A Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental atravessa agora mais de trinta anos de existência, em diferentes formatos e agora sob nova direção. Gestada na aurora dos anos 1980, internacionalizada em 1996, ganhou novo impulso a partir de 2016. Seus objetivos desde sempre se pautaram pelo diálogo com as tradições clássicas em psicopatologia, notadamente, assim como pela renovação do campo dos transtornos e dos sintomas por meio da noção fundamental de pathos. A sustentação do conflito de interpretações sobre o campo do mal-estar, assim como a busca de sua unidade e princípios refletiam, desde seus fundadores, uma nova política para o sofrimento psíquico. Atravessados pela experiência da ditadura civil militar brasileira, muitas vezes marcados pelo exílio, senão pela perseguição direta, os animadores da Revista, reuniam-se em torno de laboratórios, encontros e projetos editoriais por meio dos quais a Psicopatologia Fundamental tornou-se parte do projeto de redemocratização do país. Por isso o número que o leitor tem em mãos é parte de um ajuste de contas com o hiato antidemocrático, que tomou o país a partir de 2016. Sem deixar de verticalizar-se em temas e problemas da psicopatologia, cada um dos artigos aqui reunidos conversa e responde, criticamente, a certa política de sofrimento destes tempos sombrios, seja no Brasil, seja no mundo.
Em tempos de retrocesso democrático e obscurantismo do saber não precisamos tematizar a política ela mesma, como que a saturar tematicamente suas linhas de investigação, mas bastaria recorrer à metáfora do fio vermelho, que Goethe emprega para descrever as afinidades eletivas. Segundo a lenda, os marinheiros britânicos infiltravam no cordame dos navios um único fio vermelho, que permanecia oculto e invisível a qualquer observador externo, no entanto quando o navio era apreendido por piratas, transformado em uma nau inimiga ou deixado à deriva por uma tormenta qualquer, bastava cortar uma de suas amarras para reconhecer seu traço de pertinência original. Ou seja, são muitos os fios que se trançam para sustentar uma embarcação, mas há um, ainda que tênue e imperceptível, que determina sua afinidade e sua orientação. É esse fio vermelho da política que pudemos encontrar na resistência e na crítica aos que tentaram piratear a saúde mental brasileira, mas também que se poderia “desencapar” nos diferentes artigos deste volume.
Trevisan, Vivès e Maesso investigam um problema terminológico do grande impacto para as discussões entre política e psicanálise, a partir da expressão Bemächtigungstrieb, correntemente traduzida por pulsão de dominação. Contudo, a escolha do termo é uma amostra de como a psicanálise pensou a política, e talvez tenha querido se afastar dela ao longo do tempo. Poder e dominação não são equivalentes. Que o poder faça parte dos assuntos humanos, que ele seja imanente às relações intersubjetivas e até mesmo participe da formação dos sintomas, isso não significa que precise ser feito ao modo da dominação, da opressão ou da segregação. O verbo machen, em alemão, é simplesmente fazer. Seu substantivo (Macht) remete a poder. A versão francesa pulsion d´emprise mostra, ao contrário da brasileira, uma indeterminação semântica que introduz outras formas possíveis do poder: apropriação, influência, ascendência, além da própria e dominação. A opção de Strachey por instinct of mastery, acrescenta à noção de domínio o sentido cultural de criação, controle e aprendizado, como se diz, por exemplo, na expressão domínio da técnica. Mas ao lado disso insiste na forma poder natural, à qual devemos nos submeter, ou seja, o instinto. A Bemächtigung ressoa em alemão com exercício, prática ou disciplina, como se observa bem no uso por Freud, no contexto da observação de seu neto às voltas com as idas e vindas do carretel (fort-da): um esforço, um trabalho, um exercício de simbolização. Um movimento de reprodução invertida da experiência de ser deixado à sua própria sorte e desamparo. Prática e exercício, referidos ao tempo, apropriação e influência, referidos ao outro, instinto e trabalho referidos aos meios, só poderiam encontrar sua finalidade nas ideias de destruição e violência. Por isso, não foi difícil incorporar a pulsão sádica anal à pulsão de morte e, adicionalmente, moralizar a noção de poder em psicanálise. Lacan teria revertido essa série retornando à ideia de que a “pulsão de morte é uma sublimação criacionista”, ou seja, o ponto de junção das ressonâncias semânticas do termo é a repetição, não a destrutividade. A não ser que se considere a destrutividade como desejo de começar de novo. A não ser que se considere que recomeçar é refazer, fazer de novo (wieder machen). A não ser que se entenda que influenciar e trabalhar são formas de negação e transformação. A não ser que se entenda, como sugere Lacan, que, trocando o fazer (machen) pelo ser (werden), que a Bemachtigung é fazer-ser novamente
