Open-access A carga dos transtornos mentais e decorrentes do uso de substâncias psicoativas no Brasil: Estudo de Carga Global de Doença, 1990 e 2015

RESUMO:

Introdução:  Os transtornos mentais e decorrentes do uso de substâncias psicoativas (TM) são altamente prevalentes, gerando elevado custo social e econômico.

Objetivo:  Descrever a carga dos TM no Brasil e Unidades Federativas (UFs), em 1990 e 2015.

Métodos:  Estudo descritivo da carga de doença dos TM, por meio de estimativas padronizadas por idade do Global Burden of Disease Study 2015: anos de vida perdidos por morte prematura (YLL); anos vividos com incapacidade (YLD); e anos de vida perdidos por morte ou incapacidade (DALY=YLL+YLD).

Resultados:  No Brasil, apesar da baixa taxa de mortalidade, observa-se alta carga para os TM desde 1990, com elevados YLD. Em 2015, esses transtornos foram responsáveis por 9,5% do total de DALY, ocupando a 3ª e a 1ª posições na classificação de DALY e YLD, respectivamente, com destaque para os transtornos depressivos e de ansiedade. Os transtornos decorrentes do uso de drogas apresentaram a maior elevação das taxas de DALY entre 1990 e 2015 (37,1%). A maior proporção de DALY ocorreu na idade adulta e no sexo feminino. Não houve diferenças substanciais na carga dos TM entre as UFs.

Conclusão:  Apesar da baixa mortalidade, os TM são altamente incapacitantes, indicando necessidade de ações preventivas e protetivas, principalmente na atenção primária em saúde. A homogeneidade das estimativas em todas as UFs, obtidas a partir de estudos realizados majoritariamente nas regiões Sul e Sudeste, provavelmente não reflete a realidade do Brasil, e indica necessidade de estudos em todas as regiões do país.

Palavras-chave: Saúde mental; Transtornos mentais; Transtornos relacionados ao uso de substâncias; Anos de vida perdidos por incapacidade; Epidemiologia descritiva

ABSTRACT:

Introduction:  Mental and substance use disorders (MD) are highly prevalent and have a high social and economic cost.

Objective:  To describe the burden of disease attributable to mental and substance use disorders in Brazil and Federated Units in 1990 and 2015.

Methods:  Descriptive study of the burden of mental and substance use disorders, using age-standardized estimates from the Global Burden of Disease Study 2015: years of life lost due to premature mortality (YLL); years lived with disability (YLD); and disability-adjusted life year (DALY=YLL+YLD).

Results:  In Brazil, despite low mortality rates, there has been a high burden for mental and substance use disorders since 1990, with high YLD. In 2015, these disorders accounted for 9.5% of all DALY, ranking in the third and first position in DALY and YLD, respectively, with an emphasis on depressive and anxiety disorders. Drug use disorders had their highest increase in DALY rates between 1990 and 2015 (37.1%). The highest proportion of DALY occurred in adulthood and in females. There were no substantial differences in burden of mental and substance use disorders among Federated Units.

Conclusion:  Despite a low mortality rate, mental and substance use disorders are highly disabling, which indicates the need for preventive and protective actions, especially in primary health care. The generalization of estimates in all the Federated Units obtained from studies conducted mostly in the south and southeast regions probably does not reflect the reality of Brazil, indicating the need for studies in all regions of the country.

Keywords: Mental health; Mental disorders; Substance-related disorders; Disability-adjusted life years; Epidemiology, descriptive

INTRODUÇÃO

Os transtornos mentais e decorrentes do uso de substâncias psicoativas (TM) atingem, em média, 26,1% da população adulta em 17 países no mundo1, gerando um alto custo social e econômico, o que tem importantes implicações no planejamento dos cuidados de saúde2,3,4. Apesar disso, a maioria dos países de baixa e média renda, como o Brasil, gasta menos de 2,00 US$ per capita no tratamento e na prevenção de transtornos mentais; já países de alta renda gastam, em média, mais de 50,00 US$5. No Brasil, dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) evidenciaram inequidades no acesso aos cuidados em saúde mental. Além disso, verificou-se que a maioria dos brasileiros com sintomas depressivos clinicamente relevantes (78,8%) não recebia nenhum tipo de tratamento6.

