Resumos
OBJETIVO: Descrever a construção de um Questionário de Frequência Alimentar (QFA) para utilização em estudos que visem à obtenção de dados sobre o consumo alimentar de adultos de Cuiabá, MT. MÉTODOS: Um inquérito recordatório de 24 horas (R24h) foi aplicado em uma subamostra de 104 indivíduos, de ambos os sexos, selecionados aleatoriamente a partir de uma amostra probabilística de estudo de base populacional. Considerando-se frequência de citação e contribuição para o consumo de energia e nutrientes dos alimentos citados nos R24h foram selecionados 81 itens alimentares e as respectivas porções de referência, que foram aquelas mais frequentemente relatadas nos R24h. A lista do QFA foi gerada com oito categorias de resposta para a frequência de consumo. RESULTADOS: Os itens alimentares citados por mais de 50% da amostra foram o açúcar, café, feijão, arroz, carne, pão e refrigerante, sendo que os quatro últimos também foram os que mais contribuíram para o consumo energético. Não se observaram diferenças entre homens e mulheres nos alimentos que mais contribuíram para a ingestão de macro e micronutrientes. CONCLUSÃO: O QFA foi desenvolvido com a inclusão dos itens alimentares de maior relevância para a dieta da população adulta de Cuiabá, Mato Grosso. Comprovadas sua validade e reprodutibilidade, este instrumento será útil em investigações epidemiológicas e clínicas sobre o possível papel da dieta no desenvolvimento de enfermidades nessa população.
Questionários; Consumo alimentar; Adulto
OBJECTIVE: To describe the design of a Food Frequency Questionnaire (FFQ) to be used in studies on food intake of adults from Cuiabá, Mato Grosso State, Brazil. METHODS: A 24-hour dietary recall (24hR) was applied to a sub-sample of 104 men and women, randomly selected from a random population-based study sample. Based on the frequency of report and on the contribution to the intake of energy and nutrients in the 24hR, 81 food items and respective reference servings were selected to comprise the FFQ food list. Reference portions were defined based on the most reported portion sizes in the 24-hour dietary recalls. The FFQ list was associated to eight options of intake frequency. RESULTS: Sugar, coffee, beans, rice, beef, bread, and soda were cited by at least 50% of the interviewed group and the latter four foods were the ones that most contributed to energy intake. There were no differences among men and women related to the foods that provided most macro and micronutrients. CONCLUSION: The FFQ included the most relevant food items involved in the food habits of the adult population from Cuiabá, Mato Grosso. Once the validity and reproducibility of this tool are proven, it will be useful in epidemiologic and clinical investigations on the role of diet on disease development in the target population.
Questionnaires; Food intake; Adult
ARTIGO ESPECIAL
Desenvolvimento de Questionário de Frequência Alimentar para adultos em amostra de base populacional de Cuiabá, Região Centro-Oeste do Brasil
Márcia Gonçalves FerreiraI, II, III; Neuciani Ferreira da SilvaII; Francianny Danyella SchmidtI; Regina Maria Veras Gonçalves da SilvaI, II, III; Rosely SichieriIV; Lenir Vaz GuimarãesII; Rosângela Alves PereiraV
IDepartamento de Alimentos e Nutrição da Universidade Federal de Mato Grosso-UFMT
IIPrograma de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso- UFMT
IIIPrograma de pós-Graduação em Biociências da Universidade Federal de Mato Grosso- UFMT
IVDepartamento de epidemiologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro -UERJ
VDepartamento de Nutrição Social e Aplicada do Instituto de Nutrição Josué de Castro da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ
Correspondência Correspondência: Márcia Gonçalves Ferreira Avenida Marechal Deodoro, nv 829, ap. 1202, Bairro Araés Cuiabá, MT CEP 78005-50 E-mail: margon@terra.com.br
RESUMO
OBJETIVO: Descrever a construção de um Questionário de Frequência Alimentar (QFA) para utilização em estudos que visem à obtenção de dados sobre o consumo alimentar de adultos de Cuiabá, MT.
MÉTODOS: Um inquérito recordatório de 24 horas (R24h) foi aplicado em uma subamostra de 104 indivíduos, de ambos os sexos, selecionados aleatoriamente a partir de uma amostra probabilística de estudo de base populacional. Considerando-se frequência de citação e contribuição para o consumo de energia e nutrientes dos alimentos citados nos R24h foram selecionados 81 itens alimentares e as respectivas porções de referência, que foram aquelas mais frequentemente relatadas nos R24h. A lista do QFA foi gerada com oito categorias de resposta para a frequência de consumo.
