Open-access "Eu queria aprender a ser docente": sobre a formação de mestres nos programas de pós-graduação do campo da Alimentação e Nutrição no Brasil1

"I'd like to learn to be a teacher": On the training of masters in graduate programs in the field of Food and Nutrition in Brazil

Resumos

Objetivo:  O presente estudo tem como objetivo problematizar o campo científico da Alimentação e Nutrição, a partir do olhar de egressos de cursos de mestrado no Brasil, colocando em exame aspectos relativos às relações sociais nas quais está mergulhada a formação para o ensino. Norteia o estudo o conceito de campo científico de Pierre Bourdieu, para quem a produção do conhecimento não se dá de maneira pura ou neutra, e os consensos ocorrem em função de interesses em circulação na sociedade. Métodos: Participaram da pesquisa 177 mestres, formados em programas de pós-graduação inseridos na área de avaliação Nutrição, na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. O grupo respondeu a perguntas abertas e fechadas, em questionários enviados pela internet.

Resultados:  A grande maioria era composta por nutricionistas do sexo feminino, que ingressaram no mestrado com idade média de 28 anos e aproximadamente quatro anos e meio de conclusão da graduação. A docência destacouse dentre as expectativas ao ingressar no mestrado. Conforme aproximadamente metade dos entrevistados, suas expectativas foram plenamente alcançadas ou até mesmo superadas, tanto em razão de seu aprimoramento científico quanto da boa qualificação do corpo docente. Em contraposição, o pouco tempo, as pressões para a conclusão do mestrado e a insuficiência no preparo para a docência foram críticas presentes.

Conclusão:  A conformação de novas regras no jogo científico - de modelo produtivista -, impõe que se reconheça a existência de problemas sérios nos cursos de pós-graduação stricto sensu, com repercussão sobre a formação de docentes e, por conseguinte, de nutricionistas. Nesse processo, a avaliação da produção científica por meio de métricas de mercado está no rol dos modelos a serem profundamente questionados.

Ciências da Nutrição; Conhecimento; Educação de pós-graduação


Objective:  To assess the scientific field of Food and Nutrition from the viewpoint of master students in Brazil, putting in question aspects of social relations in which it is steeped training for teaching this academic field. The concept of scientific field by Pierre Bourdieu guides the study, for whom knowledge production does not occur in a pure or neutral manner, and consensus occur due to outstanding interests in society.

Methods:  A total of 177 masters by the assessment area of nutrition in the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior answered open and closed questions in questionnaires sent over the Internet.

Results:  The vast majority were dieticians, women who entered the masters' program at age 28 on average, about four and a half years after graduation. Teaching was highlighted on expectations when entering the master's course, which has been fully met or exceeded for half of these teachers, this being attributed to the scientific improvement and good qualifications of faculty in the programs. In contrast, the short time, pressures for completion of the master's course and failure to prepare for teaching were criticized.

Conclusion:  The new rules in the scientific game, under the aegis of the requirements of productivist model, impose the recognition of significant problems within academic-oriented (stricto sensu) graduate courses, impacting the education. In this process evaluation of scientific productivity through market metrics is one of the models to be deeply questioned.

