Open-access De corpo e alma: relato de experiência sobre cuidar do corpo na psicose

Body and soul: experience report on taking care of the body in psychosis

Corps et âme: rapport d’expérience sur la prise en charge du corps dans la psychose

De cuerpo y alma: informe de experiencia sobre el cuidado del cuerpo en la psicosis

Este estudo teve como objetivo investigar as relações entre psicose e cuidados com o corpo. Adotou-se o método do relato de experiência, a partir do trabalho em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Conteúdos delirantes podem se colocar como impasses para a promoção da saúde. Há um importante índice de comorbidades clínicas em pessoas com diagnóstico de transtornos mentais crônicos, em decorrência de fatores como tabagismo, dieta precária, sedentarismo e efeitos colaterais de medicamentos. A Saúde Mental é uma clínica de sujeitos, de singularidades que precisam existir e conviver num coletivo, o que exige uma criatividade e uma sensibilidade que não cabe nos protocolos. É preciso construir um cuidado possível, coerente com os recursos que cada sujeito encontra para estar no mundo.

Palavras-chave: Saúde mental; psicose; corpo; cuidado


Resumos

The purpose of this study was to investigate the relation between psychosis and body care. The experience report method was adopted, based on a work performed in a Psychosocial Care Center (CAPS). Delusional contents may hamper health promotion. There is an important rate of clinical comorbidities in people diagnosed with chronic mental disorders, due to factors such as smoking, poor diet, sedentary lifestyle, and medication side effects. Mental Health is a clinic of subjects, of singularities that need to exist and coexist in a collective, which requires creativity and sensitivity that does not fit into protocols. We need to build a possible care, consistent with the means that enable each subject to be in the world.

Key words: Mental health; psychosis; body; care

Le but de cette étude était d’étudier la relation entre la psychose et les soins corporels. La méthode du rapport d’expérience a été adoptée, basée sur le travail dans un Centre d’Aide Psychosociale (CAPS). Les contenus délirants peuvent constituer des impasses pour la promotion de la santé. Un taux important de comor-bidités cliniques se manifeste chez les personnes diagnostiquées avec des troubles mentaux chroniques en raison de facteurs tels que le tabagisme, une mauvaise alimentation, un mode de vie sédentaire et les effets secondaires des médicaments. La Santé Mentale est une clinique de sujets, de singularités qui ont besoin d’exister et de vivre ensemble dans un collectif, ce qui demande de la créativité et de la sensibilité qui ne rentrent pas dans les protocoles. Il faut construire un soin possible, compatible avec les ressources que chaque sujet trouve pour se situer dans le monde.

Mots clés: Santé mentale; psychose; corps; soins


El objetivo de este estudio fue investigar la relación entre la psicosis y el cuidado corporal. Se adoptó el método del informe de experiencia, a partir del trabajo realizado en un Centro de Atención Psicosocial (CAPS). El contenido delirante puede representar un obstáculo para la promoción de la salud. Existe una importante tasa de comorbilidades clínicas en personas diagnosticadas con trastornos mentales crónicos, debido a factores como el tabaquismo, la mala alimentación, el sedentarismo y los efectos secundarios de los medicamentos. La Salud Mental es una clínica de sujetos, de singularidades que necesitan existir y convivir en un colectivo, esto requiere una creatividad y una sensibilidad que no encajan en los protocolos. Es necesario construir un cuidado posible, coherente con los recursos que cada sujeto encuentra para vivir en el mundo.

Palabras clave: Salud mental; psicosis; cuerpo; cuidado


O cuidado em saúde mental é um desafio não apenas pelo trabalho com o sofrimento psíquico do outro, mas também por necessitar de uma atenção à saúde do corpo que deve ser pensada de maneira mais específica. É preciso reinventar formas de cuidar desse corpo que é percebido de maneira diferente por cada pessoa — e é especialmente peculiar no caso das psicoses. As produções delirantes podem se colocar como impasses para a promoção da saúde da pessoa quando ocupam um lugar de verdade incontestável e esbarram nas práticas de cuidado ofertadas ou nas concepções acadêmicas de saúde ou doença, dificultando a adesão a estratégias de cuidado e prejudicando a vida desses sujeitos, ou até os colocando em risco.

Historicamente, a saúde mental foi separada da disciplina saúde do corpo (Castro, Andrade & Muller, 2006), o que fica também evidente na prática clínica, quando o cuidado com o corpo físico é muitas vezes negligenciado em detrimento de uma clínica das psicopatologias, focada nos “transtornos” psíquicos. Ao mesmo tempo, observamos um importante índice de comorbidades clínicas em pessoas diagnosticadas com “transtornos mentais” crônicos em decorrência de diversos fatores como tabagismo, dieta precária, sedentarismo e efeitos colaterais da terapêutica medicamentosa (Leitão-Azevedo et al., 2007; Teixeira & Rocha, 2007; Malbergier & Oliveira, 2005). Percebe-se, com isso, a necessidade de um acompanhamento clínico do metabolismo por meio de exames laboratoriais, envolvendo orientações gerais como dieta adequada, realização de atividades físicas e práticas de autocuidado (Vargas & Santos, 2011). Essas medidas, pensadas para uma população geral, são atravessadas por questões psíquicas e necessitam de certa adaptação quando o público é composto por usuários(as) da saúde mental. Primeiro, porque é preciso considerar as diferentes formas de perceber o mundo e de existir nele, que diferem de pessoa para pessoa; segundo, porque nem sempre o cuidado ofertado vai fazer sentido para a pessoa em questão. Sendo assim, é preciso pensar além do procedimento e da técnica encontrada nos livros didáticos e ampliar o olhar para a necessidade de uma pessoa que pode não estar compartilhando as mesmas ideias e percepções que o cuidador.