RESULTADOS: Os itens alimentares citados por mais de 50% da amostra foram o açúcar, café, feijão, arroz, carne, pão e refrigerante, sendo que os quatro últimos também foram os que mais contribuíram para o consumo energético. Não se observaram diferenças entre homens e mulheres nos alimentos que mais contribuíram para a ingestão de macro e micronutrientes.
CONCLUSÃO: O QFA foi desenvolvido com a inclusão dos itens alimentares de maior relevância para a dieta da população adulta de Cuiabá, Mato Grosso. Comprovadas sua validade e reprodutibilidade, este instrumento será útil em investigações epidemiológicas e clínicas sobre o possível papel da dieta no desenvolvimento de enfermidades nessa população.
Palavras-chave: Questionários. Consumo alimentar. Adulto.
Introdução
Diante do quadro epidemiológico atual do Brasil, o estudo do consumo alimentar, apesar de desafiante, é de extrema necessidade para elucidar associações entre dieta e doenças. Nesse sentido, o desenvolvimento de instrumentos específicos de avaliação da dieta nas diferentes regiões brasileiras, associado a outros indicadores do estado nutricional contribuem para o monitoramento das tendências dietéticas e a definição de políticas públicas no setor saúde.
Um dos métodos mais utilizados para mensurar o consumo alimentar em estudos epidemiológicos é o Questionário de Frequência Alimentar (QFA). Este instrumento constitui-se de uma lista de alimentos mais frequentemente consumidos ou que formam o padrão alimentar de determinada população, em que se registra a frequência habitual de consumo em um período predeterminado, podendo ainda incluir especificações de uma porção média consumida1,2.
O QFA tem como vantagens o baixo custo, a rápida aplicação, além de ser objetivo e adaptável à população alvo, o que viabiliza sua utilização em estudos populacionais. Além disso, é considerado o método mais prático e informativo de avaliação da ingestão alimentar1,3,4.
Por outro lado, o QFA apresenta limitações, tais como a dependência da memória dos entrevistados sobre hábitos do passado, a menor acurácia na quantificação da ingestão alimentar por utilizar medidas padronizadas, e a perda de detalhes do consumo alimentar, como consequência de uma listagem preestabelecida1,4. Além desses fatores, aspectos como idade, grau de escolaridade e origem étnica podem interferir na validade das informações coletadas pelo QFA5.
Estas limitações podem ser minimizadas por meio da construção de questionários para aplicação em grupos específicos, o que possibilita menor susceptibilidade aos erros de interpretação e, consequentemente, a obtenção de informações mais válidas e precisas6,7.
Tendo em vista a importância e a necessidade de métodos adequados de avaliação do consumo alimentar, o objetivo do presente estudo foi desenvolver um QFA com base em uma amostra probabilística, para utilização em estudos que visem a obtenção de dados sobre consumo alimentar de adultos de Cuiabá, Mato Grosso. A realização deste estudo representa um grande avanço na área da epidemiologia nutricional local, tendo em vista que a construção de um QFA nessa região é um fato inédito.
Métodos
População de estudo
A construção do QFA foi realizada com base na aplicação prévia de inquéritos recordatórios de 24 horas. Uma subamostra de 104 indivíduos foi selecionada aleatoriamente a partir de uma amostra probabilística examinada em estudo de base populacional desenvolvido em adultos residentes na zona urbana do município de Cuiabá, MT8. Segundo Willett1, uma amostra de 100 indivíduos é considerada suficiente para desenvolver instrumentos que produzam resultados aceitáveis em estudos de validade de QFA.
Os recordatórios de 24 horas (R24h) foram aplicados em residentes de dois bairros sorteados de classe de renda médio-baixa e médio-alta, selecionados por sorteio a partir de duas listas que consideraram a classificação de bairros segundo a renda dos responsáveis pelos domicílios, conforme publicação do Instituto de Planejamento e Desenvolvimento Urbano da Prefeitura de Cuiabá9. Foram excluídos bairros com predominância de moradores de muito baixa renda por implicar em menor disponibilidade financeira para a compra de alimentos, o que limitaria a variedade no consumo alimentar, interferindo na seleção dos itens do QFA.
Procedeu-se ao sorteio dos domicílios participantes após mapeamento das ruas pertencentes aos bairros. De cada domicílio, selecionou-se apenas um indivíduo com idade entre 20 e 50 anos para compor a amostra, buscando-se desse modo evitar a interdependência de informações entre os entrevistados. Não foram elegíveis para este estudo indivíduos acamados, inválidos, gestantes, lactantes e portadores de doenças que exigissem modificações dos hábitos alimentares. Todos os indivíduos sorteados responderam ao R24h, não havendo registro de recusas.
