Apesar de carregar “mental” em seu nome, no que concerne aos profissionais inseridos em serviços de atenção diária a portadores de transtornos mentais, não há tanto questionamento sobre os pressupostos teóricos que implicam a caracterização que qualifica e delimita o campo da saúde mental. O que é o “mental” da saúde mental? Com vistas a contribuir para a interdisciplinaridade dessa área de atuação, faremos uma análise da teoria de Terrence Deacon, biólogo evolutivo contemporâneo que estuda a emergência da vida e da mente, propondo essa discussão como um aspecto formativo essencial e pouco consolidado nas práticas em saúde mental Como conclusão, veremos como a visão do autor implica, para a saúde mental, uma abordagem na qual esta não pode ser pensada como ausente de aspectos normativos, subjetivos e ambientais.
Palavras-chave:
Saúde coletiva; emergência da mente; subjetividade; Deacon; normatividade
Resumos
Despite having “mental” in its name, as far as professionals engaged in daily services for persons with mental disorders are concerned, there is not much scrutiny about the theoretical assumptions involved in characterizing and delimiting the field of mental health. What is “mental” in mental health? In order to strengthen the interdisciplinary aspects of this field, we will carry out an analysis of the theory by Terrence Deacon, a contemporary evolutionary biologist who studies the emergence of life and mind, and will offer this discussion as an essential formative aspect as yet neglected in mental health practice. In conclusion, we will consider how Deacon’s view entails an approach to mental health in which cannot be conceived devoid of normative, subjective and environmental aspects..
Key words:
Collective health; emergence of the mind; subjectivity; Deacon; normativity
Bien que son nom contienne le mot « mental », les professionnels qui travaillent dans les services de soins quotidiens pour les patients atteintes de troubles mentaux ne s’interrogent pas tellement sur les présupposés théoriques qui impliquent la caractérisation qui qualifie et délimite le domaine de la santé mentale. Qu’est-ce que le « mental » de la santé mentale ? Afin de contribuer à l’interdisciplinarité de ce champ d’expertise, nous analyserons la théorie de Terrence Deacon, biologiste évolutionniste contemporain qui étudie l’émergence de la vie et de l’esprit, en proposant cette discussion comme un aspect formatif essentiel et peu consolidé dans les pratiques de santé mentale. Nous verrons comment la vision de l’auteur implique, pour la santé mentale, une approche dans laquelle elle ne peut être pensée comme absente des aspects normatifs, subjectifs et environnementaux.
Mots clés:
Santé collective; émergence de l’esprit; subjectivité; Deacon; normativité
A pesar de llevar “mental” en su nombre respecto de los profesionales que realizan servicios de atención diaria a las personas con trastornos mentales, no se cuestiona tanto los supuestos teóricos que implican la caracterización que califica y delimita el campo de la salud mental. ¿Qué es lo “mental” de la salud mental? Para contribuir a la interdisciplinariedad de esta área de especialización, haremos un anàlisis de la teoría de Terrence Deacon, biólogo evolutivo contemporáneo que estudia el surgimiento de la vida y de la mente, proponiendo esta discusión como un aspecto formativo esencial y poco consolidado en las prácticas de salud mental. En la conclusión, veremos cómo el autor da a la salud mental un enfoque en el que no se puede pensarlo sin tener en cuenta los aspectos normativos, subjetivos y ambientales..
Palabras clave:
Salud colectiva; surgimiento de la mente; subjetividad; Deacon; normatividad
Saúde mental: integração ou heterogeneidade dos atributos da subjetividade?
Pensemos no nome “psicopatologia”, que designa o que durante a modernidade se entendeu como “doença mental”, conceito do qual a própria psiquiatria dependeu para a sua constituição enquanto ramo específico da medicina (Foucault, 1978Foucault, M. (1978). História da loucura na Idade Clássica. Perspectiva.). Para o contexto de nossa discussão, esse termo nos parece especialmente oportuno. Etimologicamente, a palavra psicopatologia representa a junção dos radicais psyché e pathos, que, traduzidos do grego, significam, em suma, “espírito” e “afeto”, respectivamente. Enquanto na ideia de doença mental esse termo tem uma significação mais estrita, cabe se sublinhar que o pathos não se resume necessariamente a um desvio da norma estatística, por exemplo, devido a uma disfuncionalidade de um sistema sensório-motor. Esse termo do grego diz respeito, mais do que a um estado mórbido, à própria capacidade de um sistema biológico de contar com atributos como sensação, função e normatividade. Sob o aspecto que enfatizamos, isso não é representativo de uma anormalidade: o pathos corresponde, mais propriamente, à capacidade de atribuir valor e sentido a certa experiência, à capacidade de ser afetado e à experiência que se tem a partir disto — é o que Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company. chama de senciência.
O que procuramos desenvolver com tal termo — o discurso sobre os afetos do espírito — é a alusão por ele permitida: o que chamamos de alma, espírito, mente ou subjetividade se comporta de maneira inextricável em relação à própria capacidade que temos de nos afetar e, não menos, de afetar o que nos afeta. O termo psicopatologia permite uma analogia com duas noções enlaçadas entre si e que são fundamentais para a teoria de Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company., as de self e de senciência. Com alguma frouxidão conceituai, mas bastante de acordo com o autor, poderíamos dizer que não existe pathos sem psyché, e que não existe psyché sem pathos.
A senciência, para Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company., é a capacidade interpretante, comum inclusive às formas mais simples de vida, capaz de inscrever “o sentimento de se estar aqui” (p. 486) para o self, de produzir a qualidade singular da experiência, de permitir um sentir, uma capacidade de afetar e ser afetado, e, por isso, um ser, um espírito. Nossa experiência em primeira pessoa, em seus atributos conscientes e inconscientes, se define de acordo com uma hierarquia de níveis de selves e senciências, diacronicamente formados, que se organizam e se aninham desde nossas células até os alteregos mais poéticos da existência humana.
A questão em que Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company. se centra é a seguinte: se existem selves sencientes no universo, de onde essas capacidades advieram? Os espíritos e os afetos sempre estiveram aí? Ou serão eles apenas uma ilusão? Como que, de um universo regido apenas pelas tendências físico-químicas e suas regularizações estatísticas, é possível que haja fenômenos tão comuns a nós como as qualidades da experiência em primeira pessoa, que não supomos existir no mundo inorgânico?
A ênfase sobre os aspectos psicossociais e a procura por outras maneiras de se entender a subjetividade que não somente aquelas remetidas à biomedicina corresponde a um discurso que propriamente define o horizonte da saúde coletiva (Birman, 1999Birman, J. (1999). Os sentidos da saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 9(1), 7-12. https://doi.org/10.1590/S0103-73311999000100001.
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, 2005Birman, J. (2005). A Physis da Saúde Coletiva. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 15(Suppl.), 11-16. https://doi.org/10.1590/S0103-73312005000000002.
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). Mas, igualmente, ainda estão a se constituir as alternativas possíveis para uma concepção da vida humana e da saúde mental de um modo que tanto inclua os aspectos psicossociais, como também não os dicotomize em relação à natureza (Serpa, 1998Serpa Jr., O. D. (1998). O mal-estar na natureza. Te Corá.). Isso significa dizer que é necessário se pensar a relação desta com a subjetividade de maneira que não privilegie uma dessas esferas em detrimento da outra; é necessário que se pense a mente, a cultura e a subjetividade não como exteriores à natureza, mas como elas mesmas processos naturais, embora nem por isso passíveis de decomposição ao vocabulário fisicalista (Rorty, 1997Rorty, R. (1997). Fisicalismo não-redutivo. In Objetivismo, relativismo e verdade. Relume-Dumará.).
