Resumos
Este artigo pretende discutir aspectos universais e peculiares da vivência de luto no contexto da pandemia por COVID-19, a partir da escuta clínica de familiares que perderam seus parentes que se encontravam internados. O trajeto para atingir este objetivo inicia-se com a descrição do espaço de escuta fornecido pelo APEM-COVID no Hospital de Clínicas da Unicamp; segue com uma apresentação sobre o luto na perspectiva de alguns reconhecidos autores e continua discutindo elementos observados no processo de luto inserido numa conjuntura sem precedente na história recente. As falas recortadas dos atendimentos dialogam e desafiam aspectos teóricos, pelo inédito do momento em que se inserem, valorizando a importância do cuidado ofertado e seu potencial de construção de saber.
Palavras-chave: Luto; COVID-19; sistemas de apoio psicossocial; serviços hospitalares
The present article discusses universal and particular aspects of the mourning process during the COVID-19 pandemic. It is based on clinical listening of families who lost relatives at our inpatient service. First, we describe the type of care offered by the APEM-COVID group at the General Hospital of the University of Campinas. Then we present different theoretical approaches to grieving and finally discuss specific elements of grief noticed during the pandemic. Excerpts extracted from clinical appointments relate to and challenge theoretical aspects, shedding light on the importance of the specific type of care provided to patients and its potential to build knowledge.
Key words: Grief; COVID-19; psychosocial support systems; hospital services
Cet article discute quelques aspects universels et particuliers de l’expérience du deuil dans le contexte de la pandémie de COVID-19 à partir de l’écoute clinique de membres de famille de patients internés décédés. En premier lieu, on décrit l’espace d’écoute que le groupe APEM-COVID offre aux patients et à leurs familles à l’Hôpital des Cliniques de l’Université de Campinas. Ensuite, de différentes perspectives sur le deuil d’auteurs renommés sont présentées et pour conclure, on discute les éléments identifiés du deuil lors de ce moment si tragique et sans précédent dans l’histoire mondiale récente. Les discours des proches défient souvent les aspects théoriques dû à l’inédit du moment dans lesquels ils sont insérés, ce qui souligne l’importance des soins offerts et leur potentiel pour la construction du savoir.
Mots clés: Deuil; COVID-19; systèmes de soutien psychosocial; services hospitaliers
El presente artículo pretende discutir aspectos universales y particulares del duelo ocasionado por la pandemia de COVID-19, tomando como punto de partida la escucha clínica de familiares de pacientes que murieron durante la hospitalización. Empezaremos con la descripción del espacio de escucha, ofrecido por el grupo APEM-COVID, en el Hospital de Clínicas de la Universidad de Campinas; enseguida, presentaremos conceptos de duelo en la perspectiva de autores muy reconocidos; y por fin discutiremos los elementos del proceso de duelo durante la presente coyuntura de una pandemia sin precedentes en la historia reciente de la humanidad. Aspectos teóricos son desafiados por la realidad invocada en las palabras de los familiares escuchados y se vuelve evidente la importancia del cuidado ofrecido, así como el potencial de construir conocimiento acerca del duelo durante situaciones extremas.
Palabras clave: Duelo; COVID-19; sistemas de apoyo psicosocial; servicios hospitalarios
Em memória de João Jacob Hoelz e de tantos outros que faleceram por COVID-19.
Introdução
“O luto, via de regra, é a reação à perda de uma pessoa querida ou de uma abstração que esteja no lugar dela, como pátria, liberdade, ideal etc.”, assim Freud nos apresenta o luto, em seu clássico “Luto e melancolia” (Freud, 1915/2011, p. 48). A pandemia de COVID-19 (doença pelo novo coronavírus, SARS-CoV-2) afetou drasticamente o bem-estar socioemocional e físico de bilhões de pessoas em todo o mundo (Sohrabi et al., 2020; Singer, Spiegel & Papa, 2020) e lançou-nos a todos, em menor ou maior intensidade, a um processo de luto (ou lutos). São muitas as perdas: a liberdade de circular livremente, a possibilidade de nos reunirmos, as condições de trabalho, estudo e fruição que, inadvertidamente, tendíamos a dar por garantidas, e o distanciamento usual em relação à ideia da morte, constitutivo de nosso funcionamento mental, para o qual Freud chamou a atenção em “Considerações atuais sobre a guerra e a morte” (Freud, 1915/2010). A pandemia de COVID-19, assim como a guerra que inspirou o texto freudiano, constitui uma cena catastrófica que nos atravessa coletivamente, deixando marcas em todos aqueles que a vivenciam (Verztman & Romão-Dias, 2020). Correlativamente, um crescente corpo de literatura aponta as repercussões mais imediatas da pandemia em termos de sofrimento mental na população em geral (Kontoangelos, Economou & Papageorgiou, 2020).
Dentre as diversas vivências de luto decorrentes da pandemia, nosso foco neste artigo recai sobre o luto pela perda de um familiar próximo por COVID-19. Segundo Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde (Ministério da Saúde, 2020) o primeiro óbito por COVID-19 no Brasil ocorreu em 12 de março de 2020, em São Paulo. Decorridos cinco meses desde então, as mortes por COVID-19 no país ultrapassaram a marca de 100 mil, na primeira quinzena de agosto, impondo o sofrimento pela perda de um ente querido a centenas de milhares de brasileiros. Neste trabalho buscamos discutir, a partir da escuta clínica de familiares de pacientes vítimas de COVID-19, algumas especificidades do processo agudo de luto vivido em meio à pandemia. Começamos por apresentar o contexto em que se deu tal escuta, o serviço APEM-Covid (Apoio Emocional aos Pacientes com COVID-19 e seus Familiares), do Hospital de Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em seguida traçaremos considerações mais gerais sobre o luto, especificamente aquele relacionado à perda de um ente querido, e sobre os rituais de despedida. Por fim damos voz a algumas das pessoas enlutadas que ouvimos, trazendo suas falas1 tal como recordadas pelos autores do artigo, para então apresentarmos algumas reflexões sobre o atendimento aos enlutados pela e na pandemia de COVID-19.
O APEM-Covid
O APEM-Covid, é um serviço dirigido a pacientes internados no Hospital de Clínicas da Unicamp (HC-Unicamp) por COVID-19 e a seus familiares com o objetivo de oferecer-lhes uma escuta acolhedora, buscando identificar e, quando possível, minimizar o sofrimento psíquico relacionado ao processo de adoecimento e internação hospitalar no contexto da pandemia. O HC-Unicamp é um hospital universitário de grande porte e alta complexidade, localizado em Campinas, São Paulo. Com o início da pandemia, tornou-se o principal centro de referência regional para o atendimento de casos de COVID-19, redirecionando parte significativa de sua estrutura física e de recursos humanos para o cuidado a pacientes acometidos.