Nutritional Science; Knowledge; Education, graduate


INTRODUÇÃO

O campo científico da Alimentação e Nutrição, reconhecidamente interdisciplinar e complexo1, tem sua materialidade expressa em programas de pós-graduação, grupos e linhas de pesquisa2, cursos de formação profissional diversos, largamente espalhados, tanto na Biomedicina como nas Ciências Agrárias ou ainda nas Humanidades. Enfim, onde há ciência, de algum modo, parece haver cientistas lidando com temáticas afins aos nutrientes, aos alimentos e à comida3. Este estudo aborda o campo científico da Alimentação e Nutrição, a partir do olhar de egressos de cursos de mestrado no Brasil, inseridos na área de avaliação denominada Nutrição na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Norteia o trabalho o conceito de campo científico de Pierre Bourdieu4, para quem a produção do conhecimento não se dá de maneira pura ou neutra, e os consensos ocorrem em função de interesses em circulação na sociedade. O autor concebe campo como um universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciência, e campo científico como "um espaço de luta pelo monopólio da competência científica que é socialmente reconhecida a um agente determinado, ou seja, a capacidade técnica e o poder social de falar e intervir legitimamente em matéria de ciência" (p.131)5. Em outra obra, Bourdieu afirma que o campo científico "é (...) dotado de uma estrutura e também um espaço de conflitos pela manutenção ou transformação desse campo de forças" (p.52)6. É nas relações sociais entre os diferentes agentes que se engendram o campo, as relações de força que o caracterizam e o próprio espaço que os condiciona6. Na luta de forças pela competência científica, os pesquisadores precisam de capital científico - uma espécie particular do capital simbólico baseado em atos de conhecimento e reconhecimento pelos próprios pares do campo científico -, que proporciona autoridade para (re)definir as leis segundo as quais serão distribuídos os lucros no jogo e as leis que estabelecem se é ou não importante estudar e escrever sobre determinado tema4 , 7. No campo científico estão em jogo a dominância e o poder. Docentes, discentes, coordenadores de Programas de Pós-Graduação (PPG), gestores de agências de fomento à pesquisa e formação de pesquisadores, egressos dos cursos de mestrado e doutorado, entre outros, são agentes vivenciando um habitus, atores sociais a reproduzir ou transformar o campo e a sociedade, ao mesmo tempo que por eles são reproduzidos ou transformados8.

Busca-se, aqui, colocar em exame alguns aspectos relativos às relações sociais nas quais está mergulhada a formação para o ensino no campo científico da Alimentação e Nutrição. Esse esforço justifica-se pela inexistência de informações acerca de suas expectativas ao ingressar na Pós-Graduação (PG) e de seu olhar sobre a formação havida nesses espaços, o que corresponde a elemento importante quando se busca compreender a formação de agentes sociais e suas disposições no mundo da ciência.

MÉTODOS

No início de 2014, registrava-se a existência de 25 programas de pós-graduação stricto sensu no Brasil, reconhecidos pela Capes na Área de Avaliação denominada Nutrição, sendo 22 cursos de mestrado acadêmico, 3 de mestrado profissional e 11 doutorados. O primeiro curso de mestrado em Nutrição foi criado em 1971 e, ao final de duas décadas, havia apenas 2 cursos; a partir dos anos 2000 observa-se intenso crescimento no número desses programas, tendência que se mantém até os dias atuais9. A forte possibilidade de as informações para contato com os mestres e doutores formados há mais de 10 anos estarem muito defasadas e o período de forte crescimento no número de PPG situado a partir da virada do milênio nessa Área de Avaliação foram decisivos para a opção pela abordagem aos egressos desses programas que defenderam suas dissertações e teses entre 2000 e 2010.

Durante o "IX Encontro do Fórum Nacional de Coordenadores de Programas de Pós-Graduação em Alimentação e Nutrição", realizado em Búzios (RJ), de 9 a 11 de novembro de 2011, os coordenadores dos PPG tomaram conhecimento da realização do estudo. Naquele momento, havia 18 programas recomendados pela Capes nessa área de avaliação; 5 correspondiam a cursos novos que ainda não contavam com egressos e os demais titularam 1 252 mestres e doutores entre 2000 e 2010; destes, 10 programas disponibilizaram listagens com dados para contato com os concluintes e enviaram termo de compromisso da instituição com a realização do estudo.

Assim, 643 egressos compuseram o ponto de partida para o trabalho de campo deste estudo.

Com o número de egressos na casa das centenas e dispersos em vários estados do País, foram enviados questionários semiestruturados via Internet10,11, no período compreendido entre junho e novembro de 2012, utilizando-se a ferramenta Google Docs.

Deixaram de ser encaminhados questioná- rios a oito desses egressos, sendo (a) seis por inexistência de informações relativas a telefone, endereço eletrônico e curriculum Lattes na plataforma do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); (b) um por falecimento; e (c) um por negativa de consentimento para participação na pesquisa durante o contato por telefone.