Coleta de dados
A coleta dos dados foi realizada em março de 2007 por meio de entrevistas domiciliares. Utilizou-se o inquérito recordatório de 24 horas para levantar as informações sobre o consumo alimentar e um formulário padronizado para registrar as informações socioeconômicas e antropométricas, sendo estas últimas auto-referidas. As entrevistas foram realizadas por uma dupla de estudantes da 4ª ano do Curso de Nutrição da Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT, devidamente treinada.
Na aplicação do inquérito recordatório de 24 horas, observou-se o equilíbrio de entrevistas nos dias da semana, de maneira que todos eles fossem representados, inclusive dias atípicos de consumo como os finais de semana. Como referência para a definição das porções foram utilizados os próprios utensílios de uso dos participantes, uma vez que as entrevistas foram realizadas no domicílio dos mesmos, o que favoreceu tal procedimento. Para alimentos industrializados, buscou-se registrar as marcas, o tipo do produto e a capacidade da embalagem, visando-se obter maior precisão das porções consumidas.
Durante as entrevistas, os indivíduos foram solicitados a informar todos os alimentos consumidos e bebidas ingeridas nas últimas 24 horas, bem como suas respectivas quantidades e tamanho das porções, em medidas caseiras. Para melhorar a acurácia das informações foram tomados os seguintes cuidados:
A partir de uma lista prévia de alimentos e preparações, disponível no manual de campo, os entrevistadores checavam a possibilidade de omissão de itens comumente não mencionados em estudos dessa natureza1;
Especificação de todos os ingredientes das preparações, assim como as quantidades consumidas;
Detalhamento do horário e local em que o alimento foi consumido;
Revisão detalhada de todos os itens para garantir que nenhum alimento fosse omitido.
Desenvolvimento do QFA
A aplicação dos inquéritos R24h gerou uma lista com 289 itens alimentares. Para a construção do QFA foram selecionados aqueles itens mais frequentemente referidos pela amostra avaliada10, considerados neste estudo os que apresentaram no mínimo 15% de citação, seja como item isolado ou como parte de alguma preparação, ou ainda considerado em conjunto com outros alimentos de composição nutricional similar.
Também foram incluídos na lista do QFA certos alimentos que, apesar de apresentarem um percentual de citação abaixo do ponto de corte estabelecido, poderiam ter a capacidade de discriminar o consumo alimentar ou apontar tendências de modificação de hábitos alimentares, como os alimentos sazonais, industrializados e preparações regionais10. Posteriormente, alguns alimentos foram agrupados, considerando-se a similaridade nutricional.
Adicionalmente, foi analisada a contribuição percentual de cada item alimentar para a ingestão de energia e 13 nutrientes: glicídio, proteína, lipídios, gordura saturada e insaturada, colesterol, fibra, ferro, cálcio, folato, tiamina, vitamina C e vitamina B6. Para isso foi empregado o método de Block et al.11, em que se calcula a razão entre a quantidade de nutriente de cada alimento e o total do nutriente fornecido por todos os alimentos, multiplicado por 100. Foram elaboradas as listas de alimentos que contribuíram com 90% da ingestão de energia e nutrientes, sendo estes considerados os de maior relevância na dieta da população estudada.
A definição das opções de frequência baseou-se nas utilizadas em QFA desenvolvido para adultos12 e adolescentes13, ambos os estudos realizados na cidade do Rio de Janeiro.
As porções de referência foram definidas com base, principalmente, nas porções alimentares mais frequentemente relatadas nos inquéritos recordatórios de 24 horas. Para alguns alimentos adotou-se o porcionamento convencional, como foi o caso, por exemplo, do pão francês e do ovo (unidade).
A composição centesimal de cada item alimentar foi definida com base na composição nutricional apresentada no programa Nutwin14, sendo acrescentadas as composições centesimais de itens alimentares que não faziam parte do programa original. A composição de preparações adicionadas foi baseada na elaboração de fichas técnicas, utilizando-se como referência a informação nutricional dos alimentos existentes na tabela do software. Quando detectados valores ausentes para algum micronutriente, buscou-se a complementação das informações nutricionais consultando-se, prioritariamente, a Tabela Brasileira de Composição de Alimentos15.
Classificação econômica, do estado nutricional e da contribuição dos macronutrientes para o consumo de energia
A classificação econômica dos participantes do estudo considerou os critérios da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa16, a qual se baseia na acumulação de bens materiais, no poder aquisitivo e na escolaridade do chefe da família, enquadrando as famílias em cinco níveis socioeconômicos, de A (mais elevada) a E (mais baixa).