Rossi e Dunker examinaram a emergência da noção de confiabilidade diagnóstica no momento de redefinição do DSM-III nos anos 1970 e 1980. Mobilizada com apoio de filósofos da ciência como Hempel e Kendal, rapidamente as opções epistemológicas em torno da definição de conceito e categoria ficaram neutralizadas por baixo do manto operacional, descritivo e ateórico. Associado com o expurgo da psicanálise, com hegemonia da língua inglesa e com homogeneização da psicopatologia a noção, cada vez mais popular, de confiança parecia um critério imbatível para a nova ciência dos transtornos mentais. Vieses de raça, gênero e cultura podiam ser superados com critérios confiáveis, porque convencionalmente fixados e pela superação dos interesses particulares dos sistemas diagnósticos concorrentes. Definição observável e objetiva de sinais e sintomas (explicitude); especificação das condições necessárias e suficientes para o diagnóstico, por reconhecimento ostensivo (simplicidade) e supressão das referências a processos e causas subjacentes aos transtornos (nitidez), prometiam assim um sistema classificatório logicamente consistente e pragmaticamente confiável. Muito já se questionou a funcionalidade e o virtual fracasso desse modelo, notadamente a partir da sua quinta versão em 2013, mas pouco se atentou para as distorções trazidas por uma concepção ingênua de linguagem e a presença de paradoxos lógicos no interior mesmo do sistema DSM. O primeiro deles é a dificuldade de aferir, pelos critérios e condições operacionais, quais as diferenças entre um caso e um não caso em psiquiatria. O segundo emana da distinção precária entre sinais, que podem ser observados como comportamentos por qualquer um, e sintomas, que são referidos pelo próprio paciente. O terceiro problema incontornável diz respeito ao nível de suficiência de sinais e sintomas, necessários para concluir pela inclusão diagnóstica em uma categoria.
Se o critério de suficiência é variável, se sua explicitação é indeterminada, não é possível saber se o diagnóstico compreende a situação “caso” ou a situação “não caso”. Não é possível saber com precisão e confiança se a categoria está saturada ou não, exceto quando estivermos diante de duas situações-limite: a) todos os critérios diagnósticos estão satisfeitos ou b) nenhum critério diagnóstico é satisfeito.
A conclusão é aterradora, pois reza que não podem existir verdadeiros casos limítrofes nesse sistema, o que se explica pelo fato de que o modelo do DSM foi extraído da classificação politética proposta pelo biólogo Morton Beckner. Parece óbvio que um animal não deve pertencer ao mesmo tempo a duas categorias taxonômicas, mas não há nenhum motivo para alguém não sofrer com duas ou mais classes de transtorno. O conceito lógico de vagueza não remete à imprecisão, mas indecidibilidade, e é este conceito que falta ao pensamento diagnóstico hoje prevalente no mundo. O artigo situa-se então como uma espécie de análise lógica da ideologia psicopatológica globalista, capaz de revelar não as suas inclinações, interesses e escolhas tácitas, mas como estas são capazes de encobrir erros lógicos em nome de uma falsa confiabilidade. De fato, muitos eventos erráticos, disruptivos e negacionistas que hoje prosperam pelo mundo, partem da intuição difusa de que a ciência está a esconder certos procedimentos em troca de uma confiança na qual não se pode mais acreditar. Neste sentido, reabilitar a ciência é reabilitar a crítica, em vez da normatividade convencionalista e operacional que se espreita em sua sombra.
O artigo de Oliveira, Petrilli e Rabelo insere-se nas discussões sobre o poder dentro do hospital geral, particularmente no contexto da comunicação do diagnóstico de câncer infantil. Na encruzilhada dos discursos médico, psicanalítico, familiar e psicológico a circunstância de comunicação do diagnóstico é um ato que cria lugar. “É preciso destacar que o trabalho analítico dá lugar a recordações sem lugar, mas também constata e preserva um não lugar em relação ao sentido”. A observação reflete uma inesperada relação com a prática política, seja ela considerada exercício do discurso do mestre, seja como a arte de produzir novos lugares. Lugares formados por recordações, insuficiências e limitações que, uma vez negadas, polarizam circuitos de demandas. Situações deste tipo, que podem se generalizar para a prática clínica implicada terminam por mostrar como políticas públicas, por melhores e mais bem fundadas em asserções de eficácia e eficiência, com os maiores padrões de confiabilidade e validade, ainda assim podem ser percebidas como incapazes de reconhecer o sofrimento na sua diferença. Está por se formular dispositivos de sensibilidade e detecção do que o Estado e suas formas instituídas de poder não conseguem reconhecer, mas que ainda assim não cessam de acontecer e existir.