Nesse contexto, o APEM-Covid foi idealizado e implementado por psiquiatras docentes e residentes de psiquiatria do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. O apoio emocional passou a ser oferecido por busca ativa, a partir de abril de 2020, a todos os pacientes e familiares de pacientes internados no HC-Unicamp com COVID-19. Seguindo recomendações de distanciamento social, os atendimentos acontecem majoritariamente através de chamadas e voz e videochamadas realizadas com celulares doados pela instituição e tablets advindos de parceria com equipe da UTI. Tais formas não presenciais de contato também são adotadas pelo grupo para proporcionar a aproximação entre familiares e pacientes em isolamento, impossibilitados de receberem visitas.
Cada grupo composto por paciente e familiar(es) é acompanhado pelo mesmo profissional em atendimentos regulares ao longo de todo o período de internação e, quando necessário, após a alta hospitalar. Nos casos em que o paciente internado vem a falecer, o atendimento volta-se ao apoio emocional ao familiar enlutado (ou familiares). De março até o início de agosto de 2020, foram 418 pacientes internados com COVID-19, no HC-Unicamp, dos quais 78 morreram.
Sobre o luto pela morte de um ente querido
Como bem adverte Thomas Fuchs (Fuchs, 2018) “o luto é um processo complexo e heterogêneo, o qual transcorre e se manifesta de múltiplas maneiras, e que está sujeito a considerável variação e modificação cultural” (p. 45). Trata-se de uma experiência singular, influenciada por fatores tais como: concepções e crenças a respeito da natureza da morte ou de uma morte (Fuchs, 2018), pela relação que existia com a pessoa falecida, pelas circunstâncias nas quais ocorreu o falecimento (Lobb et. al., 2010), e por características próprias do enlutado (Carssorla, 1992; Fuchs, 2013). Feita essa ressalva, podem-se identificar aspectos recorrentes em diversas tentativas de descrever e compreender o luto, sejam elas relatos autobiográficos ou esforços de apreensão teórica, dos quais destacaremos os três a seguir.
O primeiro e mais imediato deles é “o choque”, a dimensão de atraves-samento existencial incontornável que a perda da pessoa amada institui. Fuchs (2018) em seu esforço de investigação fenomenológica do luto, descreve a reação inicial a tal perda como “um ‘choque’ ou um ‘golpe’, partindo a existência em seu âmago, e geralmente experienciada como uma súbita fraqueza física, como se perdendo o chão sob seus pés” (p. 45). O autor Julian Barnes (2013), em sua pungente descrição do luto pela perda da esposa com quem vivera por trinta anos, no livro Levels of Life, diz desse momento, que a sensação ou o sentimento é:
Como se você tivesse caído de uma altura de várias dezenas de metros, consciente o tempo todo, tivesse atingido o solo primeiro com os pés [...] com um impacto que fez você afundar até os joelhos, e cujo choque fez com que seus órgãos internos se rompessem e explodissem para fora de seu corpo. (pp. 75-76; tradução livre dos autores)
O segundo é o de que a pessoa enlutada vivencia uma “ambiguidade fundamental entre presença e ausência, entre o presente e o passado” (Fuchs, 2018, p. 44), entre o habitar um mundo ainda compartilhado com a pessoa amada e no qual ela sobrevive, e o habitar um mundo transformado e ainda estranho, onde a pessoa amada não se encontra mais. Tal ambiguidade pode se manifestar em uma dolorosa oscilação entre reconhecimento e negação da perda. Em “Luto e melancolia”, Freud (1915/2011) descreve essa oscilação entre presença e ausência em termos de economia libidinal:
[...] a prova de realidade mostrou que o objeto amado já não existe mais e agora exige que toda a libido seja retirada de suas ligações com esse objeto. Contra isso se levanta uma compreensível oposição [...] Essa oposição pode ser tão intensa que ocorre um afastamento da realidade e uma adesão ao objeto por meio de uma psicose alucinatória de desejo. O normal é que vença o respeito à realidade. Mas sua incumbência não pode ser imediatamente atendida. Ela será cumprida pouco a pouco com grande dispêndio de tempo e de energia de investimento, e enquanto isso a existência do objeto de investimento é psiquicamente prolongada. (p. 49)
Dessa oposição à realidade dolorosa e radical da perda, nos fala em primeira pessoa a escritora espanhola Rosa Montero (2019), a respeito da morte de seu companheiro por 21 anos, Pablo Lizcano:
A primeira coisa que te derruba no luto: a incapacidade de pensar nele e admiti-lo. A ideia simplesmente não entra na sua cabeça. Como é possível que não esteja mais? [...] É uma realidade inconcebível que a mente rejeita: não vê-lo nunca mais é uma piada sem graça, uma ideia ridícula. (p. 18)
Em seu belo livro, A ridícula ideia de nunca mais te ver (Montero, 2019, p. 18), Rosa Montero entrelaça sua história pessoal de luto à da pioneira cientista Marie Curie, resgatada do diário que esta escreveu após a morte trágica de seu marido e companheiro de trajetória científica, Pierre Curie. “Entro no salão. Dizem-me: ‘Morreu’. Pode alguém entender tais palavras? Pierre morreu”, Madame Curie registra em 30 de maio de 1906 (Currie, 1906, apud Montero, 2019, p. 184), 11 dias após o acidente com carruagem que matou Pierre. E em 1º. maio:
Quanto a mim, tenho momentos de insensibilidade quase completa, e o que me surpreende muito é que consigo trabalhar às vezes. Mas os momentos de placidez são raros, e há sobretudo um sentimento de desamparo obsessivo, com momentos de angústia, e também uma inquietude, e às vezes tenho a ideia absurda de que tudo isso é uma ilusão e que vais voltar. Não tive ontem, ao ouvir a porta fechar, a ideia absurda de que eras tu? (p. 188)
Na citação de Freud precedente, já encontramos o terceiro aspecto recorrente do luto que gostaríamos de destacar: o de que se trata de um processo que se desenvolve “pouco a pouco, com grande dispêndio de tempo e de energia de investimento” (Freud, 1915/2011, p. 49). Por “pouco a pouco”, não se deve entender um desenrolar fluido e contínuo. Tipicamente o luto transcorre com idas e vindas, oscilações entre a impressão intrusiva da presença de quem morreu e a realidade irrevogável de sua ausência (Zisook & Shear, 2009; Fuchs, 2018). Sentimentos de angústia e desespero que, em um primeiro momento, parecem onipresentes, em algum tempo passam a se manifestar em ondas e irrupções, a princípio espontâneas e, mais tarde, provocadas por circunstâncias específicas que remetem à lembrança do morto. Nas palavras de Montero (2019):
[...] o mundo inteiro fica tingido, manchado, marcado por um mapa de lugares e costumes que servem de disparador para a evocação, muitas vezes com resultados tão devastadores quanto a explosão de uma bomba. E assim, um belo dia você está folheando tranquilamente uma revista quando vira uma página e zás, dá de cara com a fotografia de uma daquelas maravilhosas igrejas de madeira medievais da Noruega [...] E você havia estado ali com ele [...] entusiasmados e felizes [...] a bomba da lembrança explode na sua cabeça, ou talvez no coração, ou na garganta. (p. 78)
O processo do luto cumpre “um trabalho” que, na concepção freudiana, consiste no desligamento progressivo da libido em relação ao objeto de prazer e satisfação narcísica que a pessoa morta consistia. Tal desligamento se dá dolorosamente, pelo confronto de cada uma das memórias e expectativas que testemunham a ligação da libido ao objeto com a realidade da perda, da ausência. “Mas de fato, uma vez concluído o trabalho de luto, o ego fica novamente livre e desinibido” (Freud, 1915/2011). Em uma abordagem fenomenológica que não se antagoniza à freudiana, mas de certa maneira a complementa, Fuchs (2018) busca descrever a estrutura experiencial do luto em termos de rupturas de uma intercorporalidade e de um mundo compartilhados. Ao “trabalho do luto”, o autor acrescenta uma reorganização, por parte do enlutado, de sua própria identidade a qual implica integrar uma profunda mudança em seu mundo vivido ao seu self, em dar sentido à perda e em reinvestir tempo, atenção e energia em outras esferas de sua vida. O processo do luto implica a resolução gradual da ambiguidade entre presença e ausência da pessoa amada e, em última instância, permite o restabelecimento do relacionamento com o falecido em um outro nível.