Dos 635 questionários encaminhados, 90 retornaram por desatualização do endereço eletrônico. Como apenas um doutor respondeu ao questionário, considerou-se a parte de suas informações correspondentes ao mestrado, ficando o estudo circunscrito a 177 mestres respondentes. Atingiu-se o índice de 32,5% de adesão ao estudo entre os 545 egressos que receberam os questionários. São valores superiores aos que constam em estudos de abrangência nacional com egressos oriundos de 13 PPG stricto sensu em Educação Física de 2001 a 200610, e de 29 PPG em Saúde Coletiva entre 1998 e 200711, os quais fizeram uso de procedimentos similares para o trabalho de campo.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob Parecer n° 102/2011.

RESULTADOS

A grande maioria dos mestres que responderam ao questionário eram nutricionistas (88%) do sexo feminino (88%). Ingressaram no mestrado aos 28 anos, em média, aproximadamente quatro anos e meio após a conclusão da graduação. Levaram cerca de dois anos para defender a dissertação, publicada por 63% dos egressos, principalmente, na forma de artigo científico. A docência destacou-se entre as expectativas ao ingressar no mestrado. A inserção nas atividades de ensino passou de 28% para 57%, desde o ingresso no mestrado até 2012.

Cerca de metade dos egressos (55%) declarou que suas expectativas em relação ao curso foram plenamente alcançadas ou mesmo superadas ao final do mestrado, sendo tal avaliação atribuída ao aprimoramento científico e à boa qualificação do corpo docente dos programas; para 39% as expectativas foram atingidas parcialmente e para 3% não foram alcançadas. A insuficiência no preparo para docência, a escassez de tempo e as pressões para a conclusão do mestrado foram críticas presentes.

A principal motivação declarada para a busca pelo mestrado correspondeu à perspectiva de seguir ou aprimorar a carreira docente (71%), o que carrega, em larga margem, o sentido de "dar aulas", a exemplo do que viram seus "professores" fazendo durante a graduação. Cerca da metade declarou seu interesse específico pela pesquisa. Apenas 15% mencionaram ampliação do senso crítico como elemento mobilizador para a qualificação como mestre.

Quanto ao mercado de trabalho, registra-se aumento importante na inserção desses egressos em instituições públicas, a contar do início no mestrado até o levantamento dos dados deste estudo. Entre os que não trabalhavam nesse segundo momento, 75% cursavam o doutorado. Houve também elevação na parcela dos egressos desenvolvendo atividades de ensino, com destaque para a graduação (que passou de 18% para 38%) e para as atividades de pesquisa e gestão acadêmica (de 8% para 19%).

Questionados sobre mudanças na vida profissional atribuídas ao mestrado, os egressos mencionaram maior autoconfiança, reconhecimento pelos pares e ascensão salarial. Registre-se, com ênfase, que apenas 7% mencionaram a ampliação do senso crítico após a passagem pelo mestrado.

DISCUSSÃO

O contexto produtivista na pós-graduação

Da educação básica à pós-graduação, as concepções e práticas educacionais construídas nas últimas décadas dos anos 1900 definiram a primeira década do século 21 no Brasil. Frigotto12 considera que as reformas neoliberais mais recentes vêm orientando e induzindo a um processo de redução do ser humano a mero consumidor ou produtor de mercadorias, o que, no âmbito das políticas educacionais, poderia ser traduzido como uma espécie de "pedagogia de resultados". As agências governamentais de fomento à pesquisa e formação de pesquisadores equiparam-se com instrumentos de "avaliação dos produtos", enfatizando processos de avaliação de resultados conhecidos como "produtivismo"7 , 13 - 15. Nesse contexto, as concepções de educação centradas na pedagogia histórico-crítica ficam hegemonicamente subjugadas pela concepção mercadológica: um cenário próprio da alienação na vida do trabalho16, ou seja, da não valorização da reflexão na formação acadêmica.

A produção de conhecimento como mercadoria espalha-se e penetra no cotidiano universitário, incorporado como valor no processo formativo. Entre os mestres respondentes a este estudo houve menções relativas à publicação e correspondentes medidas de produtividade quando, por exemplo, sugeriram que "a elaboração da dissertação, já na forma de artigos científicos, deveria ter sido mais explorada e incentivada" (E25). Essa regra do jogo aparece bem aceita nas palavras de um egresso que, quando indagado sobre suas expectativas em relação ao mestrado, disse que queria "fazer um bom estudo, que fosse publicado, me rendesse prestígio" (E176).

