O termo “psicopatologia” jamais fez parte da língua comum. Trata-se de um neologismo cuja criação é atribuída ao médico alemão Hermann Emminghaus (1845-1904) que o teria utilizado pela primeira vez em 1878 como sinônimo de “psiquiatria clínica”. Sua imersão no campo psiquiátrico é, por assim dizer, sua marca de nascença.
Uma segunda característica dessa palavra é sua aparente autoevidência. De hábito, tende a evocar espontaneamente a ideia do estudo das “doenças mentais”, a despeito do caráter profundamente problemático dessa expressão, tantas vezes já assinalado: se se trata de uma “doença” (fenômeno da res extensa cartesiana) como pode, então, ser “mental” (res cogitans)? E se é “mental”, como pode ser “doença”? E que ciência é essa que toma por objeto uma das entidades mais metafisicas que se possa conceber: a alma (psique)? Mesmo assim — e uma vez mais — ao remeter de forma intuitiva ao âmbito semântico da “doença”, ainda que problematicamente qualificada de “mental”, reencontramos aqui a pregnância da matriz médico-psiquiátrica associada à psicopatologia. Ou seja, essa disciplina racional (trata-se de uma modalidade de “logos”) teria como referência a “doença mental”, sendo esta formulada de modo a constituir um objeto positivamente acessível aos métodos das ciências empírico-experimentais e, eventualmente, abordável sob a perspectiva biológica própria ao campo médico.
Vertentes mais humanistas, ou mesmo psicanalíticas, tendem a “despsiquiatrizar” a “psicopatologia”, referindo-a não mais à objetividade da natureza (da Physis), mas agora ao âmbito fortemente subjetivo do “sofrimento psíquico”. Sob essa ótica, a “subjetividade” e a própria noção de “sujeito” são convocadas ao centro da elucidação racional do pathos humano. É assim que, já em 1926, Viktor von Weizsäcker, pioneiro da chamada Antropologia Médica, alertava para o fato de que, para além das fronteiras psiquiátricas, era o conjunto do campo médico que permanecia distante de uma interrogação sistemática sobre o sujeito do qual se ocupa: “É surpreendente, mas na verdade, é um fato que não se pode negar, que a medicina moderna não tem nenhuma doutrina sobre o homem doente” (Weizsäcker, 1926/1987, p. 72). É imperativo, portanto, sustentava Weizsäcker, incorporar a subjetividade do paciente à realidade objetiva a ser tratada. Vê-se assim que o estatuto do pathos — tema central da psicopatologia — interroga não apenas o campo psiquiátrico e da chamada “saúde mental”, mas o conjunto da Medicina e das práticas clínicas.
É importante destacar aqui que essas perspectivas que se propõem a estudar o pathos sob a ótica da subjetividade não implicam, necessariamente, a adoção de uma teoria “psicogênica” da “doença”, fosse ela qualificada ou não de “mental”. Trata-se, antes, de se examinar o fenômeno do adoecimento sob o prisma da subjetividade. Dessa forma, é necessário destacar claramente a “patologia”, fenômeno que pressupõe um sujeito, do campo da “nosologia”, ou seja, a doença tomada enquanto perturbação biológica prejudicial ao funcionamento fisiológico ótimo, típico de uma espécie natural (Boorse, 1977). Vemos aqui se delinearem mais claramente três grupos de problemas decisivos para o âmbito da “patologia”: 1) a “nosologia”, enquanto estudo das disfunções naturais capazes de incidir de forma mórbida na realização ótima de funções biológicas necessárias à sobrevivência do indivíduo e da espécie; 2) a “patologia” propriamente dita em termos semânticos: o estudo das perturbações ou impedimentos da realização possível de um sujeito singular no interior do laço social (Pereira, 2019) e 3) o estudo das possíveis incidências e interações de um campo sobre o outro: a nosologia sobre a patologia, a patologia sobre a nosologia e as margens de autonomia de uma em relação à outra.
Acompanhando esse desdobramento da premissa de von Weizsäcker, segundo a qual a patologia se refere necessariamente ao âmbito do sujeito, então o próprio termo de “psico”-patologia soaria excessivo e redundante: qual a razão para se sobrecarregar um fenômeno intrinsecamente subjetivo — já evocado pelo radical grego “pathos” — de uma referência à “alma” (psique)? Mesmo assim — ou por isso mesmo — o influente autor alemão não empregará a noção de “patologia” para designar o estudo do adoecimento sob a ótica do sujeito. Esta já se encontra fortemente impregnada da referência tradicional da doença ao campo da natureza, enquanto perturbação mórbida da fisiologia. Além disso, decorre de seu pensamento que o tipo de racionalidade necessária para o entendimento apropriado da subjetividade de “homem doente” não é o “logos” das ciências naturais, mas aquela própria à filosofia. Daí sua proposta de uma “patosofia” (Weizsäcker, 1956/2011), como disciplina racional visando conhecer o pathos do homem doente, considerado em sua condição de sujeito (cf. Pereira, 2014).
