Resumos
O presente artigo parte da hipótese que os autistas têm um saber sobre o funcionamento psíquico no autismo. Para demonstrá-lo, são estudados os relatos autobiográficos de Lucy Blackman, escritora autista não falante, cuja análise nos permitiu compreender a lógica das manifestações autísticas e destacou a viabilidade de uma nova regulação libidinal no autismo.
Palavras-chave: Autismo; libidinal; autobiografia; psicanálise
This paper posits that autists do possess knowledge on the autistic psychological functioning. To demonstrate it, the article examines the autobiographical accounts of Lucy Blackman, a non-verbal autistic writer, whose analysis allowed us to understand the logic of autistic symptoms and highlighted the feasibility of a new libidinal regulation in autism.
Key words: Autism; libidinal; autobiography; psychoanalysis
Cet article postule que les autistes possèdent effectivement des connaissances sur le fonctionnement psychologique autistique. Pour le démontrer, on examine les récits autobiographiques de Lucy Blackman, écrivaine autiste non verbale, dont l’analyse nous a permis de comprendre la logique de symptômes autistiques et a mis en évidence la faisabilité d’une nouvelle régulation libidinale chez la personne autiste.
Mots-clés: Autisme; libidinale; autobiographie; psychanalyse
El presente artículo toma como punto de partida la hipótesis de que los autistas tienen un saber sobre el funcionamiento psíquico en el autismo. Para demostrarlo, se analizan los relatos autobiográficos de Lucy Blackman, escritora autista no-hablante, que nos permitió comprender la lógica de las manifestaciones autísticas y se puso de relieve la viabilidad de una nueva regulación libidinal en el autismo.
Palabras clave: Autismo; libidinal; autobiografía; psicoanálisis
Introdução
A australiana Lucy Blackman, autista não falante, manifesta isolamento autístico, mutismo autístico, comportamentos bizarros, perturbações sensoriais, alterações da linguagem, presença de estereotipias, comportamentos bizarros, gosto por sameness, dificuldades sociais severas, dificuldade de compreensão da linguagem verbal e não verbal, vivência do mundo como caótico, severa dificuldade de se apropriar do corpo próprio e automatismos. Lucy nasceu em 1972 e nunca se tornou falante. No entanto, após aprender a escrever pelo método de comunicação assistida/facilitada, tornou-se capaz de se expressar pela escrita, tendo publicado dois livros autobiográficos (Blackman, 2001, 2013), além de artigos de sua autoria publicados em livros a respeito do autismo. Após começar a escrever por volta dos 14 anos, pôde ser transferida de uma escola especial para uma escola regular e, posteriormente, cursou uma Graduação Universitária em Estudos Literários. Atualmente, Lucy se dedica a viajar toda a Austrália para divulgar sua expertise no campo do autismo, tentando tanto explicar quais foram as estratégias que viabilizaram seu desenvolvimento quanto buscar que outras pessoas se tornassem capazes de acolher as singularidades dos autistas, sempre utilizando um teclado conectado a um dispositivo tecnológico para se expressar.
É elucidativa a maneira como Lucy se descreve para a plateia de uma de suas palestras: “Oi, eu posso me chamar ‘funcionalmente deficiente’ por razões ligadas ao que atualmente é chamado Autismo. Isto é [...] eu manifesto todos os sinais de deficiência intelectual” (Blackman, 2013, p. 115), mas “(no entanto) dentro de mim eu sou competente, articulada e observadora!” (p. 115). Em outra apresentação de si, Lucy elucida sua maneira de conceber o autismo após os insights obtidos ao longo dos anos, afirmando que “eu não falo. Eu nunca fui capaz da sincronia fina para ações como cozinhar uma refeição sem ajuda, mas eu sou uma poeta e uma autora publicada” (p. 117). Realça que escreve “como uma pessoa com autismo clássico que foi diagnosticada há trinta anos” (p. 117) por considerar que elucidar a lógica do autismo e descrever as características do funcionamento autístico “é mais importante que nos categorizar em quão bem podemos nos misturar na paisagem neurotípica/não autista (p. 117).
