Atualmente muito se tem discutido acerca das modificações técnicas exigidas pelos quadros clínicos que se configuram como patologias do narcisismo, quadros considerados refratários à análise e que põem em xeque a técnica psicanalítica clássica. A natureza dos impasses colocados por tais pacientes à prática clínica parece estar intimamente associada à particularidade de seu funcionamento psíquico, indicativo de uma prevalência da pulsão de morte sobre o princípio de prazer. À diferença do neurótico, o sofrimento subjetivo predominante nestes casos não pode ser atribuído a um sintoma remetido a material recalcado. Embora muitas vezes também apresentem sintomas neuróticos, que, nesses casos, parecem ter um lugar secundário em sua organização subjetiva. Isso porque a origem de seu sofrimento não se encontra prioritariamente atrelada a questões em que a dinâmica do desejo e do recalque se fariam presentes. A fragilidade narcísica, por sua vez, se revela em primeiro plano como questão privilegiada na vida psíquica desses sujeitos.
Se a discussão sobre as patologias do narcisismo ganha corpo atualmente, não significa que tais quadros clínicos constituam uma patologia nova, inédita. Longe de se restringir unicamente ao universo clínico contemporâneo, os limites impostos por pacientes desse tipo já eram notados por Freud (1920/1974) e assinalados mais direta e enfaticamente por autores como Ferenczi (1933/2011) e Winnicott (1956/2000). No entanto, o que parece estar em questão hoje é que os quadros clínicos estritamente neuróticos vêm se tornando cada vez mais incomuns na prática clínica. A essa constatação, acrescenta-se o fato de os analistas, por seu lado, estarem especialmente atentos às problemáticas de ordem narcísica, o que reforça a ideia de um aumento da demanda de análise de pacientes que diferem da tipologia clássica do neurótico (Green, 1990, McDougall, 1978, Pontalis, 2005).
O objeto materno fusional
Entre as mais diversas sintomatologias, é possível destacar uma problemática central nas patologias narcísicas: a ocorrência de angústias relacionadas predominantemente ao temor de indiferenciação e de morte psíquica, contra as quais esses sujeitos lançam mão de estratégias de defesa diante do risco de se perder e desaparecer na relação com a alteridade (André, 1999; Green, 1988; McDougall, 1978). Daí decorrem manobras defensivas que se configuram como uma luta contra angústias primitivas que confrontam o aparelho psíquico com um sentimento de avassalamento intolerável (Green, 1990). Eis um aspecto comum às angústias típicas de subjetividades marcadas por estados de fusão eu-outro, como propõe Green (1988) a propósito das manifestações concernentes a um narcisismo de morte. Com o conceito de narcisismo de morte, o autor busca desenvolver uma explicação metapsicológica que conjuga e articula os conceitos de narcisismo primário e pulsão de morte.
Convém lembrar que no narcisismo primário, se pensarmos a partir do ponto de vista do bebê, o objeto primário está incluído em sua organização narcísica, compondo a unidade mãe-bebê. Entretanto, dificuldades no processo de separação eu-outro podem manter o sujeito em um tipo de relação fusional com o objeto primário por mais tempo do que seu narcisismo primário exigiria. Daí resultaria a problemática subjetiva central dos casos que revelam patologias narcísicas, cuja história infantil pode ser remetida a um narcisismo de morte, decorrente seja da presença invasiva de um objeto primário de caráter absoluto, seja, ao contrário, de uma ausência excessiva que jogaria o bebê em um estado de desamparo mortífero (Green, 1988; Pontalis, 1988).
Quando os processos de separação entre mãe e criança transcorrem de forma exitosa, gradativamente a criança abdica do objeto materno em seu caráter de objeto fusional. Desse modo, a criança pode investir em novos objetos, processo fundamental para sua constituição narcísica. Green (1988) sublinha a importância crucial da experiência da perda do objeto, elevando-a à categoria de experiência fundamental para a estruturação psíquica do sujeito. Quando isso não acontece, os limites não se estabelecem claramente e o eu primário da criança permanece confundido com o objeto, devido ao fracasso da experiência de separação e diferenciação. Trata-se, nesses casos, de uma figura materna que não pode ser perdida de forma definitiva, cuja perda não é elaborada. O sujeito não consegue, assim, renunciar ao objeto, na medida em que ele é a única garantia de manutenção de sua frágil integridade narcísica (Green, 1988).