Consideramos que o impasse hoje vivido no campo da saúde mental, polarizado de acordo com a dualidade entre as correntes organicistas e as psicossociais — objetivistas e subjetivistas, poderíamos dizer —, produz uma dificuldade de integração das práticas interdisciplinares, na medida em que perpetuam antagonismos constitutivos no campo da saúde mental, como o dualismo mente-corpo (Bezerra, 2000Bezerra Jr., B. (2000). Naturalismo como anti-reducionismo: Notas sobre cérebro, mente e subjetividade. Cadernos IPUB, 6(18), 158-177.). Esse impasse poderia ser traduzido da seguinte forma: como podemos defender, simultaneamente, a heterogeneidade (Oury, 2009Oury, J. (2009). O coletivo. Hucitec.) e a síntese (Geertz, 1989Geertz, C. (1989). A interpretação das culturas. Guanabara Koogan.) dos aspectos que caracterizam a vida humana? Como pensar o humano de maneira “holística” sem que o tornemos homogêneo?
Este nosso percurso, assim, transitará de uma defesa ética para as práticas em saúde mental — de que devemos entender o humano de forma multidimensional e integrada — para uma investigação ontológica e epistemológica sobre por que motivos podemos entendê-lo assim. Não queremos dizer que existe um paralelismo necessário ou mesmo uma identidade entre o nível ontológico e o nível ético-técnico, mas não temos dúvidas de que um influencia e às vezes subsidia o outro. Isto é, sob o intuito de estudar certa teoria que fala sobre as condições objetivas para a emergência da subjetividade, estamos levando em conta que existem efeitos objetivos conforme a opção por certo referencial do que é a subjetividade.
Um fato do qual poucos discordam é que quando profissionais de saúde mental, ou mesmo pacientes, optam por atribuir a um comportamento de um usuário do serviço certa interpretação, dependendo de em qual referencial ela se ancora, diferentes ações serão tomadas. Se ela for, por exemplo, ancorada nos condicionamentos neurodopaminérgicos em curso, logo se pensará na importância de um neurologista; se ela for atribuída a alterações específicas que se apresentam em unidades semiológicas simples — como os “surtos epileptoides” ou a “agitação psicomotora” — ou se for descrita com vocabulários nosológicos — como “transtorno de personalidade” ou “bipolaridade” —, logo se prescreverá os medicamentos constantes nos protocolos psicofarmacológicos a eles relacionados; se a leitura da situação for referida às categorias psicanalíticas de “defesa maníaca”, “conversão histérica” ou “passagem ao ato”, logo se discorrerá a respeito da psicodinâmica em curso e da necessidade de uma responsabilização do sujeito por seu sintoma; se a considerarmos como fruto do contexto econômico-político e da “questão social”, logo se procurarão meios de retirar o sujeito em sofrimento de um estado de anomia e exclusão dos meios de produção da sociedade.
Apesar do tom algo simplista de tal argumentação, o fato é que, em todos esses casos, estamos optando por certo mirante sobre o que é a subjetividade, certa perspectiva, uma cultura, que tanto modula o entendimento que se tem do fenômeno em questão como, retroativamente, influencia as ações que aquele contexto terá sobre o sujeito que o porta. Todas elas implicam certa concepção de subjetividade (Costa et al., 2019Costa, J. F., Bezerra Jr., B., & Gama, J. A. (2019). The subject of psychopathology: Of what plural is it made? Philosophy, Psychiatry, & Psychology, 26(2), 89-97. https://doi.org/10.1353/ppp.2019.0009.
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); mas, igualmente, a depender de quais interpretações sejam acionadas, diferentes serão os desdobramentos físicos e subjetivos em curso.
Apesar disso, devemos considerar ao mesmo tempo que todos esses termos diagnósticos, independentemente de serem de base psicossocial ou de base biomédica, reduzem o fenômeno em questão a uma mera caricatura do que realmente está em jogo (Kleinman & Kleinman, 1997Kleinman, A., & Kleinman, J. (1997). Suffering and its professional transformation. In A. Kleinman (Org.), Writing at the margin: Discourse between Anthropology and Medicine (pp. 95-119). University of California Press.). A grande tarefa seria, portanto, produzir uma visão de mundo em que todas essas caricaturas da realidade de fato se mostrem indecomponíveis umas às outras, mas na qual, ao mesmo tempo, todas elas se organizem e se integrem em direção a um plano único: no caso da clínica, focalizado sobre o sujeito em sofrimento. Em outras palavras, a especificidade do objeto de cada categoria profissional não deve implicar uma fragmentação do cuidado em especialidades surdas umas às outras.
Nesse sentido, na medida em que nós, autores deste artigo, também somos sujeitos — e que, enquanto sujeitos, somos, portanto, também intencionais e normativos —, podemos dizer francamente que estamos em busca de uma Physis para a saúde coletiva e para a saúde mental que seja naturalista, mas que não elimine a importância dos aspectos éticos, políticos e simbólicos a afetarem o espírito humano. O horizonte da saúde coletiva é a interdisciplinaridade de áreas da saúde com disciplinas como a história, a antropologia e a filosofia — ou seja, a investigação sobre de que maneira a cultura e a subjetividade têm importante papel sobre a saúde. Nossa pesquisa busca apresentar outra perspectiva desse problema, da qual esta primeira posição metodológica na verdade depende logicamente: ou seja, a que se refere a como da natureza surge, num primeiro momento, a subjetividade e a função culturalizante que a acompanha. Afinal, como podemos justificar esse hiato que torna qualquer objetivação do sofrimento uma mera caricatura do que é experienciado subjetivamente?
Emergência dos fenômenos entencionais
A teoria que Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company. desenvolve se dedica a explicar em termos naturalistas como emergiram o que chama de fenômenos entencionais, que incluem propriedades comuns à vida e à subjetividade, como função, informação, significado, referência, representação, agência, senciência e valor. Para ele, são todos entencionais porque todos esses conceitos implicam “a relação interna com um telos” (p. 27), ou seja, com um fim, uma meta, um propósito. De seu ponto de vista, o problema mente-corpo se dá de acordo com um impasse anterior, o qual a ciência não foi suficientemente capaz de articular, e que diz respeito à transição da não-vida para a vida.
Para o autor, provavelmente o que há de mais singular nas propriedades da vida e da mente é o objeto de estudo da teleologia, o estudo dos propósitos, dos objetivos e dos fins. O autor considera que os propósitos, sejam os das intenções mentais ou mesmo de um órgão ou de uma forma de vida simples, não somente se referem a um fim. Para que os meios presentes se agenciem em função desse fim, cuja informação ou significado têm certo valor para a senciência do self em questão, também lhes é necessário que esse fim seja representado, mesmo que não de forma explícita ou autorreflexiva, tal qual na experiência simbólica própria de nós, humanos.
Por tais razões, Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company. se utiliza de conceitos como self, representação e senciência — diferentemente do que em geral se pensa — num nível mínimo, sem considerá-los exclusivos da subjetividade simbólica do humano, mas inerentes a todas as formas de vida. Em termos deaconianos, podemos dizer que mesmo uma célula ou uma bactéria contam com uma mínima capacidade representacional e de atribuição de sentido e valor — na medida em que também são entencionais. Sob essa concepção, as propriedades elevadas de nós humanos devem ser compreendidas como processos internos à evolução, e não fruto de uma origem miraculosa, excepcional em relação à ordem natural, mas tampouco a evolução deve ser pensada com essa excepcionalidade.
Com a visão emergentista sobre o processo evolutivo, Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company. entende que o “mundo subjetivo” e o “mundo objetivo” são dotados de propriedades distintivas um em relação ao outro, mas de forma alguma devemos pensá-los como se não houvesse qualquer ponte entre eles. São, portanto, essas pontes — ou, de forma mais precisa, essas emergências — que a teoria do autor procura cruzar. Mais importante do que a própria evolução, as questões de Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company. se centram sobre a emergência da evolução.