Também no artigo de Santos percebemos como dois discursos, o da linguística e o da psicanálise, partilham uma espécie de ambiguidade calculada entre sua pertinência de conceitos. Especularidade, paralelismo e holófrase comporiam assim uma espécie de gramática básica a partir da qual o meta conceito de repetição mostra-se primitiva e inerentemente ligado ao sintoma. Ou seja, efeitos de ressignificação, recaptura e reposicionamento do sujeito diante das inflexões do significante, na maneira como ele se mostra na repetição referem uma multiplicidade de efeitos a uma mesma causalidade. Mas repetição não é o mesmo que retorno, rememoração ou reprodução, diferença que se apresenta, surpreendentemente, tanto em psicanálise quanto na teoria da linguagem. A ecolalia, portanto, não é apenas repetição da voz do outro sem sujeito, mas pode comportar fragmentação e hesitação, consequentemente heterogeneidade do próprio sujeito na língua. Repetição com diferença e repetição sem diferença, aqui como no funcionamento político de nossos tempos faz a diferença potencial entre alienação e separação.
Velano investiga, com base em uma releitura do caso do pequeno Hans, como a fobia mantém estreitas conexões com o pensamento, particularmente com o pensamento de situações difíceis. Hans teria sido o ponto de partida para a investigação da função da fantasia nas dificuldades de aprendizagem. Isso é compatível com a localização do caso Hans no interior da obra freudiana, como ponto de inflexão entre teoria dos sonhos, teses sobre a etiologia dos sintomas e suas concepções nascentes acerca da fantasia. De certa maneira, a maturidade e complexidade da noção de simbolização só é alcançada pela convergência entre processos formais de substituição simbólica por deformação, como os que encontramos no sonho; processos defensivos sistemáticos de negação, como encontramos nos sintomas e processos de subjetivação, como encontramos na criação da fantasia, expressas nas teorias sexuais infantis, no romance familiar, na disposição lúdica e nas formações de compromisso, tal como se observa em Hans. A racionalidade lúdica parece desenvolver, nesse contexto, um sistema de afinidades com a formação do objeto fóbico. Eventualmente isso poderia ser explicado pela presença transversal da angústia nos outros três processos. A angústia seria condição e força motriz tanto para o pensar em geral quanto para o pensar lúdico e particular. Daí que o objeto fóbico apresente propriedades sensíveis materialmente diferentes das que encontramos no sonho e na fantasia. Recupera-se aqui o importante e relativamente esquecido conceito de condição de figurabilidade. Categorias como perspectiva e projeção, relação entre imagem e palavra, interioridade e exterioridade da representação criam uma espécie de jogo pelo qual o aparelho psíquico precisa encontrar a melhor forma expressiva para um conjunto dado de exigências formais. Por exemplo, a escolha do “cavalo” como objeto fóbico pode ser atribuída ao fato de que ele se presta a ser suporte para séries convergentes de questões elaboradas por Hans: tamanho e presença do pênis, desaparição e aparição do pênis, aptidão para mordedura e encaixe de carroças, conexão com a série dos animais animados e inanimados (como desenhos). A possibilidade de representação gráfica, bem como a aptidão para reunir, num único objeto, afetos ambivalentes no espectro do medo, hostilidade e amor sugere que o pensamento fóbico é lúdico porque opera em vários extratos de linguagem: descritivo, poético, narrativo, ficcional. Por isso ele seria capaz de transposições formais típicas das operações de pensamento: exploração lúdica do objeto, investigação estética e epistêmica do objeto, inserção em séries envolvendo causalidade, escolhas morais e equivalentes de identidade. Identidade, causalidade, relação, modo, espaço e tempo compreendem as formas elementares do pensamento. A brincadeira típica, de um objeto só, seria um modelo primário para a definição freudiana da arte pois “unicamente na arte sucede que um homem consumido por desejos realize algo semelhante à satisfação deles, e que essa atividade lúdica provoque - graças à ilusão artística - efeitos emocionais como se fosse algo real” (Freud, 1912/2012, p. 142). Mas se Velano está certa, a fobia e a experiência social generalizada do medo, como vivemos durante os anos de epidemia de Covid, podem funcionar também como indutores do contrapensamento. Ou seja, nem todos, mas principalmente os fóbicos, teriam aptidão para o brincar com objeto único. Sob certas circunstâncias a ignorância pode ser entendida como fracasso da construção de uma fobia. A recusa ao pensar, o apego a crenças pacificadoras, imunes à crítica ou revisão, mostraram recentemente sua profunda inflexão política. A causação voluntária do medo, como instância de mobilização regressiva, ou da angústia, como tática de dominação pelo desamparo, caracterizaram nossos tempos sombrios. Nessas situações observou-se, em recorrência histórica, que objetos de medo não são apenas construções estéticas e cognitivas, dependentes do trabalho hipotético processual do pensamento, mas podem ser substituídas por esquemas conclusivos, oferecidos gratuitamente, pela reativação de objetos não únicos, mas típicos e estereotipados de medo, tais como comunistas, esquerdistas, estrangeiros etc.