Pretendemos examinar, neste artigo, como tal dinâmica subjetiva faz sua entrada no contexto clínico psicanalítico. Para tanto, a discussão de uma vinheta clínica1 nos permitirá ilustrar a especificidade da dinâmica transferencial com os quadros narcísicos.
Uma ilustração clínica
Joana procurou a análise queixando-se de um sentimento de vazio e de solidão constante. Aos 50 anos de idade, vive sozinha e tem como ocupação um doutorado que começou a cursar após ter trabalhado muitos anos em empresas fora do Estado do Rio de Janeiro. Embora tenha dado lugar especial ao trabalho em sua vida, justificando que, na sua idade, “se você não está casada nem tem filhos, precisa ter algo mais, o trabalho”: sempre se sentiu insatisfeita profissionalmente. Com o doutorado não tem sido diferente e Joana se queixava frequentemente do grande estresse e de inúmeros problemas em sua vida acadêmica.
A fala de Joana em análise girava na maior parte do tempo em torno de suas figuras parentais. Seus pais se divorciaram quando ela tinha 10 anos e, no que se refere à vida anterior ao episódio, Joana não trazia nenhum relato. Suas lembranças da infância são escassas. O pai sumiu de sua vida após ter se separado de sua mãe, tendo se mudado para outro Estado. Desde então, ficou sozinha com a mãe, por quem sempre se sentiu muito responsável até seu falecimento, quando Joana tinha 30 anos. Mas, como veremos, embora morta há 20 anos, sua mãe permanecia excessivamente presente em seu espaço psíquico.
Joana contou que, após a separação do pai, sua mãe não lhe permitia que falasse coisas positivas sobre ele. Sempre que isso acontecia, a mãe a arranhava, a trancava fora de casa e “dizia que eu queria transar com meu pai, que eu era uma prostituta” Ela não se lembrava muito bem, mas achava que alguém tinha lhe contado que sua mãe sofria de esquizofrenia. Quando se graduou e se mudou para outro Estado para trabalhar, onde ficou por anos, sua mãe deprimiu e parou de falar com ela por meses. Depois, quando a mãe morreu, foi Joana quem teve depressão: “naquela época, senti um vazio muito grande porque minha mãe me preenchia muito”. Era facilmente perceptível que, embora se referisse a episódios de agressão física e verbal por parte da mãe, tinha dela uma imagem bastante idealizada. Geralmente se emocionava ao falar da mãe, sempre a elogiando e não se autorizando a sentir raiva pelos episódios violentos. Contudo, os afetos de Joana por sua mãe, mesmo que não conseguisse falar sobre o ódio que sentia, oscilavam entre o extremo da idealização à sensação de sufocamento.
Nota-se facilmente na fala de Joana uma figura materna invasiva e intrusiva, como ilustra a fantasia vampírica esboçada por ela ao descrever a ligação entre as duas: “se ela pudesse, tirava até o sangue das minhas veias para botar nas dela” Não por acaso, Joana viveu esses tempos com o sentimento de que eram “infernais”, quando sua mãe lhe telefonava constantemente para dizer que iria morrer. Na época, Joana também pensara em se matar, chegando, certa vez, a subir no topo de um prédio para se jogar.
A incapacidade de estabelecer fronteiras seguras na relação com o objeto materno nos levou a supor, em Joana, a ocorrência de traumas precoces em sua relação com o ambiente, o que teria tornado frágeis os processos de constituição psíquica e, portanto, identitários. O papel que cabia a Joana, em sua relação com o outro materno, pode ser caracterizado como o de “guardião do túmulo” — alcunha sugerida por Green (1988) para sujeitos cuja única função é a de manter prisioneira a figura da mãe morta, “que permanece, assim, como seu bem particular” (p. 263), na impossibilidade de tornar-se um objeto distinto reconhecido na sua alteridade.