Isso significa dizer que o naturalismo de Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company. é uma teoria que não somente recusa as abordagens que concebem as funções biológicas e mentais como meros autômatos (teleonomia) — no lugar disso compreendendo sua irredutibilidade às análises composicionais e estatísticas —, mas também as dota de propriedades ontologicamente singulares e indecomponíveis em relação a seus precursores físico-químicos, como tradicionalmente são entendidos.
O naturalismo de Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company., por exemplo, fala de uma verdadeira eficácia causal das representações sobre o funcionamento corporal. Em seu entendimento, toda a nossa biologia é organizada de acordo com a possibilidade de o organismo trabalhar normativamente, baseado em informações passadas e presentes retidas em sua organização, com vistas a obter certo estado futuro, que também ganha certo valor normativo conforme essas representações. Traduzindo: em sua visão, um feto, por exemplo, “representa” a forma que suas funções buscam atingir em seu desenvolvimento. Se os genes junto aos fatores ambientais representam um fenótipo, resta a indagação sobre quem afinal é o agente representante que faz a tradução normativa entre as informações. É por questões assim que não há como deixarmos de supor, segundo Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company., uma hierarquia de selves e senciências na origem da vida e, portanto, da consciência humana.
A vida, a evolução e a mente somente são possíveis a partir desse trabalho entencional e representacional, inexistente, segundo Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company., sem conceitos teleológicos como self e senciência. A grande questão, para o autor, seria como explicar essas propriedades sem incorrer numa concepção que as tome como faculdades a priori, independentes e dualizadas em relação aos seus precursores físico-químicos.
Homúnculos: falácias dualistas envolvendo as teorias da vida e da mente
Com esse intuito, Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company. faz sua argumentação se referindo a um episódio de sua infância. Considera-o como o momento em que pela primeira vez se intrigou sobre o cérebro humano. Esse despertar da curiosidade infantil se desdobrou de um desenho a que assistira com finalidades pedagógicas sobre o assunto, em que, no lugar do cérebro do personagem principal, encontrava-se um pequeno homem vagamente semelhante a Albert Einstein, o qual, a partir de um painel de controle, gerenciava o que ocorria no corpo do personagem do desenho.
Deacon diz que se intrigou com isso. Identificado com o personagem do desenho, perguntou-se: “Se havia um pequeno homem em minha cabeça [...], onde eu estava? Era eu ele? Se não, quem era eu?” (p. 47). Se nosso corpo e nossa mente funcionam de acordo com as decisões de um pequeno homem dentro de nossa cabeça, ele também teria um pequeno homem em sua cabeça? E esse outro, também?
O problema é não somente a maneira como esse painel seria controlado, mas principalmente de que forma funcionaria o corpo do próprio Prof. Einstein. Se nossas respostas para o problema da mente presumem um homúnculo2 2 O termo homúnculo originalmente se associa a qualquer criatura “humanoide” ou que exibe propriedades semelhantes às de um humano, apesar de não o ser. na cabeça do Prof. Einstein que habita nossa cabeça, o problema em questão somente é empurrado um ou dois níveis abaixo, redundando numa descrição cujos termos “exibem propriedades que não são mais simples do que aquelas que se pretendeu explicar” (p. 47) em um primeiro momento. Portanto, o homúnculo corresponde, na teoria do autor, ao tipo de argumento em que uma propriedade entencional é presumida ser explicada postulando-se a existência de uma faculdade, disposição ou módulo que a produz; faculdade, disposição ou módulo esse que também não é totalmente compreendido em termos de processos e relações não entencionais.
Outro exemplo contundente de falácia do homúnculo é a referência que Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company. faz à peça de teatro de Molière, O doente imaginário. Segundo o neurocientista americano, em uma de suas cenas, um professor de medicina acompanhado de residentes examina os pacientes do hospital e lhes pergunta qual seria o motivo pelo qual substâncias Opioides induzem ao sono. Um de seus alunos, então, prontamente responde a seu tutor, dizendo-lhe que ópio causa sono porque tem um “fator soporífico”. O aluno é elogiado pelo professor que lhe diz ter acertado a resposta.
Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company. entende que isso é, evidentemente, uma ironia do dramaturgo. Seria uma forma de crítica ao caráter pretensioso de algumas explicações médicas de seu tempo, que, de fato, nada explicam. Afinal, o que ganhamos quando dizemos que ópio causa sono porque o ópio causa sono, ou seja, que ele causa “sopor”?
A falácia do homúnculo, tal qual proposta por Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company., é metodologicamente interessante devido à grande variedade de teorias que ela abarca, respectivas tanto ao problema da mente como à emergência da vida. Teorias como o pré-formacionismo biológico, o vitalismo, o cogito cartesiano, a tese da gramática universal entre as culturas, a ideia de um Deus transcendente, ou de um pampsiquismo da matéria, todas elas podem, do ponto de vista de Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company., incorrer nessa retórica que regride viciosamente.
Assim, quando se fala, por exemplo, que o córtex pré-frontal funciona como um “observador”, como um “maestro” ou como um “regulador” do restante do funcionamento neural, incorre-se em uma “falácia mereológica” (Bennett & Hacker, 2003Bennett, M. R., & Hacker, P. M. S. (2003). Philosophical Foundations of Neuroscience. Blackwell Publishing.; Deacon, 2012Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company.), isto é, a falácia de atribuir a uma região do cérebro uma propriedade que apenas o ser humano pode realizar. Quando atribuímos um vocabulário teleológico, como “informar”, “interpretar”, “sinalizar”, “adaptar”, “receber”, “reconhecer” ou “regular” a uma determinada função corporal, com muita facilidade pode-se incorrer no argumento do homúnculo. Para Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company., citando J. B. S. Haldane, a teleologia é para o biólogo como um amante extraconjugal: algo sem o qual ele não vive, mas com o qual não está disposto a ser visto em público.
Golems: falácias eliminativistas envolvendo as teorias da vida e da mente
Esse problema, exemplificado pela compreensão do funcionamento cerebral como a de um diretor de um filme ou como o maestro de uma orquestra, levou behavioristas como B. F. Skinner a criticarem muitas das teorias psicológicas, propondo, assim, que a mente deveria ser tratada pela psicologia científica como uma “caixa-preta” impossível de ser investigada. Desse modo, embora exista a armadilha do homúnculo, existe, a esse respeito, a atitude oposta, ou seja, a falácia que Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company. chama de golem, que ele atribui a correntes próximas ao materialismo eliminativista. Elas dizem respeito, justamente, às teses de que a ciência por princípio deve eliminar vocabulários remetidos à teleologia ou à entencionalidade, que são desejavelmente redutíveis ao vocabulário mecanicista.
O golem é uma figura do folclore judaico da qual Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company. faz uso e que, em uma de suas versões, é contado como o recurso do qual um poderoso rabino se utilizou para defender a comunidade judaica de Praga frente a ataques antissemitas durante o século XVI. Esse sábio teria, por meio de um feitiço, formado uma criatura poderosa da lama, que, com a palavra hebraica para “verdade” inscrita em sua testa, comportava-se de acordo com os interesses de seu criador.
O golem, ainda que eficaz sobre o mundo, com toda a sua força, era como um robô, sem qualquer ação normativa própria, e apenas capaz de reações automáticas e predeterminadas por seu criador. Ele era no máximo o que hoje entendemos como um algoritmo que gerava outros algoritmos. Esse conto particular do golem fala justamente sobre a inversão disso, ou seja, sobre o rompimento com esse regime causal anterior, de modo que a criatura começa a agir conforme sua própria vontade, assim trazendo consequências deletérias inclusive àqueles que dele procuravam se servir (Deacon, 2012Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company.).
Essa história, de nosso ponto de vista, é uma metáfora que Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company. utiliza para mostrar a pretensão do materialismo eliminativista em controlar onipotentemente o que ocorre no mundo e os efeitos nefastos dessa intenção. Se somos apenas efeito de causas mecânicas, que nos comandam como o mago comanda o golem, em que medida temos algum discernimento? Entretanto, mais importante do que isso, cabe nos indagarmos: quem afinal é esse mago que nos comanda, seria ele também entencional ou um mero golem? É por razões assim que a falácia do golem, em seus pressupostos, conta com um homúnculo, que, nessa metáfora, ocupa o lugar do rabino (Deacon, 2012Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company.).