Como em Bourdieu4, pode-se dizer que esses agentes colocam-se, hoje, já com disposição para jogar o jogo como indivíduos em competição num mundo da acumulação flexível de capital material e simbólico, onde não há lugar para todos, só para os considerados mais competentes, ou seja, para aqueles que passam pelo metro que mede o tempo fugaz da mercadoria e de sua realização. É a movimentação no sentido de construir distinção social atravessando as práticas científicas de modo cristalino.

Também os limites e as amarguras da concorrência, pesada e cada vez mais aguda que marca esse modelo, apareceram quando um dos egressos afirmou que sua "maior frustração com a área acadêmica é a dificuldade com a publicação de artigos" (E146). A ênfase no incremento de determinado tipo de publicação rápida e de consumo breve - característico e próprio da vida na Biomedicina -, é percebida pelos que disseram que os PPG "têm como principal objetivo a formação de pesquisadores com capacidade produtiva para o ‘mercado' da publicação de artigos científicos" (E13). Para estes, ainda que sendo muito bom o enfoque na formação para a pesquisa, "alguns aspectos do preparo do pós-graduando para a carreira docente são deficientes" (E87), uma vez que "o modelo produtivista dos programas de pós-graduação inibe a sua função de formar mestres, quando o empenho se dá na formação de ‘fazedores de artigos'" (E170).

Ao olhar para a qualificação do profissional medida pela sua produtividade, Luz13 vê os pesquisadores tornando-se gladiadores hodiernos, considerada a disputa "até a morte" travada entre eles pelos subsídios anunciados nos editais, sempre insuficientes face à crescente demanda. O relato de um dos egressos, professor substituto em uma universidade pública, informou sobre as disputas e preocupações com a pesquisa, inerentes ao modelo produtivista: "Ganhava um salário vergonhoso, não tinha vínculo empregatício e era usado pelos professores concursados dessas unidades para trabalhar para eles, enquanto eles desenvolviam suas pesquisas para crescerem na carreira acadêmica" (E20).

O "calcanhar de Aquiles", para quem atua no campo científico das Humanidades, por exemplo, corresponde ao fato de que as investigações passam a ser avaliadas por meio da produtividade e dos referenciais das Ciências da Natureza, como os da Biomedicina, o mesmo instrumento que mede a produção de uma mercadoria. Marilena Chauí argumenta que isso incide sobre a produção intelectual: "Para participar desse mercado efêmero, a literatura, por exemplo, abandona o romance pelo conto, os intelectuais abandonam o livro pelo paper" (p.11)17. Na mesma linha de pensamento, Frigotto considera que:

Tomando por foco a nossa produção acadêmica, constata-se que cada vez menos produzimos livros que sejam fruto de longos anos de pesquisa e, em seu lugar, produzimos artigos, papers. Já não há tempo para a formação de jovens pesquisadores e docentes ancorados na leitura dos clássicos. O tempo de nossa produção de pesquisadores, das teses e dissertações que se elaboram, não está mais referido à cientificidade que nos permita compreender como a realidade educacional se produz e à sua relevância social, política, cultural e humana. Ao contrário, aprisionamo-nos ao cronômetro da "pedagogia dos resultados" e deslizamos na intoxicação e fugacidade mercantil de informações. Produzimos, enfim, pouco conhecimento (p.251)12.

Os desdobramentos problemáticos dessa visão de ciência são perceptíveis em múltiplas situações. O ingresso nos curso de mestrado e doutorado é cada vez mais difícil, meticuloso e rigoroso. Da mesma forma, a permanência no corpo docente dos programas de pós-graduação implica em mais e mais trabalho e em metas cada vez mais elevadas. É lugar-comum no cotidiano acadêmico frases como "O sarrafo precisa subir!" ou "É óbvio que precisamos produzir e publicar mais". Recorrendo ainda a Frigotto12, percebe-se que o fundamental para muitas instituições acadêmicas e PPG "é atingir o máximo de pontos da escala de 1 a 7, mesmo sabendo que a lógica dos indicadores se funda na visão positivista e funcionalista de conhecimento e que há um efeito trava ou gangorra para que apenas uns fiquem no topo" (p.251).