Com a publicação dos resultados do primeiro estudo de Carga Global de Doença (Global Burden of Disease - GBD), em 1996, o impacto de transtornos prevalentes e incapacitantes com menor mortalidade, como os TM, destacaram-se como um grave problema de saúde pública. Nesse estudo, cinco das dez principais causas de anos vividos com incapacidade (Years Lived With Disability - YLD), em todo o mundo, pertenciam à categoria, a saber: transtornos depressivos (13,0%), transtornos decorrentes do uso de álcool (7,1%), esquizofrenia (4,0%), transtorno bipolar (3,3%) e transtorno obsessivo compulsivo (2,8%)7.

Desde então, esses transtornos, com destaque para os transtornos depressivos e de ansiedade, têm aparecido na classificação das principais causas de carga de doença (Disability-Adjusted Life Years - DALY) e de incapacidade (YLD) do mundo8,9,10,11. Em 2010, os TM foram responsáveis por 7,4% do total de DALY e 22,9% do total de YLD, tornando-se a quinta principal causa de DALY e a primeira causa de YLD no mundo8.

No Brasil, há poucos estudos populacionais representativos que apresentam estimativas de prevalência para os TM12,13,14,15,16,17,18,19,20. Estudo realizado com amostra representativa de adultos da cidade de São Paulo e região metropolitana21 constatou uma prevalência de TM, nos últimos 12 meses, de 29,6%, sendo a ansiedade (19,9%) e os transtornos de humor (11,0%) os mais prevalentes, seguidos pelos transtornos de controle de impulso (4,2%) e decorrentes do uso de substâncias psicoativas (3,6%). Contudo, há poucos estudos de prevalência que avaliam diferentes regiões do país assim como dados de mortalidade por TM22,23,24,25. Nesse sentido, é importante conhecer e mensurar o impacto da carga dos TM nas diferentes Unidades Federativas (UFs) brasileiras, tendo em vista a vasta diversidade cultural e socioeconômica no país.

O objetivo deste estudo foi descrever os dados sobre a carga dos transtornos mentais e decorrentes do uso de substâncias psicoativas, no país e em suas UFs, por idade e sexo, nos anos de 1990 e 2015, no Brasil.

MÉTODOS

Foi realizado um estudo descritivo com dados de base secundária da carga dos TM estimada para o Brasil no estudo GBD 2015, coordenado pelo Instituto Métricas e Avaliação em Saúde (IHME), da Universidade de Washington (Estados Unidos da América - EUA)10. Neste estudo, especificamente, serão exploradas as variações na carga por tipo de transtorno mental, idade, sexo, ano (1990 e 2015) e UFs do Brasil. Informações mais detalhadas sobre os dados e métodos para gerar as estimativas podem ser obtidas em outras publicações10,11.

No GBD 2015, os TM foram definidos de acordo com os critérios diagnósticos descritos na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10)26 ou no Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-IV TR)27, e seus correlatos para os dados de 1990. No total, são 12 grupos de transtornos:

  1. esquizofrenia;

  2. transtornos depressivos;

  3. transtorno bipolar;

  4. transtornos de ansiedade;

  5. transtornos alimentares;

  6. transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH);

  7. transtorno de conduta,

  8. transtornos do espectro autista (autismo e síndrome de Asperger);

  9. retardo mental;

  10. transtornos decorrentes do uso de álcool;

  11. transtornos decorrentes do uso de drogas; e

  12. outros transtornos mentais e decorrentes do uso de substâncias psicoativas11.

Os indicadores de mortalidade (Years of Life Lost - YLL), somados aos indicadores de YLD, resultaram na medida da DALY. Para todas as estimativas, foram considerados intervalos de incerteza de 95% (II95%)10.

O cálculo do YLL, que expressa o efeito das mortes prematuras na população, foi realizado com a multiplicação do número de mortes por TM, para cada faixa etária, pela maior expectativa de vida nessa idade, independentemente do sexo28. No Brasil, a principal fonte de dados de mortalidade é o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde. Para estimar os YLL, o GBD 2015 seguiu as categorias de causa de morte da CID-1026, na qual as mortes só podem ser atribuídas a uma dada condição quando for considerada uma causa direta de morte. Os detalhes sobre a metodologia utilizada para o cálculo dos YLL no GBD 2015 podem ser vistos em outras publicações28.

Os YLL foram estimados apenas para a esquizofrenia, transtornos alimentares e para os transtornos relacionados ao uso álcool e drogas, considerados pelo CID-1026 como causa direta de morte. Para os demais grupos de transtornos mentais a carga se deve exclusivamente à incapacidade gerada por tais transtornos, de modo que as taxas de DALY se equiparam aos valores de YLD29,30.

