RESUMO:
Introdução: As leishmanioses representam uma importante carga de doença nos países tropicais, apresentando índices significativos de morbimortalidade nos locais onde ocorrem, incluindo o Brasil. Nesse contexto, a participação popular nas ações profiláticas pode ser determinante para o êxito das estratégias de controle.
Objetivo: Por isso, o presente estudo teve o objetivo de investigar o conhecimento da população sobre as leishmanioses e a ocorrência de fatores de risco peridomiciliares associados à população no município de Formiga, Minas Gerais.
Métodos: Foi realizado um inquérito domiciliar com uma amostra de 427 indivíduos entre maio e julho de 2011.
Resultados: Apenas 7,5% dos moradores mostraram conhecimento sobre as leishmanioses, sendo principalmente as mulheres (OR = 3,15; IC95% 1,30 - 7,65). A prevalência de riscos peridomiciliares foi de 95%. Associação estatisticamente significativa foi encontrada entre maior escolaridade e menos fatores de risco peridomiciliares (OR = 0,45; IC95% 0,28 - 0,72) e entre o local de residência e maior número desses fatores de risco (OR = 1,84; IC95% 1,19 - 2,85).
Conclusão: Os resultados demonstram que há baixo nível de conhecimento sobre as leishmanioses por parte da população. Além disso, a maioria dos respondentes está sujeita a algum fator de risco peridomiciliar, fato que pode contribuir para a manutenção do ciclo da doença no município.
Palavras-chave: Leishmaniose; Conhecimento; População em risco; Fatores de risco; Prevenção de doenças; Promoção da saúde
ABSTRACT:
Introduction: Leishmaniasis represents an important burden of diseases in tropical countries, with significant levels of morbidity and mortality where they occur, including in Brazil. In this context, popular participation in prophylactic actions can be decisive for the success of the control strategies.
Objective: For this reason, this study aimed at investigating the population's knowledge concerning leishmaniasis and the occurrence of peridomiciliary risk factors associated with the population of Formiga, Minas Gerais.
Methods: A household questionnaire with a sample of 427 individuals was conducted between May and July 2011.
Results: Only 7.5% of the residents presented knowledge regarding leishmaniasis, most of them being women (OR = 3.15; 95%CI 1.30 - 7.65). The prevalence of peridomiciliary risks was 95%. A statistically significant association was found between higher education levels and less peridomiciliary risk factors (OR = 0.45; 95%CI 0.28 - 0.72) and between the place of residence and a higher number of risk factors (OR = 0.84; 95%CI 1.19 - 2.85).
Conclusion: The results demonstrate that the population has low levels of knowledge about leishmaniasis. Moreover, the majority of respondents are subject to some peridomiciliary risk factor, which may contribute to the maintenance of the disease cycle in the city.
Keywords: Leishmaniasis; Knowledge; Population at risk; Risk factors; Disease prevention; Health promotion
INTRODUÇÃO
As leishmanioses são um complexo de doenças causadas por protozoários do gênero Leishmania Ross 1903 e transmitidas por flebotomíneos (Diptera, Psychodidae: Phlebotominae). São doenças espectrais que podem se manifestar como úlceras, caso da leishmaniose tegumentar (LT), ou de maneira sistêmica e de alta letalidade, como a leishmaniose visceral (LV). Em seu padrão de transmissão zoonótico, possuem diversos tipos de hospedeiros silvestres (raposa, gambá, roedores) e domésticos (cão, gato), além do homem1.
A complexidade do diagnóstico, do tratamento e do controle, aliada ao fato de serem enfermidades associadas à pobreza, faz das leishmanioses um grupo de doenças negligenciadas que ocupam o segundo lugar em mortalidade e o quarto em morbidade dentre as doenças tropicais2,3. Mundialmente, estima-se que ocorram entre 200 e 400 mil casos por ano da forma visceral e entre 700 mil e 1,2 milhão de casos da forma cutânea4. Para o Brasil, estima-se que sejam reportados 30 mil novos casos de LT anualmente, com uma taxa de incidência de 18,5 casos por 100 mil habitantes5, enquanto para a LV, entre 2001 e 2010, foram registrados 33.473 novos casos, com uma taxa média de letalidade de 6,5%6,7,8.