A decepção com o meio acadêmico e com as relações entre pesquisadores foi identificada neste estudo. Um dos egressos afirmou que agora quer "passar ao longe da [instituição] (...), já que pretendia servir à sociedade e não competir por títulos e verbas para pesquisas" (E21). Enquanto uns saem do jogo, outros criam estratégias para nele capitalizar cada vez mais e ganhar posições de destaque em seu interior, por exemplo, travando alianças com agentes sociais de capital cientí- fico institucional reconhecido: "Minha dissertação originou dois artigos publicados graças à influência do grupo de pesquisa, não tanto pelo impacto científico em si" (E102).

Duarte18 considera que a preocupação excessiva com o tempo é um dos fatores de um ambiente acadêmico muito pouco valorizador do exercício da crítica teórica. Evidencia-se isso quando egressos relatam que "a grade dos cursos prevê tempo muito reduzido para extrapolar conteúdos e discussões..." (E15) e que a "carga de atividades é incompatível com o tempo em que a conclusão ‘precisa' acontecer. Resumindo: carga para 48 meses a ser cumprida em 24 meses..." (E170).

Para Bourdieu6, a dificuldade de iniciação em uma prática científica advém do fato de ser necessário um duplo esforço para dominar o saber teoricamente, de tal forma que esse saber seja realmente utilizado sobre as práticas em análise. Para uma pesquisa bem realizada, a reflexão teórica bem embasada é essencial, mas comumente ela é negligenciada em favor da celeridade na coleta de dados e do cumprimento do cronograma, o que se expressa nas palavras de um entrevistado: "creio que minha dedicação ao estudo e, portanto, meus conhecimentos, poderia ser maior se eu tivesse mais tempo para estudar antes de iniciar o projeto de pesquisa" (E160).

Retomando e destacando o registro de que apenas 15% informaram a expansão do senso crítico como motivação para o ingresso nessa etapa da formação e que somente 7% mencionaram sua ampliação após a passagem pelo mestrado, considera-se que esse tipo de resposta indica a gravidade do quadro em que se insere a formação educacional brasileira, desde o ensino básico até a universidade, incluído os cursos de mestrado e de doutorado. Não seria, justamente, uma das propostas da pós-graduação stricto sensu a de constituir-se em espaço de valorização do pensamento humano? Como ser pesquisador e professor - aquele que tem por atividade essencial pensar a vida -, sem senso crítico bem desenvolvido? Ou seria a pós-graduação vista apenas como lugar da qualificação tecnológica para a produção de mercadorias, sejam elas as atividades de ensino, sejam elas as de pesquisa?

O (des)preparo para docência

Consoante esse contexto, para muitos egressos, o mestrado "não amplia no aluno de pós-graduação conhecimentos na área docente" (E6), e os cursos "perderam um pouco a preocupação na formação de profissionais voltados para o ensino" (E13). Os respondentes se referiram, principalmente, à falta ou insuficiência de formação pedagógica, sendo esta "muito pouco explorada no mestrado, no que diz respeito a preparar os mestrandos para uma sala de aula" (E1). A "falta de temas relacionados à educação, métodos pedagógicos e a discussão de alternativas para a melhora da qualidade da formação em nutrição" (E112) esteve presente, assim como relatos de abordagem "ministrada de maneira insatisfatória" (E19) ou "genérica" (E170).

Também houve críticas em relação ao Estágio Docente entre os entrevistados do campo da Nutrição, como alegações de que os PPG não tinham um plano para tais atividades, ficando "a cargo de cada aluno buscar professores e disciplinas onde pudesse realizá-lo" (E25), e de que nesse lugar o "'fazer' foi satisfatório, mas não foi permeado pelo ‘saber fazer'" (E170).