Para que o processo de luto seja bem-sucedido é necessário o reconhecimento de uma realidade fundamentalmente alterada. Em outras palavras, não há como o trabalho do luto se dar sem o reconhecimento da morte. Desde sempre coube à cultura amparar esse processo através de ritos de passagem, cuja função é gradualmente estabelecer e confirmar essa nova ordem.
Rituais de despedida
Em 1947, o autor alemão Wolfgang Borchert escreveu o conto “Nachts schlafen die Ratten doch” (“À noite os ratos dormem sim”; tradução livre), no qual narra a história de Jürgen, um menino de nove anos que passa seus dias a guardar o corpo do irmão de quatro anos, morto após um bombardeio. Temendo que o irmão seja devorado por ratos, o menino se coloca ao lado dos escombros da casa da família a vigiar e espantar ratos com uma vara, pois seu papel de irmão mais velho e protetor permanece vivo, mesmo após o falecimento do pequeno. No reino animal, apesar de várias espécies cuidarem de alguma forma de seus mortos, os seres humanos são os únicos a realizarem cerimônias fúnebres propriamente ditas (Shimane, 2018). O funeral é uma parte importante do comportamento social e propicia a demonstração e o compartilhamento do sofrimento (Shimane, 2018; Walter & Bailey, 2020), mas para muito além disso, os rituais funerários revelam o modo de funcionamento de uma sociedade e como ela lida com a ideia do morrer (Souza & Souza, 2019). Nas sociedades ocidentais na era cristã, somente a partir do século XVIII os rituais funerários passaram a ser de responsabilidade da família, pois, até então, a guarda do corpo ficava aos cuidados do clero. O cuidado do corpo do morto trouxe consigo a necessidade de uma maior reflexão em relação à morte, ao luto e à separação (Fustinoni & Caniato, 2019).
Assim como o pequeno Jürgen, entendemos, enquanto sociedade, que nossos deveres com nossos familiares não terminam com a morte deles. Na realidade, o falecimento gera uma série de comportamentos que devem ser executados e que, de certa forma, alongam o “convívio” do morto com a comunidade e criam tempo para a elaboração da perda. Os rituais fúnebres são fundamentais para que a comunidade assimile o momento de passagem imposto pela morte e consiga prosseguir sua vida (Souza & Souza, 2019). Nesse sentido, os discursos proferidos, seja por leigos ou clérigos, durante velórios têm em seu conteúdo as chamadas “palavras contra a morte”, tendo o objetivo de embeber os presentes em uma atmosfera reconfortante e transformadora que permita lidar com a prova evidente de nossa própria morte trazida à tona pela morte de quem velamos (Bailey & Walter, 2016).
Em nossa cultura, os rituais funerários estão centrados na presença e no simbolismo invocados pelo corpo, que pode ser tocado, lavado, vestido e contemplado uma última vez. Ver o corpo traz concretude à morte e nos prova que enterramos a pessoa certa. Aqui já se demarca uma das especificidades do processo de luto dos que perderam um ente querido para a COVID-19: a imposição de limitações drásticas aos rituais de despedida, sendo a mais significativa a obrigatoriedade de caixões lacrados. Os corpos não podem ser vestidos, tocados, contemplados. A necessidade de que seja mantido o distanciamento social, reduz a um mínimo o número de pessoas permitidas e a duração de velórios. Assim, os familiares das vítimas de coronavírus executam um ritual incompleto, sem nunca voltar a ver o corpo que conheceram e amaram. O sofrimento associado a tal interdição aparece recorrentemente em suas falas, como veremos mais adiante.
O corpo no “saco de lixo”
Eu já entendi que minha mãe vai morrer, mas não quero que seja por essa doença. Não quero que seja enterrada em um saco de lixo.
Não queria ver minha mãe entregue na porta de um cemitério como se fosse um nada.
Foi muito estranho. Meu pai sempre falava “quando eu morrer, vai ser um velório lotado” porque ele tinha muitos amigos, conhecia muita gente. Mas infelizmente não foi como ele pensou.
Minha mãe morreu e eu tava aqui internada (também por Covid). Não teve velório, missa de sétimo dia, nada. Fica uma coisa de “ouvir dizer”. Parece que não é realidade...
Sonhei que vi “ele” (o pai) presencialmente, no caixão... porque só tinha visto por foto. Acho que sonhei porque eu queria tanto ter visto... não ver o corpo contribui para não entender que morreu, parece que não é real.
É estranho...
Queria que a ligação (de oferta de apoio emocional) fosse pra falar que não era ele que estava dentro daquele caixão, que era o corpo errado...
Já vai fazer um mês que ele se foi (o marido), mas ainda parece que ele está aqui, que vai chegar a qualquer hora. Ainda tenho uma ilusão de que não seja verdade. [...] Até cair a ficha que ele morreu, acho que ainda está no hospital. Enquanto não estou vendo nada dele, ele ainda está lá...