O golem, por isso, é outra forma de falácia, que, em vez de explicar o vão que o homúnculo habita para os fenômenos entencionais, procura, justamente, eliminar a importância desses vãos — como a subjetividade — para o universo. Entretanto, como Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company. considera, mais importante do que isso é um argumento falacioso, na medida em que também depende de um homúnculo, mais sutil, mas ainda presente em seus pressupostos. Para o golem, haveria como implicação não somente um feitiço ou a ação de um homúnculo que o construa ou interprete, mas, sobretudo, um feiticeiro cuja magia se vira contra ele mesmo:
Poderá esta estratégia eliminatória ser realizada de maneira exaustiva, de modo que toda explicação entencional seja substituída pela explicação mecanicista? E mesmo que o possa, o resultado será um relato completo das propriedades que tornam a vida e a mente tão diferentes da energia e da matéria? Eu tenho pouca dúvida de que um universo desprovido de fenômenos entencionais é possível. De fato, acredito que em um ponto no passado distante, o universo inteiro estava em tal estado. Mas esse não é o universo em que vivemos agora. Por essa razão, acredito que esse empreendimento eliminatório é forçado a sacrificar a integridade pela consistência, deixando importantes negócios inacabados em seu caminho. Precisamos explicar a natureza entencional da nossa própria existência. (Deacon, 2012, pp. 81-82Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company.)
Desse modo, a imagem do golem serve não para representar o fato de que vivemos sob um regime causal — com o que o autor claramente concorda, uma vez que procura explicar a entencionalidade a partir da não entencionalidade —, mas para criticar a concepção de que o universo estaria submetido a um determinismo absoluto, no qual não há possibilidade para a emergência do novo, e no qual os propósitos da vida simplesmente não existem. Segundo essa visão eliminativista, podemos ser até inteligentes, mas jamais realmente sencientes ou dotados de agência. Nossas experiências seriam meros desdobramentos de leis e regularizações físicas cujo destino, de algum modo, já se encontrava, por dedução, no Big Bang. A implicação dessa concepção eliminativista é que os processos ligados à vida e à mente devem ser entendidos como equivalentes aos de uma máquina que computa estímulos de entrada, a partir dos quais são acionados algoritmicamente os dispositivos de resposta. Nossa experiência psicológica seria mera ilusão, um epifenômeno, secretado pelo plano físico, como um computador que conta com um software.
Como biólogo evolutivo focado no estudo da emergência da linguagem e de maneira distinta do que é hegemônico em seu campo, Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company. contraria as visões golem, que consideram a evolução mero processo de replicação genética, decomponível à análise puramente algorítmica. Para o autor, a vida inscreve propriedades teleológicas na natureza, considerando isso uma precondição para as determinações evolutivas, e não o contrário, da forma que autores como Daniel Dennet e Richard Dawkins propõem, ou seja, que a teoria da seleção natural permitiu à ciência eliminar as descrições teleológicas. Deacon, fundamentado inclusive pelo último parágrafo de Charles Darwin em A origem das espécies, entende que a evolução tem como pressuposto a existência de unidades individuadas, minimamente sensitivas e normativas em relação a si e ao ambiente, dotadas por isso de agência, de teleologia.
Essas considerações não significam dizer que a evolução, ela mesma, seja teleológica; pelo contrário. Isso seria justamente um retorno à falácia do homúnculo. Nós somos determinados pela variação e pela replicação genéticas, submetidas às leis cegas da física e da seleção natural, mas é tão verdade dizer que é somente por meio de agências “não cegas”, capazes de adaptação e função — de selves —, que podemos inferir a evolução. Fora a variação genética, não é possível haver evolução sem a tendência a se adaptar e, por isso, sem a existência de organismos funcionais. A adaptação depende dessa capacidade de atribuir valor a certa condição ambiental, que podemos chamar de normatividade biológica. Mas certa condição ambiental só pode ser boa ou ruim caso se postule a existência de um agente minimamente individuado e sensitivo em relação ao qual esses valores se aplicam.
Absencialidades e restrições
Com vistas a superar os argumentos do golem e do homúnculo, e para exemplificar e caracterizar os fenômenos entencionais, Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company. solicita ao leitor que se pergunte: onde exatamente está o significado daquilo que ele lê? Na tinta sobre o papel? Nos estímulos ao sistema perceptivo? Nos fótons que disparam uma corrente elétrica sobre o sistema nervoso? Do mesmo modo, o autor nos indaga: qual é a causa do “quicar” de pedras sobre um lago, ao serem projetadas por uma criança? Sem dúvida, para isso poder-se-ia aludir à queima de moléculas de adenosina (ATP) no corpo da criança. Igualmente, aos disparos neuroquímicos correlatos a essa ação. Quem sabe, também, poder-se-ia pensar na tensão superficial da água e na forma dos projéteis selecionados, assim como no ângulo da trajetória das pedras. No entanto, Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company. considera: alguma dessas explicações, mesmo se atingíssemos toda sua amplitude causal, seria mais convincente do que aquela que se refere à memória que a criança tem dessa brincadeira feita por um adulto noutro lago, noutro verão?
Fora o leve sentimentalismo dessa imagem, com ela vemos um problema bastante sério, que lhe parece implicado pela entencionalidade: como o passado e o futuro podem agir sobre o presente? Como a memória evocada por uma criança, sobre um lançar de pedras ocorrido em outro tempo e lugar, traz efeitos físicos no aqui-e-agora? Como é possível a generalização que a faz pensar que outras pedras, ao mesmo tempo parecidas e diferentes, também podem ser atiradas do mesmo modo? Como a representação do estado futuro — as pedras quicando sobre a água —, que procura repetir o mesmo fenômeno do passado, pode agir no presente?3 3 Cabe considerar que a ideia de Deacon (2012) sobre a entencionalidade e a teleologia não implica uma concepção de que estados futuros causem estados presentes, mas de que representações atuais sobre estados futuros potenciais (ex: o tropismo de uma bactéria por certo substrato, a tendência de um feto em atingir a forma de um bebê ou mesmo o choro deste último em busca de sua mãe) tem o poder de causar estados presentes.
Segundo Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company., por questões como essas, cabe se considerar que tanto “as letras no papel como a imagem mental que a criança tem sobre sua brincadeira dão acesso a algo que elas mesmas não são” (p. 19). As representações e os sentidos daquilo que escrevemos, lemos e brincamos não estão apenas nas palavras ou na pedra, tampouco no funcionamento neural de quem escreve, de quem lê ou de quem brinca. Esse é o terreno que se apresenta, de fato, mas ainda assim resta a questão de por que razão podemos dizer que certa dinâmica física representa um significado, uma emoção ou um propósito.
De acordo com o autor, por razões como essas, os fenômenos entencionais se definem paradoxalmente “em respeito a algo ausente, separado ou possivelmente não existente” (p. 547). Eles são dotados de algum tipo de absencialidade, própria à organização desses processos. É sob a intuição desse traço negativo — ou seja, o da absencialidade — que Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company. busca explicar como é que, de antecedentes não entencionais, é possível a emergência de fenômenos entencionais no domínio natural. Nesse sentido, a absencialidade
Pode ser um estado de coisas ainda não realizado, uma representação separada de um objeto específico, um tipo geral de propriedade que pode ou não pode existir, uma qualidade abstrata, uma experiência. (Deacon, 2012, p. 3Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company.)