Como resultante dessa formação, naquilo que concerne ao ensino, encontra-se a fragilidade no exercício da docência. É o que se percebe no depoimento que segue: "Por isso, quando ingressei na carreira docente, foi difícil lidar com questões inerentes ao cotidiano acadêmico. De certo modo, até hoje sinto essa deficiência" (E170).

O estudo de Mendes et al. 19 também identificou insuficiências na capacitação pedagógica entre egressos de um curso de mestrado da área médica. A ausência de disciplinas voltadas para educação, ensino, pedagogia ou didática foi citada como ponto negativo e, na opinião de alguns entrevistados, tais preocupações deveriam ser incorporadas à grade curricular no mestrado. Moreira & Tojal10 estudaram experiências no desenvolvimento de habilidades para docência no ensino superior entre egressos dos PPG stricto sensu em Educação Física do Brasil, identificando os seguintes aspectos como problemáticos: (a) as experiências sempre estiveram voltadas à pesquisa, (b) não havia disciplinas que explorassem o ensino; e (c) as experiências foram poucas para área de atuação e resumiam-se à disciplina de "Docência" ou "Metodologia do Ensino Superior", ou ainda, ao "Estágio Docente" como tarefa principalmente dos bolsistas, como se apenas a eles fosse colocada a obrigação de cumprir tal atividade. Essas experiências de docência, segundo os autores, são muito importantes para a constituição do "ser professor" e precisam ser valorizadas pelos PPG stricto sensu como um momento de vivenciar situações similares às que o futuro mestre irá encontrar, permitindo discussões e reflexões sobre seu fazer profissional.

É considerável o aumento da atividade de ensino em graduação entre os egressos dos cursos de mestrado, apesar de a maior fragilidade apontada ter sido a insuficiência no preparo para docência: "a carreira docente se sobressaiu em relação à de pesquisadora, embora não tenha sido preparada para ela durante o mestrado" (E167).

Ao analisar a formação pedagógica de professores de cursos de graduação em Nutrição, Costa20 identificou tendência a ver com ceticismo ou descaso os aspectos pedagógicos da docência universitária. Argumenta, ainda, que a desvalorização do ensino nas universidades está prejudicando a qualidade da ação docente. Ainda que as Diretrizes Curriculares Nacionais referentes à formação de profissionais de Nutrição preconizem novas abordagens, o "aprender a aprender", no sentido presente em Morin21, exige qualificação prévia eminentemente reflexiva e crítica dos professores.

Quando não há adequada qualificação para a docência, ficam abertas as portas para que a prática do professor fique restrita à reprodução de modelos apreendidos anteriormente ou à repetição de sua experiência cotidiana. Enfim, um habitus que compreende uma formação incidental, não reflexiva e naturalizada, que escapa a críticas e termina por reproduzir práticas correntes já há muito tempo criticadas.

Há que se considerar no cenário nacional a existência de uma demanda crescente por corpo docente de graduação, principalmente pelas instituições privadas. Segundo o "Anuário Digital dos Cursos de Graduação em Saúde"22, em 1995 havia 42 cursos de graduação em Nutrição no País; já em 2008, esse número passou para 293, crescimento que se deu principalmente no âmbito das instituições privadas. A taxa de crescimento das instituições públicas que oferecem o curso de graduação em Nutrição foi de 112% no período, enquanto a das instituições privadas foi de 1.312%. Dos cursos que ofereciam a formação em Nutrição em 2008 no País, 82% eram privados. Enquanto nas instituições públicas ocorreu um decréscimo de quase 10% na oferta de vagas, nas instituições privadas a taxa de crescimento foi de 832%. No ano de 2011, segundo o último censo da educação superior realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira23, havia no País um total de 378 257 funções docentes registradas; dessas 60% encontravam-se em instituições privadas de ensino superior.

No setor privado, o perfil do docente corresponde àquele que possui título de mestre e está submetido a regime de trabalho horista, podendo ser desligado a qualquer momento da empresa. Em contraposição, nas instituições pú- blicas, o docente, em geral, é doutor, trabalha em tempo integral e conta com a estabilidade do cargo público. A tendência atual é de absorção dos mestres pelo setor privado para atuação como professor em turmas de graduação, e não necessariamente de doutores, que também se dedicarão à produção de conhecimento, à formação de pesquisadores e às atividades extensionistas na universidade.