Trata-se do desafio de lidar com uma recusa alimentar que é atravessada por um delírio persecutório, ou com um usuário que não aceita medicação porque tem certeza que lhe fará mal ou que não precisa dela. Soma-se ainda o desafio de prestar cuidados a uma população que em maioria é tabagista, ingere grandes quantidades de medicação por tempo prolongado e que apresenta, muitas vezes, comportamentos de risco em seu território. Sem mencionar a dificuldade de acesso a serviços de saúde de sua comunidade. Pergunta-se, então: como garantir o cuidado e a assistência adequados a essa população preservando, ao mesmo tempo, sua autonomia e sua capacidade de cuidar de si?

O presente trabalho teve como objetivo investigar as relações existentes entre cuidados com o corpo e psicose. O referencial teórico escolhido foi o da psicanálise para conceituar a psicose, tendo sido também realizada pesquisa bibliográfica sobre o tema, visando relacioná-las a experiências práticas do trabalho na área da Saúde Mental.

Método

Este estudo consiste em um relato de experiência profissional que aborda vivências de trabalho em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Foram selecionados registros de situações reais experienciadas nesse serviço por parte das autoras. A esses dados, somaram-se informações relevantes coletadas em prontuário. Foram omitidos quaisquer dados que pudessem levar à identificação de usuários; os nomes foram substituídos por nomes fictícios. Buscando fundamentar as situações vivenciadas, foi realizada pesquisa teórica sobre a relação do sujeito psicótico com o próprio corpo e sobre a relação entre o uso de medicações psiquiátricas e a presença de comorbidades orgânicas. Respeitando-se a resolução n. 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, este manuscrito teve seu projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Universitário do Maranhão (UniCEUMA), com CEEA n. 35129520.5.0000.5084.

Corpo e psicose

Segundo Meyer (2017), a análise de Freud sobre o caso Schreber, em 1911, nos apresenta sua principal contribuição para o estudo das psicoses, por romper com as concepções da psiquiatria, que entendia o delírio como sintoma patológico, passando a defini-lo como uma tentativa de recuperação, de reconstrução de sentido. Freud (1911/1996) aponta que o delírio apresentado por Schreber é o que lhe permite reconstruir seu mundo e, de certa forma, seu corpo, tornando possível a estabilização de seu quadro durante alguns anos. O delírio, sob essa ótica, pode ser entendido como um modo que o psicótico encontra para restabelecer os laços com o mundo externo e reconstruir a realidade. A psicanálise, dessa forma, inaugura uma nova maneira de entender a questão da psicose. Posteriormente, em “Sobre o narcisismo, uma introdução” (1914), Freud utiliza o termo parafrenia para se referir ao que Kraepelin denominava de demência precoce e Bleuler, mais tarde, de esquizofrenia. De acordo com Freud (1914/1989), caberiam aos parafrênicos duas características fundamentais: a megalomania e o abandono do interesse pelo mundo externo (pessoas e coisas). Esse abandono da relação com a realidade também pode ser percebido nos neuróticos (histéricos e neuróticos obsessivos), mas nesses casos a relação com o mundo externo é mantida na fantasia, ou seja, os neuróticos substituem os objetos reais por objetos imaginários. O parafrênico, por outro lado, retira das pessoas e coisas a sua libido sem substituí-las por outras na fantasia, de forma que a libido retirada dos objetos é dirigida ao próprio Eu — conduta que podemos chamar de “narcisismo” (Freud, 1914/1989). Na obra “A perda da realidade na neurose e na psicose” (1924), Freud reforça a ideia de que, na psicose, o indivíduo repudia a realidade e a substitui por outra: a realidade delirante (Freud, 1924/1996, apud Meyer, 2017). A perda de contato com a realidade é tomada por muitos autores como dimensão central da psicose (Dalgalarrondo, 2008; Ey, Bernard & Brisset, 1981). O psicótico, fora da realidade, viveria predominantemente sob a égide do princípio do prazer e do narcisismo (Dalgalarrondo, 2008).

Enquanto Freud construiu sua teoria com base nos casos de neurose, principalmente a histeria, abordando a questão da psicose de maneira mais superficial, é Lacan que aprofundará o estudo da psicose, dando continuidade ao que Freud começou. Lacan (1955-56/1985) irá explorar os efeitos da ausência de simbolização da falta, incluindo as dificuldades que o psicótico enfrenta com relação às vivências de corpo. A principal via utilizada por Lacan para essa finalidade foi a concepção da função paterna enquanto função simbólica, ou seja, como uma metáfora — um significante que substitui outro significante (Meyer, 2017). O lugar do pai é definido por Lacan como um terceiro que vem a promover a separação ou desligamento entre o sujeito e o outro primordial: a mãe (o primeiro outro que aparece para o sujeito). Nesse sentido, elabora o conceito de foraclusão para explicar a estrutura psicótica como uma consequência da foraclusão do significante paterno, do Nome--do-Pai (Lacan, 1955-56/1985).

A foraclusão do Nome-do-Pai indica que a lei não se inscreveu para o sujeito psicótico por meio do significante paterno, como ocorreria em sujeitos não psicóticos, e isso irá prejudicar a simbolização da castração, ou seja, da ideia de falta. Por isso, o psicótico percebe a falta como algo concreto, uma vez que não teve a mediação do simbólico para elaborar a castração (Lacan, 1957-58/1998b). O significante paterno, na neurose, protege o sujeito de se sentir invadido pelo grande Outro, pois a simbolização é o que confere limite entre o sujeito e o outro, e é o que lhe permite barrar esse outro. O psicótico, por não possuir o recurso da mediação simbólica, pode perceber o outro como não separado dele, e isso faz com que esse outro se torne invasivo para ele.