Assim, enigmaticamente, o autor entende que, para sermos naturalistas, mas não por isso eliminativistas, “o que falta é algo que falta” (p. 1). A biologia, do mesmo modo que a engenharia, pôde construir algumas das obras e técnicas mais sofisticadas da civilização sem o conceito de zero ou algo análogo a isso. Seria, no entanto, somente com a consideração sobre esse item físico que representa a ausência — o zero, as absencialidades — que se poderia representar matematicamente uma variedade de fenômenos de outro modo incompreensíveis. É sob a ideia algo metafórica das absencialidades e do zero, e com o que desenvolve mais tecnicamente a partir da termodinâmica e com seu conceito de restrição (constraint), que o autor explora as condições necessárias na física para a emergência dos selves.
Portanto, dentre as noções necessárias para se explicar a emergência dos selves, a ideia de restrição é provavelmente a mais central para Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company., porque entende que os processos ligados à vida devem intrinsecamente produzir um trabalho contrário em relação à tendência físico-estatística mais prevalente no universo, a segunda lei da termodinâmica. Isto é, os processos ligados à vida e à mente devem ser problematizados em um enquadramento mais negativo do que positivo, na medida em que as formas por eles geradas são efeito de restrições frente à tendência à dissolução entrópica e à homogeneização dos sistemas em relação às suas adjacências. Sob tal enquadramento teórico, para a ocorrência de um fenômeno entencional, o que está em jogo não é tanto o que acontece à matéria, mas justamente um aumento do que não acontece, ou seja, do que restringe a tendência universal à dissipação das formas. Portanto, o desenvolvimento e a diferenciação exibidos pelos organismos não se comportam de acordo com adições, mas com a aquisição de restrições geradoras de forma, que, ao serem incluídas em um tipo de dinâmica específica — uma teleodinâmica —, são mantidas, reproduzidas e diferenciadas de maneira normativa e entencional (Deacon, 2012Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company.).
Com efeito, não se deve considerar que as restrições são exclusivas da vida ou da mente — elas são bastante visíveis em fenômenos como redemoinhos, formação de cristais e demais processos auto-organizativos. Contudo, os fenômenos entencionais presentes nos sistemas biológicos de alguma forma conjugam e reproduzem, em sua constituição e em suas interpretações normativas sobre sua relação com o ambiente, uma série de informações e processos de geração de forma, de geração de restrições, de uma maneira intrínseca. Isso, por outro lado, não acontece nos processos de geração de restrições que ocorrem no mundo inorgânico, nos quais a geração de formas é feita de maneira passiva, extrínseca e, ao término de seus ciclos, tendente à dissipação entrópica.
Assim, deve-se considerar que mesmo os genes, em vez de serem o “segredo da vida”, são muito mais um efeito da teleodinâmica que emerge no modelo proposto. Eles são o meio, o código, provavelmente algumas das restrições mais cruciais para as formas de vida tais quais as conhecemos hoje. Contudo, na medida em que eles mesmos devem ser pensados como uma forma altamente evoluída de manutenção e reprodução de restrições, é necessário se pressupor a existência de agentes capazes de reprodução e de adaptação dessas formas, que as interpretam, conjugam e amplificam normativamente com respeito às restrições dadas pelo ambiente — o que é na verdade uma tarefa dos selves e seu aspecto intrinsecamente incompleto e entencional (Deacon, 2012Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company.).
Desse modo, Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company., baseado na teoria informacional, na teoria dos sistemas complexos e na semiótica de Charles Sanders Peirce, propõe uma hipótese para explicar a emergência da vida, um modelo que chama de autogênico, o qual, basicamente, compreende a existência de pelo menos dois processos de geração de forma inorgânicos (a automontagem e a autocatálise) que, conjugados de certa maneira, poderiam se tornar a condição-limite para a manutenção e reprodução de um novo sistema um nível acima. Nesse casamento sinergético, formador de um novo processo num nível acima, a interação entre os dois subprocessos de geração de forma se torna autogênica, na medida em que um subprocesso se organiza em relação à existência do outro, produzindo um processo global em que as restrições se mantêm, se reproduzem e se diferenciam. São formadas novas unidades mesmo que com o colapso das anteriores, e esse colapso poderia implicar a produção de novas linhagens autogênicas.
Como efeito dessa organização em que há processos que se tornam a condição-limite de um em relação ao outro, haveria o início de um processo de geração intrínseca, e não apenas extrínseca, de restrições. Isso poderia explicar a emergência da senciência e da normatividade biológica na medida em que certas restrições extrínsecas se tornariam favoráveis e outras desfavoráveis à perpetuação do sistema autogênico. É, portanto, conforme essa interação de mútua dependência entre processos auto-organizativos, em que ambos os sistemas, para manter e transmitir suas restrições, dependem intrinsecamente de algo absencial e que, por tal, é não intrínseco — o outro sistema — que Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company. entende a emergência do self, da senciência e, por conseguinte, da evolução.
Comentários sobre a teoria e sua aproximação com problemáticas da psicopatologia
Deacon é um autor muitas vezes ousado, que pode passar a impressão ao leitor de que sua teoria supera alguns dos maiores e mais antigos problemas da ciência e da filosofia, a exemplo dos que dizem respeito à psyché e ao pathos. Pensamos que, nesse movimento, há certa ousadia sua, que corteja, algumas vezes, uma ingenuidade filosófica, tanto no bom quanto no mau sentido. Em sua metodologia, cujo discurso parece caminhar pela lógica “dois passos para frente, um passo para trás”, com certeza se deve reconhecer uma teoria persuasiva e densa. No entanto, é fato que, partindo de uma descrição sobre as condições de possibilidade no mundo físico-termodinâmico para a experiência subjetiva da emoção, a escalada do texto o leva algumas vezes a tons muito conclusivos, de modo que, adversativamente, poderíamos entender alguma disparidade em relação a seus objetivos e suas considerações sobre seus resultados.
Entendemos que Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company. — de forma semelhante à crítica que Vidal e Ortega (2019)Vidal, F., & Ortega, F. (2019). Somos nosso cérebro?: neurociências, subjetividade, cultura. Editora N-1. fazem sobre as neurodisciplinas em geral — muitas vezes quer oferecer, ao término de sua investigação, um “papel redentor” (p. 93), que salvaria “as humanidades e as ciências sociais de seus becos sem saída teóricos e metodológicos” (p. 93). Consideramos, adicionalmente, que Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company. propõe uma teoria que almeja esse papel redentor também em relação às ciências naturais, propondo, como chamam Russo e Ponciano (2002)Russo, J. A., & Ponciano, E. L. T. (2002). O sujeito da neurociência: da naturalização do homem ao re-encantamento da natureza. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 12(2), 345-373. https://doi.org/10.1590/S0103-73312002000200009.
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, uma estratégia de “encantamento da natureza”. Sob esse ponto de vista, haveria uma estratégia de, com vistas a tornar a subjetividade um objeto de estudo das ciências naturais, descrever uma natureza ela mesma dotada dos aspectos “encantados” do humano — no caso de Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company., estaríamos falando principalmente das absencialidades. Como diz o autor, sua teoria pode ser entendida tanto como uma abordagem negativa de realismo, como, ao invés, paradoxalmente, poderia também ser descrita como “um nominalismo das absencialidades” (p. 191).
Ainda com essas ponderações, já com algum tom de “redenção” de nossa parte, por meio de nossa análise sobre a proposta emergentista de Deacon, entendemos que apresentamos uma teoria da Physis (Birman, 2005Birman, J. (2005). A Physis da Saúde Coletiva. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 15(Suppl.), 11-16. https://doi.org/10.1590/S0103-73312005000000002.
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) da saúde mental, que, de modo algo paradoxal, tanto permite que nossa psicopatologia seja “autônoma” (Pereira, 2019Pereira, M. E. C. (2019). Projeto de uma (psico)patologia do sujeito. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 22(4), 828-858. https://doi.org/10.1590/1415-4714.2019v22n4p828.10.