O estado nutricional foi classificado com base no Índice de Massa Corporal (IMC = peso/estatura2), segundo os pontos de corte preconizados pela Organização Mundial da Saúde17.
A avaliação da contribuição dos macronutrientes para o consumo de energia foi baseada nas recomendações do Ministério da Saúde18.
Aspectos éticos
Os participantes da pesquisa foram esclarecidos sobre os propósitos do estudo e deram seu consentimento por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme preconiza a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. O projeto de pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de ética do Hospital Universitário Júlio Muller (Processo nº 234/CEP-HUJM/05). Essa pesquisa não incluiu nenhum procedimento invasivo que oferecesse riscos aos participantes.
Resultados
Dos 104 indivíduos entrevistados, 53 (51,0 %) eram do sexo feminino. A idade média da população de estudo foi de 34 anos (desvio-padrão = 9,1 anos).
A Tabela 1 descreve a distribuição da população de estudo com relação às variáveis socioeconômicas e demográficas. Houve maior predominância de indivíduos na faixa etária de 20 a 39 anos (37,5%). Com relação à escolaridade, 46,2% dos participantes tinham completado o ensino médio e 20,2% nunca haviam estudado ou não completaram o ensino fundamental. No que se refere à situação econômica, 51,0% dos entrevistados pertenciam à classe B.
Observou-se prevalência de 40,4% de excesso de peso na amostra estudada (IMC > 25 kg/m2), dos quais 30,8% apresentavam sobrepeso e 9,6% obesidade. O peso normal IMC > 18,5 e < 25,0 kg/m2) foi constatado em 54,8% do grupo investigado e apenas 4,8% apresentavam baixo peso (IMC < 18,5 kg/m2).
Os alimentos citados por no mínimo 15% da população estudada estão listados na Tabela 2, com destaque para o arroz, carne, feijão, refrigerante, açúcar, café e pão, que foram consumidos por mais de 50% da amostra. Destaca-se o elevado consumo de alimentos ricos em proteínas, principalmente a carne bovina (63,5%), o feijão (68,3%), o frango (34,6%) e o leite (34,6%). Entre as hortaliças, destacaram-se a alface (45,2% ) e o tomate (44,2%).
Outros alimentos foram menos citados, tais como: ovo (9,7%), biscoitos (9,7%), enlatados (9,7%), achocolatado (13,5%), bombons (13,5%), iogurte (10,6%), sorvete/picolé (7,7%), bebidas alcoólicas (8,7%), doces de frutas e à base de leite (13,5%), pizzas/massas (4,8%), lanches com hambúrguer (5,8%).
A lista do QFA foi gerada com a inclusão de 81 itens alimentares, organizados por grupos de alimentos, com oito possíveis categorias de resposta para frequência de consumo: mais de 3 vezes por dia, 2 a 3 vezes por dia, 1 vez por dia, 5 a 6 vezes por semana, 2 a 4 vezes por semana, 1 vez por semana, 1 a 3 vezes por mês e nunca ou quase nunca.
Nas Tabelas 3 e 4 estão descritos os principais alimentos que contribuíram para a ingestão de energia e nutrientes, para a população total e por sexo. Para a população total, os itens alimentares de maior contribuição para o consumo energético foram as carnes (22,2%), arroz (9,9%), pão (9,9%), massas (5,1%) e refrigerantes (5,0%). Para os homens, todos esses alimentos, com exceção das massas foram importantes para o consumo total de energia. O mesmo foi verificado entre as mulheres. No entanto, entre os homens, os salgados (5,7%) foram importantes para o consumo de energia e para as mulheres destacou-se a contribuição dos biscoitos/bolos (6,9%).
O grupo de açúcar/doces esteve entre os que mais contribuíram para o consumo de carboidrato entre os homens. Para o consumo total de proteína, o grupo dos laticínios só foi importante entre as mulheres, com contribuição de 5,0%. Os salgados (7,8%) contribuíram de forma significativa para a ingestão de lipídio entre os homens, enquanto que entre as mulheres destacou-se, entre outros, o consumo de chocolate (4,7%).
O feijão foi o alimento que mais contribuiu para o consumo de fibras e folato, tanto para a amostra total quanto entre os sexos. Chama a atenção o fato de que o suco de fruta contribuiu com 90,3% da ingestão de vitamina C entre as mulheres, enquanto que entre os homens, tanto a ingestão de suco de fruta (28,5%), quanto de frutas (19,5%) e hortaliças (16,6%) foi importante para o consumo desse nutriente.