Não teve nada, nada! Disseram pra gente que o corpo só pode ser cremado depois de 48 horas e depois disso tem uma fila pra cremar e até 10 dias pra acontecer. Então a gente nem soube que horas e que dia foi... E nem bem onde ficou o corpo nesse tempo todo. É estranho demais! Não dá pra acreditar... Fica faltando “uma coisa”, parece que ainda vai acontecer (a cerimônia fúnebre) ... fica uma pendência, uma expectativa...
Não me conformo. Era pra ele (o pai) ter sido enterrado
com o uniforme do Santos.
Os familiares enlutados que temos atendido nos trazem, quase invariavelmente, com muito pesar, o fato de não terem podido realizar os rituais e cerimônias fúnebres que faziam parte de seus hábitos sociais. Tal interdição aparece, em suas falas, associada a uma sensação ou sentimento de irrealidade que, se em outras circunstâncias já é frequente no momento inicial do luto, na impossibilidade de ver e tocar o corpo adquire uma intensidade muito maior.
Ainda é cedo para avaliarmos os efeitos emocionais, no longo prazo, das alterações de rituais fúnebres durante a pandemia, mas já é bem conhecido que a ausência de tais rituais dificulta a elaboração do luto (Mayland et al., 2020). Nesse sentido, podemos tomar como exemplo o caso dos desaparecidos políticos durante a Ditadura Militar Brasileira. O desaparecido é cindido de sua história e a ele é negada a característica de sujeito, enquanto à sua família é negada a certeza da morte. Por essa estratégia de terror, o desaparecido torna-se uma figura envolta por penumbra, pois não está morto, mas tampouco está vivo, está permanentemente presente e sempre ausente (Fustinoni & Caniato, 2019). E os familiares tornam-se prisioneiros da ambiguidade, divididos entre a esperança e a resignação, impedidos de realizarem plenamente seu luto (Fuchs, 2018).
Nos familiares de vítimas do novo coronavírus a negação da morte e o wishful thinking não encontram a “resistência e o peso da realidade” (Fuchs, 2018, p. 57) que a contemplação do morto oferece e, por vezes, têm se manifestado em fantasias acerca da troca de corpos, da ideia de que a morte do ente querido lhe tenha sido erroneamente comunicada e de que outra pessoa tenha sido sepultada em seu lugar. Fantasias que o relato jornalístico de casos em que tal troca se deu (Uol, 2020) vêm a alimentar.
Outros sentimentos que vêm sendo relatados em associação às restrições de rituais e cerimônias fúnebres giram em torno de ideias de “incompletude”, de “tarefa inacabada” ou mesmo de “missão não cumprida”, que se referem tanto às expectativas do próprio enlutado quanto ao desejos expressos em vida pelo familiar falecido, acerca das homenagens a serem realizadas. Na vivência de muitos dos enlutados, as cerimônias não realizadas são experimentadas como mais uma perda e mais uma ambiguidade a demandar resolução: “parece que ainda vai acontecer”, mas já aconteceu. Ou nas palavras de um familiar atendido: “foi (o sepultamento), mas não valeu.” Outras vezes, manifestam-se sentimentos de culpa em relação ao falecido por não lhe ter sido dado o funeral idealizado ou considerado digno (as menções ao “saco preto” ou “saco de lixo” no qual o corpo teria sido depositado no caixão funerário são recorrentes), ainda que, na realidade, tenha havido um impedimento concreto em função de normas sanitárias.
A dor de não ter estado lá
Ficou um vazio por ter ficado distante do tratamento da minha mãe.
Ela (a mãe) me dizia (por chamadas de celular, antes de ser transferida para a UTI): “a gente se sente um bicho enjaulado, daqueles que recebem comida por debaixo da porta”. Que entravam muito pouco no quarto e diziam que tinha que ser rápido. Ela dizia: “pra ser feito rápido e de qualquer jeito nem precisava entrar, talvez me sentisse até menos sozinha”. Ela estava muito sozinha, não tinha ninguém pra cuidar e eu não podia entrar lá.
Eles levaram minha filha do quarto só dizendo que precisava de isolamento e que eu tinha que ir embora. Eu disse que ficaria com ela no isolamento, não me importaria de pegar o vírus também, se fosse pra ficar com ela. Não deixaram. Não deixaram nem eu me despedir. Cuidei dela por mais de 20 anos acamada, não sei como cuidaram dela nos últimos dias. Deram banho? Deram água? Comida? Escovaram o cabelo dela?
Não consigo esquecer o momento que fomos levá-lo ao hospital. Foi muito rápido. Jamais passou na minha mente que ele iria e poderia ficar. Não parei para pensar. Fica aquela dor de não poder se despedir... de não ter visto mais, mesmo que fosse em uma cama de hospital. Talvez se eu soubesse que ele não iria mais voltar, poderia ter falado algumas coisas... Mas no dia eu só dizia que ia dar tudo certo, que ele iria voltar logo. Naquele momento na recepção, poderia ter dado um abraço... depois não pude mais.
Começam a passar os dias e aí a ficha vai caindo e você vai percebendo que não tem volta. E o que você pode fazer? Nada. Não pode visitar... daí se sente impotente. Queria pelo menos ver que ele não estava bem, mas que estávamos ali, nos importando... Ou ao menos ver e perceber que ele estava mal.
Eu queria estar com ele nesses dias que ele ficou internado. Essa doença é tão horrível porque não pode visitar, não pode ver, não pode falar. Um carinho, um abraço nessas horas, isso faz muita falta. Mas essa doença tira até isso. É muito triste não poder tocar, não poder ver. Trinta e três dias no hospital sem poder ver e quando sai, sai dentro de um caixão e você ainda não pode ver.
Essa doença é a pior do mundo porque você não pode se despedir.
Antes mesmo que sobrevenha a morte, uma dolorosa separação já se instaura entre a pessoa internada por COVID-19 e seus familiares pela interdição das visitas hospitalares, prática adotada na grande maioria dos hospitais, entre eles o HC-Unicamp, para minimizar a transmissão do novo coronavírus. Nas palavras de Ana Cláudia Quintana Arantes (2016), em A morte é um dia que vale a pena viver, no período que antecede a morte, “as pessoas ao redor do paciente podem ter chances maravilhosas de curar emoções corrosivas trabalhando o perdão, a gratidão, a demonstração de afeto e o cuidado” (p. 186), mas no contexto da pandemia, pela impossibilidade de estarem fisicamente presentes ao lado do paciente, muitos familiares enlutados sentem que foram privados de tal oportunidade. Ao mesmo tempo, referem que não terem visto que o estado de saúde de seu ente querido se deteriorava dificultou-lhes antecipar a aproximação de sua morte e preparar-se para ela.