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) em relação aos objetos e métodos da fisiopatologia, como não por isso a torna fruto de “exceções em relação à ordem da natureza” (Simanke, 2009, p. 223Simanke, R. T. (2009). A psicanálise freudiana e a dualidade entre ciências naturais e ciências humanas. Scientiae Studia, 7(2), 221-235. <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1678-31662009000200004>.
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).
As propostas naturalistas de Deacon sobre a emergência de atributos distintivos da vida tocam num rico debate no campo da filosofia da medicina, cujos expoentes são, como entendemos, Boorse (1977)Boorse, C. (1977). Health as a theoretical concept. Philosophy of Science, 44(4), 542-573. https://doi.org/10.1086/288768.
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e Canguilhem (1995)Canguilhem, G. (1995). O normal e o patológico. Forense Universitária., e que se consolidou como uma “indagação crucial para a saúde coletiva” (Birman, 1999, p. 7Birman, J. (1999). Os sentidos da saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 9(1), 7-12. https://doi.org/10.1590/S0103-73311999000100001.
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). Referimo-nos, assim, ao debate envolvendo as categorias de normalidade, patologia e diferença. Isso significa dizer que pensamos ser importante considerar de que forma as ideias do neurocientista americano se desdobram para o campo da saúde, principalmente no que diz respeito à compreensão dessas noções.
Como apresentam Almeida Filho e Jucá (2002)Almeida Filho, N. de, & Jucá, V. (2002). Saúde como ausência de doença: Crítica à teoria funcionalista de Christopher Boorse. Ciência & Saúde Coletiva, 7(4), 879-889. https://doi.org/10.1590/S1413-81232002000400019.
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, Boorse é um importante filósofo da medicina que buscou estabelecer, como chama, uma Teoria Bioestatística da Saúde, ou seja, uma busca em fazer uma conceituação de categorias como patologia e normalidade segundo um viés puramente biológico e estatístico. Boorse (1977)Boorse, C. (1977). Health as a theoretical concept. Philosophy of Science, 44(4), 542-573. https://doi.org/10.1086/288768.
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considera a saúde como algo idêntico à ausência de doença, que é identificada de acordo com seu desvio estatístico em relação a outros indivíduos da mesma “classe de referência”, ou seja, da mesma espécie, da mesma idade e do mesmo sexo. Assim, Boorse (1977)Boorse, C. (1977). Health as a theoretical concept. Philosophy of Science, 44(4), 542-573. https://doi.org/10.1086/288768.
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é um autor que faz uso de um entendimento da biologia que seria supostamente capaz de eliminar, na delimitação teórica das categorias de saúde e doença, o recurso à subjetividade e à capacidade dos seres vivos atribuírem sentidos e valores à sua experiência. Em seu objetivo de ser puramente descritivo e propor uma concepção de saúde e doença isenta de valores, como identificam os autores brasileiros, Boorse não somente incorre em uma série de contradições lógicas (como reconhecer a relação imanente entre teleologia e biologia, mas descartar o recurso ao self para a conceituação de saúde e doença), mas também finda por considerar o pathos humano idêntico ao pathos dos vegetais, que são também nada mais que desvios estatísticos em relação a padrões morfológicos da classe de referência.
Nesse sentido, consideramos que, armados dos instrumentos teóricos fornecidos por Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company., devemos entender que as propostas estatísticas de Boorse (1977)Boorse, C. (1977). Health as a theoretical concept. Philosophy of Science, 44(4), 542-573. https://doi.org/10.1086/288768.
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são como correntes golem. Como em uma das críticas de Almeida Filho e Jucá (2002)Almeida Filho, N. de, & Jucá, V. (2002). Saúde como ausência de doença: Crítica à teoria funcionalista de Christopher Boorse. Ciência & Saúde Coletiva, 7(4), 879-889. https://doi.org/10.1590/S1413-81232002000400019.
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, na busca por eliminar os aspectos valorativos ou normativos de sua análise, Boorse (1977)Boorse, C. (1977). Health as a theoretical concept. Philosophy of Science, 44(4), 542-573. https://doi.org/10.1086/288768.
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incorre em falácias, por exemplo, na medida em que se esquece dos aspectos normativos que estão envolvidos tanto nos organismos como em sua própria pesquisa, ou seja, os objetivos que busca investigar. Na metáfora deaconiana, poderíamos entender que ele se esquece do homúnculo (o rabino) que controla a besta na história do golem. Logo, enquanto Boorse (1977)Boorse, C. (1977). Health as a theoretical concept. Philosophy of Science, 44(4), 542-573. https://doi.org/10.1086/288768.
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propõe que os fatores subjetivos e normativos devem ser eliminados da delimitação teórica de um processo patológico, formulando um modelo golem em que a doença é tomada de modo essencialista e como idêntica a um desvio em relação à média estatística, Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company. formula uma teoria que traz, como cerne da experiência de qualquer self biológico, uma interpretação valorativa sobre sua relação com o ambiente, sendo isso um fato definidor, e, portanto, não eliminável, quando procuramos entender os processos vitais, mesmo que essa análise utilize um modelo computacional para auxiliá-la.
Esse contraste em relação a Boorse (1977)Boorse, C. (1977). Health as a theoretical concept. Philosophy of Science, 44(4), 542-573. https://doi.org/10.1086/288768.
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nos sugere que a teoria de Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company. se inclina mais ao naturalismo normativista4
4
De acordo com a análise de Giroux (2013) sobre as diferentes abordagens da filosofia da medicina, da biologia, da saúde e da doença, existem tanto convergências como divergências entre a tradição anglo-saxã e a teorização feita por Georges Canguilhem sobre a ideia de normatividade. Para esse filósofo francês, a normatividade é um fato definidor da biologia que opera em princípio a nível do organismo individual, de modo que os estados normal ou patológico são necessariamente referidos à relação valorativa deste com o ambiente. De maneira diferente, mas não oposta, do lado da tradição anglo-saxã, embora haja a consideração de que os processos biológicos e funcionais estão implicados nos estados saudáveis ou patológicos, a ideia de normatividade se endereça majoritariamente não à ação valorativa individual de um organismo, mas aos valores e interesses humanos, como nas teses de Tristam Engelhardt. Christopher Boorse, em uma abordagem autodenominada de funcionalista, radicalmente crítica a essas abordagens normativistas, buscou eliminar a interveniência das normas sociais e culturais sobre as definições de saúde e doença, o que foi feito por meio de um isolamento entre as categorias de doença e enfermidade, sendo esta prática e aquela puramente teórica. O funcionalismo de Boorse considera que o aspecto teleológico presente nas funções das partes dos organismos independe de valores biológicos, como Canguilhem postula, e que a delimitação de suas alterações patológicas independe de fatores socioculturais, como Engelhardt mais marcadamente propõe. Um autor profícuo nesse debate foi Lennard Nordenfelt, que, por sua vez, almejou estabelecer uma síntese entre naturalistas normativistas, como Canguilhem, e naturalistas funcionalistas, como Boorse, contribuindo de maneira própria a essa querela (Giroux, 2013). Como apresenta Gaudenzi (2016), Nordenfelt propõe uma teoria holística e positiva da saúde sob a forma de um normativismo moderado, em que a saúde não pode ser desvinculada da experiência de bem-estar, sendo este relativo à maneira que as capacidades do organismo em dado ambiente de oportunidades são consonantes aos fins vitais que esse mesmo indivíduo, em seus aspectos intencionais, sociais, subjetivos e culturais, estabelece para si. A patologia, sob essa acepção, se define de maneira gradativa, como um distanciamento do organismo em relação às suas potencialidades e oportunidades em um dado ambiente. Para Nordenfelt, “nascemos equipados com pré-condições biológicas e psicológicas para nossas habilidades futuras” (apud Gaudenzi, 2016, p. 760), o que implica uma relação imanente entre os conceitos de normatividade e intencionalidade, assim como uma definição de saúde cujos elementos componentes são a capacidade de agir de um self, seus fins vitais e o seu ambiente (Giroux, 2013). Essas semelhanças implícitas entre as concepções de Deacon e Nordenfelt requereriam uma exposição à parte, que foge ao escopo do presente estudo, mas que seriam interessantes ser investigadas em maior profundidade em ocasiões futuras.
de Canguilhem (1995)Canguilhem, G. (1995). O normal e o patológico. Forense Universitária., que propõe uma centralidade fundamental da normatividade biológica para a atividade vital e, portanto, para a definição de categorias como normalidade, patologia e diferença. Isto é, como argumenta Canguilhem (1995)Canguilhem, G. (1995). O normal e o patológico. Forense Universitária., é necessária a postulação da normatividade biológica para se compreender de que maneira se definem as categorias de saúde e doença. Em sua concepção, todo estado definido como normal ou patológico tem como origem, necessariamente, uma valoração por parte do organismo que sofre e por parte dos sujeitos que, de dentro da medicina e demais técnicas correlatas, determinam quais variações da normalidade devem ser entendidas como patológicas e quais não. Como propõe o autor francês, as técnicas terapêuticas procuram o estabelecimento do normal, mas é preciso se entender o normal como um valor, e não como um fato.