No Brasil, as leishmanioses vêm modificando seus padrões de transmissão e adquirindo um caráter urbano, periurbano e reemergente nos últimos anos. Os novos padrões epidemiológicos de transmissão conjugam inúmeros fatores (coexistência de diferentes espécies de vetores, reservatórios e agentes etiológicos, além das ações humanas modificadoras do ambiente) que tornam o planejamento de ações efetivas de controle da doença um desafio às políticas públicas de saúde no país9,10. Por isso, principalmente no caso da LV, além de combater o vetor, tratar os casos humanos e eliminar o reservatório doméstico, as políticas de controle incorporaram também estratégias focadas no manejo ambiental e na conscientização da população11.
Esse último aspecto, quando trabalhado dentro das estratégias de controle, pode contribuir para um programa de controle bem-sucedido em que há espaço para a aceitação e a participação popular nas ações profiláticas propostas12,13,14. Estudos mostram que a conscientização popular quanto ao problema mórbido é capaz de se reverter em participação efetiva nas ações sanitárias aplicadas em uma comunidade15. Por isso, no caso das leishmanioses, compreender o conhecimento, as atitudes e as práticas da população em relação à doença pode contribuir para a formulação de ações preventivas/curativas realmente eficazes e duradouras16.
Porém, estudos sobre o conhecimento da população quanto às leishmanioses são escassos na literatura científica14,17,18,19,20,21,22,23. Alguns trabalhos demonstram que as populações acometidas pelas leishmanioses desconhecem importantes conceitos sobre a doença, com relação à transmissão, ao tratamento e à prevenção17,18,19,20,21. Apesar disso, a educação em saúde ainda não recebe os incentivos necessários para mobilizar ações preventivas no Brasil, sejam elas individuais ou coletivas24. Dada a importância desse fator para o êxito dos programas de controle, faz-se necessário tomar conhecimento sobre os saberes da comunidade afetada em relação às leishmanioses, fato que pode contribuir para a melhoria da qualidade de vida e da saúde da população.
Para o município de Formiga, Minas Gerais, devido à inexistência de um programa oficial de prevenção e controle da LV, o conhecimento popular se tornou peça fundamental para a formulação de um planejamento adequado à realidade local. Até o momento, não haviam ações voltadas para a LV, ficando tais práticas restritas aos informativos oficiais do Ministério da Saúde disponíveis em algumas unidades básicas de saúde. A cidade apresenta poucos casos humanos de LV - 2 em 2011 e 1 em 2012 -, mas com elevada letalidade - 50% em 2011. Contudo, os mecanismos de transmissão da doença no local ainda permanecem desconhecidos, assim como o conhecimento da população afetada sobre as leishmanioses. Por isso, o presente estudo teve como objetivo investigar o conhecimento sobre a LV e a ocorrência de fatores de risco peridomiciliares associados à população do município de Formiga, Minas Gerais, Brasil.
SUJEITOS E MÉTODOS
DELINEAMENTO E POPULAÇÃO DE ESTUDO
Foi realizado um inquérito domiciliar entre maio e julho de 2011 com uma amostra probabilística do tipo estratificada proporcional segundo o sexo e a idade no município de Formiga, Minas Gerais. A informação utilizada para estimar o tamanho de cada estrato amostral foi o Censo Demográfico 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Partiu-se do pressuposto de que a ocorrência de casos da doença seria capaz de influenciar o conhecimento da população sobre a enfermidade. Assim, foram escolhidos quatro bairros no município para comparação, a saber: Novo Horizonte, Centro, Nossa Senhora de Lourdes e Lajinha. Os dois primeiros foram selecionados por concentrarem o maior número de casos humanos e/ou caninos de leishmaniose; os dois últimos, o menor número de casos da doença, segundo informações da Secretaria Municipal de Saúde. A amostra mínima foi calculada de modo que o erro máximo de estimativa fosse de ± 5%, com 95% de confiança, gerando uma amostra de 398 pessoas. A esse número foram acrescentados 10%, para lidar com eventuais perdas.