Como Lucy caracteriza seu funcionamento psíquico autístico? O que podemos aprender com seus ensinamentos acerca do que é ser autista? O presente artigo utiliza o método psicanalítico para analisar, a partir dos relatos autobiográficos de Lucy, como podemos elucidar o autismo, contemplando tanto a delimitação da caracterização do que diferencia e distingue seu autismo de outras psicopatologias quanto a singularidade do seu sofrimento psíquico e as soluções inventivas autorais e originais que pôde criar para lidar com sua sintomatologia, sendo destacado em particular a importância dessas invenções para a obtenção de compensações no campo libidinal que viabilizam a (parcial) apropriação do corpo próprio.
As perturbações sensoriais
Inicialmente, abarcaremos como Lucy descreve as perturbações sensoriais que manifesta. Quando bebê, Lucy não tolerava ser abraçada pelos outros humanos, pois o toque era uma experiência dolorosa que a machucava, o que equivale a ter a pele arrancada, ficando em carne viva. Roupas como jeans também produziam a mesma perturbação sensorial, sendo vividas como agressões, sentindo-se queimar pelo toque. Em decorrência dessas sensações, quando era criança não conseguia conceber que o toque dos adultos era uma expressão de amor, vivenciando ao contrário, a presença desses gestos como amedrontadores e dolorosos.
Vários de seus processamentos sensoriais ocorriam de modo distinto daquele designado normal, o que impactava seu modo de se relacionar com os outros e com o mundo. Por exemplo, para “ler” a face das pessoas, relata sua dificuldade para processar profundidade e cor. Para “ler” a linguagem corporal, comenta sua dificuldade para apreender vários movimentos como parte de um todo e como uma sequência de movimentos. Explica que para ela, durante a infância, “faces consistiam em sombras” (p. 43): os olhos eram duas bolas de sombras, a boca era uma sombra em outra forma, enquanto o resto podia ser apagado em sombras que não eram suficientemente delimitadas para serem distintas.
Outra observação de Lucy a respeito do seu processamento sensorial visual realça que sua “visão é em partículas” (p. 101). Enquanto bebês e crianças ao observar uma expressão facial podem repetir a face do outro, durante a infância não era capaz desse espelhamento, e mesmo adulta realiza isso em raras ocasiões. Similarmente, em relação à audição, não consegue imitar, até porque não consegue escutar e processar a voz das pessoas. Enquanto as outras crianças à sua volta registravam o que ouviam e transpunham isso para a fala, realça que para ela não havia essa passagem. Por não conseguir apreender nem as faces das outras pessoas quando falavam, nem seus movimentos corporais de fala ou o registro sonoro do que era dito, ficava submersa em uma “percepção e audição caótica e não usual” (p. 10). Nesse contexto, ela tece a hipótese de que a maneira como o ser humano adapta a boca e a garganta para falar em sincronia com a linguagem que está na sua mente depende da interação social, salientando que pode ser que haja uma janela na qual possa haver o registro no cérebro desse fator social em relação à linguagem, que no seu caso não foi operante.
Segundo Lucy, no autismo há um “processamento atípico do tempo, do espaço, do equilíbrio, da luz, da cor, do som e de toda a sequência desses no processamento mnemônico” (p. 9). Descreve um “caos sensorial” (p. 10) e, em parte, remete às perturbações sensoriais visuais sua dificuldade de apreensão de si e dos outros, e a viabilidade de uma continuidade sequencial e apreensão global, uma vez que via tudo em fragmentos e era incapaz de estabelecer uma sequência de movimentos. Mesmo aos 38 anos de idade, realça que “não penso em padrões/modelos de fala, mas em flashes visuais e pedaços de som isolado” (p. 117), descrevendo um processamento de informações visuais distinto do usual, o que ela equivale a “um download de Google Earth com pedaços e tacos chegando fora de ordem” (p. 118).
Descreve essa mesma dificuldade em relação ao corpo próprio, sendo muitas vezes incapaz de interpretar as próprias experiências corporais. No decorrer dos anos, desenvolveu compensações para o “efeito mapa-separado/fragmentado” (p. 118), mas tece a hipótese de que as perturbações do processamento sensorial na sua infância tenham impactado a configuração do seu “cérebro social” (p. 118).