Ferretti retoma a influência de Darwin sobre Freud mostrando a importância estratégica e decisiva da história da ciência para o debate contemporâneo sobre a ciência em geral e a cientificidade da psicanálise em particular. A teoria darwiniana, considerada em sua textualidade expositiva, compreende, ao mesmo tempo, uma teoria da história baseada na relação entre “causa-efeito”, e uma teoria da transformação, baseada no critério “solução-problema”. Física, geologia e anátomo-fisiologia convivem com uma hermenêutica do vivente. Mas essa percepção desaparece do senso comum, para o qual história e ciência são dois domínios diferentes e incomunicáveis da verdade. De fato, Popper, Lakatos e Hempel derrogaram o estatuto de ciência à história porque ela nada poderia explicar ou predizer. Sem nenhuma lei a propor a ingerência de interpretações e juízos de valor seria incontornável. A consequência coerente é que a teoria da origem das espécies e a biologia evolutiva não podem ser inteiramente uma ciência, pois comportam práticas de hermenêutica histórica. A exclusão da história, o encobrimento dos compromissos ontológicos ou metafísicos, a neutralidade ético-moral, tudo isso produziu um retrato de que a verdadeira ciência está imunizada contra a política, retrato que obviamente seria aproveitado e instrumentalizado de parte a parte pela produção calculada de desinformação, Fake News em ambiente que já foi descrito como pós-verdade. Teorias espessas, de grande envergadura e alta pretensão explicativa, como as que se depreendem da Origem das espécies de Darwin, de A interpretação dos sonhos de Freud ou de O Capital de Marx, desafiam critérios mais simples de demarcação; por outro lado, são casos modelo para a hipótese de que nem tudo o que escapa ao estatuto normativo da ciência deve ser encarado como desrazão, ilusão ou poesia a ser purificada.
É nessa direção que Venturi parte da crescente insegurança epistemológica e ontológica da psicopatologia, resultado dos excessos de sua abordagem descritiva e operacional, já examinada anteriormente, para questionar se depressão, pânico e fobia social seriam tipos artificiais ou naturais. Teoricamente, uma abordagem exclusivamente pragmática, baseada na eficácia das tecnologias de cura e reversão de sintomas, seria capaz de dispensar quaisquer considerações metafísicas. Portanto, quando em meio ao sucesso da cultura farmacoterapêutica, um post digital de alto impacto, proclama que “Depressão e Fobia são reais” poderíamos nos perguntar: para que serve a realidade a esta altura? A resposta sugere que nossa cultura da eficácia tecnológica cria ao mesmo tempo um hiato de reconhecimento discursivo para as formas de sofrimento mental. As críticas e a repercussão negativa do DSM-5 em 2013, apontam para uma consciência social cada vez mais clara de que confiabilidade não significa validade diagnóstica. Validade depende da consistência do conceito, de evidências ou indicadores externos, bem como de uma narrativa etiológica plausível. Ocorre que a relação causal entre antecedentes e evolução dos sintomas resiste a se apresentar, solidamente, apenas em estrutura de lista, insistindo em reaparecer com hermenêutica histórica, autobiográfica ou testemunhal de percursos vitais e estratégias de tratamento. O problema fundamental representado pelo DSM não é apenas suas consequências para a formação de uma epidemiologia inócua, do ponto de vista da formação de políticas públicas, nem a insuficiência epistemológica para lidar com diversidades fenotípicas, mas o fato de ele representar uma forma de pensamento, perfeitamente integrada, à administração neoliberal do sofrimento psíquico. Ainda que o sistema Rdoc, inspirado no desdobramento de funções cerebrais seja uma alternativa promissora, a real questão demanda um retorno de nossas preocupações de compromisso e validade ontológica, epistemológica e antropológica, bem como das teorias sociais e a políticas que decidem sobre a confiabilidade e existência de qual sofrimento, como e quem deve ser reconhecido ou validado por meio dele, e qual sofrimento permanecerá no armário ideológico do silenciamento: “enquanto a confiabilidade é um indicador de concordância entre as medições, a validade deve ser sobre o que realmente existe” (Murphy, 2015, p. 60). Ao que tudo indica o confronto histórico entre realistas e construtivistas, pacificado pela mistura entre literalismo diagnóstico e convencionalismo operacional, expressa pelo DSM, enquanto racionalidade diagnóstica hegemônica, chegou ao fim. Nessa nova encruzilhada de três caminhos, o nominalismo dinâmico de Hacking, os tipos práticos de Zaher, o realismo promíscuo de Dupré nos habilitam a olhar para os transtornos mentais como tipos performativos, capazes de inventar mundos, não dissociáveis da maneira como o sujeito usa a linguagem, tanto em sentido descritivo quanto narrativo e ainda pragmático. Eles representam uma nova atitude epistemológica, mas também uma renovação política das formas de produção, nomeação e tratamento do sofrimento.