Esse estado de coisas constitui um paradoxo, talvez até mesmo uma contradição: a psicopatologia é a disciplina nuclear (Banzato & Zorzanelli, 2020) não apenas do campo da psiquiatria, mas também fundamento de todas as práticas clínicas do campo da chamada “saúde mental”. Dela depende a delimitação do elemento mórbido em jogo, do mal a ser tratado e, por ex- tensão, da direção e dos objetivos do tratamento.
Caso especial nesse debate é constituído pela psicanálise. É muito significativo notar que mesmo Freud, com todo seu rigor teórico, jamais propôs uma definição formalmente conceitual para “psicopatologia”, nem mesmo em sua “Psicopatologia da vida cotidiana” (1901/1987b). Tampouco no capítulo II de seu “Projeto para uma psicologia científica” (1950[1895]/1987a), intitulado precisamente como “Psicopatologia”. O respeitadíssimo Vocabulário da Psicanálise não lhe consagra verbete; nenhum destaque lhe é dado na biografia de Freud redigida por Jones. Mesmo assim, a teoria freudiana é aquela que provavelmente mais avançou em relação à necessidade de se estudar a patologia enquanto fenômeno relativo a um sujeito singular: a técnica da livre--associação sob transferência permite evidenciar as redes associativas relativas à produção das significações próprias a cada sujeito, o que faz com que jamais um sonho possa ser interpretável através de um “dicionário geral dos sonhos”; as modalidades de satisfação erótica dependem da fantasia inconsciente de cada um; as ideias de “equação etiológica” e de “séries complementares” permitem conceber de forma individualizada a eclosão da patologia mental em um sujeito singular, sem que se necessite recusar a participação de fatores naturais nos processos nela implicados etc. Nesse sentido, a psicanálise, ainda que tradicionalmente não tenha formalizado explicitamente uma psicopatologia nos termos de von Weizsäcker, orienta-se nesse campo precisamente por noções como as de conflito, de defesa e de satisfação erótica como necessariamente relativas a um sujeito singular. E mais: um sujeito incarnado corporalmente. Como diria de maneira límpida Lacan, ao tratar justamente das relações entre psicanálise e medicina: o gozo é um fenômeno do corpo (Lacan, 1966).
O caráter específico da abordagem psicanalítica no que tange à subjetividade própria aos fenômenos psicopatológicos torna-se ainda mais evidente quando a comparamos a uma outra tradição teórica fundamental nesse campo: a fenomenologia jasperiana. Este esforço teórico para a constituição da psicopatologia como disciplina científica formalmente estruturada e autônoma em relação à psiquiatria surge no começo do século XX, com a publicação da Allgemaine Psychopathologie (Psicopatologia Geral), de Karl Jaspers, em 1913. Nesse célebre tratado, a questão da subjetividade ocupa lugar central: trata-se de estudar os fenômenos psíquicos patológicos do ponto de vista das vivências subjetivas (Erlebnis) a eles tipicamente associadas: “O objeto da psicopatologia é o fenômeno psíquico realmente consciente. Queremos saber o que os homens vivenciam (Erlebnis) e como o fazem” (Jaspers, 1913/1979, p. 13). Dessa forma, o que se visa em primeiro lugar é a descrição das experiências típicas conscientemente vividas em um estado mental mórbido específico. Ou seja, apesar de visar a experiência subjetiva, o método da Psicopatologia Geral pretende alcançar um estatuto de objetividade: “conhecer a envergadura das realidades psíquicas” (p. 13). Em outros termos, a subjetividade visada deve, sob a ótica de Jaspers, corresponder às exigências científicas de se produzir, com razão e método, conhecimentos objetivos de validade universal: não se trata, portanto, de descrever a subjetividade singular de um sujeito acometido de uma condição patológica especifica, mas as características típicas e generalizáveis da experiência conscientemente vivida em cada tipo específico de condição psicopatológica. O foco não é, pois, a singularidade da condição patológica de cada sujeito, mas a descrição da tipicidade generalizável de cada entidade psicopatológica, seu nível propriamente transcendental (para empregar um termo caro à fenomenologia de Husserl, sobre a qual se inspira o psiquiatra-filósofo de Heidelberg).
Cabe destacar que o método jasperiano não visa fundamentalmente fornecer uma psicologia patológica, no sentido de Ribot, ou seja, explicitar como os processos mentais tidos como normais podem vir a se tornar mórbidos. Para Jaspers, o ponto de partida são as próprias condições doentias já tradicionalmente definidas, tomadas como referências para a aplicação do método fenomenológico. Afirma explicitamente a Allgemeine Psychopathologie: “Mas nem todos os fenômenos psíquicos constituem nosso objeto. Apenas os ‘patológicos’” (p. 13). Em síntese, partindo de fenômenos mentais tidos a priori e tradicionalmente como “patológicos”, Jaspers propõe o emprego de um método fenomenológico capaz de descrever em um plano abstrato (na verdade, transcendental) as experiências vividas (Erlebnis) típicas e generalizáveis de cada entidade patológica. Daí a proposta jasperiana de uma Psicopatologia da subjetividade não tomada como singular, mas como Geral.