A ausência de simbolização do significante paterno vai afetar também as vivências de corpo do sujeito psicótico (Lacan, 1955-56/1985). Em “O estádio do espelho como formador da função do eu” (1949), Lacan defende que, no início da vida, o corpo é percebido como fragmentado, sendo possível constituir sua integração apenas a partir da separação entre o sujeito e a figura primordial (Lacan, 1949/1998a). Entretanto, na ausência de imagem integradora e de sustentação simbólica para o corpo, o sujeito permanece alienado, absorvido como uma parte desse Outro, e precisará criar recursos que possibilitem uma separação entre seu Eu e o Outro (Lacan, 1964/1988). Seguindo a linha de pensamento freudiana citada anteriormente, Lacan considera que a construção da metáfora delirante do psicótico lhe permite certa estabilização da relação desse corpo fragmentado com o mundo, considerando que a imagem corporal não está dada a priori, mas precisa ser construída (Vidal & Pinheiro, 2015). Estabelecendo uma breve diferenciação entre a esquizofrenia e a paranoia, temos que, na primeira, o corpo encontra-se fragmentado, sem unidade; e, na segunda, o que se apresenta é um corpo invadido, perseguido, cuja relação com o Outro é difícil (idem). Assim, no caso da paranoia, “não se trata do problema da relação com o órgão ou com o corpo, mas do problema da relação com o Outro” (Miller, 2003, p. 11).

A respeito da transferência na psicose, Lacan indica que o analista deve ocupar um lugar de destinatário, exercendo a função de “secretário do alienado” (1955-56/1985, p. 236) — aquele que recebe e recolhe o testemunho do psicótico. A função do analista (que estendemos para o profissional que acompanha o usuário) pode ser a de ajudar o psicótico na construção de uma relação possível com o corpo (Vidal & Pinheiro, 2015). No caso da paranoia, talvez caiba ajudar o sujeito a inventar recursos de mediação que permitam que seu corpo não seja totalmente invadido pelo Outro; enquanto na esquizofrenia o corpo sequer foi produzido, cabendo ao profissional ajudar o sujeito a inventar formas de se ligar ao corpo, constituindo uma possível organização (Miller, 2003).

Ressalta-se que a transferência na psicose deve buscar manter certa distância, estrategicamente, para evitar invadir o sujeito, reduzindo a possibilidade de mortificação (Muñoz, 2010). Para isso, é fundamental que o interlocutor se coloque disponível para novas construções discursivas que poderão ajudar o sujeito psicótico em sua estabilização (Muñoz, Leal, Dahl & Serpa Jr., 2001).

Comorbidades clínicas

Leitão-Azevedo, Guimarães, Lobato e Belmonte-de-Abreu (2007) identificam por meio de revisão teórica uma relação significativa entre a presença de aumento de peso, dislipidemia e síndrome metabólica em pessoas esquizofrênicas, antes, durante e após o uso de antipsicóticos, especialmente os de segunda geração, apresentando taxas quase duas vezes maiores do que na população geral e indicando uma redução de cerca de 20% na expectativa de vida dentre as pessoas esquizofrênicas. Embora os antipsicóticos constituam um elemento importante no manejo de manifestações psicóticas, é preciso considerar seus efeitos adversos e pensar estratégias de uso desses medicamentos que busquem equilibrar a relação de custo-benefício. Os chamados antipsicóticos de segunda geração, ou atípicos, trazem vantagens em relação aos de primeira geração, ou convencionais, como redução dos efeitos colaterais extrapiramidais (parkinsonismo, distonias, acatisia e discinesia tardia), além de maior efeito sobre os sintomas negativos da esquizofrenia, sendo por isso considerados tratamento de primeira linha (Elkis et al., 2008). Entretanto, seu uso tem sido associado ao ganho de peso e a alterações metabólicas como dislipidemias, síndrome metabólica e diabetes mellitus, complicações estas que aumentam o risco de doença cardiovascular, que já se apresenta como principal causa de morte em pessoas com esquizofrenia (idem). Elkis et al. (2008) destacam, ainda, que a prática psiquiátrica no Brasil na rede de atenção primária tem se concentrado na remissão dos sintomas psicóticos, em detrimento de outros aspectos que fazem parte do tratamento como a segurança cardiovascular, os sintomas negativos da esquizofrenia e os distúrbios metabólicos que o usuário pode vir a apresentar e que podem, inclusive, contribuir para o aumento da morbidade clínica e piora da qualidade de vida dessa população.

A síndrome metabólica pode ser definida como um conjunto de sintomas clínicos que incluem aumento de tecido adiposo abdominal, dislipidemia, hipertensão e resistência à insulina com piora do metabolismo da glicose (Elkis et al., 2008). A dislipidemia, por sua vez, é determinada pela presença de altas concentrações de lipoproteínas de densidade muito baixa (VLDL) e, ao mesmo tempo, baixa concentração sérica de lipoproteínas de alta densidade (HDL), acompanhada de partículas pequenas e densas (LDL) e lipemia pós-prandial (idem).

Embora alguns estudos apontem o suicídio e a doença cardiovascular como as duas causas mais comuns de morte de pessoas esquizofrênicas, é importante ressaltar que a doença cardiovascular nesse grupo de pessoas corresponde a aproximadamente o dobro do que ocorre na população geral (idem). Essas condições clínicas ocorrem precocemente e podem ser acentuadas por aspectos que envolvem hábitos de vida, como o tabagismo, o sedentarismo e a privação social, sendo que há evidências de que a esquizofrenia por si só e/ou o uso de antipsicóticos, principalmente os mais recentes, estão associados com a doença cardiovascular.