Em contraponto ao caos de múltiplos processamentos sensoriais sem ordenação, em alguns raros momentos vivenciava “um instante de clareza visual e morte do som com um nítido processamento cerebral no meio da neblina e do zunido autísticos” (p. 8), tecendo a hipótese de que na vida do não autista predomina justamente esses estados de calmaria. Lucy descreve sua singular maneira de experienciar o mundo e o impacto das perturbações sensoriais, realçando que na vida adulta seu modo de apreender o mundo se tornou mais próximo daquele das pessoas não autistas, mas reitera considerar que seu processamento das informações permanece diferente, afirmando que “não sei se é só porque eu sou pré-programada desse jeito, ou se a experiência do meu mundo da minha primeira infância e da infância criaram percurso e padrões que perduraram extensivamente (p. 117).
A apropriação do corpo próprio
Lucy inventou estratégias como o apoio de outra pessoa para poder apreender o corpo próprio para realizar gestos e se expressar de acordo com o que está na sua mente. Inicialmente, sua escrita se tornou viável pelo estabelecimento de um ponto de contato físico entre sua mão e a mão de outro humano que funcionava como um duplo que viabilizava um ponto de contato com seu corpo para poder se apropriar do corpo próprio ao criar uma “interdependência” (p. 6). Em um primeiro momento, o toque desse parceiro era indispensável para que pudesse se apropriar do gesto para expressar a linguagem que visualizava na sua mente, mas posteriormente pôde escrever independentemente do toque do outro.
Quando precisava ainda desse outro, relata que é por meio desse ponto de contato com o corpo do outro, por exemplo, colocando uma mão sobre a mão que usaria para digitar, que ela sentia que seu dedo havia se tornado novamente um “agente da minha mente” (p. 17) de modo que “minha mão e minha mente estavam conectadas” (p. 17). Para perceber com efetividade a realidade apreendida sensorialmente, era a presença do outro que lhe dava balizas em relação ao próprio corpo e onde ele se situava no espaço, o que a liberava para escrever. Nesse sentido, salienta que a imagem visual que podia construir se tornava mais coerente quando ela podia se encontrar no mundo, tendo como referência o lugar do seu outro parceiro, que era como um reflexo espelhado que lhe permitia se situar no mundo, tendo como principal ponto de referência o corpo do outro.
Lucy explica que quando digita, não consegue visualizar o teclado e sua mão no mundo “real”. É como se estivesse digitando com a sua mão na imagem visual do teclado na sua mente, pois ao contrário, sua percepção seria de que sua mão ‘real’ estivesse constantemente mudando, o que aproxima dos efeitos produzidos pelo pintor Picasso e pelo filme Matrix. Quando se sentia muito tonta e nauseada, precisava digitar embaixo do cobertor, sem olhar para o teclado, mas no dia a dia, sua estratégia de se visualizar digitando com sua mão ‘imaginária/mental’ funcionava.
Ela compara o toque que recebia na sua mão, oferecido pelo facilitador, ao sentimento que tinha de relaxar na água quando conseguia perceber onde seu corpo estava localizado e podia se coordenar com mais facilidade. Mesmo quando o parceiro não precisava encostar diretamente no seu corpo, a presença desse ao seu lado facilitava que ela não perdesse as balizas para determinar a localização do corpo próprio. Era também por intermédio desse outro que oferecia referências, que ela podia obter uma consciência do que havia acabado de realizar, qual gesto e qual expressão, podendo obter uma vivência de continuidade de si. Além da dificuldade para se apropriar do corpo para realizar um gesto, Lucy relata que, às vezes, entre surgir uma intenção na sua mente e realizar uma ação, perdia-se esse impulso no seu corpo, salientando que o toque do outro poderia funcionar para que organizasse esse impulso mobilizador do movimento.
No decorrer dos relatos autobiográficos, progressivamente Lucy pôde adquirir o sentimento de que as partes do seu corpo lhe pertencem. O ponto mutativo para poder se apropriar do corpo próprio é seu primeiro tratamento auditivo quando tinha 19 anos de idade, que modaliza suas perturbações sensoriais, quando adota o hábito de descrever seu funcionamento psíquico, em especial o processamento sensorial, por meio da escrita. Então, pôde estabelecer relações entre como falava e a maneira como escutava os outros e detectar “buracos perceptuais” (Blackman, 2013, p. 61) nos quais não registrava sons e que afetavam o desenvolvimento do seu pensamento e da sua linguagem.