Os questionários foram aplicados nos domicílios por entrevistadores treinados. Utilizou-se o instrumento formulado e validado por Margonari et al. em 2012 21. Os critérios de inclusão no estudo foram: ter mais de 15 anos e ser residente em um dos bairros supracitados. Esses critérios se baseiam no fato de que os conhecimentos, as ações e os hábitos de vida de um contexto familiar sofrem influência cíclica e multivetorial, interferindo no estado de saúde de cada membro25. A família, enquanto unidade de cuidado, é influenciada pelo meio cultural e pelas condições socioeconômicas nas quais se encontra. Dessa forma, o indivíduo entrevistado, ainda que jovem (15 anos) no momento da entrevista, é capaz de funcionar como um proxy das condições e percepções da unidade familiar, bem como de influenciar mudanças de comportamento.
CONHECIMENTO SOBRE AS LEISHMANIOSES
As leishmanioses apresentam ciclo epidemiológico complexo em que diversos fatores se conjugam para determinar a transmissão da doença. Por isso, a estimativa do conhecimento que um indivíduo possui sobre a enfermidade deve ser multidimensional26. Dessa forma, foi construído o indicador "Conhecimento das leishmanioses", obtido por meio da combinação de quatro perguntas do questionário. A pergunta "Você sabe como ela é transmitida?" teve como opções de resposta a) flebotomíneo, b) cão doente, c) não sabe e d) outros, sendo considerada como resposta adequada apenas a primeira opção. A pergunta "Você sabe qual animal pode pegar leishmaniose?" apresentou as opções: a) cão, b) gato, c) rato, d) galinha, e) não sabe e f) outros, tendo sido consideradas corretas as opções a, b e/ou c. A questão "Você sabe como prevenir a doença" apresentou as opções a) limpar o terreno, b) sacrificar cães doentes, c) uso de repelentes, d) evitar água empoçada, e) evitar o doente com leishmaniose, f) não sabe e g) outros, sendo consideradas corretas as opções a, b e/ou c. Por fim, a pergunta "Qual atitude você tomaria diante de um ser humano suspeito de leishmaniose?" apresentou as opções: a) levaria para um hospital, b) procuraria um agente da prefeitura, c) nada, d) não sabe e e) outro, sendo consideradas corretas as opções a e b. Os indivíduos foram classificados em dois grupos, considerando-se que apenas os que responderam corretamente a todas as perguntas tinham conhecimento sobre as leishmanioses.
FATORES DE RISCO PERIDOMICILIARES
A literatura científica relata inúmeros fatores ambientais e peridomiciliares que podem influenciar a ocorrência dos vetores e reservatórios e, consequentemente, dos casos da doença: presença e tipo de vegetação, altitude, plantações e monoculturas (café, banana), cursos d'água, presença de cão doméstico, dentre outros27,28,29,30,31.
Neste estudo foram considerados os seguintes fatores de risco peridomiciliares: posse de animal doméstico; presença de insetos hematófagos; presença de roedores; presença de lote baldio, curso d'água e área verde próximo à residência; coleta de lixo regular; presença de quintal com plantação e limpeza regular do local. As opções de resposta eram do tipo sim ou não. Posteriormente foi construído o indicador dicotômico "Fator de risco peridomiciliar", com base nos valores da média e da mediana dos fatores de risco (= 3). Assim, os domicílios foram classificados em "0" (≤ 3 fatores) e "1" (mais de 4 fatores).