O QFA desenvolvido oferece até três opções de porções consumidas para 63 itens alimentares. Para os demais itens, considerou-se apenas a frequência alimentar por se tratarem de temperos ou alimentos e preparações com composição nutricional semelhante a outros itens já citados na lista com o devido porcionamento. A Tabela 5 apresenta a descrição das porções de referência (em gramas e medidas caseiras) dos itens alimentares mais citados pela população.
A avaliação da distribuição percentual da energia proveniente dos macronutrientes da dieta mostrou elevado consumo de proteínas (19,0 %), limítrofe para os lipídios (30,0 %) e ligeiramente reduzido para os carboidratos (51,0 %).
Discussão
No presente estudo, para gerar a lista de alimentos do QFA adotou-se como estratégia a aplicação prévia de um recordatório de 24 horas, dada a inexistência de informações sobre os alimentos mais consumidos pela população adulta do município de Cuiabá. Isso porque os estudos que avaliaram a ingestão alimentar dos indivíduos neste município foram realizados com grupos restritos da população, como adolescentes gestantes19 e funcionários de um hospital universitário20.
Entre os alimentos que mais contribuíram para o consumo energético estão a carne, o arroz e o pão. Estudos brasileiros23,31 mostraram que esses mesmos alimentos contribuem de forma importante para o consumo energético de populações de outras regiões do país. No entanto, nota-se que, para a população alvo deste estudo, a carne foi a que mais contribuiu para o consumo energético, sendo a proporção de contribuição o dobro daquela observada no estudo realizado em São Paulo31, e mais do que cinco vezes a contribuição desse alimento para o consumo energético de mulheres da Paraíba23. Destaca-se que o refrigerante aparece na lista de Cuiabá, com uma contribuição razoável para o consumo energético, em ambos os sexos.
Verificou-se, na população de Cuiabá, a manutenção de alimentos tradicionais na dieta, como o arroz e o feijão, o que pode ser considerado positivo, uma vez que a tendência de evolução do consumo alimentar no Brasil tem mostrado que esses alimentos vêm perdendo importância32. Por outro lado, também foi evidente a presença de características negativas dos hábitos alimentares, como o elevado consumo de carboidratos simples e refrigerantes e o baixo consumo de frutas e verduras, que apontam situações de risco e similaridades com os padrões alimentares atuais da população brasileira32.
A adoção de hábitos alimentares não saudáveis reflete-se diretamente no estado nutricional da população, além de representar risco para inúmeras doenças crônico-degenerativas. Os dados coletados neste estudo sobre o estado nutricional apontaram elevada prevalência de excesso de peso. Segundo informações da Pesquisa de Orçamentos Familiares - POF 2002-2003 - realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)32, Cuiabá foi apontada como a capital brasileira com maior prevalência de sobrepeso entre os homens (54,8%), ultrapassando a média da população brasileira masculina que é de 41,1%. Segundo dados do Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico - VIGITEL33, Cuiabá foi a terceira capital com maior proporção de homens com sobrepeso (51,4%) e a sexta colocada com relação às mulheres nessas condições (38,5%).
O Ministério da Saúde recomenda que 55% a 75% das calorias totais da dieta sejam provenientes de carboidratos, entre 10% e 15% de proteínas e entre 15% e 30% dos lipídios18. Observou-se que, entre os adultos de Cuiabá, a contribuição das proteínas para o valor energético total da dieta foi ligeiramente maior que o recomendado. Isso se deve, principalmente, ao elevado consumo de carne bovina, apontada neste estudo como o segundo alimento mais ingerido pela população. Um fator positivo foi a adequada participação dos lipídios, já que alguns estudos brasileiros têm apontado um consumo excessivo de gorduras, principalmente as saturadas32,34.
As estratégias utilizadas neste estudo para gerar a lista de alimentos do QFA são consideradas as mais apropriadas por permitir a obtenção de uma lista não restrita de alimentos, possibilitando o desenvolvimento de um instrumento com maior capacidade de medir a verdadeira ingestão alimentar do grupo em questão27. Outras vantagens de utilização do recordatório de 24 horas incluem a rápida aplicação, o baixo custo, a alta aceitação e a não exigência de habilidades especiais do respondente10,28,29. Após a comparação da lista gerada a partir da frequência de citação com as obtidas a partir da contribuição percentual dos alimentos para energia e nutrientes, verificou-se que a primeira contemplava todos os itens alimentares de maior relevância para a dieta da população.