Não ter conseguido se despedir é um fator de risco conhecido para o desenvolvimento de luto complicado por parte dos familiares, bem como não ter “se preparado” para a morte (Nielsen et. al., 2017; Morris et al., 2020). O construto “preparo para a morte (de um ente querido)” foi proposto no contexto de pesquisas empíricas sobre o luto e o chamado “luto pré-perda” em familiares de pacientes com câncer ou demência e busca capturar a autopercepção, por parte do familiar, de estar “pronto para a morte” do ente querido (Herbert, Prigerson & Shulz, 2006). Aspectos diversos constituem o “preparo” de um familiar para a morte de seu ente querido: médicos, psicossociais, espirituais e práticos (Herbert, Prigerson & Shulz, 2006). Um bom nível de comunicação dos familiares com o paciente e com a equipe médica, bem como contar com apoio social contribuem para um maior preparo para morte e para menos complicações na evolução do luto (Schutz et al., 2015; Nielsen et. al., 2017; Metzger & Gray, 2008). As circunstâncias excepcionais decorrentes da pandemia de COVID-19, notadamente a interdição de visitas hospitalares e a necessidade de distanciamento social, comprometem diretamente os fatores que poderiam dar ensejo a um melhor preparo para a morte e, por conseguinte, a uma melhor adaptação à perda do ente querido (Singer et. al., 2020).
Em um artigo recente (Carr, Boerner e Moorman, 2020), Deborah Carr, estudiosa do luto e dos processos de tomada de decisão relativos ao fim de vida, e suas colaboradoras argumentam que as mortes por COVID-19 frequentemente apresentam os atributos do que, em geral, a despeito de todas as diferenças culturais e individuais, é percebido como uma “má morte” ou uma “má qualidade de morte”: desconforto físico, dificuldade respiratória, falta de preparação para a morte, necessidade de ventilação mecânica, falecimento em UTI e em isolamento (Steinhauser et al., 2000; Krikorian, Maldonado & Pastrana, 2020).
Más mortes são angustiantes porque elas desafiam noções de uma morte idealizada, elas impedem que membros da família tenham conversas significativas e resolvam “negócios inacabados”, desencadeiam dor pelo sofrimento da pessoa amada, e elas fazem os membros da família se sentirem culpados por não terem podido proteger seu ente querido da situação devastadora. (Carr, Boerner & Moorman, 2020, p. 427; tradução livre dos autores)
Contaminação e culpa
Não posso acreditar que ela (mãe falecida) tenha pegado essa doença! Eu fiz tudo certo, tomei todos os cuidados... o que posso ter feito de errado?
A família fica toda pensando: quem passou pra quem?
Depois que ele morreu as pessoas culparam o meu irmão (falecido por Covid) por ele ter vindo visitar... Dizem que ele quem passou Covid pra todo mundo da família...
Eu levei minha mãe para a morte (por Covid, contaminação intra-hospitalar). Ela não queria ficar internada e eu insisti. O que eu sinto é culpa, remorso... eu queria poder voltar atrás. Agora me sinto culpada, mas também estou à caça de um culpado...
Ele entrou com um problema só na cabeça, estava com perspectiva de alta e aí disseram pra gente que ele tinha pegado o Covid
(contaminação intra-hospitalar). A gente fica pensando:
será que era melhor não ter levado ele?
Paciente interna para tratar outra coisa e sai morto por Covid! Não me conformo! Se tivesse ficado em casa, não teria morrido...
Só pegou no hospital porque é pobre, queria ver se fosse rico. Ia ter tudo limpinho e jamais pegaria essas coisas...
O processo de luto é permeado por sentimentos de culpa (Li et al., 2014; Stroebe, Stroebe et al., 2014; Carr, 2019). Escreve Rosa Montero (2019):
A culpa. Também é uma obviedade, algo que todos os manuais apontam. Culpa por não ter dito, não ter feito, ter discutido por bobagens, não ter demonstrado mais o seu carinho por ele. Seríamos infinitamente generosos com nossos mortos amados: mas, claro, sempre é muito mais difícil ser generoso com os vivos. (p. 98)
Para Freud a culpa dos enlutados encontraria sua fonte primária, para além da realidade factual, na ambivalência presente em todas as relações amorosas (Freud, 1915/2010), as quais estariam sempre tingidas, em algum grau, por sentimentos de hostilidade e desejos inconscientes de morte. No contexto da pandemia de COVID-19, uma doença viral contagiosa até então desconhecida, os sentimentos de culpa pessoal ou, correlativamente, a atribuição de culpa a terceiros, ganham contornos muito concretos e, por vezes, dramáticos, agravados pelo discurso político-sanitário de responsabilização pessoal pela evitação do contágio.
A questão da culpa pela contaminação tem sido frequente entre os enlutados que temos atendido e uma fonte adicional de sofrimento, raiva e revolta. Isso tem se mostrado de forma particularmente intensa em duas circunstâncias: quando houve contágio entre familiares e havia discordâncias prévias entre os diferentes membros da família quanto ao seguimento de normas de distanciamento social, sendo contaminação do familiar falecido (ou pior, familiares falecidos) percebida como resultante do descumprimento de tais normas; e quando a contaminação ocorreu no próprio ambiente hospitalar, nos casos em que o paciente havia sido internado por outro motivo contraiu o novo coronavírus e veio a falecer. Nesses últimos a culpa e a raiva ora voltam-se contra o próprio enlutado, que se sente responsável pela internação do ente querido que acabou por resultar em sua contaminação e morte, ora contra o hospital e a equipe de saúde, acusados de uma contaminação que é percebida como resultado de negligência. Sabemos de pesquisas em outros contextos que sentimento de culpa intensos, a raiva e a percepção de que a morte foi injusta ou poderia ter sido evitada dificultam a elaboração do luto e tendem a complicar sua evolução (Li et. al., 2014; Stroebe et al., 2014; Carr et. al., 2020; Morris et al. 2020).
Múltiplas perdas
Covid de novo. Faz eu relembrar tudo o que aconteceu com o meu marido. Já veio um filme na minha cabeça, foi para a UTI não sai mais... Já nem senti nada quando outro familiar internou... Para ser sincera, depois que perdi meu marido não tenho mais tristeza e nem felicidade... não vejo a hora de meus filhos crescerem para eu poder morrer.
Cheguei na SETEC2 e me perguntaram: “você aqui outra vez?”. Falei: “Vocês acreditam? Em alguns meses enterrei três familiares...”
Antes tinha muita esperança no caso do meu pai... e depois que meu pai faleceu, perdi a esperança também no caso da minha mãe. Antes tinha esperança de que todos iam sair com vida... Hoje já não sei mais, estou mais passada, com medo… são tantas perdas. O doutor traz que minha mãe ainda está em risco.