O apelo à figura paterna
Nos quadros psicopatológicos característicos de uma relação primária fusional, constata-se com frequência uma inaptidão da imagem paterna para funcionar como modelo identificatório. Nesses casos, observa-se uma conjuntura familiar marcada pelo apagamento ou desqualificação da figura do pai (McDougall, 1978). Como afirma Chabert (2008), ao referir-se àquelas situações próprias às “análises menos clássicas, nas assim chamadas ‘análises complicadas’” (p. 17), o apelo ao pai torna-se indispensável. Esse apelo manifestar-se-ia na solicitação ao deslocamento que ele pode oferecer, no sentido de um terceiro termo que separa e diferencia, deslocando o sujeito da posição de submissão com relação à figura materna.
No caso de Joana, apesar da interdição da mãe para que não se aproximasse do pai, ela insistia na reivindicação pela presença mais consistente da figura paterna, o que pareceu representar uma tentativa de estabelecer limites mais estáveis contra a vivência psíquica de domínio materno. Mas a reaproximação com o pai só ocorreria muitos anos depois do falecimento da mãe. Joana contou, com sofrimento, que quando se reencontraram, seu pai, já de início, disse que não tinha nada para dar a ela. Essa fala a deixou muito ressentida, assim como o fato de o pai ter construído uma outra família, para quem “ele dá tudo” — seu pai estava no terceiro casamento, mas Joana ainda se referia à esposa dele como “amante”
Chabert (1999) assinala que, nas patologias do narcisismo não se trata da ausência de uma estruturação edípica. Tais configurações subjetivas não excluem, necessariamente, uma experiência de travessia pela triangulação edípica — como ilustra a posição de Joana com relação ao pai. Assim é que vemos nela uma rivalidade imaginária dirigida à esposa do pai, repetindo o triângulo de seu romance familiar, fantasia edípica reforçada, na infância, pelo discurso materno que revelava que a filha — “prostituta” — desejava o pai.
O que parece ocorrer, nesses casos, é que a organização do Édipo teria se dado de maneira diversa daquela da neurose. Devido à dificuldade de acesso à ambivalência, eles são incapazes de associar, de uma forma tolerável, os sentimentos de amor e ódio, endereçando-os a um único objeto. Se a organização edípica neurótica caracteriza-se por uma ambivalência vivida com relação a cada um dos pais, nesses casos ocorreria uma forma de divisão da ambivalência, ou seja, sente-se amor por um e ódio pelo outro (Chabert, 1999). Com isso, Joana descrevia seu pai como “covarde” e “moleque”, expressões que revelam a inconsistência e abatimento da imagem paterna, aspectos da conjuntura familiar caracterizada acima.
Quanto aos relacionamentos amorosos, Joana teve um único namorado que parece ter tido importância para ela, com quem morou por dois anos quando residia em outro Estado (quando, necessariamente, estava distante da mãe). Mais recentemente, Joana só se relacionava com homens mais jovens, de condição financeira inferior e que não queriam envolvimento. Essas relações instáveis produziam nela, pela compulsão à repetição, intenso sentimento de rejeição e de menos valia. Todos os relacionamentos que Joana estabelecia pareciam questioná-la sobre o seu valor como sujeito, uma vez que se sentia abandonada e sem valor.
A sensação de vazio relatada pela paciente, que se somava a um sentimento de menos valia, é um traço identificatório que se observa nas patologias narcísicas: o sentimento de inconsistência na certeza de si (Pinheiro & Viana, 2011). São pacientes cuja vida psíquica pode ser experimentada como artificial ou sem valor, indicando uma fragilidade quanto à certeza e ao valor da sua própria existência. Fragilidade que remete à dimensão traumática de sua constituição narcísica, determinando traços de caráter que conjugariam pessimismo moral, ceticismo e desconfiança em si próprio e no mundo (Ferenczi, 1929/2011).
O traumático em Ferenczi
Na descrição metapsicológica das patologias do narcisismo, convém frisar outro elemento de sua dinâmica psíquica que os distingue do paradigma da neurose. Trata-se de uma organização psíquica cujo sofrimento, menos remetido ao processo de recalcamento, revela uma dominância do mecanismo de defesa da clivagem narcísica. A clivagem narcísica pode ser entendida como resultado de um trauma desestruturante vivido precocemente pelo sujeito. Assim, propomos apresentar, ainda que de forma bastante abreviada, a teoria de Ferenczi (1933/2011) acerca do trauma desestruturante.
