Giorgio Agamben, filósofo conhecido pelos leitores brasileiro por seus trabalhos hercúleos em torno dos conceitos de “estado de exceção” e de “homo sacer” (Agamben, 2002), apresenta em seu novo livro intitulado Coisas que vi, ouvi, aprendi... (Agamben, 2023) sua faceta mais uma vez incisiva, entremeada por um modo de escrita prosaico e poético.
Aos moldes de haicais, em textos breves e cortantes, o autor octogenário italiano esbanja vitalidade, aproximando a filosofia da prosa poética. Neste modo conciso e evanescente em retomar memórias, distribui bilhetes que relembram e ressaltam marcações importantes de sua trajetória de vida.
Nessa obra, de tom testemunhal, Agamben compartilha um esforço de brevidade e síntese, que muito se distancia de nossa maciça overdose de textos e hipertextos, que seguem o ritmo de nossas vidas atropeladas, que deixam de dar importância aos fragmentos e às notas esparsas em detrimento do acúmulo das mensagens nas mídias sociais. É um primeiro indicativo dessa obra: uma busca pela síntese e pela palavra derradeira e testemunha de um fracasso.
O livro de Agamben também pode ser encarado como um bloco de notas compartilhado, em que o filósofo vai da infância à senilidade, das boas perguntas às respostas instigantes, do vazio ao real, dando voltas pelo caminho do amor. Sobre o amor, retomo as palavras do filósofo “o que aprendi com o amor? Que a intimidade é algo como uma substância política, do contrário os homens não agiriam como se partilhá-la fosse o bem mais precioso” (p. 39).
Ao longo das páginas, que são lidas no embalo do espanto e na temporalidade do inefável, as páginas alternam, ora os fragmentos de locais, ora dão passagem aos ditos espirituosos de amigos e autores que o tocaram, pela via das sutilezas.
A surpresa diante de outros livros articula-se com um inventário de encontros marcantes. Às vezes diário íntimo, às vezes apenas fragmentos dos discursos amorosos que atravessaram o filósofo e deixaram marcas, que fazem série e depositam o singular de seu percurso. Entre o lampejo e a luminosidade, o autor compartilha achados de sua própria travessia, não menos riobaldiana (Rosa, 2006).
Destaco alguns ditos iluminados por um espírito incandescente: de Giovanni, Agamben recupera o dilema com a verdade, quase aos moldes do “último copo deleuziano” (Martins, 2014): “A verdade é sempre última, ou penúltima” (p. 12). O filósofo italiano aponta também um delicado trabalho com a linguagem, que nos lembra do esforço de Lacan (1953/1998a) e de seus comentadores diante da entrada no desfiladeiro de uma experiência de subjetivação pela via da linguagem (Milán-Ramos, 2007). Assim, o filósofo destaca que “... a cidade em que vivemos é como uma língua, com seu antiquíssimo centro harmonioso e, ao redor e mais ao longe, os postos de gasolina, os entroncamentos, as horríveis periferias” (p. 17). Sem dúvida é um livro que, em alguma medida, traz um “elogio à linguagem”, sobretudo em sua capacidade de “ser poetado” por essa (p. 31).
A cada pílula poética, condensada e explosiva, tomamos um golpe, pela surpresa que as palavras escolhidas pelo autor nos imprimem, para além da textura do papel que tocamos. Somos convocados a acordar diante de cada relâmpago que Agamben nos indica, sem o prenúncio do dilúvio.
Mas, afinal, o que faz uma resenha sobre este livro nesta revista destinada a debater a psicopatologia fundamental? Ora, não há debate psicopatológico que não reconheça a articulação entre pathos e logos como nos alertou Canguilhem (1966/2009), dentre outros autores (Gaudenzi, 2014). Portanto, é deste “logos” incandescente, que expõe a “desordem na junção mais íntima do sentimento de vida do sujeito” (Lacan, 1955-56/1998b) que nos deparamos neste trabalho de Agamben. É um livro breve e que nos ensina, de forma singular, modos inventivos de saber-fazer com os restos que se depositam em uma vida longeva e criativa.
É um livro que em duas partes, aparentemente contraditórias, marcadas pela diferença de um “não”, abrem um oceano à nossa volta. Nesse intervalo, “na tênue fissura que separa cada coisa de si mesma”, Agamben nos convida a nos interessarmos não mais pela santidade, mas pela auréola (p. 50). Um convite que também compartilho com os leitores desta revista, a partir desta resenha, para sermos mais sabidos como as analfabetas de Ponza (p. 60) ou alargarmos nossas lembranças até “quando não éramos humanos” (p. 64). Sustentemos, com Agamben, a empreitada que cada sujeito “empreende com o seu não dito e com o seu não vivido, o limite incerto entre o que pôde escrever e o que podia apenas calar” (p. 74). Boa leitura!
Referências
- Agamben, G. (2002). Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua UFMG.
- Agamben, G. (2023). Coisas que vi, ouvi, aprendi.. Âyiné.
- Canguilhem, G. (2009). O normal e o patológico Forense Universitária. (Trabalho original publicado em 1966).
- Gaudenzi P. (2014). A tensão naturalismo/normativismo no campo da definição da doença. Rev latinoam psicopatol fundam [Internet], 17(4) 911-24.
- Lacan, J. (1998a). Função e campo da fala e da linguagem. In Escritos, Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1953).
- Lacan, J. (1998b). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In Escritos Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1955-56).
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Martins, A. (2023). B de Beber (do Abecedário de Gilles Deleuze). Trágica: Estudos de Filosofia da Imanência, 16(1), 167-170. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/tragica/article/download/58085/31774
» https://revistas.ufrj.br/index.php/tragica/article/download/58085/31774 - Milán-Ramos, J. G. (2007). Passar pelo escrito: uma introdução ao trabalho teórico de Jacques Lacan Mercado de letras.
- Rosa, J. G. (2006). Grande sertão: veredas Nova Fronteira.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
27 Nov 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
25 Ago 2023 -
Aceito
28 Set 2023