Parece que nem deu tempo de sofrer por uma perda, daí tem que ser forte para o outro que está internado... depois sofria pelo outro e já tinha que ser forte de novo... Parece que você está sofrendo por todos e não está sofrendo direito por nenhum ao mesmo tempo.
Parece que não tenho muito tempo para pensar na perda dele (familiar próximo recentemente falecido por Covid) ... como se fosse uma pessoa só, um acontecimento só. A gente acaba nem pensando muito nas outras perdas que vêm depois...
Em meio à pandemia de COVID-19 muitas famílias têm passado pela experiência de adoecimento, internação hospitalar e, por vezes, falecimento, de vários de seus membros em um curto espaço de tempo (Mayland et al., 2020; Morris et al., 2020). Não tem sido incomum haver dois ou três membros de uma mesma família internados simultaneamente no HC-Unicamp, o que é vivido como um processo muito angustiante e emocionalmente desgastante para os familiares não acometidos por Covid, alguns dos quais têm referido sentimentos conflitantes de alívio e culpa por terem escapado da contaminação.
Quando a morte por Covid sobreveio a mais de um ente querido em muito pouco tempo - semanas, dias - as pessoas que temos atendido têm nos falado de uma sensação de viverem uma situação que excede, ultrapassa sua capacidade de lidar com a dor e adversidade, de estarem “passados”. Nesse primeiro momento, em que as mortes ainda são recentes, tal sensação frequentemente tem resvalado, assim nos falam, para uma impressão, ou sentimento de estarem anestesiados, emocionalmente dormentes.
Mais uma vez, é cedo para discernirmos bem os efeitos duradouros dessas múltiplas perdas, ainda que possamos antecipar dificuldades no processo de elaboração do luto. Pesquisas apontam a experiência de perdas anteriores como fator de risco para um luto complicado (Zisook & Shear, 2009; Lobb et al., 2010). Mas aqui, como em tantos outros aspectos, a pandemia de COVID-19 nos apresenta desafios sem precedentes. A literatura sobre a vivência de luto em situações que pudéssemos tomar como análogas é muito restrita. Talvez os que mais se aproximem do tema são estudos sobre o luto por múltiplas perdas decorrentes da AIDS, no final dos anos 1980 e início dos anos 1990 (Biller & Rice, 1990), mas as diferenças contextuais são muitas e relevantes.
A multiplicidade de perdas decorrentes da pandemia manifesta-se também em outros níveis: perdas financeiras, perda de apoio prático e emocional pelo distanciamento social, perda da rotina, dos papéis sociais e atividades que estruturavam o cotidiano dos enlutados. Um acúmulo de adversidades que, somado às perdas por morte, pode sobrepujar a capacidade de resiliência de uma pessoa (Carr et. al., 2020; Zhai, Du et al., 2020; Mayland et al., 2020).
A perda em meio a um conflito de narrativas
Sabe o que eu ouvi falar? Que se ganha quando alguém morre por Covid. Fui à padaria e uma conhecida me disse que ganham 16 mil reais por cada morto com Covid.
Ainda não acredito que foi de Covid, nem que me mostrem o papel agora. Mataram ela no hospital e colocaram isso para ganhar dinheiro.
Disseram que estava com Covid, mas nem mostraram o papel do exame. Depois que morreu, foi que falaram que posso pegar o prontuário. De que adianta? Sei que mudam e escrevem o que querem no sistema...
Mandaram por Covid em todo mundo que morre. E tem caixão sendo enterrado vazio por aí. Meu cunhadoqueria desenterrar e mandar fazer aquele exame nele (exumação e autópsia) pra provar que não foi essa doença. Mas de que ia adiantar? A gente convenceu “ele” a deixar pra lá...
Esse cara estava falando que não acredita em nada disso (a gravidade da pandemia), que não conhece ninguém que tenha morrido por Covid. Aí me perguntou se eu conhecia. Eu disse: “Sim, meu avô morreu de Covid faz duas semanas”. E o cara ficou perguntando: “Tem certeza? Será que foi isso mesmo?”. Muito sem noção!
As perdas pelo novo coronavírus no Brasil têm como pano de fundo, um cenário de acentuada polarização político-ideológica. Rapidamente a pandemia foi apropriada por discursos que se opõem e em pouco tempo produziram narrativas conflitantes sobre praticamente tudo que se relaciona à COVID-19: gravidade da pandemia, necessidade de medidas de isolamento social, utilidade do uso de máscaras, possibilidade de tratamento e prevenção pelo uso de medicações específicas, número de fatalidades etc. Como era de se esperar, tal conflito de narrativas vem tendo reflexos também nas vivências de luto em meio à pandemia.
Nossa impressão, até o momento, é de que a reprodução, por parte de alguns dos familiares enlutados que temos ouvido, de uma narrativa que coloca em dúvida a realidade da pandemia, ou pelo menos de sua gravidade e extensão, reflete uma adesão a uma das polaridades discursivas vigentes no país que é anterior à experiência de adoecimento e morte do entre querido por COVID-19. Adesão essa que, aparentemente, teria passado incólume, se não intensificada, por tal experiência de perda, talvez por atender a necessidades defensivas mais profundas da pessoa (Cassorla, 2019). Para esses familiares enlutados a morte do ente querido fica cercada de suspeitas, de “más intenções” e de uma inquietante aura de “fraude” que possivelmente dificultarão o processo de luto (Li et. al., 2014; Stroebe et al., 2014)
Outra forma pela qual os discursos antagônicos sobre a pandemia têm incidido negativamente sobre muitos dos familiares de vítimas do coronavírus é pela vivência de deslegitimização social de seu luto, seja pela falta de expressões mais inequívocas de consternação por parte de algumas autoridades políticas, seja pela dissolução do reconhecimento de sua perda pessoal em meio aos elevados números de fatalidades e certa indiferença coletiva frente a eles, ou ainda, pelo confronto mais cotidiano com descrentes da pandemia. Nesse último caso, a suspeita de “morte fraudulenta” não parte do próprio familiar enlutado, mas recai sobre o falecimento do ente querido a partir de pessoas das relações do enlutado, de quem, de outro modo, se esperariam manifestações de solidariedade confortadoras. Também o luto que não é reconhecido ou legitimado socialmente (disenfranchised grief) tende a ser mais complicado (Doka, 2008).