Souza e Barros trazem um contexto específico, real e concreto no qual a função performativa da linguagem opera para criar um sujeito: a situação de terapia semi-intensiva neonatal. O relato de pais acompanhando o nascimento de uma criança. Aqui se debate como expectativas, antecipações ou hipóteses diagnósticas, possuem efeitos reais na relação do mundo com uma criança. Isso envolve tanto a aplicação, cada vez mais extensa no país, do IRDI (Indicadores de Risco para o Desenvolvimento Infantil) quanto uma mudança de atitude discursiva naqueles que cercam um bebê prematuro ou com dificuldades de sustentação no início da vida. Reencontramos aqui o problema da repetição, o tema da nomeação precária do infortúnio, e a função performativa, contingente e hermenêutica da antecipação. Tradução direta do sistema de demandas e desejos, de expectativas e ideais, o que se poderia chamar de função supositiva do sujeito, é de difícil caracterização se olharmos para a filosofia analítica da linguagem, que subjaz aos autores que formaram nosso consenso científico atualmente em vigor. Criar ilusões, reconhecer o que ainda não está lá, mobilizar distorções sistemáticas da realidade, organizar interações a partir de hipóteses improváveis, tudo isso compõe o arcabouço genérico do pensamento político, como projeção possível de mundos ainda não realizados. A chamada história dos desejos desejados, é um caso da função supositiva, levada a cabo aqui com grande desenvoltura neste sistema de sustentação artificial da vida psíquica, no qual situam-se os bebês de alto risco. “Antecipação, realizada pela mãe ou cuidador, da presença de um sujeito psíquico no bebê, que ainda não se encontra, porém, constituído” (Kupfer, Jerusalinsky & Bernardino, 2009, p. 53). O discurso de uma jovem mãe diante de seu filho de seis meses de idade, entubado em uma UTI, deveria ser suficiente para fazer recuar nossa confiança categorial: “sinto que é meu filho e ao mesmo tempo sou um parente distante que o visito”, “não tem o que fazer, só orar e conversar”. Ou seja, a diferença entre o caso mãe e o caso não mãe, não só não é binária, como depende do reconhecimento, interpretação e transitivação dos afetos do próprio sujeito. Assim como “fazer” e “não fazer”, não se comportam como um par lógico de mútua exclusão, pois orar e conversar são “fazeres”. Os indicadores clínicos do IRDI parecem ser uma forma de objetivar a função ficcional-supositiva do sujeito, incorporando assim a função lógica da vaguidade e a condição pragmática do diagnóstico. A mãe que sabe o que a criança quer (ou acha que sabe?), a mãe que fala em manhês (supondo ser assim compreendida), a criança que reage ao manhês (ou a outro sinal que a ele está associado?), a mãe que aguarda a reação da criança (contando com a estrutura dialogal da linguagem), troca de olhares entre a mãe e a criança (da qual se insere o caráter performativo da interação). O segundo grupo de indicadores tenta captar a presença do sujeito como efeito de repetição: continuidade ou descontinuidade da interação, diferenciação de alternâncias como dia-noite ou presença-ausência, procura ativa do outro (demanda), emissão de sinais diferenciados, propositura de frases, interrogatividade. Ora, será preciso repensar as políticas públicas brasileiras, particularmente as políticas para a primeira infância, na qual a carteira Brasil ocupa um lugar privilegiado, apesar do seu boicote pela última gestão. O cálculo de riscos, a antecipação do sujeito, contém em si também a antecipação problemática, desde sempre conhecida como profecia autorrealizadora. Estamos aqui na ambiguidade entre o excesso de determinação, presente, por exemplo, no risco da antecipação de risco para autismo e a falta de indeterminação, indicado pela antecipação do sujeito, como realização e efeito contingente do significante.