Batomé & Kubo24 sustentam que a responsabilidade social dos programas de mestrado e doutorado é desenvolver capacidade nas pessoas para produzir conhecimento e torná-lo acessível à sociedade. Nesse sentido, a publicação de trabalhos científicos é um caminho tão importante quanto a preparação de pessoas para lidar com o conhecimento e seu uso na sociedade. A responsabilidade própria dos cursos de graduação é preparar pessoas com capacidade para transformar o conhecimento científico em condutas profissionais e pessoais junto à sociedade, relativamente a seus problemas e necessidades.

Portanto, docentes de graduação, na maioria egressos dos PPG stricto sensu, devem ser preparados para a produção de aprendizagens de nível superior, usualmente denominadas "ensino". Esse processo vai desde a identificação de necessidades de aprendizagem até a avaliação da aprendizagem realizada pelos alunos em relação às aptidões desenvolvidas, passando pelo planejamento das condições para sua realização. Ser profissionalmente capaz de produzir aprendizagem de nível superior é uma exigência que demanda senso crítico, exercício reflexivo, formação específica e qualificada, não podendo ser atendida por meio de intuição ou improviso.

Cabe registrar que consta nas propostas do "VI Plano Nacional de Pós-Graduação 2010-2020"25 o estímulo à expansão dos mestrados profissionais, concomitante a uma certa estagnação dos mestrados acadêmicos, levando à passagem direta da graduação para o doutorado. Bertero26 argumenta que o resultado corresponderá a classes de doutorandos ainda mais jovens que os atuais, sem experiência profissional além do estágio durante a graduação e, ainda, sem formação para a docência.

CONCLUSÃO

Nesta primeira aproximação ao perfil de mestres dos PPG da área de Nutrição, agentes sociais que fazem parte do campo científico da Alimentação e Nutrição, registra-se um contexto de conformação de novas regras no jogo científico. Este assume um caráter mercadológico, com investimento para a formação tecnológica ágil para pesquisa, porém insuficiente quanto ao preparo pedagógico, à atividade docente e ao exercício da crítica teórica. A formação veloz de pesquisadores cada vez mais novos, acompanhada da intensificação na publicação de artigos, configura-se como um novo habitus que vem se instaurando com força nas universidades. Jovens demonstram propensão a participar do jogo, com disposição para acumular capital e construir distinção no mundo da concorrência científica, reproduzindo assim as regras em vigor.

As palavras dos mestres egressos dos PPGs em tela - apontando insuficiência na formação para a docência e relatando as agruras das exigências produtivistas -, também expressam a necessidade de se reconhecer a existência de problemas graves nos cursos de mestrado e doutorado, com repercussões sobre a formação graduada. É imperioso aprofundar e investir nos debates, com fundamento em leituras de estudiosos desses problemas, para que seja possível identificar e desnaturalizar políticas e modelos que vêm conduzindo à desvalorização da docência, do mestre, do professor. Nesse processo, certamente, a avaliação da produtividade científica por meio de métricas de mercado está no rol dos modelos a serem profundamente questionados.

Para finalizar, fica um último registro que expressa o sonho de ser professor. Em parte, corresponde a um lamento depois da experiência frustrada. Em parte também exprime um alerta em face de importante problema a ser enfrentado: "Eu queria aprender a ser docente" (E79).

AGRADECIMENTOS

Ao "Fórum Nacional de Coordenadores de Programas de Pós-Graduação em Alimentação e Nutrição" e aos coordenadores dos cursos pelo apoio e cooperação na realização do estudo; à Profa. Dra. Rossana Proença, à Profa. Dra. Ligia Amparo dos Santos e ao Prof. Dr. Francisco de Assis Guedes de Vasconcelos pelas valiosas contribuições no desenho e desenvolvimento do estudo; e à Raiane Penha da Silva, aluna de graduação em Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, por ter voluntariamente auxiliado no trabalho de campo.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    08 Maio 2014
  • Revisado
    20 Ago 2014
  • Aceito
    08 Set 2014
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