De acordo com o Consenso Brasileiro sobre Antipsicóticos de Segunda Geração e Distúrbios Metabólicos, levantamento feito em 2007, o uso de medicamentos antipsicóticos, de primeira e de segunda geração, tem sido relacionado a ganho de peso, diabete e dislipidemia, porém existem variações importantes entre um medicamento e outro que precisam ser consideradas. Por exemplo, a clozapina e a olanzapina foram associadas a maior risco de ganho de peso, diabetes e dislipidemia do que outros dois medicamentos mais novos: a ziprasidona e o aripiprazol — medicamentos que, no entanto, não são oferecidos pelo SUS. Já a risperidona e a quetiapina apresentaram riscos intermediários para ganho de peso. Importante destacar que hábitos como o sedentarismo, o tabagismo e a dieta inadequada são comuns nos pacientes com esquizofrenia e podem contribuir para a maior prevalência de alterações metabólicas e aumentar a predisposição ao desenvolvimento de doenças cardiovasculares e endócrinas. O sedentarismo nesses casos pode estar associado a sintomas negativos da esquizofrenia, a efeitos sedativos dos antipsicóticos ou a internações prolongadas. Tanto o estilo de vida quanto o tratamento medicamentoso podem contribuir para causar ou agravar alterações metabólicas em indivíduos psicóticos, portanto, é difícil se certificar se a razão de tais comorbidades está ligada à condição psiquiátrica por si só ou se é devido à medicação (Elkis et al., 2008).

Outro estudo, de Teixeira e Rocha (2007), aponta uma correlação positiva entre doenças mentais e diabetes melittus. Os resultados de sua pesquisa evidenciam que a prevalência de síndrome metabólica é elevada em portadores de esquizofrenia e de transtornos esquizoafetivos e em mulheres com histórico de depressão. Prado, Sá e Miranda (2015) também identificam estudos sobre a presença de comorbidades orgânicas como diabetes, doenças cardíacas, tuberculose, hepatite B e C em decorrência do uso prolongado de certas medicações como antipsicóticos, bem como de hábitos de vida não saudáveis, como tabagismo e uso de outras drogas, falta de atividade física e alimentação inadequada. As autoras destacam, ainda, a maior dificuldade de portadores de comorbidades orgânicas em receber cuidados primários de saúde por diversos fatores como dificuldade de acesso, falta de credibilidade por parte dos profissionais e redução da percepção de dor, sendo maior a demora desses sujeitos em procurar ajuda de serviços de saúde (Prado et al., 2015).

Em pesquisa que avalia as condições de saúde bucal de pessoas internadas em uma instituição psiquiátrica no Rio de Janeiro, Oliveira et al. (2021) constataram número significativo de perda dentária, ocorrência de cáries e obturações dentre os pacientes analisados. As pesquisadoras ressaltam que a ausência de dentição interfere na alimentação, na comunicação e na autoestima, aumentando o isolamento e, consequentemente, prejudicando a qualidade de vida e a reabilitação psicossocial dessa população. Hábitos de higiene, condições socioeconômicas, dificuldade de acesso a tratamentos odontológicos, limitações cognitivas, distanciamento de familiares, negligência da higiene oral dos pacientes por parte da instituição, uso de psicofármacos que provocam redução do fluxo e volume de saliva e comprometimento da coordenação motora são fatores relacionados à clínica psiquiátrica que podem contribuir para a prevalência de doença bucal (Oliveira et al., 2021).

Segundo Vargas e Santos (2011), diversas teorias tentam explicar a relação entre distúrbios metabólicos e esquizofrenia, como: a doença em si (pelo aumento do estresse e da resposta inflamatória), fatores genéticos, hábitos de vida e efeito colateral de medicações. Em sua pesquisa com homens esquizofrênicos maiores de quarenta anos em uso de antipsicóticos por dois anos ou mais, internados em um hospital de Viamão, Rio Grande do Sul, a síndrome metabólica foi prevalente em 30,4% da população estudada, sendo que 82% dos pacientes preencheram pelo menos um dos critérios da síndrome, destacando-se a presença de hipertensão arterial sistêmica e aumento da circunferência abdominal, com prevalência de 60,7% e 50% respectivamente, enquanto hiperglicemia foi encontrada em 26,8%, HDL–colesterol baixo também em 26,8% e hipertrigliceridemia em 23,2% dos pacientes. As autoras concluem que os medicamentos antipsicóticos, especialmente os de segunda geração, parecem contribuir para o desenvolvimento de alterações metabólicas em pessoas com diagnóstico de esquizofrenia, e ressaltam a importância de ampliar os cuidados de saúde com essa população para além da redução dos sintomas psicóticos, visando a prevenção e o tratamento de anormalidades metabólicas e doenças crônicas (Vargas & Santos, 2011).

O tratamento das comorbidades visa o alívio dos sintomas e a prevenção de complicações crônicas e agudas das doenças, bem como a melhora da qualidade de vida e aumento da expectativa de vida dessas pessoas (Elkis et al., 2008). Algumas recomendações do Consenso Brasileiro sobre antipsicó-ticos de segunda geração e distúrbios metabólicos para o acompanhamento de usuários que apresentam comorbidades podem ser destacadas:

  • • avaliação clínica antes de introduzir medicação antipsicótica, incluindo medidas de peso e estatura (para cálculo do IMC), circunferência abdominal (na altura da cicatriz umbilical), pressão arterial, dosagens de glicemia, colesterol total, colesterol HDL e triglicérides em jejum. Além de pesquisar história pessoal e familiar de obesidade, diabetes, dislipidemia, hipertensão arterial e doença cardiovascular;

  • • ao avaliar que o usuário possui alguma comorbidade, é necessário iniciar o tratamento adequado das doenças correlacionadas, pois quando ocorrem em conjunto, potencializam suas morbidades e estão associadas a distúrbios cardiovasculares.