Para completar a lista do QFA proposto, foram acrescentados alimentos considerados de interesse para retratar o consumo alimentar da população de estudo. Por exemplo, foram incluídos itens sujeitos à sazonalidade (frutas, folhosos e legumes), alimentos industrializados que podem ter efeito sobre a saúde (achocolatado, biscoitos, vegetais e carnes enlatadas, iogurte, maionese e bebidas alcoólicas, entre outros) e preparações ou alimentos regionais (guaraná em pó, peixe, carne com arroz, banana da terra frita etc.). Essas inclusões tornaram a lista mais abrangente e minimizaram a possibilidade de omissão de algum alimento importante para a população alvo. Nutricionistas atuantes nos serviços públicos e privados do município foram consultados sobre a lista do QFA e confirmaram que os principais alimentos que fazem parte dos hábitos alimentares da população de Cuiabá foram contemplados no instrumento.
A quantidade de itens alimentares integrados ao QFA em questão está de acordo com a sugestão de Fisberg et al.4, segundo as quais listas pequenas (com menos de 50 itens) podem subestimar o consumo de alimentos, e listas muito extensas (com mais que 100 itens) favorecem a fadiga do participante e a superestimação do consumo alimentar. Alguns autores ainda advertem que listas muito extensas não aumentam a validade do QFA se comparadas às listas mais reduzidas. Além disso, os questionários extensos tendem a apresentar maior índice de não-resposta, elevando o custo e o tempo dos estudos1,28,30.
Optou-se por questões fechadas para o relato da frequência de consumo. É consenso que questões fechadas são mais indicadas, pois reduzem o tempo de codificação e erros de transcrição, além de evitarem a perda de questionários por respostas incompletas ou incoerentes26. No presente estudo foram definidas oito categorias de frequência de consumo, de fácil compreensão e organizadas de forma contínua e decrescente, conforme recomenda Willett1. Salienta-se que todos os itens apresentaram as mesmas opções de frequência. As opções de frequência em QFA devem variar entre cinco e dez categorias, uma vez que os questionários que apresentam menos de cinco opções de frequência podem resultar em sérias perdas de informações, enquanto o excesso de categorias pode gerar confusão. O importante é que tenham a capacidade de discriminar alimentos que são consumidos com maior frequência e aqueles que são consumidos raramente1,10.
Para o QFA proposto, optou-se pela inclusão de porções padronizadas para a descrição das quantidades. A inclusão de porções padronizadas em QFA é um assunto polêmico, pois alguns autores consideram que a coleta desta informação não contribui significativamente para a validade do instrumento, argumentando que, na determinação da validade do instrumento, a quantificação do tamanho da porção pode ser menos importante do que a frequência de consumo1,25. Apesar das controvérsias, um estudo de revisão constatou que 42% dos questionários avaliados especificaram o tamanho da porção, 22% não apresentaram essa informação e, nos 36% restantes, o questionário previa que o entrevistado descrevesse o tamanho da porção usualmente consumida26.
Alguns questionários desenvolvidos no Brasil apresentam a porção mediana ou média de consumo como referência21-23. Tendo em vista que o tamanho das porções de referência em questionários de frequência alimentar deve estar adequado à população de estudo para evitar a sub ou superestimação dos resultados7,10, considerou-se conveniente integrar ao QFA as porções mais citadas no inquérito recordatório de 24 horas ou porções convencionais para alimentos como pão e ovo (unidade).
Uma limitação deste estudo pode ter sido a aplicação de apenas um R24h para gerar a lista do QFA. Uma única aplicação pode ser insuficiente para capturar as informações da dieta habitual dos participantes21. Buscou-se minimizar a limitação deste método por meio de duas estratégias: a representatividade de todos os dias da semana para captar as diferenças na ingestão dietética22; e a inclusão no QFA de alimentos pouco citados. É fundamental que a lista do QFA seja constituída não apenas por itens alimentares consumidos razoavelmente por proporção considerável da população de estudo, mas cujo consumo seja variável entre os indivíduos, o que possibilita melhor discriminação do consumo alimentar1,10,23,24.
A falta de uma tabela de composição de alimentos nacional completa é um fator limitante na condução de estudos relativos ao consumo alimentar. Os programas computadorizados disponíveis no Brasil utilizam, em sua maioria, compilações de tabelas estrangeiras para compor o banco de dados. O emprego de tabelas desenvolvidas em outros países apresenta restrições, uma vez que a composição química dos alimentos pode variar significativamente, e a forma de cocção e/ou preparo usado nem sempre é compatível com os hábitos alimentares do nosso meio. Além disso, muitos alimentos típicos da nossa população não são contemplados nessas tabelas35.