Temos de considerar, contudo, que Canguilhem (1995)Canguilhem, G. (1995). O normal e o patológico. Forense Universitária. se exime da questão sobre quais são as causas que implicam esse estado de coisas, ou seja, ele toma o trabalho de valoração por parte dos organismos como um tipo homúnculo, poderíamos pensar adversativamente. Embora com sólidos argumentos, o filósofo naturalista francês não busca explicar como que da não normatividade surge a normatividade biológica, tal qual Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company. faz. Isso nos parece uma importante contribuição e um indicativo de que o neurocientista americano fundamenta de algum modo a defesa de uma visão normativista de categorias como saúde, patologia e diferença, como Canguilhem (1995)Canguilhem, G. (1995). O normal e o patológico. Forense Universitária. faz. Do nosso ponto de vista, esta é uma condição necessária para uma visão de saúde que leve em conta os aspectos simbólicos, políticos e éticos que envolvem toda experiência humana. Assim, podemos entender que Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company., em sua descrição da emergência dos selves e da senciência, indiretamente fortalece uma visão de que o cuidado em saúde mental deve privilegiar a singularidade da experiência de sofrimento e reconhecer que nem toda diferença deve ser descrita como patologia.
Acrescido a isso, outro ponto que vale ressaltar da teoria do autor é que o aspecto absencial tem como correlato uma visão ambiental para a emergência do self e suas propriedades entencionais. Na verdade, quando já estamos falando especificamente do humano, Deacon (2010)Deacon, T. (2010). Language and complexity: Evolution inside out [vídeo]. 37th International Systemic Functional Congress. YouTube – The University of British Columbia. https://youtu.be/OT-zZ0PMqgI.
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compreende que processos evolutivos de construção de nicho e de seleção genética por relaxamento teriam acarretado ao nosso funcionamento neurocognitivo um tipo de “perda da transmissão genética” (1:01:13) da função que o torna adaptado ao nosso meio, havendo uma flexibilidade do cérebro conforme as interações ambientais, desde o nível genético, passando pelo embrionário até sua vivência cultural. Por fim, uma vez considerado que a dinâmica da vida depende da emergência de uma organização que intrinsecamente se relaciona com algo não intrínseco e, uma vez constatado que a capacidade mais distintiva do humano — a linguagem simbólica — depende, essencialmente, de outro humano, consideramos que a ideia das absencialidades de Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company. é especialmente interessante por ser apropriada tanto para quando falamos do desenvolvimento individual (ontogênese) como para quando estamos discutindo a emergência da vida e a evolução (filogênese).
Considerações finais
A saúde mental é um campo por natureza interdisciplinar, o que implica uma série de problemas para a formação de seus recursos humanos. Por essa razão, é necessário construir um terreno basal para esses profissionais, pois eles provêm de formações acadêmico-práticas muito distintas. Tradicionalmente, o campo da saúde mental foi atravessado pela polaridade entre as visões organicistas e as visões psicológico-morais (Birman, 1978Birman, J. (1978). A Psiquiatria como discurso da moralidade. Graal.), o que se traduz hoje na dificuldade de integração das práticas entre diferentes profissionais, como médicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, profissionais de enfermagem e de educação física (Vasconcelos, 2009Vasconcelos, E. (2009). Epistemologia, diálogos e saberes: Estratégias para práticas interparadigmáticas em saúde mental. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, 1(1). <https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/68433>.
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).
Consideremos que, em geral, os agentes do campo da saúde mental partem de um pressuposto enganoso de que os demais profissionais se encontram ancorados sob os mesmos referenciais, enquanto o que ocorre é a execução de um cuidado fragmentado de acordo com seus diferentes segmentos. Esse engano se deve muito aos fundamentos teóricos dessas diferentes profissões, que são constituídos de maneira absolutamente fragmentada uns em relação aos outros (Vasconcelos, 2009Vasconcelos, E. (2009). Epistemologia, diálogos e saberes: Estratégias para práticas interparadigmáticas em saúde mental. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, 1(1). <https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/68433>.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbs...
).
Desse modo, à luz da necessidade de vermos as dimensões da vida humana — e, por conseguinte, da prática da saúde mental — como simultaneamente heterogêneas e integradas, e com vistas a garantir a irredutibilidade da experiência humana em relação a seus precursores físico-químicos, consideramos a necessidade de se romper tanto com a visão materialista eliminativista — os golems que por definição eliminam as dimensões “não materiais”, subjetivas e culturais — quanto com a perspectiva dualista — que, à la Descartes, toma esses níveis como homúnculos discretos entre si, que não se integram em uma unidade. Do nosso ponto de vista, se, por um lado, o eliminativismo descarta justamente aquilo que se propunha explicar, a concepção dualista da relação natureza-subjetividade, por sua vez, não somente sofre de sérios problemas lógicos, como pudemos ver com Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company. em sua crítica aos homúnculos, mas, além disso, como também propõe Serpa (1998)Serpa Jr., O. D. (1998). O mal-estar na natureza. Te Corá., não nos provê de um arsenal teórico capaz de combater as práticas fragmentadas em saúde mental. O dualismo cartesiano, justamente pela importância que teve para a concepção moderna de sujeito, é a própria base sobre a qual os velhos antagonismos da psiquiatria constituíram suas práxis (Bezerra, 2000Bezerra Jr., B. (2000). Naturalismo como anti-reducionismo: Notas sobre cérebro, mente e subjetividade. Cadernos IPUB, 6(18), 158-177.).
Entendemos que, com a torre de babel interdisciplinar da saúde mental, muitas discórdias não se mostram evidentes, apesar de lá estarem; e muitas visões e problemáticas convergentes se deixam apagar, pois não são assim vistas. Cabe dizermos que, quando as línguas são confusas entre si, pode-se tanto ficar perdido pela concórdia como esclarecido por um suposto não dito (Ferenczi, 1992Ferenczi, S. (1992). Confusão de língua entre os adultos e a criança (A. Cabral, Trad.). In Psicanálise IV (pp. 97-106). Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1933).). No campo da saúde mental, tanto as orientações psicossociais quanto as da psiquiatria organicista têm visões muito estereotipadas umas das outras. Tal qual entendemos haver nos dados de estudos qualitativos como o de Ferreira, Damico e Fraga (2017)Ferreira, L. A. S., Damico, J. G. S., & Fraga, A. B. (2017). Entre a composição e a tarefa: Estudo de caso sobre a inserção da educação física em um serviço de saúde mental. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 39(2), 176-182. https://doi.org/10.1016/j.rbce.2017.02.002.
https://doi.org/10.1016/j.rbce.2017.02.0...
e o de Vasconcellos (2010)Vasconcellos, V. C. de (2010). Trabalho em equipe na saúde mental: O desafio interdisciplinar em um CAPS. SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas, 6(1), 1-16. <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-69762010000100015>.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
, entendemos que por vezes há uma negação do conflito entre os profissionais, tanto por parte dos que defendem abordagens psicossociais como os de abordagem biomédica. Fica claro para nós que essa atitude deletéria nem sempre é um ato deliberado dos profissionais, parecendo-nos mais ser um efeito de como as áreas de estudo são compartimentadas umas em relação às outras. A heterogeneidade é, ao mesmo tempo, a ferramenta essencial para um tratamento integral e, justamente por isso, o problema primeiro para que isso ocorra (Oury, 2009Oury, J. (2009). O coletivo. Hucitec.).