Ora, como vimos, a psicopatologia desempenha um papel epistemo- lógico e técnico decisivo para a psiquiatria, para a psicanálise e para todas as demais práticas clínicas no campo da chamada saúde mental, estabe-lecendo aquilo que constitui o foco mórbido visado pelo tratamento. Contemporaneamente, diferentes princípios organizadores competem pelo prestígio de descrever as condições a serem consideradas patológicas e, consequentemente, pela determinação dos meios legítimos de tratamento e de seus objetivos terapêuticos. Encontramos, entre os mais relevantes atualmente, princípios naturalistas (RDoC), empiricistas (Evidence-Based Psychiatry); prático-convencionais (DSM), valorativos (Values-Basic Psy- chiatry); fenomenológicos (psicopatologia fenomenológica) existenciais (Daseinanalyse); subjetivo-singulares (psicanálise). A este último, acrescentaria a (Psico) Patologia (do sujeito) que vimos desenvolvendo desde 2013 no contexto do Laboratório de Psicopatologia – Sujeito e Singularidade (LaPSuS-UNICAMP), que se propõe não a constituir uma nova “psicopatologia psicanalítica”, mas se servir da concepção de sujeito decorrente da psicanálise de Freud e Lacan para fundamentar uma (psico)patologia sob a ótica das perturbações da subjetividade em sua dimensão propriamente singular.1 A psicopatologia fundamental proposta por Pierre Fédida (1998) preocupa-se, a um só tempo, com a delimitação do pathos psíquico implicado na psicopatologia, como das modalidades de interação dos diferentes modelos científicos que se entrecruzam nessa encruzilhada epistemológica que caracteriza o campo do psicopatológico.
Cada um dos princípios organizadores acima mencionados dispõe de seus próprios operadores internos que lhes confere sustentação racional própria. Contudo, a questão da escolha daquele que deveria desempenhar o papel de organizador último da concepção de patologia e das práticas clínico--terapêuticas dela derivadas dependem fundamentalmente de critérios éticos. Diferentes abordagens técnicas produzem diferentes alterações no plano mun- dano e concreto relacionado à patologia, provocando diferentes incidências nos impasses patológicos subjacentes. A tomada de decisão quanto à referência psicopatológica a ser escolhida (com as consequentes finalidades terapêuticas dela decorrente) não depende de critérios técnicos e científicos, mas um posicionamento propriamente ético. A ciência e a técnica são colocadas a serviço da ética. Não o contrário. A política e as diferentes estratégias empregadas para alcançar os objetivos clínico-terapêuticos dependem igualmente da concepção ética embutida em cada (psico)patologia e em cada concepção de Terapeia a ela associada.
Dessa forma, os desafios epistemológicos, científicos e técnicos do campo da (psico)patologia permanecem totalmente vinculados a seus métodos próprios, mas dependentes e orientados por uma ética que os fundamente, justifique e oriente. Ao considerarmos — eticamente — a psicopatologia um fenômeno que incide sobre um sujeito tomado enquanto tal, perturbando ou impedindo suas possibilidades de realização no interior do laço social, então podemos encontrar na ética psicanalítica o fundamento e o organizador desse campo. Uma proposição de Lacan sobre a justificativa moral das intervenções no campo da clínica e das ações terapêuticas, talvez sintetize os fundamentos éticos de uma (psico)patologia orientada pela subjetividade singular: “É certo que nossa justificativa, assim como nosso dever, é melhorar a posição do sujeito...” (Lacan, 1962-63/2004, p. 70; a tradução é de minha autoria). Essa perspectiva ética permite definir o que constitui impasse patológico do ponto de vista do sujeito e estabelecer a direção e objetivos do tratamento, de modo que diferentes tipos de técnica podem ser agenciados e orquestrados tendo como orientação e justificativa a contribuição que possam eventualmente trazer no sentido dos objetivos éticos do tratamento. No caso, uma psicopatologia do sujeito singular conduzindo a uma clínica da melhora da posição do sujeito de maneira responsável com a civilização.
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Trata-se, portanto, de uma nova definição de Psicopatologia, pertinente não apenas à psicanálise, mas a todo o campo das práticas clínicas, concebendo-a como o estudo dos impasses mórbidos perturbando, ou mesmo impedindo, a realização de um sujeito singular de forma responsável (levando em consideração a alteridade e a civilização) no interior do laço social (Pereira, 2019).
Referências
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Editoras/Editors: Prof. Dr. Nelson da Silva Junior, Profa. Dra. Maria Livia Tourinho Moretto, Profa. Dra. Ana Maria Galdini R. Oda, Profa. Dra. Sonia Leite
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Out 2021 -
Data do Fascículo
Set 2021
Histórico
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Recebido
23 Ago 2021 -
Aceito
25 Ago 2021