Dada a importância da dieta na etiologia de diversas enfermidades e condições, o desenvolvimento de ferramentas adequadas que permitam a avaliação da ingestão alimentar de maneira mais fidedigna tem merecido destaque. A metodologia de construção do QFA aqui descrita poderá servir de base para o desenvolvimento de instrumentos de avaliação da dieta em outros contextos e para outros grupos da população.
Considerações finais
A elaboração deste questionário levou em consideração os hábitos e práticas alimentares da população alvo. Ressalta-se que após a demonstração da validade e reprodutibilidade do questionário por meio de técnicas apropriadas, esse instrumento poderá ser útil na realização de estudos que identifiquem os alimentos e seus respectivos gradientes de consumo que possam representar proteção ou risco para o estado nutricional e de saúde geral da população adulta de Cuiabá-MT. Esse passo é fundamental para garantir maior qualidade nas informações coletadas sobre o consumo alimentar dessa população.
Recebido em: 20/08/09
Versão final reapresentada em: 10/06/10
Aprovado em: 21/06/10
Auxílio financeiro: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq - Processo nv 402102-2005/3)
Referências bibliográficas
- 1. Willett W. Nutritional Epidemiology New York: Oxford University Press; 1998.
- 2. Vasconcelos FAG. Tendências históricas dos estudos dietéticos. História, Ciências, Saúde 2007; 14 (1): 197-219.
- 3. Slater B, Philippi ST, Marchioni DML, Fisberg RM. Validação de Questionários de Frequência Alimentar - QFA: considerações metodológicas. Rev Bras Epidemiol 2003; 6(3): 200-8.
- 4. Fisberg RM, Martini LA, Slater B. Métodos de inquéritos alimentares. In: Fisberg RM, Slater B, Marchioni DML, Martini LA. Inquéritos Alimentares: métodos e bases científicos São Paulo: Manole; 2005. p. 1-31.
- 5. Kristal AR, Feng Z, Coates RJ, Oberman A, George V. Associations of race/ethnicity, education, and dietary intervention with the validity and reliability of a food frequency questionnaire. Am J Epidemiol 1997; 146(10): 856-69.
- 6. Sales RL, Silva MMS, Costa NMB, Euclydes MP, Eckhardt VF, Rodrigues CMA, et al. Desenvolvimento de um inquérito para avaliação da ingestão alimentar de grupos populacionais. Rev Nutr 2006; 19(5): 539-52.
- 7. Colucci ACA, Philippi ST, Slater B. Desenvolvimento de um questionário de frequência alimentar para avaliação do consumo alimentar de crianças de 2 a 5 anos de idade. Rev Bras Epidemiol 2004; 7(4): 393-401.
- 8. Barbosa LS, Scala LCN, Ferreira MG. Associação entre marcadores antropométricos de adiposidade corporal e hipertensão arterial na população adulta de Cuiabá, Mato Grosso. Rev Bras Epidemiol 2009; 12(2): 237-47.
- 9 Cuiabá. Prefeitura Municipal de Cuiabá. Perfil socioeconômico dos bairros de Cuiabá. Ano 2007 IPDU - Instituto de Planejamento e Desenvolvimento Urbano: Cuiabá; 2007.
- 10. Pereira RA, Sichieri R. Métodos de avaliação do consumo alimentar. In: Kac G, Sichieri R, Gigante DP. Epidemiologia Nutricional Rio de Janeiro: Fiocruz/Atheneu; 2007. p. 181-200.
- 11. Block G, Dresser CM, Hartman AM, Carroll MD. Nutrient sources in the American diet: quantitative data from the NHANES II survey. I. Vitamins and minerals. Am J Epidemiol 1985; 122 (1): 13-26.
- 12. Sichieri R, Everhart JE. Validity of a Brazilian food frequency questionnaire against dietary recalls and estimated energy intake. Nutr Res 1998; 18(10): 1649-59.
- 13. Araújo MC, Ferreira DM, Pereira RA. Reprodutibilidade de questionário semiquantitativo de frequência alimentar elaborado para adolescentes da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saúde Pública 2008; 24(12): 2775-86.
- 14. Programa de apoio à Nutrição - NutWin [software]. Departamento de Informática em Saúde. Universidade Federal de São Paulo; 2005.
- 15 NEPA - Núcleo de Estudos e Pesquisa em Alimentação. Tabela brasileira de composição de alimentos. Campinas: NEPA-UNICAMP; 2006.