Revisão bibliográfica realizada por Attux et al. (2009) discorre sobre as intervenções possíveis para o controle do ganho de peso em pessoas que fazem uso de antipsicóticos. Tais intervenções podem ser farmacológicas ou não farmacológicas. As autoras defendem a priorização de ações não farmacológicas, utilizando ações farmacológicas como apoio, sendo a última opção de tratamento. Nesse mesmo trabalho, foi realizado um levantamento de diferentes estudos sobre intervenções psicoeducativas em grupos de pacientes que fazem uso de antipsicóticos, visando orientá-los quanto à dieta adequada e outros cuidados para prevenir ganho excessivo de peso. Concluiu-se que tais medidas podem ser efetivas em pacientes com esquizofrenia (Attux et al., 2009). São medidas muito importantes, uma vez que o aumento do peso está associado a comorbidades clínicas que prejudicam a qualidade de vida desses usuários. Para os casos em que a pessoa apresenta dificuldade de adesão às propostas de hábitos saudáveis, pode ser útil o tratamento medicamentoso para perda de peso, mas deve continuar sendo associado a estratégias para mudança de estilo de vida, explicam Attux et al. (2009).

Malbergier e Oliveira (2005) apresentam um levantamento bibliográfico que identifica uma relação entre tabagismo e transtornos psíquicos. O ato de fumar parece interagir com o uso de diversas medicações psiquiátricas e pode reduzir seu efeito terapêutico, aumentar os efeitos colaterais, e interferir no humor dos usuários, incluindo aumento da ansiedade e piora da cognição como resultados da abstinência da nicotina. Estudos demonstram que a prevalência de tabagismo é 1,6 vezes maior entre portadores de transtornos psiquiátricos do que em não portadores, e que cerca de 80% dos pacientes com esquizofrenia são fumantes (Hughes, 1986 e Hughes et al., 1986, citados por Malbergier & Oliveira, 2005). Segundo os autores, tanto o consumo quanto a abstinência da nicotina interferem nos principais sistemas de neurotransmissão envolvidos em transtornos psiquiátricos, além de ter influência sobre as taxas de mortalidade. Algumas características indicadoras de maior gravidade do tabagismo em pessoas esquizofrênicas são a idade jovem, início precoce de sintomas psiquiátricos, maior número de internações e doses elevadas de antipsicóticos (Goff et al., 1992 citados por Malbergier & Oliveira, 2005). Podem ser identificados também padrões de sintomas relacionados ao tabagismo nessa população com predominância de sintomas positivos, enquanto sintomas negativos seriam mais discretos (Ziedonis et al., 1994 citados por Malbergier & Oliveira 2005). Em relação aos efeitos da medicação antipsicótica, os sintomas extrapiramidais, em geral, são amenizados pela nicotina (Sandyk, 1993 citado por Malbergier & Oliveira 2005), provavelmente devido à ação dessa substância sobre o sistema dopaminérgico estriatal (Morens et al., 1995 citados por Malbergier & Oliveira 2005). Os autores destacam, ainda, a relação entre o desenvolvimento da discinesia tardia e o tabagismo, havendo maior probabilidade de aparecimento dos sintomas de discinesia em pacientes fumantes contra os não fumantes (Yassa et al., 1987 citados por Malbergier & Oliveira, 2005). É preciso considerar igualmente os possíveis prejuízos cognitivos e sociais que acometem uma pessoa esquizofrênica e que podem dificultar seu acesso e permanência em programas de tratamento para o tabagismo (Malbergier & Oliveira, 2005). Apesar disso, essas pessoas demonstram interesse em parar de fumar e apresentam motivação para tal atitude semelhante à população em geral (Addington et al., 1997 citados por Malbergier & Oliveira, 2005). Tudo isso indica que é válida a aposta na inserção dessas pessoas em programas de redução do tabagismo.

Recortes das experiências

O acompanhamento de usuários e usuárias em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) possibilitou a aproximação com a clínica da psicose, e seus diversos desafios. Serão apresentados, a seguir, alguns “retratos” dessa experiência, cuja riqueza completa não caberia nos limites do presente trabalho.

Maria encontrava-se internada em instituição psiquiátrica havia três anos. Ela não aceitava ir ao seu CAPS de referência e, na maioria das vezes, também não aceitava receber os profissionais desse serviço durante visitas ao hospital. Dizia que o CAPS era “lugar de maluco” e que ela não era maluca. Era difícil conversar com ela sobre temas mais profundos de sua vida, como seu passado, sua história e seus planos de futuro. Dentro do CAPS, já ocorreu diversas vezes de ela conversar um pouco sobre alguma necessidade mais imediata como pegar seu dinheiro que ficava guardado em uma pasta trancada em uma sala de pertences, ou solicitar que alguém a acompanhasse até o banco para sacar seu BPC (Benefício de Prestação Continuada). Porém sustentava pouco tempo de conversa, referia muito cansaço e dizia que não queria mais conversar, pois precisava descansar. Em outros momentos, simplesmente não aceitava abordagem, deitava-se e cobria a cabeça com uma coberta. Tampouco aceitava participar de oficinas terapêuticas e atividades em grupo, de forma geral. O vínculo com a profissional de referência do serviço foi se construindo durante as idas à sala de pertences e, principalmente, durante os acompanhamentos ao banco. Diante da dificuldade para saber sobre sua história e seus desejos, a profissional começou a praticar com ela atividades de oficina individualmente, num ambiente onde ela parecia se sentir menos invadida, percebendo que era mais possível construir sua história dessa maneira, enquanto ela desenhava peças de roupas e explicava como fazia para costurá-las (ela havia sido costureira).