O cálculo dos YLD, que expressam a morbidade em termos dos anos de vida não saudáveis devidos a problemas de saúde ou incapacidades, foi realizado a partir da multiplicação de dois componentes: a prevalência do transtorno mental na população e o “disability weight”, que reflete a gravidade da perda de saúde associada ao TM em uma escala de 0 (saúde perfeita) a 1 (equivalente à morte). A prevalência de cada transtorno foi obtida utilizando-se dados de estudos brasileiros de base populacional. O GBD 2015 utilizou os mesmos pesos atribuídos à gravidade de cada transtorno do GBD 2013. A metodologia, os artigos utilizados como fonte de dados para as estimativas e os valores dos pesos atribuídos a cada doença estão disponíveis em outras publicações11.

Neste estudo, o foco dos resultados será a apresentação dos DALY produzidos pela categoria dos TM, resultante da soma dos YLL e dos YLD. Para comparação dos indicadores, entre os anos de 1990 e 2015, foram estimadas as taxas padronizadas por idade de DALY pelos TM. Adicionalmente, foi feita a classificação por transtorno e pelas UFs segundo os valores de DALY padronizada por idade.

O Estudo Carga Global de Doença - GBD Brasil 2015 foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (Projeto CAAE - 62803316.7.0000.5149).

RESULTADOS

No GBD 2015, a categoria dos TM foi responsável por 9,5% do total de DALY, por todas as causas, no Brasil. Os transtornos depressivos foram responsáveis pela maior proporção de DALY (3,3%) e o TDAH pela menor proporção (0,02%). Em ambos os sexos, as mudanças na DALY, entre 1990 e 2015, foram atribuíveis ao crescimento e envelhecimento da população, tendo em vista que ambas as taxas padronizadas por idade, no período, estiveram dentro dos intervalos de incerteza (II95%). Contudo, é importante destacar o aumento percentual de 37,1% das taxas de DALY devido aos transtornos decorrentes do uso de drogas entre 1990 e 2015, observado em ambos os sexos (Tabela 1).

Tabela 1:
Taxas de DALYa por 100 mil indivíduos atribuíveis a cada transtorno mental e decorrente do uso de substâncias psicoativas e porcentagens de mudança de 1990 para 2015, em homens, mulheres e em ambos os sexos, no Brasil.

Entre os TM, os transtornos depressivos foram responsáveis pela maior carga de doença (35,0%), seguido pelos transtornos de ansiedade (28,0%) e pelos transtornos decorrentes do uso de álcool (7,0%) (Figura 1A). Os transtornos que mais contribuíram para os YLD foram: transtornos depressivos (37,0%), transtornos de ansiedade (30,0%), esquizofrenia (6,0%) e transtorno bipolar (6,0%) (Figura 1B).

Figura 1:
Proporção de DALYa , YLDb e YLLc para cada grupo de transtorno mental e decorrente do uso de substâncias psicoativas em 2015.

Em relação à mortalidade, os TM foram responsáveis por apenas 1,2% do total de YLL no Brasil, em 2015. A maior parte desses óbitos foi atribuída aos transtornos decorrentes do uso de álcool (81,0%) (Figura 1C).

Os TM foram a principal causa de incapacidade no Brasil, tanto em 1990 quanto em 2015, sendo responsáveis por 24,9% do total de YLD por todas as causas (Tabela 2). Em 2015, a categoria passou a ser a terceira principal causa de DALY no Brasil, subindo três posições na classificação em relação a 1990. De 1990 a 2015, toda a categoria dos TM ou cada transtorno separadamente, em sua maioria, subiram a posição na classificação de DALY e de YLD. Em especial, é importante salientar o aumento nas posições dos DALY de transtornos depressivos e de ansiedade da 12a e 14a posições, em 1990, para 8a e 10a posições, em 2015, respectivamente. (Tabela 2).

Tabela 2:
Classificação de DALYa e YLDb de cada transtorno mental e decorrente do uso de substâncias psicoativas, em 1990 e 2015, em relação às taxas padronizadas por idade.

Os TM atingiram todos os grupos de idade, sendo que a maior proporção de DALY, em ambos os sexos, ocorreu na idade adulta (Figura 2). Em ambos os sexos, as taxas de DALY para os transtornos depressivos e para os transtornos de ansiedade atingiram o pico na idade adulta. Porém, a carga dos transtornos depressivos foi maior entre aqueles com 30 a 34 anos e dos transtornos de ansiedade, um pouco mais tardiamente, entre 40 e 44 anos de idade.