- 16 ABEP - Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa. Critério de Classificação Econômica Brasil São Paulo; 2003. Disponível em http://www.anep.org.br/codigosguia/cceb [Acessado em 10 de dezembro de 2007]
- 17. WHO (World Health Organization), 1998. Obesity: preventing and managing the global epidemic. Geneva: WHO; 1998. (WHO Technical Report Series, 894).
- 18 Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Guia alimentar para a população brasileira: promovendo a alimentação saudável. Brasília: Ministério da Saúde; 2006. p. 210.
- 19. Camargo RMS, Veiga GV. Ingestão e hábitos alimentares de adolescentes gestantes. Folha Med 2000; 119: 37-46.
- 20. Lemos-Santos, MGF, Gonçalves-Silva RMV, Botelho C. Tabagismo, composição corporal, distribuição da adiposidade e ingestão alimentar de fumantes, não fumantes e ex-fumantes. Folha Med 2000; 119: 23-31.
- 21. Ribeiro AB, Cardoso MA. Construção de um questionário de frequência alimentar como subsídio para programas de prevenção de doenças crônicas não transmissíveis. Rev Nutr 2002; 15(2): 239-45.
- 22. Furlan-Viebig R, Pastor-Valero M. Desenvolvimento de um questionário de frequência alimentar para o estudo da dieta e doenças não transmissíveis. Rev Saúde Pública 2004; 38(4): 581-4.
- 23. Lima FEL, Fisberg RM, Slater B. Desenvolvimento de um questionário quantitativo de frequência alimentar (QQFA) para um estudo caso-controle de dieta e câncer de mama em João Pessoa - PB. Rev Bras Epidemiol 2003; 6(4): 373-9.
- 24. Cardoso MA. Desenvolvimento, validação e aplicações de questionários de frequência alimentar em estudos epidemiológicos. In: Kac G, Sichieri R, Gigante DP. Epidemiologia Nutricional Rio de Janeiro: Fiocruz/Atheneu; 2007. p. 201-12.
- 25. Molag ML, Vries JHM, Ocké MC, Dagnelie PC, Brandt PAVD, Jansen MCJF et al. Design characteristics of food frequency questionnaires in relation to their validity. Am J Epidemiol 2007; 166(12): 1468-78.
- 26. Cade J, Thompson R, Burley V, Warm D. Development, validation and utilization of food-frequency questionnaires - a review. Public Health Nutr 2002; 5(4): 567-87.
- 27. Block G, Hartman AM, Dresser CM, Carroll MD, Gannon J, Gardner L. A data-based approach to diet questionnaire design and testing. Am J Epidemiol 1986; 124(3): 453-69.
- 28. Thompson FE, Byers T. Dietary assessment resource manual. J Nutr 1994; 124: S2245-317.
- 29. Martin-Moreno JM, Gorgojo L. Valoración de la ingesta dietética a nível poblacional mediante cuestionarios individuales: sombras y luces metodológicas. Rev Esp Salud Pública 2007; 81(5): 507-18.
- 30. Burley V, Cade J. Consensus document on the development, validation and utilization of a food frequency questionnaire. The Fourth International Conference on Dietary Assessment Methods. Tucson, Arizona (USA); 2000.
- 31. Fisberg RM, Colucci ACA, Mariomoto JM, Marchioni DML. Food frequency questionnaire for adults from a population-based study. Rev Saúde Pública 2008; 42(3): 1-4.
- 32 IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de orçamentos familiares, 2002-2003: análise da disponibilidade domiciliar de alimentos e estado nutricional no Brasil. Rio de Janeiro; 2004.
- 33 Ministério da Saúde. Estimativas sobre frequência e distribuição sócio-demográfica de fatores de risco e proteção para doenças crônicas nas capitais de 26 estados brasileiros e no Distrito Federal em 2007. Brasília: Ministério da Saúde; 2008. p. 138.
- 34. Monteiro CA, Mondini L, Costa RBL. Mudanças na composição da dieta familiar nas áreas metropolitanas do Brasil (1988-1996). Rev Saúde Pública 2000; 34(3): 251-8.
- 35. Cuppari L, Anção MS. Métodos de inquéritos alimentares. In: Fisberg RM, Slater B, Marchioni DML, Martini LA. Inquéritos Alimentares: métodos e bases científicos São Paulo: Manole; 2005. p. 71-82.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Set 2010 -
Data do Fascículo
Set 2010
Histórico
-
Recebido
20 Ago 2009 -
Aceito
21 Jun 2010 -
Revisado
10 Jun 2010