Assim, com Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company., tentamos fazer o conflito emergir para que possa ser elaborado. Pensamos encontrar em sua teoria uma alternativa, um terreno basal, para que orientações teóricas heterogêneas entre si possam se encontrar, mantendo sua singularidade, mas potencializando-se reciprocamente e de maneira integrada. Desse modo, entendemos que Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company. oferece uma teoria que, ainda que naturalista, é capaz de incluir aspectos éticos, políticos e simbólicos às práticas em saúde, uma vez que explica, em um viés não dualista, o processo para a emergência de propriedades como agência, normatividade e individuação. É, portanto, um autor que consideramos capaz de contribuir para a superação no mínimo teórica de alguns impasses técnicos, na medida em que cria um solo teórico estável tanto para os métodos biológicos quanto para os que se preocupam com a subjetividade e a vivência cultural. Com esse autor, é possível vislumbrar algum entendimento acerca dos impasses sobre o problema da mente e sobre quais condições objetivas é possível a subjetividade, de modo que sua proposta emergentista tem o poder de prover ao campo da saúde mental alguns pressupostos que fomentam, apesar de não garantir, a interdisciplinaridade da área.
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ERRATUMNo artigo “Espíritos, afetos e biologia: o cuidado em saúde mental à luz do emergentismo de Terrence Deacon”, de autoria de Eduardo Zaidhaft e Francisco Ortega, com número de DOI http://dx.doi.org/10.1590/1415- 4714.e210436, publicado no periódico Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 2023, volume 26, e210436Onde se lia:*2 Universitat Rovira i Virgili. (Tarragona, Espanha).Leia-se*2 Institución Catalana de Investigación y Estudios Avanzados (ICREA); Centro de Investigación en Antropología Médica (MARC) da Universitat Rovira i Virgili. (Tarragona, España).
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Trabalho financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e baseado na dissertação de mestrado Possíveis contribuições do naturalismo de Terrence Deacon ao campo da saúde mental pelo Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ/2020). Estudo parte do grupo de pesquisa Programa de Estudos e Pesquisas sobre Ação e Sujeito (PEPAS).
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O termo homúnculo originalmente se associa a qualquer criatura “humanoide” ou que exibe propriedades semelhantes às de um humano, apesar de não o ser.
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Cabe considerar que a ideia de Deacon (2012)Deacon, T. (2012). Incomplete nature: How mind emerged from matter. W. W. Norton & Company. sobre a entencionalidade e a teleologia não implica uma concepção de que estados futuros causem estados presentes, mas de que representações atuais sobre estados futuros potenciais (ex: o tropismo de uma bactéria por certo substrato, a tendência de um feto em atingir a forma de um bebê ou mesmo o choro deste último em busca de sua mãe) tem o poder de causar estados presentes.
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De acordo com a análise de Giroux (2013)Giroux, É. (2013). Philosopher sur les concepts de santé: de l’Essai de Georges Canguilhem au débat anglo-américain. Dialogue: Canadian Philosophical Review/Revue canadienne de philosophie, 52(4), 673-693. https://doi.org/10.1017/S0012217314000122.
https://doi.org/10.1017/S001221731400012... sobre as diferentes abordagens da filosofia da medicina, da biologia, da saúde e da doença, existem tanto convergências como divergências entre a tradição anglo-saxã e a teorização feita por Georges Canguilhem sobre a ideia de normatividade. Para esse filósofo francês, a normatividade é um fato definidor da biologia que opera em princípio a nível do organismo individual, de modo que os estados normal ou patológico são necessariamente referidos à relação valorativa deste com o ambiente. De maneira diferente, mas não oposta, do lado da tradição anglo-saxã, embora haja a consideração de que os processos biológicos e funcionais estão implicados nos estados saudáveis ou patológicos, a ideia de normatividade se endereça majoritariamente não à ação valorativa individual de um organismo, mas aos valores e interesses humanos, como nas teses de Tristam Engelhardt. Christopher Boorse, em uma abordagem autodenominada de funcionalista, radicalmente crítica a essas abordagens normativistas, buscou eliminar a interveniência das normas sociais e culturais sobre as definições de saúde e doença, o que foi feito por meio de um isolamento entre as categorias de doença e enfermidade, sendo esta prática e aquela puramente teórica. O funcionalismo de Boorse considera que o aspecto teleológico presente nas funções das partes dos organismos independe de valores biológicos, como Canguilhem postula, e que a delimitação de suas alterações patológicas independe de fatores socioculturais, como Engelhardt mais marcadamente propõe. Um autor profícuo nesse debate foi Lennard Nordenfelt, que, por sua vez, almejou estabelecer uma síntese entre naturalistas normativistas, como Canguilhem, e naturalistas funcionalistas, como Boorse, contribuindo de maneira própria a essa querela (Giroux, 2013Giroux, É. (2013). Philosopher sur les concepts de santé: de l’Essai de Georges Canguilhem au débat anglo-américain. Dialogue: Canadian Philosophical Review/Revue canadienne de philosophie, 52(4), 673-693. https://doi.org/10.1017/S0012217314000122.
https://doi.org/10.1017/S001221731400012... ). Como apresenta Gaudenzi (2016)Gaudenzi, P. (2016). Normal e patológico no naturalismo e no normativismo em saúde: a controvérsia entre Boorse e Nordenfelt. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 26(3), 747-767. https://doi.org/10.1590/S0103-73312016000300003.
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201600... , Nordenfelt propõe uma teoria holística e positiva da saúde sob a forma de um normativismo moderado, em que a saúde não pode ser desvinculada da experiência de bem-estar, sendo este relativo à maneira que as capacidades do organismo em dado ambiente de oportunidades são consonantes aos fins vitais que esse mesmo indivíduo, em seus aspectos intencionais, sociais, subjetivos e culturais, estabelece para si. A patologia, sob essa acepção, se define de maneira gradativa, como um distanciamento do organismo em relação às suas potencialidades e oportunidades em um dado ambiente. Para Nordenfelt, “nascemos equipados com pré-condições biológicas e psicológicas para nossas habilidades futuras” (apud Gaudenzi, 2016, p. 760Gaudenzi, P. (2016). Normal e patológico no naturalismo e no normativismo em saúde: a controvérsia entre Boorse e Nordenfelt. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 26(3), 747-767. https://doi.org/10.1590/S0103-73312016000300003.
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201600... ), o que implica uma relação imanente entre os conceitos de normatividade e intencionalidade, assim como uma definição de saúde cujos elementos componentes são a capacidade de agir de um self, seus fins vitais e o seu ambiente (Giroux, 2013Giroux, É. (2013). Philosopher sur les concepts de santé: de l’Essai de Georges Canguilhem au débat anglo-américain. Dialogue: Canadian Philosophical Review/Revue canadienne de philosophie, 52(4), 673-693. https://doi.org/10.1017/S0012217314000122.
https://doi.org/10.1017/S001221731400012... ). Essas semelhanças implícitas entre as concepções de Deacon e Nordenfelt requereriam uma exposição à parte, que foge ao escopo do presente estudo, mas que seriam interessantes ser investigadas em maior profundidade em ocasiões futuras.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
09 Out 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
18 Abr 2021 -
Revisado
18 Dez 2022 -
Aceito
04 Jan 2023