Maria era diabética e hipertensa. Tabagista, parava diversas vezes para fumar durante a caminhada até a agência bancária. Nesse período, ela apresentava crises de tosse e começou a sentir cansaço durante as caminhadas. Fazia uso de medicações orais e seu antipsicótico prescrito era o Haloperidol. Houve tentativas de mudar a medicação ou reduzir a dose para tentar diminuir seus efeitos metabólicos, que afetavam as comorbidades clínicas. Entretanto, seus sintomas psicóticos agudizavam rapidamente. Extremamente invadida, ela ficava delirante, hostil, sem aceitar abordagens, recusando higiene e alimentação adequadas e entrando num processo de isolamento em que passava o dia todo coberta dos pés à cabeça, recusando qualquer contato. Ao retomar sua medicação usual, esses sintomas arrefeciam e era mais possível a abordagem para continuidade de seus cuidados. Esse agravamento coincidia com períodos em que nenhum profissional a acompanhava ao banco para sacar seu benefício. Foi explicado a ela que não havia necessidade de retirar todo o seu dinheiro do banco a cada mês, pois o valor continuaria em sua conta, de modo que ela poderia pegar somente o que precisasse. Certa vez, porém, ela contou que o homem do banco falava em sua cabeça que ela precisava ir ao banco sacar o dinheiro. Foi possível, assim, entender o quanto isso a desestabilizava. Por vezes, ela também ficava muito hostil com alguém da equipe, sem motivo aparente. Até ela dizer que aquela pessoa a tinha abandonado e a deixado com fome. Ela não aceitava que qualquer pessoa lhe acompanhasse para pegar seu dinheiro, sendo preciso alguém com quem ela tivesse mais vínculo para lhe acompanhar. Por isso, quando essa pessoa não estava presente para buscar junto com ela seu dinheiro, e, consequentemente, ela não tinha como comprar alimentos, isso era entendido, de maneira muito concreta, como abandono e fome.

Eis o retrato de uma pessoa extremamente invadida pelo Outro, com tendência ao isolamento social e que precisava de cuidados clínicos que nem sempre lhe faziam sentido. Essa mesma pessoa precisaria encontrar recursos para lidar com seus cuidados de saúde fora da vigilância de um ambiente hospitalar. Mas esse trabalho começaria ainda durante a internação. Era preciso conversar com o dono da cantina que ela frequentava diariamente e explicar a importância de oferecer adoçante em vez de açúcar. E conversar com a nutricionista para entender se era possível uma dieta que Maria pudesse aceitar melhor (evitando comer alimentos industrializados na cantina).

Em uma das idas de Maria ao CAPS, foi possível compreender que se tratava de um ambiente agitado, com muitas pessoas e ruídos sonoros, enfim, insuportável para ela. Ao mesmo tempo, Maria tinha mais abertura para aceitar ir à Unidade Básica de Saúde (que não era “lugar de maluco”, para a mesma). E essa foi uma das direções de seu projeto de saída da internação: a reconstrução do vínculo com o território por meio de um serviço da Atenção Básica de Saúde.

Quando uma pessoa diz que não é louca, ela sabe que a loucura a marginaliza, a exclui da convivência possível, dos espaços sociais, e lhe encerra entre muros de uma instituição. Refere-se à loucura como sinônimo de sentir ou perceber coisas que os outros não estão percebendo. Nesse sentido, essa pessoa não se acha louca, pois tem certeza que aquilo que vivencia é real. E de fato, para ela, é real mesmo, pois é sentido de forma concreta, ainda que sejam sensações ou ideias não compartilhadas pelas pessoas à sua volta. É preciso compreender que aquilo que é chamado de sintoma e considerado “anormal” é apenas sua forma de estar no mundo.

Certa vez, Maria perguntou à sua técnica de referência se poderia “atendê-la” naquele momento, e pediu-lhe para ir junto com ela buscar seu dinheiro. Nota-se, com esse exemplo, que o atendimento na clínica da psicose se trata de algo maior do que entrar em uma sala e conversar com uma pessoa. Conforme Meyer (2017), atender o paciente não se resume a convidá-lo para falar de seus problemas em uma sala fechada, mas envolve também acompanhá-lo em oficinas terapêuticas ou numa consulta com seu médico.

Retomando o que foi exposto anteriormente, na psicose, por não haver mediação simbólica, o outro é tomado como Outro absoluto que invade e ordena. O sujeito se sente constantemente invadido e luta diariamente para barrar esse Outro. Viganò (2007) afirma que quando um sujeito psicótico passa o dia todo em seu leito e diz “estou muito cansado”, é importante compreender que esse cansaço se deve a um trabalho de organização, chamado de autodefesa e autoconstrução. Segundo o autor, a autodefesa consistiria em uma tentativa de anular todos os signos, todas as marcas da presença do Outro, que lhe é invasivo, por meio do isolamento, do congelamento, daquilo que poderíamos chamar de “autismo”. É quando a pessoa se fecha em seu quarto, inverte o dia pela noite, se isola do contato social, para se esquivar desse Outro que quer lhe destruir, lhe fazer mal. A autoconstrução, por sua vez, seria uma operação para realizar a existência simbólica do próprio corpo; algo que o sujeito produz numa tentativa de estar dentro do mundo da linguagem. Por exemplo, um movimento repetitivo para frente e para trás, ou um trabalho de catar pedrinhas no chão. Trata-se de uma produção simbólica como forma de inserção na linguagem, que, no entanto, ele produz sem que o Outro reconheça essa sua linguagem própria e se tornam comportamentos repetitivos, que não cessam, pois os gestos não se tornam uma palavra (Viganò, 2007).