As variáveis independentes corresponderam às características socioeconômicas e demográficas da população obtidas no questionário. As covariáveis utilizadas foram sexo, idade (15 a 39 anos e ≥ 40 anos), escolaridade (nenhum a primário, ensino médio, ensino superior), renda familiar em salários mínimos (< 1; entre 1 e 2,99; entre 3 e 4,99; > 5), número de moradores por domicílio (≤ 4 moradores e ≥5 moradores) e região de moradia (Novo Horizonte/Centro e Nossa Senhora de Lourdes/Lajinha).
ANÁLISE DOS DADOS
Os dados foram analisados por meio de estatísticas descritivas com estimativas de médias, frequências e percentuais. Primeiramente, a população foi descrita quanto às suas características socioeconômicas e demográficas e com relação ao conhecimento de alguns aspectos relativos ao ciclo epidemiológico das leishmanioses. Posteriormente, os indivíduos foram comparados de forma a verificar diferenças em relação ao conhecimento das leishmanioses e à presença de fatores de risco peridomiciliares de acordo com suas características socioeconômicas e demográficas. Na análise bruta foram calculados as razões de chance e os respectivos valores de intervalo de confiança de 95% (IC95%) para cada variável independente. Na sequência, o modelo foi ajustado para todas essas variáveis. Utilizou-se o pacote estatístico SPSS 13.0 para Windows (IBM Corporation, USA).
ASPECTOS ÉTICOS
A adesão ao estudo foi voluntária e a aplicação do questionário ocorreu mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Fundação Educacional de Divinópolis sob o nº 10/2011.
RESULTADOS
Foram entrevistados 427 indivíduos residentes no município de Formiga. A Tabela 1 mostra o perfil da população amostrada na área de estudo. A maioria dos entrevistados era do sexo feminino (54,6%), composta de jovens entre 15 e 39 anos (50,1%) e com escolaridade até o primário (46,4%). A renda média situava-se entre 1 e 3 salários mínimos (65,5%) e o número de moradores no domicílio era de até 4 moradores (75,1%) para a maioria dos entrevistados. O número de respondentes por bairro foi de 122 para o Centro, 108 para Lajinha, 101 para Nossa Senhora de Lourdes e 106 para Novo Horizonte (Tabela 1).
Características socioeconômicas da população de estudo do município de Formiga, Minas Gerais.
Foi observado que apenas 32 pessoas (7,5%) responderam adequadamente às perguntas relativas à transmissão, à prevenção e à atitude diante de caso humano. As respostas referentes a essas perguntas são mostradas de forma detalhada na Tabela 2.
Respostas dos entrevistados para as perguntas mais relevantes quanto ao ciclo epidemiológico das leishmanioses presentes no questionário aplicado à população do município de Formiga, Minas Gerais.
A Tabela 3 mostra o resultado das análises bruta e ajustada da associação entre o conhecimento das leishmanioses e as características da população. O resultado da comparação do conhecimento sobre a doença entre os bairros pesquisados não foi significativo. A única variável que influenciou de forma significativa o conhecimento da população sobre a leishmaniose foi o sexo: no município de Formiga, as mulheres apresentaram chance 3,1 vezes maior de conhecer a doença, quando comparadas com os homens.
Sobre os fatores de risco peridomiciliares, observou-se que 94,8% dos respondentes relataram a presença de algum fator de risco. Apenas 5,2% dos respondentes não reportaram a presença de fatores de risco no peridomicílio. Quando analisados de acordo com o indicador dicotômico "fatores de risco peridomiciliar", 258 (60,4%) apresentaram até 3 fatores de risco, enquanto 169 (39,6%) apresentaram mais de 4 fatores.