De Paula e Santos, em um estudo que integra vários achados sobre o funcionamento cerebral, nos mostra como narrar estórias e ressignificar acontecimentos autobiograficamente são procedimentos decisivos para o tratamento do Transtorno de Estresse Pós-Traumático. Nele é saliente o papel das memórias intrusivas, caracterizadas pela consciência, sensorialidade e sentimento de realidade, que repete o evento traumático. O traumático afeta a experiência do tempo criando uma espécie de agoridade (nowness), dilatando o conhecimento implícito e fixando-o de modo não generalizável. O TEPT, ao perturbar o sono dificulta o trabalho de reorganização da memória, particularmente na memória autobiográfica. Fato compatível com os fenômenos de descontextualização, flashbacks, alterações da magnitude intensiva e focalização no conteúdo do evento traumático. Ou seja, o trauma altera a maneira como contamos nossa própria vida, porque perturba três aspectos fundamentais da função narrativa: coerência, elaboração factual e elaboração interpretativa. Reversamente, o tratamento narrativo do trauma passa pela inserção gradual da posição de testemunho, da possibilidade de sonhar a dois, historicizando acontecimentos no tempo da narração e criando bordas e fronteiras para dar forma ao inominável e irrepresentável do trauma. Ora, basta percorrer a função da autoria, da narração e do testemunho em produções da chamada nova crítica, seja ela de extração feminista, antirracista, anticapitalista, LGBTQIA+, queer, antietarista, antissemitismo, anticapacitista ou neurodivergente para perceber como o trauma e o sofrimento interseccional de raça, classe e gênero, com suas lógicas especificamente traumáticas, desenvolveu estratégias de narração como instrumento de reparação, pertencimento e reapropriação histórica.
Sousa, Teixeira, Nicolau e Frate propõem enfrentar a política pública em saúde mental, frontalmente ameaçada, durante o governo Bolsonaro, por meio da retomada da importância do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), em suas diversas modalidades: Centros de Convivências, Unidades de Acolhimentos, leitos psiquiátricos em hospitais gerais e Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT). O operador de conexão entre as diversas posições de tratamento, acolhimento, triagem e atenção é a construção do caso clínico, focado em um Serviço Residencial Terapêutico. A abordagem por casos clínicos restitui ou cria uma lógica de reconhecimento que a institucionalidade, que caracteriza as políticas públicas e o Estado em última instância, tem dificuldade em incorporar. A construção do caso, ou o chamado pensamento por caso, se opõe ao gerenciamento da pessoa-tipo, modo corrente de pensamento administrativo e judiciário. Como os diferentes artigos deste volume parecem insistir, existem lógicas de reconhecimento que não são tipo-específicas, ou seja, as contingências de sofrimento, inclusive por seu potencial criativo e transformativo, situam-se na fronteira do que pode ser categoricamente reconhecido e o que resiste a este sistema categorial ordenativo, de aspiração abstrata e falsamente universal. Pensar historicamente, ou seja, politicamente, é pensar a precariedade, contingência e efemeridade das categorias de nomeação, tanto dos sujeitos-tipo quanto dos procedimentos-padrão. Um caso presume uma equipe, que presume uma inscrição institucional, que presume uma política. Ao mesmo tempo um caso resiste a se apresentar como uma unidade para uma equipe, pois ele é heterogêneo ao se definir pela própria experiência genérica e coletiva de sofrimento. O sofrimento não é, em princípio, mental ou físico, social ou individual, moral ou alimentar, religioso ou laico, público ou privado, como as partições necessárias para políticas públicas tendem a ser. Portanto, um caso clínico, como vimos no artigo que critica a própria noção de caso de transtorno mental, inclui-se e não se inclui em uma gramática típica de reconhecimento. Um caso não é um tipo natural, mas sua construção também não se afigura inteiramente arbitrária. Um caso envolve uma rede contingente de encontros e passagens, cuja propriedade fundamental é dada já no conceito de significante que lhe confere unidade e identidade. É próprio do significante apresentar-se entre a contingência de significação, a performatividade de sua eficiência e a necessidade de discurso. Isso se demonstra admiravelmente no caso Fausto. Nele reencontramos a importância da conexão social e estética trazida pela vinculação no Bloco Doido é Tu. Nele reencontramos a ideia de que o caso não preexiste à equipe, mas é um de seus efeitos. Nele redescobrimos que os esquemas normativos de regulação do cotidiano não precisam ser sempre “para todos”. Nele se descobre que para além dos anos de internação e para além das queixas e irritações, há um sentido político no apelo que ele faz trabalhar, ao situar-se como sujeito do caso, tanto no sentido genitivo objetivo de estar submetido ao caso e em sentido genitivo subjetivo de ser o agente do caso.