A imagem de si, a invenção da Lucy imaginária para se apropriar do corpo próprio
Após o tratamento auditivo e a escrita autobiográfica, Lucy relata ter surgido um “Novo Eu” (Blackman, 2013, p. 74): “eu ainda tenho o sentimento da minha mão, meu corpo, meu pé etc., como componentes diferentes, mas agora eles estão unidos juntos, e isto me deu muito mais coordenação” (p. 139). Afirma que ao mover esses pedaços de si, obteve uma compreensão do que ocorria consigo, e podia se apropriar daquela parte do corpo de um modo mais sincronizado com o que havia pensado. Apesar da vivência de patchwork de pedaços de si, enfatiza que “o equilíbrio e a imagem corporal estava melhor” (p. 77). No entanto, apesar das melhoras obtidas pelo tratamento auditivo e pela escrita, “as vias da Antiga Lucy” (p. 75) faziam com que suas tentativas de apropriação do corpo próprio se intercalassem com movimentos repetitivos estereotipados e retraimento em um mundo à parte.
Grande parte das suas estratégias se desenvolveu a partir do espelhamento no seu parceiro-duplo-espelho através de um mirror imaging (Blackman, 2001, p. 151) que operacionalizou a apropriação do corpo por meio da imagem gestáltica do outro. Trata-se de uma compensação que, todavia, não lhe possibilita realizar inúmeras ações independentemente da presença desse outro-espelho, de modo que para que essas estratégias funcionem, o parceiro precisa estar presente no seu campo visual e ela deve poder se colar na sua imagem. Quando algo ou alguém saía da sua visão, desaparecendo momentaneamente, ela não era mais capaz de se apropriar do próprio corpo para realizar movimentos.
No decorrer do tempo, Lucy inventou diálogos imaginários por meio dos quais “minha mente cria uma questão não falada para uma outra pessoa” (Blackman, 2013, p. 69). Por exemplo, diante de uma situação alarmante que produz medo, “eu suponho/presumo que meu companheiro é minha âncora” (p. 69), de modo que responde, fazendo uma afirmação que é uma resposta para essa questão imaginada, criando um “documentário imaginário” (p. 69). Sugiro citarmos um desses exemplos, no qual é nítido o papel desse outro como alguém que a protege do medo e terror, permitindo--lhe expressar oralmente uma frase tranquilizadora.
Em uma situação alarmante, Lucy imagina uma questão do seu duplo: “Há algo errado com você?” (p. 69), ao que ela imagina a resposta que sim. Então visualiza uma resposta imaginária do seu duplo/facilitador/“mentor” (p. 69), dizendo “Não se preocupe!” (p. 69), o que lhe permite a seguir repetir esta mesma frase. Nesse contexto, de todo o diálogo imaginário, a única frase dita é a que Lucy formula “Não se preocupe!” (p. 69), que é apropriada da voz interna do seu duplo, que se concretizou “a marionete desse teatro de sombra”1 (p. 69) no seu diálogo imaginário.
Outra estratégia inventada era se visualizar como uma personagem que estava escrevendo e conversando com sua imagem duplicada, figurada na imagem de uma Lucy do passado. A invenção na sua mente desse diálogo entre si mesma e a imagem de si é operacionalizada pela construção de seu duplo imaginário-imaginado, de modo que esse procedimento viabilizava que ela se visualizasse fora do seu corpo como uma outra Lucy que podia se apropriar do corpo próprio para escrever, via a dramatização ou role playing (Blackman, 2001, p. 105). Através da Lucy, personagem imaginária, ela se inventou uma modalidade de tratamento imaginário, assim como o espelhamento no pequeno outro semelhante, para se apropriar do corpo próprio, o que é relatado, nas palavras da própria Lucy, como uma forma de “modelar minha própria existência” (p. 233) através do outro-duplo. Isto lhe possibilita interagir com seu outro-duplo enquanto uma imagem autocriada que também lhe permite se apropriar do corpo próprio e se ver e se compreender através dessa imagem dupla.
O duplo autístico ancorando uma nova regulação libidinal
No presente artigo, tecemos a hipótese de que no decorrer dos relatos autobiográficos de Lucy é possível observar uma nova modalidade de apropriação do corpo próprio e a incorporação de novas funções psíquicas, a partir do espelhamento e da inscrição da imagem de um outro, como um modelo de identificação mimética que alicerça o surgimento de uma Gestalt que forma e molda a relação com o próprio corpo e com os outros, possibilitando-lhe encontrar um modo de sair do isolamento autístico e se relacionar com as pessoas, através do molde fornecido pelo outro. Em vez da especularização viabilizada por um outro humano, o presente texto formula a hipótese de que os dispositivos de tratamento imaginário inventados por Lucy, por meio da sua escrita e da invenção da Lucy imaginária, são tentativas subjetivas que propiciam uma apreensão gestáltica de si via um anteparo não humano. Esse viés lhe permite criar pontos de contato libidinal entre seu corpo e a imagem do corpo do outro, oferecendo modalidades compensatórias ao funcionamento psíquico no autismo.