É justamente nessa relação, nesse esforço para barrar o outro, que podemos identificar o sujeito. Segundo Meyer (2017), identificamos o sujeito pelo modo como constrói e como dirige sua fala ao outro, seja pela via do delírio ou por uma posição de apagamento que aparece nesses casos. Por isso, é tão importante um lugar de escuta desse sujeito para que ele organize o conteúdo que vem do Outro de forma massiva. A mesma autora afirma que quando o profissional acolhe o discurso delirante, possibilita que esse discurso ganhe um sentido de ancoramento e de organização para o sujeito. Portanto, é preciso acompanhar esse sujeito psicótico na criação de meios para barrar o Outro que lhe é invasivo (Meyer, 2017) — trabalho que Lacan chamou de secretariar, conforme abordado mais acima.

Talvez seja possível ampliar a noção de “secretariar” e incluir o cuidado com o corpo, no sentido de acompanhar o sujeito nas suas formas de se cuidar, considerando não apenas o que se aprende na academia, mas também o que faz sentido para cada sujeito, na direção de um cuidado conjunto que preze pela autonomia, sem deixar negligenciar os cuidados com o corpo, que também adoece. A partir disso, é importante fornecer instrumentos para que esse sujeito possa cuidar de si, promover acesso a serviços de saúde, especialmente a atenção básica por sua lógica de prevenção e promoção da saúde por meio de um acompanhamento longitudinal (ao longo do tempo) e territorial, mais próximo do sujeito.

Enquanto na internação psiquiátrica o sujeito encontra-se “protegido” pelos muros hospitalares, constantemente vigiado e tutelado, os serviços substitutivos de saúde mental, como os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), propõem uma outra forma de cuidado, agora em liberdade. Essa proposta, ao mesmo tempo que liberta o sujeito do isolamento e o devolve à vida social, também faz emergir novos desafios. Eis o grande desafio do cuidar em liberdade, longe da tutela mortificante de uma instituição total.

Atuando no CAPS, é possível se deparar com situações em que um(a) usuário(a) se coloca em risco por seu comportamento desorganizado e sem crítica, muitas vezes sofrendo agressões físicas no território e, mesmo assim, repetindo o comportamento. Em outras situações, a pessoa apresentava alguma descompensação orgânica, que seria causa de dor intensa, mas não demonstrava incômodo e parecia estar alheia a tal enfermidade. Com relação à higiene, muitas vezes o odor de determinado(a) usuário(a) ao entrar numa sala era muito forte. Ocorreram, ainda, situações em que o sujeito recusava veementemente algum cuidado de saúde de que precisava naquele momento, não aceitando ir até o serviço de saúde indicado (como uma Unidade de Pronto Atendimento ou sua Unidade Básica de Saúde de referência). É preciso, então, que o profissional esteja ainda mais atento às questões do(a) usuário(a) porque, muitas vezes, pessoas apresentam quadros de adoecimento físico mesmo não apresentando queixa nem demanda em relação a isso.

Retomemos a relação do psicótico com seu corpo e a importância de um trabalho com o sujeito que busque construir com ele a noção de corpo. Goidanich (2003) vai ressaltar a relação de estranhamento que os psicóticos mantêm com seu corpo, de modo a parecerem alheios à dor, ao frio, ao calor, à fome, ou ao desejo sexual, e mesmo às doenças físicas, que parecem não lhes abalar do mesmo modo como ocorre nas neuroses. Ao mesmo tempo, em situações de crise, na agudização dos sintomas, podem ficar completamente tomados pelas afecções que sentem sobre seu corpo, quase esmagados pela enxurrada de estímulos que não conseguem controlar (Goidanich, 2003). Trata-se de vozes, imagens, sensações como empurrões e beliscões que os dominam, ou do pensamento controlado por imposições que já não dizem se lhe são próprias ou se vêm de um outro, e de sensações que invadem o sujeito de forma sem barreira nem censura (idem).

É importante acompanhar esses usuários e usuárias em seus cuidados nos diferentes serviços (consultas, exames etc.) para mediar situações em que possam ter dificuldades ou que possam ser difíceis para a equipe do local. Mais importante ainda é entender, para aquele sujeito em questão, o que significa essa recusa em se cuidar, e que elementos podem ser utilizados junto com os serviços do território para garantir ao menos os cuidados básicos de saúde.

Ressalta-se que o acolhimento em dispositivos que funcionam durante o dia e a noite, como um Centro de Atenção Psicossocial do tipo III (CAPS III) ou uma Unidade de Acolhimento Adulto (UAA), pode possibilitar o prosseguimento de certos cuidados de saúde. Muitas vezes, esse acolhimento tem a função de garantir um cuidado clínico para uma pessoa que, por alguma razão, não consegue realizar esse cuidado por conta própria. É o caso de uma consulta importante com um especialista, de um exame laboratorial ou mesmo da administração correta de uma medicação (por exemplo, um antibiótico) que necessita de um rigor maior na frequência e horários para ter o efeito adequado e evitar complicações.