Considerações finais: criatividade e produção de sentido em meio à pandemia
A pandemia de COVID-19 trouxe mudanças drásticas nas circunstâncias que cercam a morte e o luto, deixando, só no Brasil, centenas de milhares de pessoas em condições adversas para a elaboração da perda de seus entes queridos e em risco de desenvolverem formas mais persistentes de sofrimento mental. Tais condições demandam o rápido desenvolvimento de novas intervenções e formas de prover cuidado aos pacientes com COVID-19 e seus familiares (Carr et al., 2020; Singer et al., 2020; Wakam et al., 2020). A partir do reconhecimento dessa demanda estruturou-se o APEM-Covid. A princípio buscamos implementar recomendações de um emergente corpo de literatura acerca da atenção à saúde mental em meio à pandemia (Kontoangelos et al., 2020; Morris et al., 2020; Mayland et al., 2020). Depois, diante dos desafios encontrados no dia a dia e de um cenário em constante transformação, tivemos, e continuamos a ter, que inventar nossas próprias soluções. Em parte, é o que temos procurado ajudar os familiares em luto pré-perda ou enlutados a fazer: criar formas de contornar obstáculos e usufruir do possível, ainda que isso implique renunciar ao ideal.
Neste cenário, o HC-Unicamp ampliou a disponibilidade e o acesso dos pacientes à rede de internet sem fio e as equipes de saúde têm estimulado os pacientes internados em isolamento a permanecer com seus telefones celulares - mesmo aqueles que estão internados em UTI, desde que estejam em condições de se comunicar - e manter contato seus familiares. E nós do APEM-Covid temos estimulado e viabilizado a realização de videochamadas quando o paciente não consegue realizá-las por conta própria e, especialmente, quando se encontra intubado na UTI ou em cuidados de fim de vida. Sobre as videochamadas, nos têm dito os familiares:
Aquele dia eu gostei que consegui ver ele… se não fosse assim não ia ver...
Eu vi e fiquei um pouco mais conformada de poder vê-lo no hospital… Tudo o que eu queria era ter estado ao lado dela. Mas se não fosse a videochamada, não teria mais visto minha mãe viva. Não tem comparação com quando se está próximo, mas para mim foi melhor que nada.
Vi no vídeo. Deu uma vontade de atravessar a câmera e abraçar ele! Só de ver já aquece o nosso coração.
Formulações mais recentes acerca do processo de elaboração do luto tendem a enfatizar menos o rompimento de vínculos e o desapegar-se da pessoa falecida, e mais a constituição de novas e significativas formas de relacionamento, que continuam a evoluir e mudar. Dois processos complementares estão envolvidos no restabelecimento da relação, em um outro nível, com a pessoa falecida: a incorporação/identificação e a representação. Pela identificação, a pessoa amada que morreu torna-se uma presença interna confortante, que não mais entra em conflito com a realidade externa e não mais precisa ser buscada no exterior. Pela representação, a perda é plenamente reconhecida e ao mesmo tempo se estabelece uma conexão simbólica com o falecido. A representação se dá pela recordação, pelas várias formas de representação simbólica oferecidas pela cultura, e pela combinação de recordação e representação simbólica que compõe a construção de narrativa da relação com a pessoa amada falecida e a atribuição de significado/sentido à perda (Zisook & Shear, 2009; Hall, 2011; Fuchs, 2018). Temos buscado apoiar os familiares enlutados nesse processo, sobretudo através de uma escuta empática e acolhedora, mas também pelo estímulo do recurso à criatividade, ao mesmo tempo expressão de saúde e meio de recuperá-la (Rodrigues & Peixoto, 2014). Com isso, damos a última palavra a uma pessoa às voltas com seu luto:
No enterro meu esposo pegou uma foto, imprimiu e colocou no caixão. Foi importante, a gente conseguiu sentir mais a minha mãe... Conseguimos nos despedir dela de uma maneira mais decente...
-
Instituição onde o trabalho foi realizado: Hospital de Clínicas da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp
-
Financiamento/Funding: Este trabalho não recebeu apoio / This work received no funding.
Agradecimentos: Os autores gostariam de agradecer a Thiago Martins Santos, Diego Lima Ribeiro, Dora Kassisse, José Antônio Rocha Gontijo, Edson Luiz Kitaka, PlínioTrabasso, Antônio Gonçalves de Oliveira Filho e às equipes das Enfermarias e UTIs COVID do HC-Unicamp por apoiarem e tornarem possível o trabalho do APEM-Covid.
Referências
- Arantes, A. C. Q. (2016). A morte é um dia que vale a pena viver Rio de Janeiro, RJ: Casa da Palavra.
- Bailey, T., & Walter, T. (2016). Funerals Against Death. Mortality, 21(2), 149-166.
- Barnes, J. (2013). Levels of Life New York, NY: Alfred A. Knopf. eBook ISBN 9780385350785.
- Biller, R., & Rice, S. (1990). Experiencing Multiple Loss of Persons with Aids: Grief and Bereavement Issues. Health & Social Work, 15(4), 283-290.
- Borchert, W. (1990). Nachts schlafen die Ratten doch. In Das Gesamtwerk Hamburg, GER: Rowohlt. (Trabalho original publicado em 1947).
- Carr, D., Boerner, K., & Moorman, S. (2020). Bereavement in the Time of Coronavirus: Unprecedented Challenges Demand Novel Interventions. Journal of Aging & Social Policy, 32(4-5), 425-431.
- Carr, D. (2019). Who’s to Blame? Perceived Responsibility for Spousal Death and Psychological Distress among Older Widowed Persons. Journal of Health and Social Behavior, 50, 359-375.
- Cassorla, R. M. S. (1992). Reflexões sobre a psicanálise e a morte. In M. J. Kovács (Org.), Morte e desenvolvimento humano (pp. 90-110). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.
- Cassorla, R. M. S, (2019). Fanaticism: Reflections Based on Phenomena in the Analytic Field. The International Journal of Psychoanalysis, 100(6), 1338-1357.
- Doka, K. J. (2008). Disenfranchised Grief in Historical and Cultural Perspective. In M. S. Stroebe, R. O. Hansson, H. Schut, & W. Stroebe (Eds.), Handbook of Bereavement Research and Practice: Advances in Theory and Intervention (pp. 223-240). American Psychological Association.
- Freud, S. (2010). Considerações atuais sobre a guerra e a morte. In Obras Completas Volume 12 - Introdução ao Narcisismo, Ensaios de Metapsicologia e outros textos Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1915).
- Freud, S. (2011). Luto e melancolia Tradução de Marilene Carone. São Paulo, SP: Cosac Naify. (Trabalho original publicado em 1915).
- Fuchs, T. (2013). Existential Vulnerability: Toward a Psychopathology of Limit Situations. Psychopathology, 46(5), 301-308.
- Fuchs, T. (2018). Presence in Absence. The Ambiguous Phenomenology of Grief. Phenomenology and the Cognitive Sciences, 17, 43-63.