A teoria da traumatogênese em Ferenczi (1933/2011) tem como eixo central uma violência sexual: um adulto agressor que abusa de uma criança. A cena traumática se organiza, de um lado, com uma brincadeira de sedução, de caráter lúdico, por parte da criança, modo pelo qual ela expressa seu amor terno pelo adulto. De outro lado, o adulto, incapaz de compreender a linguagem da ternura da criança, realiza um ato de violência sexual, abusando da criança e impondo sua linguagem da paixão, modo de expressão da sexualidade adulta. Instaura-se assim uma confusão de línguas. A criança é impactada pela linguagem da paixão do adulto, cuja autoridade opressiva a impede de protestar, mesmo em pensamento, reagindo com um medo intenso e sentindo-se física e moralmente indefesa. Depois da agressão, a criança não pode sentir ódio por aquele adulto, pois precisa preservá-lo como objeto idealizado. Como resposta defensiva, a criança se identifica com o agressor, esquecendo-se de si mesma, o que abre caminho para que a figura do agressor passe a ocupar, de forma invasiva, seu espaço psíquico (Ferenczi, 1933/2011).
Em um segundo momento, a criança recorrerá a outro adulto, em quem confia, para contar o ocorrido, como uma tentativa de elaborar psiquicamente a violência sexual sofrida. Esse adulto reage com incredulidade ao relato da criança, desmentindo sua fala. O desmentido do adulto, mais do que o próprio ato de violência sexual, torna o trauma desestruturante, uma vez que, ao invalidar a fala da criança, impede a inscrição psíquica da experiência de violência. Nesse sentido, o fator traumático não seria a confusão de línguas, mas sobretudo a negação da experiência vivida e narrada pela criança. No contexto traumático, como explica Ferenczi (1931/2011), “o pior é realmente a negação, a afirmação de que não aconteceu nada, de que não houve sofrimento” (p. 91). O adulto que desacredita a criança falha em sua função de mediador, mostrando-se incapaz de conter, filtrar e metabolizar o excessivo da experiência de não sentido produzida pelo evento traumático (Pinheiro, 2016).
O desmentido é, assim, entendido como o fator traumatogênico central, o que permite considerar a experiência traumática para além do conteúdo sexual presente na teoria de Ferenczi. Como esclarece Verztman (2002), nas relações objetais precoces, o trauma torna-se patológico quando um aspecto essencial da singularidade da criança é desmentido pelo outro. “Quando o desmentido atinge uma área onde a afirmação de si seja prioritária, neste caso a verdade das próprias sensações, o que é desmentido é o próprio sujeito” (p. 8). Assim, como resultado do desmentido, a experiência de sofrimento extremo permaneceria como parte clivada, excluída de seu psiquismo, abalando radicalmente a capacidade da criança de reconhecimento de si e de seus sentidos (Ferenczi, 1933/2011).
A teoria do trauma ferencziano nos oferece subsídios para a compreensão do modelo de relação objetal que ora descrevemos. A fragilidade narcísica desses pacientes, decorrente do fracasso da experiência de separação e diferenciação eu-outro, permite supor que, em sua história infantil, o ambiente não teria sido capaz de favorecer uma gradual separação eu-outro. Tratar-se-ia de uma modalidade de relação objetal que, por não conferir ao infante o reconhecimento de sua singularidade, acabaria por desmentir o próprio sujeito. Essa experiência é da ordem de uma violência traumática à qual só resta ao sujeito responder pela identificação ao objeto e por uma intensa idealização — qualidade do objeto primário da qual a criança não pode abrir mão.
O caráter de dominação na transferência
O caráter mortífero dessas organizações psíquicas se apresenta de forma acentuada no contexto clínico, na medida em que a compulsão à repetição, a reação terapêutica negativa e a força da transferência parecem adquirir aqui o seu maior significado. Tais casos são precisamente aqueles mais capazes de colocar o analista à prova, convocando-o na transferência e influenciando-o direta e opressivamente (Fédida, 2009; Green, 1990; Pontalis, 2005).
Ao longo do processo de análise com esses pacientes, o contexto traumático próprio à relação objetal primária se reatualiza na transferência com toda força. Um aspecto comumente observado é a tendência ao estabelecimento de um estado de regressão fusional e de dependência ao objeto. Se o modelo princeps de relação objetal desses pacientes é caracterizado pela dominação absoluta do objeto primário, a situação analítica propicia igualmente experiências que apontam para uma não diferenciação sujeito-objeto.