A Tabela 4 mostra o resultado das análises bruta e ajustada da associação entre os fatores de risco peridomiciliares e as características da população. Indivíduos com maior escolaridade apresentaram menor chance de residir em moradias com mais fatores de risco peridomiciliares (OR = 0,45; IC95% 0,28 - 0,72). Para o local de moradia, os respondentes dos bairros com casos da doença - Novo Horizonte e Centro - tiveram chance 80% maior de residir em domicílios com mais de 4 fatores de risco peridomiciliares (OR = 1,84; IC95% 1,19 - 2,85). As demais características não pareceram influenciar o nível de exposição aos fatores de risco investigados.
De forma complementar analisou-se a associação entre o conhecimento sobre as leishmanioses e a presença de fatores de risco peridomiciliares, não tendo sido encontrada associação (p = 0,837), dado não mostrado na tabela.
DISCUSSÃO
No Brasil, o programa de controle da leishmaniose contempla a atuação da população nas ações de controle da doença. Entretanto, o saber e as percepções da comunidade são quase sempre ignorados diante das ações de prevenção e controle no país. No caso da área de estudo, esse aspecto fica evidente, pois apenas 7,5% dos entrevistados tinham algum conhecimento sobre as leishmanioses. Se por um lado estudos mostram que deter algum conhecimento sobre a doença pode minimizar o risco de sua ocorrência12,19, por outro, esse conhecimento está muitas vezes fragmentado e não permite à população compreender e reconhecer todos os componentes da cadeia epidemiológica de transmissão20,21,22.
De fato, o que se observa em muitas práticas educativas em saúde é que o saber instituído acaba por não resultar, necessariamente, em mudança de comportamento, uma vez que tais informações não geram representações sociais capazes de permear o cotidiano dos indivíduos32,33. A compreensão de que a mudança de comportamento está associada ao contexto cultural da população pode produzir, de modo mais satisfatório, um processo de empoderamento e articulação do saber necessário à construção de uma prática de saúde nova e duradoura. Por isso, as percepções das comunidades devem ser conhecidas e trabalhadas de forma que se revertam em melhor conhecimento sobre a doença e em atitudes de prevenção23.
Dentre as características da população, o sexo feminino mostrou associação com o conhecimento da enfermidade em questão. Uma explicação para esse achado pode estar no fato de as mulheres serem reconhecidamente mais atentas às questões de saúde, manifestando seus cuidados no âmbito familiar, em situações diversas com os filhos, companheiros, pais e avós34. Esses cuidados muitas vezes se baseiam na experiência acumulada (consulta aos serviços de saúde) ou no aprendizado dessa experiência com outras mulheres da família, os quais são colocados em prática para prevenir a doença e garantir a saúde da família34.
Entretanto, outros fatores também podem influenciar o conhecimento e as práticas em saúde, como, por exemplo, a classe social e o nível de instrução. Segundo Boltanski35, esses são fatores capazes de limitar a difusão do saber médico, influenciando na frequência e na qualidade do diálogo médico-paciente. Os resultados do presente estudo apontaram para uma associação entre a maior escolaridade (ensino médio) e a presença de menor número de fatores de risco peridomiciliares. É possível que o nível de instrução reflita em melhores condições socioeconômicas e, consequentemente, em melhores condições habitacionais, reduzindo a exposição aos fatores de risco peridomiciliares.
Chama a atenção o fato de que 94,8% da população pesquisada residia em locais com a presença de pelo menos 1 fator de risco e que 39,6% reportaram a presença de mais de 4 fatores, tendo sido observada uma associação significativa entre o local de residência e a presença de maior número desses fatores. Essa associação seria esperada, pois os bairros que registraram maior número de casos, provavelmente, seriam os que apresentariam maior vulnerabilidade à ocorrência da doença. A influência das características do peridomicílio e o relacionamento destas com o risco de ocorrência das leishmanioses são bem demonstradas - presença de animal doméstico, galinheiro, árvores frutíferas, matas remanescentes, dentre outros27,28,29,30,31. Esses fatores podem funcionar como atrativos para o vetor e favorecer sua reprodução nas proximidades da residência, devido ao possível acúmulo de matéria orgânica. Por isso, é de grande importância que tanto a residência quanto seus anexos (quintal, canil, galinheiro) sejam mantidos limpos, a fim de evitar a proliferação dos flebotomíneos.