- Fustinoni, C. F., & Caniato, A. (2019). O luto dos familiares de desaparecidos na Ditadura Militar e os movimentos de testemunho. Psicologia USP, 30, e180131. Epub November 14, 2019.
- Hall, C. (2011). Beyond Kubler-Ross: Recent Developments in our Understanding of Grief and Bereavement. InPsych, 33(6).
- Hebert, R. S., Prigerson, H. G., Schulz, R., et al., (2006). Preparing Caregivers for the Death of a Loved One: A Theoretical Framework and Suggestions for Future Research. J Palliat Med 9(5), 1164-1171.
- Kontoangelos, K., Economou, M., & Papageorgiou, C. (2020). Mental Health Effects of COVID-19 Pandemia: A Review of Clinical and Psychological Traits. Psychiatry Investigation, 17(6), 491-505.
- Krikorian, A., Maldonado, C., & Pastrana, T. (2020). Patient’s Perspectives on the Notion of a Good Death: A Systematic Review of the Literature. Journal of pain and symptom management, 59(1), 152-164.
- Li, J., Stroebe, M., Chan, C.L., & Chow, A.Y. (2014). Guilt in Bereavement: A Review and Conceptual Framework. Death Stud. 38(1-5), 165-171.
- Lobb, E. A., Kristjanson, L. J., Aoun, S. M., Monterosso, L., Halkett, G. K. B., & Davies, A. (2010). Predictors of Complicated Grief: A Systematic Review of Empirical Studies, Death Studies, 34(8), 673-698.
- Mayland, C. R., Harding, A., Preston, N., & Payne, S. (2020). Supporting Adults Bereaved Through COVID-19: A Rapid Review of the Impact of Previous Pandemics on Grief and Bereavement. Journal of Pain and Symptom Management, 60(2), e33-e39.
- Metzger, P. L., & Gray, M. J. (2008). End-of-life Communication and Adjustment: Pre-loss Communication as a Predictor of Bereavement-related Outcomes. Death Stud 32, 301e325.
-
Ministério da Saúde (2020). Boletim Epidemiológico Especial: Doença pelo Coronavírus COVID-19. Semana epidemiológica 26 (21 a27/6). Brasília. ISSN 9352-7864. Disponível online em: <http://saude.gov.br/images/pdf/2020/July/01/Boletim-epidemiologico-COVID-20-3.pdf>.
» http://saude.gov.br/images/pdf/2020/July/01/Boletim-epidemiologico-COVID-20-3.pdf - Montero, R. (2019). A ridícula ideia de nunca mais te ver São Paulo, SP: Todavia. ISBN-10: 8588808846. Edição Kindle.
- Morris, S. E., Moment, A., & Thomas, J. L. (2020). Caring for Bereaved Family Members During the COVID-19 Pandemic: Before and After the Death of a Patient. Journal of Pain and Symptom Management, 60(2), e70-e74.
- Nielsen, M. K., Neergaard, M. A., Jensen, A. B., Vedsted, P., Bro, F., & Guldin, M. B. (2017). Predictors of complicated grief and depression in bereaved caregivers: A nationwide prospective cohort study. Journal of Pain and Symptom Management, 53, 540-550.
- Rodrigues, J. M., & Peixoto Jr., C. A. (2014). Reflexões sobre conceitos afirmativos de saúde e doença nas teorias de Georges Canguilhem e Donald Winnicott. Physis - Revista de Saúde Coletiva, 24(1), 291-310.
- Schutz, R., Boerner, K., Klinger, J., & Rosen, J. (2015). Preparedness for Death and Adjustment to Bereavement among Caregivers of Recently Placed Nursing home Residents. Journal of Palliative Medicine, 18(2), 127-33.
- Shimane, K. (2018). Social Bonds with the Dead: How Funerals Transformed in the Twentieth and Twenty-first Centuries. Philosophical Transactions of the Royal Society of London. Series B. Biological sciences, 373(1754), 20170274.
- Singer, J., Spiegel, J. A., & Papa, A. (2020). Preloss Grief in Family Members of COVID-19 Patients: Recommendations for Clinicians and Researchers. Psychological trauma: theory, research, practice and policy, 12(S1), S90-S93.
- Sohrabi, C., Alsafi, Z., O’Neill, N., Khan, M., Kerwan, A., Al-Jabir, A., Iosifidis, C., & Agha, R. (2020). World Health Organization declares global emergency: A review of the 2019 novel coronavirus (COVID-19). International journal of surgery, 76, 71-76.
- Souza, C. P., & Souza, A. M. (2019). Rituais fúnebres no processo do luto: significados e funções. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 35, e35412. Epub July 04, 2019.
- Stroebe, M., Stroebe, W., van de Schoot, R., Schut, H., Abakoumkin, G., et al. (2014). Guilt in Bereavement: The Role of Self-Blame and Regret in Coping with Loss. PLoS ONE, 9(5): e96606.
- Steinhauser, K. E., Christakis, N. A., Clipp, E. C., McNeilly, M., McIntyre, L., & Tulsky, J. (2000). A. Factor Considered Important at the end of Life by Patients, Family, Physicians, and other Care Providers. JAMA, 15; 284(19), 2476-82.
-
Uol (2020). Família procura corpo de homem vítima da covid e crê em enterro errado. Recuperado em 19 ago 2020 de: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/07/14/familia-procura-corpo-de-idoso-vai-a-justica-e-cre-em-enterro-por-engano.htm>.
» https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/07/14/familia-procura-corpo-de-idoso-vai-a-justica-e-cre-em-enterro-por-engano.htm - Verztman, J., & Romão-Dias, D. (2020). Catástrofe, luto e esperança: o trabalho psicanalítico na pandemia de COVID-19. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 23(2), 269-290. Epub July 24, 2020.
- Walter, T., & Bailey, T. (2020). How Funerals Accomplish Family: Findings from a Mass-Observation Study. Omega, 82(2), 175-195.
- Wakam, G. K., Montgomery, J. R., Biersterveld, B. E., Brown, C. S. (2020). Not Dying Alone - Modern Compassionate Care in the Covid-19 Pandemic. New England Journal of Medicine, 382(24).
- Zhai, Y., & Du, X. (2020). Loss and Grief Amidst COVID-19: A Path to Adaptation and Resilience. Brain, behavior, and immunity, 87, 80-81.
- Zisook, S., & Shear, K. (2009). Grief and Bereavement: What Psychiatrists Need to Know. World psychiatry, 8(2), 67-74.
-
Editora/Editor: Profa. Dra. Ana Maria G. R. Oda e Profa. Dra. Sonia Leite
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
30 Out 2020 -
Data do Fascículo
Jul-Sep 2020
Histórico
-
Recebido
20 Ago 2020 -
Aceito
21 Ago 2020