Lucy descreve uma impossibilidade de se apropriar do corpo próprio que é típica na clínica do autismo, na qual é premente a questão de como o autista pode se apropriar do fluxo de energia vital. O campo psicanalítico tem descrito o corpo do autista enquanto desconectado do campo da libido; nesse sentido, a psicanalista Kupfer (2004) sugere pensarmos que o autista mantém um esquema corporal independente da construção da imagem do corpo próprio, cuja constituição está imbricada ao espelhamento viabilizado pela alienação a um Outro. Nesse âmbito, a autobiografia de Lucy permite tecer a hipótese da viabilidade de uma identificação mimética que permita ao autista alterar sua relação com a libido, viabilizando uma apropriação da energia libidinal por meio de um tratamento do/pelo imaginário que possibilita uma alienação imaginária.
No cotidiano da clínica com autismo, sabe-se que muitos autistas precisam recorrer a um outro humano para poder realizar gestos e se expressar, viabilizando uma conexão com “o ponto de inserção de sua libido” (Maleval, 2009a, p. 109), podendo localizar a libido não nas bordas do corpo próprio, mas nas bordas estabelecidas no ponto onde seu corpo e o corpo de seu duplo se conectam. Vale destacar a premência da imagem no estabelecimento desse ponto de contato que possibilita a apropriação do corpo próprio e uma ancoragem que alicerça uma dinamização. Nesse sentido, o psicanalista Maleval (2009a) salienta que quando o duplo autístico (no caso de Lucy tanto seu facilitador de escrita quanto a Lucy imaginária) pode se ancorar sobre uma borda protetora do autista, de modo que este sente estar no controle; ele pode localizar nessa borda o gozo outrora invasivo, e a relação com o duplo se torna pacífica. A proposição de Maleval, ancorada nos casos clínicos e nos relatos autobiográficos de autistas e de pais de autistas, é de que o investimento libidinal do autista, em decorrência de um funcionamento psíquico diverso, precisa muitas vezes da intermediação do duplo. Nesse contexto, se por um lado o autista manifesta um erro e perturbação em relação ao ponto de inserção da libido, pela identificação mimética muitos autistas podem se balizar no ponto de inserção da libido de seu duplo para se apropriar do corpo próprio.
Descrevemos no presente texto como o desdobramento de si em um parceiro/outro imaginário propiciou a Lucy uma apropriação do corpo próprio; também enfocamos como a intermediação do facilitador da escrita possibilitou o estabelecimento de um ponto de contato físico entre sua mão e a mão de outro humano, que funcionava como um duplo, viabilizando um ponto de contato de Lucy com seu próprio corpo libidinal. Por meio dessa “parceria de corpo” (Blackman, 2001, p. 82) pôde se apropriar do corpo próprio, favorecendo modalidades compensatórias de regulação libidinal, elucidando importantes aspectos do funcionamento psíquico no autismo, por meio de suas escritas autobiográficas.
Essa parceria, ancorada em uma identificação mimética com seus duplos autísticos edificou uma alienação ao pequeno outro semelhante/imaginário autoinventado, personificado na Lucy imaginária, além dos facilitadores da escrita, que também ofereciam essa função mimética. O recurso ao duplo autístico se mostrou uma solução compensatória de tratamento do/pelo imaginário que lhe permitiu uma nova regulação da libido localizada nas bordas do próprio corpo com o corpo do outro/duplo. Essa localização libidinal viabilizou uma dinamização ancorada nessa interdependência por meio da qual foi possível se apropriar do corpo próprio e sair do isolamento autístico.