É um modelo clínico que foi bem descrito por Winnicott (1956/2000), ao propor que, em determinados casos, definidos como “fronteiriços”, o analista precisa lidar predominantemente com uma tendência do paciente à regressão à dependência. Nesses casos, a transferência apresenta uma qualidade diferente daquela própria aos neuróticos: “enquanto na neurose de transferência o passado vem ao consultório, neste tipo de trabalho é mais correto dizermos que o presente retorna ao passado e é o passado” (p. 396). A especificidade da dinâmica transferencial nesses casos é menos decorrente de uma repetição de afetos ligados à relação com o objeto primário, mas apresenta-se sobretudo sob a forma de uma “encarnação”, nos termos de Pontalis (1991). Do encontro com tais pacientes, é impossível ao analista escapar incólume. Impõe-se uma situação na sessão em que o analista sente seu espaço psíquico invadido, ocupado. Tudo se passa como se o paciente tivesse o poder de invadir sua interioridade, posição que decorreria de uma identificação à experiência traumática original do paciente.
Os pacientes mais refratários à análise são aqueles, segundo Pontalis (1988), que mais intensamente investem a relação analítica e o analista em sua presença total. No trabalho com os quadros narcísicos, o analista se vê impregnado por uma relação de natureza fusional, capaz de produzir reações psíquicas intensas e que impacta pela violência desmedida da transferência. É esta a especificidade transferencial que se destaca na análise de Joana, com quem cada encontro era marcado pela intensidade de sua presença. O sentimento desesperador de vazio dominava a cena analítica, como se, na atualidade das sessões, também o espaço psíquico da analista fosse ocupado por afetos mortíferos. Por isso Fédida (2009) pode dizer que, nesses casos, o analista tem a impressão de lidar com uma ameaça de sufocamento ou de asfixia psíquica, instaurando uma experiência psíquica de indiferenciação onde o processo analítico pode se mostrar estagnado.
Com Joana, não foi diferente: na relação com a analista, estabeleceu desde o começo uma intensa transferência na qual idealizava a analista e esperava que ela oferecesse opiniões diversas ou aprovasse o que fazia. Joana tentava sempre agradar, levando presentes e tecendo inúmeros elogios, quer ao processo analítico, quer à analista. Como o caso vinha sendo atendido no âmbito do estágio curricular na clínica-escola de uma universidade, com tempo de duração de 12 meses, ao fim do período Joana se mostrou extremamente interessada em continuar sua análise, ao mesmo tempo em que falava de suas fantasias em ser abandonada por sua analista. Contou ter tido outros psicólogos e que a última analista interrompeu o tratamento após Joana ter se exaltado com ela, confessando que não estava dando conta dela. Agora seria sua última tentativa. Reafirmava com isso seu temor de abandono, certificando-se de que a analista não a rejeitaria. A analista funcionava como sua “teia” — dizia ela —, na qual precisava se prender para se salvar. A imagem da “teia” parece remeter ao ato de se grudar ou se aderir à analista, repetindo a fantasia dual da relação precoce.
A reação terapêutica negativa
No decorrer das sessões, as perguntas sobre o fim do período de estágio da analista tornavam-se cada vez mais frequentes, embora lhe fosse assegurado ser possível continuar os atendimentos particularmente. Quando, finalmente, chegou o momento de saída da analista, Joana afirmou querer continuar a ser atendida pela analista fora da clínica-escola, mesmo sendo necessário um intervalo de dois meses para que a analista pudesse obter seu registro profissional. Assim ficou combinado: a analista entraria em contato quando pudesse retomar os atendimentos, o que não tardou a acontecer.
Diante do telefonema da analista após o período de intervalo, Joana aparentou alívio extremo, dizendo ter pensado que a analista a tivesse esquecido. Contou ter sentido muita falta da análise, a ponto de sentir “angústias de morte”. Desejava recomeçar a análise o mais cedo possível. No entanto, alguns dias depois do contato, telefonou para a analista dizendo que não estava mais precisando dos atendimentos e que preferia interromper a análise.