No presente estudo, a associação entre o conhecimento da população sobre as leishmanioses e a presença de fatores de risco peridomiciliares não apresentou resultados estatisticamente significativos. Provavelmente, a população estudada não tem consciência de que o controle da doença também parte da redução do fator de risco no ambiente peridomiciliar. Esse fato fica ainda mais evidente quando se observa que 94,8% dos moradores possuem algum fator de risco no peridomicílio de suas casas. A ausência de associação entre esse conhecimento e a presença desses fatores no peridomicílio indica, ainda, que os moradores desconhecem os riscos a que estão sujeitos. É possível que, mesmo apresentando algum nível de conhecimento sobre a doença, este seja tão incipiente, que não provoque mudanças de comportamento na população.
A educação pode ser um caminho para reverter esse cenário. Contudo, para que o saber apropriado se reflita em práticas preventivas adequadas e eficazes, o conhecimento - reprodução correta de um conteúdo, a atitude - opinião do indivíduo sobre o conteúdo, e a prática - ação executada - devem caminhar juntos na realidade popular36. Logo, a educação em saúde deve ser concebida como uma medida sanitária concreta que pode levar ao fracasso ou ao sucesso de um programa de controle e, consequentemente, influenciar o risco de exposição da população18.
Nesse contexto, a capacitação dos profissionais de saúde e educação deve ser considerada. Os primeiros são responsáveis por difundir o conhecimento científico e torná-lo acessível ao público, necessitando, portanto, de uma educação permanente, a fim de serem capazes de acompanhar a evolução das endemias26. Falhas conceituais ou defasagens no conhecimento sobre as leishmanioses pelos profissionais de saúde, como observado por outros autores quanto à transmissão17 e ao nome popular da leishmaniose26, podem refletir na qualidade das informações que chegam à população. Já os professores da educação básica, por manterem contato estreito com crianças e adolescentes, podem colaborar para que os alunos se transformem em disseminadores das informações recebidas em sala de aula. Estudo conduzido em Divinópolis, Minas Gerais, sobre a percepção dos professores quanto às leishmanioses demonstrou que esses profissionais desconhecem a doença37, porém estão dispostos a conscientizar seus alunos, destacando a escola como um espaço propício para a divulgação desse conhecimento37.
Esses processos devem ser contínuos e periodicamente divulgados, pois representam, muitas vezes, as únicas fontes de informação popular38. Com a participação ativa da comunidade é possível reduzir os condicionantes que facilitam a transmissão das leishmanioses na região. Além disso, a questão da doença pode ser trabalhada sob uma perspectiva de promoção da saúde, em que as políticas públicas favorecem as habilidades pessoais e coletivas focadas na melhoria da qualidade de vida e saúde da população.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo identificou, pela primeira vez, que a população do município de Formiga desconhece conceitos importantes sobre as leishmanioses e que o sexo feminino estava associado ao maior conhecimento sobre a doença. Esses resultados indicam que é preciso esclarecer e empoderar a população para que ela contribua de forma efetiva para o controle e a prevenção da doença na região, onde casos humanos de leishmaniose têm sido frequentemente registrados. No mesmo sentido, a constatação de fatores de risco peridomiciliares na maioria das casas pesquisadas, bem como da associação entre o local de moradia e maior número desses fatores, aponta para a possibilidade de o ciclo da doença se manter ativo no município, fato que deve ser acompanhado pela vigilância epidemiológica local.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos à Juliana Castro e ao "Padre", pelo suporte na execução do projeto, aos agentes comunitários de saúde e à população de Formiga, pelo acolhimento e pela participação, e à Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG - APQ-01657-11), pelo financiamento da pesquisa.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Apr-Jun 2016
Histórico
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Recebido
07 Maio 2014 -
Aceito
15 Set 2015