No caso de Lucy, a presença do duplo é imprescindível para a invenção dessa alienação imaginária compensatória, regulada pela presença imagética do outro/duplo, operacionalizando o esboço de uma imagem corporal formatada pela imagem do duplo. Detectamos no decorrer dos seus relatos autobiográficos, diversas tentativas psíquicas de se apropriar da libido, sendo que podemos tecer a hipótese de que a busca de Lucy, por meio das suas invenções, pode ser situada na busca da inscrição de um traço imaginário (e não simbólico) do outro, que lhe viabilize uma forma de se apropriar da libido. A inscrição dessa marca do outro no campo do imaginário pode viabilizar a alienação imaginária que operacionalize a viabilidade de um investimento narcísico, operacionalizado pela construção compensatória de um anteparo imaginário no qual possa se inscrever uma identificação compensatória, uma apropriação gestáltica de si e a constituição do ego.
Considerações finais
Os livros autobiográficos de Lucy Blackman são retratos contundentes acerca dos efeitos terapêuticos que os duplos autísticos podem exercer para os autistas, sinalizando a importância de essas invenções autoterapêuticas serem reconhecidas e potencializadas na condução do tratamento psicanalítico no campo do autismo. O psicanalista Maleval (2009b) salienta a importância da abordagem psicanalítica do autista não ter como balizas o recalcado do sujeito, a interpretação em direção a um trabalho de memorização ou na ressonância de alíngua. Também realça que ao se apoiar na contratransferência muitas vezes há uma “invasão da cura pelas fantasias do terapeuta” (p. 14) e muito raramente há efetivamente a abertura para um mundo tão distinto do neurótico. Nesse âmbito, ele salienta considerar que é preciso pensar na especificidade do tratamento do autista, enquanto distinto tanto do modelo de tratamento na neurose quanto na psicose, sugerindo que no autismo pode haver “uma relação transferencial original” (p. 14) tendo como dois principais eixos: o tratamento do Outro e a intermediação do duplo — nosso foco no presente texto. Nesse mesmo sentido, a psicanalista Perrin (2009) afirma que “o canal do duplo, base da defesa autística” (p. 96) é um lugar possível a ser ocupado na transferência no campo do autismo. Ela salienta que não se trata de oferecer um modelo de ego forte a ser copiado pelo autista, mas de “suportar a imagem” (p. 96) a partir da qual o clínico pode participar “de sua tentativa de estruturação de uma imagem do corpo e salvaguardar sua ligação libidinal” (p. 96). Nesse âmbito, em contraposição a uma abordagem normativa e reeducadora, a psicanalista enfatiza que “a solução que o sujeito autista encontra é sempre original, única” (p. 96), e, nesse sentido, o trabalho psicanalítico deve se balizar nessa invenção do autista, na sua paixão particular, o que sinaliza uma posição ética, clínica e política de respeito à singularidade da lógica do autismo.
Referências
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- Blackman, L. (2005). Reflexions on language. In D. Biklen, Autism and the Myth of the Person Alone (pp. 146-167). New York University Press.
- Blackman, L. (2013). Carrying Autism, Feeling Language: Beyond Lucy’s Story: Autism and Other Adventures Book in Hand.
- Blackman, L. (2015). A sense of Wonder - Knowing my hand (pp. 20-22). In A. Sequenzia, & J. E. Grace, Typed Words, Loud Voices Autonomous Press.
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Kupfer, M. C. K. (2004). Autismo: uma estrutura decidida? Uma contribuição dos estudos sobre bebês para a clínica do autismo. In Colóquio do LEPSI IP/FE-USP, 5., 2004, São Paulo. Recuperado de: <http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000032004000100005&lng=en&nrm=abn>.
» http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000032004000100005&lng=en&nrm=abn - Maleval, J-C. (2009a). L’autiste et sa voix. Éditions du Seuil.
- Maleval, J-C. (2009b). Les autistes entendend beaucoup de choses, mais sont-ils hallucinés? Psychologie clinique, 28(2), 83-101.
- Perrin, M. (2009). Construction d’une dynamique autistique de l’autogire à la machine à laver. In J-C. Maleval (Org.), L’autiste, son double et son objet (pp. 69-100). Presses Universitaires de Rennes.
- Roussillon, R. (2012). Manuel de pratique clinique Elsevier Masson.
- Soler, C. (1999). Autismo e paranoia. In S. Alberti (Org.), Autismo e Esquizofrenia na clínica da esquize (pp. 219-232). Marca d’Água.
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Editor/Editor: Prof. Dr. Nelson da Silva Jr.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
02 Maio 2022 -
Data do Fascículo
Mar 2022
Histórico
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Recebido
29 Jan 2017 -
Aceito
29 Mar 2017