Uma questão importante sobre o desafio do cuidado fora da internação psiquiátrica consiste nas formas de lidar com o sofrimento do outro. Embora o uso do psicofármaco possa ser fundamental para possibilitar o trabalho terapêutico, devemos considerar seus efeitos sobre o corpo, cuidar desses efeitos e buscar formas de ajudar o sujeito a lidar com seu sofrimento, que não se limitem a silenciar os sintomas.

A experiência de trabalho no CAPS ensina que para evitar a medicação excessiva é preciso inventar estratégias e recursos. Nesse caso, o vínculo faz toda a diferença. Quando a equipe já conhece certo usuário e sabe dizer o que funciona melhor para estabilizar sua crise — seja um placebo, uma música ou uma escuta terapêutica —, torna-se mais possível mediar a situação e de maneira mais rápida. Muitas vezes, o acompanhamento de determinado usuário ou usuária do CAPS para ouvir música, escrever ou desenhar em um momento de sofrimento mais agudo tornou possível mediar a situação por meio desses recursos, evitando uma medicação a mais. Viganò (2007) defende que o excesso de medicação é pior do que o manicômio, por não fornecer estrutura simbólica ao sujeito, por não dar lugar à pessoa em sofrimento psíquico, limitando-se a impedir seu movimento, seu pensamento e seus afetos. O sujeito fica mais calmo, porém não encontra seu lugar simbólico, nem sua estabilização. O recurso farmacológico, sozinho, não é suficiente, pois o que estabiliza o psicótico é um discurso, e o manicômio entrava no lugar desse discurso, como afirma o mesmo autor. O que pode substituir o manicômio, portanto, não são os medicamentos, nem as estruturas externas, mas sim um discurso, uma estrutura simbólica que dá um lugar ao sujeito psicótico (Viganò, 2007). Há situações, no entanto, para as quais não descobrimos ou ainda não inventamos ferramentas que possam substituir a contenção mecânica e química. Situações de risco iminente ou de uma crise tão grave, que todos os demais recursos falham.

O medicamento tem função de dar um contorno para o sintoma manifesto, de forma que a terapêutica pela palavra possa produzir mais efeitos, e permita aos profissionais se aproximar melhor do sujeito, ter mais contato com ele. É preciso considerar a função do medicamento e sua importância em algumas situações. O problema é a banalização do uso de medicamentos, substâncias que, conforme exposto neste trabalho, podem causar diversos prejuízos ao organismo, assim como a superdosagem, a falta de acompanhamento clínico e o uso do medicamento como única alternativa ou solução para uma situação de crise. Esse deveria, na verdade, ser o último recurso utilizado, principalmente em serviços substitutivos como os CAPS, originados a partir de uma lógica antimanicomial da reforma psiquiátrica, cujo objetivo é justamente contrapor as respostas do manicômio para a loucura; um lugar que deveria ser de reinvenção de práticas de cuidado de saúde mental em liberdade e de outros contornos para o sofrimento psíquico.

Conclusões

Serviços psiquiátricos e de saúde mental não estão fora do contexto maior da saúde, portanto é indispensável a atenção às questões clínicas dos usuários, entendendo que muitas comorbidades são consequências da própria terapêutica medicamentosa. Para isso, é preciso articulação com outros dispositivos da comunidade, sabendo que nem todo cuidado será possível no ambiente e com os recursos de uma unidade de saúde mental. Além de ser fundamental para a autonomia do(a) próprio(a) usuário(a) que ele(a) acesse esses outros serviços.

A pessoa precisa ter acesso à informação e aos serviços de seu território (atendimentos, rodas de conversa, participação de grupos nas unidades básicas etc.), o que não nos garante que ela vá seguir todas as recomendações ou que será capaz de cuidar de si perfeitamente, mas precisamos estar presentes e emprestar um pouco de nosso desejo enquanto profissionais também nesse cuidado. Nem sempre vai ser possível evitar os riscos e prejuízos à saúde ou mesmo evitar a morte, mas é preciso fazer de tudo e apostar na possibilidade da vida, caminhar na direção da autonomia, adaptando as necessidades às possibilidades de cada sujeito. Muitas vezes, já é um enorme avanço a pessoa aceitar ser acompanhada a uma consulta médica, ou conseguir acessar um serviço do qual foi de alguma forma excluída ou esquecida, ou ao menos entender que possui determinada comorbidade. Essas conquistas parecem pequenas, mas é preciso enxergar o quanto são importantes, inclusive para valorizar esse trabalho.

Deparamo-nos com o desafio de contornar uma percepção delirante sobre o próprio corpo (por exemplo, acreditar estar grávida porque sai leite do seio) ou uma solução mística para os problemas (“Deus me disse que estou curada e não preciso tomar remédio”). O cuidado clínico não poderia se basear no “convencimento” sobre determinada verdade (minha verdade científica, acadêmica) ou no confronto de ideias sobre quem teria razão, e sim na construção em conjunto de um cuidado possível, coerente com a forma daquele sujeito estar no mundo. E isso inclui a necessidade de respeitar o tempo do outro, e lidar com a angústia de nem sempre conseguir ajudar da forma como esperamos ou como aprendemos nos livros, nas recomendações didáticas. A clínica da saúde mental não é uma clínica de protocolos e de certezas, mas uma clínica de sujeitos, do caso a caso, de singularidades que precisam existir e conviver num coletivo como qualquer sujeito mereceria. É uma clínica de apostas, que exige uma criatividade e uma sensibilidade que não cabe nos protocolos. Quanto a isso, a única certeza que podemos ensaiar é a de sermos, eternamente, aprendizes.

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  • Editor/Editor: Prof. Dr. Nelson da Silva Jr.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    26 Jan 2022
  • Aceito
    14 Abr 2022
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