Recuperando o problema do objeto na teoria lacaniana da sublimação, Werneck e Jorge nos lembram dos três destinos da pulsão: satisfação direta, juízo de condenação e sublimação. Podemos dizer que a aptidão para deliberar, agir ou criar uma terceira forma que é a ação indireta ou deliberação deslocada, fazem da sublimação um conceito sobretudo dialético. Como tal ele deve compor o interessante desafio representado pela noção de “desrecalcamento”, que o texto explora com felicidade. A sublimação se endereça ao impossível, ultrapassando, mas aparentemente contendo o proibido. Dialética que envolve uma negatividade fundamental do objeto. Como vimos anteriormente em relação à construção do objeto fóbico, também o juízo sublimatório acontece entre o juízo necessário da falta a ser, e o juízo contingente do que poderia ter sido outro. A moção pulsional sublimada não pode ser objeto de uma descarga direta. Ela desimaginariza falicamente o objeto, eleva o objeto à dignidade de Coisa e localiza o vazio, antes velado pelo objeto. Aqui se poderia observar que a abordagem psicanalítica da sublimação tem enfatizado bastante a arte, mas em Freud ela compreendia tanto a arte quanto a ciência. Talvez, para nosso tempo, seria urgente pensar a sublimação também no campo da política. Isso significaria, por exemplo, lembrar a tese lacaniana de que a sublimação “onde se projeta algo para além, na origem da cadeia significante, lugar onde tudo que é lugar do ser é posto em causa” (Lacan, 1959-60/1988, p. 262). Este para-além remete a uma metapsicologia das pulsões e indiretamente ao seu estatuto ontológico, mas ele também evoca uma acepção política de projeção do ser que ainda não se realizou. Bastaria lembrar para isso que a Coisa em Heidegger é o vazio, cujo exemplo é o vaso ou a ânfora, mas é também aquilo em torno do qual o ser se reúne. Como diria Lacan: a metafísica é o que mobilizamos para tapar o centro vazio da política. Se a Dama é o que resta de um objeto esvaziado de todo traço imaginário, desprovida de qualquer atributo ou qualidade que a individualize, extraímos dessa posição conjetural o modelo de certa política. Afinal a política moderna e republicana, caracteriza-se pelo afastamento do personalismo da autoridade, da individualização da força da lei e pela distribuição dos poderes. Cada agente abre mão de seus sistemas de interesses privados ao representar simbolicamente interesses coletivos. Vemos assim a incidência da ideia de dessexualização, como propedêutica política. Inversamente, será nos regimes fascistas e autoritários que a sexualização, como marca da pessoalização do poder, autorizará o gozo da tirania. Argumentando ao modo de Marcuse: há sublimações repressivas e sublimações desrepressivas. A problemática da sublimação comunica-se assim com o primeiro artigo deste volume: a pulsão de apoderamento, que pode mostrar-se como dominação, mas também, de acordo com o tipo de ligação (Bindung) pulsional envolvida, como pulsão de criação e recomeço. Menos do que solução, em política, a sublimação é problema.