A reação terapêutica negativa, ao designar o movimento refratário de certos pacientes à experiência analítica, é entendida por Freud (1937/1974) como uma resposta negativa do paciente ao processo de análise. Trata-se da manifestação de uma reação invertida ao tratamento, pela qual o sofrimento sobrepuja toda possibilidade de melhora. Uma recusa por parte do paciente a todo movimento da análise, como se qualquer esboço de movimento psíquico pudesse representar para o paciente um perigo do qual ele busca a todo custo se precaver (Chabert, 1999; Pontalis, 1988).
Segundo Pontalis (1988), diante de um “excesso de mãe dentro de si” (p. 65), a única resposta possível para o sujeito seria, paradoxalmente, a reação. O “não” ao dispositivo analítico seria entendido, portanto, como uma tentativa por parte do sujeito de separar-se, individualizar-se. Assim, na recusa à análise é possível entrever, paradoxalmente, um movimento afírmativo por parte do paciente, pelo qual ele procura enfrentar e resistir à ameaça de fusão e indiferenciação atualizada na relação transferencial. Vemos assim, no fenômeno da reação terapêutica negativa, uma estratégia defensiva utilizada por esses sujeitos para tentarem se libertar do poder de dominação do objeto primário absoluto. Desse modo, um fenômeno que traz características que podem ser qualificadas como negativas, se revela nesses casos, paradoxalmente, como um modo de afirmação de um território subjetivo. Na clínica com pacientes que manifestam, como problemática subjetiva central, modalidades de sofrimento narcísico, o principal desafio na direção do tratamento consiste em buscar favorecer a capacidade de o sujeito se afirmar em sua existência separada do outro, mas sem que disso decorra um desfecho que represente uma recusa ao tratamento.2
A respeito da especificidade da técnica psicanalítica com esses pacientes, cabe lembrar a recomendação de Ferenczi (1933/2011) contrária a toda manifestação de rigidez psíquica do analista. O autor critica a “hipocrisia profissional” dos analistas (p. 349), isto é, o apego excessivo à técnica clássica, cuja postura fria e distanciada, segundo ele, comportaria o risco de reeditar a situação traumática original. Diante dessas circunstâncias, o que se observa atualmente, como resposta a tal dificuldade, é o analista ser convocado a tornar mais flexível — ou mais elástica (Ferenczi, 1928/2011) — a técnica psicanalítica tradicional, colocando-se “no diapasão” (p. 42) do paciente. Trata-se, aqui, da disponibilidade para se afinar ao ritmo do paciente, sensível para aquilo que se passa na relação transferencial, abrindo-se para um encontro afetivo compartilhado. Nesses termos, o desafio clínico colocado pelas patologias narcísicas consiste, sobretudo, na possibilidade de o analista estabelecer uma dinâmica transferencial que instaure uma troca que “pede nem ressonância demais nem disparidade demais” (Pontalis, 2005, p. 237). Ao analista, cabe reconhecer o analisando em sua alteridade, evitando um excesso de ressonância e promovendo assim alguma disparidade, a fim de buscar desfazer a ilusão de indiferenciação eu-outro.
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1
Caso clínico atendido no âmbito do Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Convém esclarecer que os pacientes atendidos no SPA/PUC-Rio assinam Termo de Consentimento e são informados sobre o caráter de ensino e pesquisa da instituição.
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2
Convém esclarecer que a interrupção do tratamento por parte da paciente não permitiu que se extraísse material suficiente para uma discussão sobre o manejo da transferência no caso clínico apresentado. Essa interrupção, no entanto, nos levou a privilegiar uma análise metapsicológica sobre aspectos da reação terapêutica negativa presentes no fragmento de caso.
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Financiamento/Funding: Pesquisa financiada pelo PAPD/FAPERJ (processo n.E-26/101.766/2014) e CNPq (processos n. 479274/2013-4 e 305175/2012-2) / Research funded by PAPD/FAPERJ (process n.E-26/101.766/2014) and CNPq (processes n. 479274/2013-4 e 305175/2012-2)
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Editores do artigo/Editors: Profa. Dra. Ana Maria Rudge e Profa. Dra. Sonia Leite.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Mar 2018
Histórico
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Recebido
05 Fev 2016 -
Aceito
15 Abr 2016