A valência política do conceito de sublimação reaparecerá no texto de Rivera, e em sua crítica do modelo da Arte Bruta, para apreender o sofrimento mental na arte moderna e a segregação na arte contemporânea. Apoiada na produção exemplar de pacientes internos em instituições psiquiátricas, mas também médiuns, excêntricos e marginais, a Arte Bruta desenvolve-se como uma espécie de contrapadrão cultural, baseando-se na inocência, pessoalidade, não intelectualidade, solidão e autenticidade do artista. Gradualmente ela infere o papel da arte como resgate da saúde em meio a um processo civilizatório e a um sistema de formação cultural adoecido. O deslocamento da ideia de artista louco para artista bruto, pode subsidiar até mesmo critérios da aceitação em museus e galerias, ou como diria Breton (1979) “a arte daqueles que colocamos na categoria dos doentes mentais constitui um reservatório de saúde moral” (p. 405). O paradoxo consiste no fato de que se a loucura figura a liberdade suprimida, o artista permaneceria assim autocondenado ao exílio, desaparecendo na medida mesma em que se integra ao sistema das artes. Nisso transformamos as condições sociais de segregação, marginalização e doença em um ato heroico de resistência, renúncia e libertação voluntária. Muito ao contrário a reconstrução do percurso biográfico do processo criativo nesses autores revela, muitas vezes, o aprisionamento missionário, a obrigação coercitiva de pintar, o sofrimento ao qual não se pode renunciar. De fato, ao polarizar a realidade contra a loucura, o programa da Arte Bruta destitui da alucinação e do delírio, bem como todo léxico clínico, sua potência de verdade. Essa atitude nos parece mais próxima do romantismo do que da psicanálise, para a qual o inconsciente e suas produções não são formas de expressão da desrazão. As invenções formais, seus achados e intervenções, seu lugar na história da arte pode deslocar alguém da posição de louco e transformá-los em artista, mas é como se ali onde há obra não pudesse haver loucura, e ali onde há loucura nenhuma obra emerge. Desta feita a Arte Bruta restaria prisioneira de uma oposição entre arte e não arte, que ignora as formas de arte popular e de massa, que lhe são ironicamente contemporâneas. A noção de delírio inspirado, mobilizada para descaracterizar a Arte Bruta como uma arte das expressões psicopatológicas, não resolve o impasse que junta e separa clínica e experiência estética. Ora, a retomada da Arte Bruta nos anos 1960 e 1970, como uma espécie de antecipação das lutas antimanicomiais, nos ofereceria um outro caminho de leitura. Arriscaríamos dizer que o que torna a bivalência loucura-obra, ou clínica-arte problemática é a evasão da política. Quando se percebe que as determinantes fundamentais à Arte Bruta não estão na biografia marginal, na carência de recursos formativos, mas nos determinantes políticos que produzem tais formas de vida, recupera-se todo o valor deste experimento de vanguarda. O gesto de tornar o sofrimento dos artistas uma renúncia ativa é um gesto político, que se insere, aliás como toda narrativa de sofrimento, em uma política de reconhecimento. A Arte Povera, o Novo Realismo, a Arte Incomum (de Nise da Silveira e Osório César) e a Outsider Art parecem ter encontrado reconfigurações, mais específicas para o conceito de expressão que talvez tenham escapado ao próprio Dubuffet, na enunciação de seu programa. Curiosamente esta potência transformativa não escapou aos seus críticos fascistas, que logo perceberam as implicações políticas da arte dos “degenerados”.
A função política do sofrimento vai aparecer ainda nas resenhas reunidas neste volume. O estudo de Marlos Terêncio sobre a angústia, como ficção do horror, no quadro do infamiliar (Unheimliche), parte do intervalo entre a “a dor propriamente humana de existir”, ou seja, o sofrimento que se deve aceitar como necessidade existencial e as “patologias da alma” do qual o sofrimento neurótico representa um adicional contingente a este sofrimento. O trabalho de Marcos Obregón ataca a “dúvida nas classificações do pathos” retomando o diálogo, que atravessa todo este volume sobre a crítica da consistência, confiança e validade das categorias diagnósticas. Pensa o sintoma tanto como objeto de interpretação quanto como índice de patologia, mas ainda como elemento quantificado de uma experiência pura não é possível sem uma crítica da ideologia diagnóstica.
O fio vermelho da política atravessa este volume de ponta a ponta, como deve ser. Ainda que os tópicos formais da política em sentido estrito e institucional estejam ausentes é esta forma de trançamento que encontramos entre os artigos, seus endereçamentos e contextos, suas mensagens transversais que conferem unidade e convergência a este volume. Volume de renascimento e de recomeço. Volume no qual os marinheiros pessoanos se fizeram amarrar aos mastros da psicopatologia crítica, buscando na arte da navegação a precisão que escapa a arte de viver. É nos momentos de tempestade e trevas que o fio vermelho da política sustenta resistências necessárias, permitindo navegar, ainda que nem sempre, para o porto firme do oásis no Real.
Referências
- Breton, A. (1979). L’art des fous. La clé des champs. In Le Surréalisme et la Peinture. Gallimard (Folio Essais).
- Freud, S. (2012). Totem e tabu. In Sigmund Freud Obras Completas (P. C. de Souza, Trad.; Vol. 11, pp. 13-244). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1912).
- Lacan, J. (1988). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-60).
- Murphy, D. (2015). Validity, realism and normativism. In P. Zachar, D. Stoyanov, M. Aragona, & A. Jablensky. Alternative Perspectives on Psychiatric Validation: DSM, ICD, RDoC and Beyond (pp. 60-75). Oxford University Press.
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Editores/Editors: Prof. Dr. Nelson da Silva Jr. e Profa. Dra. Maria Livia Tourinho Moretto
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
13 Mar 2023 -
Data do Fascículo
Dez 2022
Histórico
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Recebido
25 Jan 2022 -
Aceito
27 Jan 2022