Figura 2:
Anos perdidos por morte prematura ou por incapacidade (DALYb), para cada transtorno mental e decorrente do uso de substâncias psicoativas, em 2015, por sexo e idade, no Brasil.

A carga associada a transtornos menos comuns, mas crônicos, como a esquizofrenia e o transtorno bipolar, aumentou gradualmente até a idade adulta, com pico entre 40 e 44 anos e 25 e 29 anos de idade, respectivamente. Em relação aos transtornos decorrentes do uso de drogas, a carga foi maior entre os adultos jovens (20-24 anos). Para os transtornos decorrentes do uso de álcool, a maior carga ocorreu dos 45 aos 49 anos de idade, seguido por um declínio gradual (Figura 2).

Meninos com menos de 10 anos tiveram maior proporção de DALY do que as meninas da mesma idade. Essa diferença foi mais evidente no caso dos transtornos do espectro autista e do transtorno de conduta, com carga 2,5 vezes maior do que para as meninas. A partir da faixa etária de 10 a 14 anos, as mulheres tiveram uma carga maior para os transtornos depressivos e os transtornos de ansiedade do que os homens. Em todas as faixas etárias, os homens apresentaram maior carga para esquizofrenia, transtornos decorrentes do uso de álcool e de drogas. A maior proporção de DALY em mulheres ocorreu na faixa de idade entre 40 e 44 anos e em homens ocorreu entre os 35 e 39 anos (Figura 2).

A Figura 3 mostra a carga dos TM no Brasil e em cada UF. Os transtornos depressivos apresentaram a maior proporção de carga em todas as UFs, seguido pelos transtornos de ansiedade. Os DALY dos transtornos decorrentes do uso de álcool apresentaram a maior variação regional: as taxas de DALY no Ceará e no Sergipe chegaram a ser quase quatro vezes maiores do que a do Pará. Em contraste, os demais transtornos mentais e os transtornos decorrentes do uso drogas apresentaram taxas homogêneas, em termos de proporção de DALY (variou menos de duas vezes entre as UFs), em 2015. Com exceção dos transtornos decorrentes do uso de álcool, as demais taxas de DALY padronizadas por idade das UFs não diferiram substancialmente da média nacional.

Figura 3:
Taxa de DALYb por 100 mil indivíduos para os transtornos mentais e decorrentes do uso de substâncias psicoativas em 2015, para o Brasil e Unidades Federativas.

DISCUSSÃO

Os resultados do GBD 2015 apontam que os TM são a terceira causa de carga de doença no Brasil, atrás apenas das doenças cardiovasculares e dos cânceres, e que eles contribuem consideravelmente para a perda de saúde de indivíduos em todas as idades. A metodologia de estudo do GBD, ao abordar tanto a mortalidade, quanto a incapacidade, deu maior visibilidade aos TM como um relevante problema de saúde pública, tornando essenciais os avanços nas investigações de suas prevalências e de seus riscos associados31.

Em 2015, os TM foram responsáveis por alta carga de doença em todo mundo10. A categoria dos TM saltou da oitava para sexta posição entre 1990 e 2015, na classificação de DALY mundial. Já no Brasil, o DALY por TM passou da sexta para a terceira posição, indicando maior gravidade da situação de saúde mental no país.

O DALY por TM está nitidamente relacionada à incapacidade - e não à mortalidade. Enquanto no mundo os TM ocupam a segunda posição na classificação de incapacidade desde 1990, atrás apenas dos transtornos músculo esqueléticos, no Brasil eles já são a principal causa. Os transtornos depressivos e de ansiedade continuaram entre as dez maiores causas de incapacidade no Brasil e no mundo em 201511.

Os transtornos depressivos e de ansiedade, que foram altamente prevalentes e incapacitantes, destacaram-se na classificação de YLD e, consequentemente, de DALY. No entanto, alguns transtornos, apesar de serem muito incapacitantes para o indivíduo, não se destacaram na classificação de YLD, pela baixa prevalência na população, como por exemplo a esquizofrenia, que apresentou o maior peso de incapacidade de todas as doenças avaliadas em 2015, mas não foi proeminente em termos de YLD por causa da sua baixa prevalência11.

Particularmente no Brasil, os transtornos de ansiedade apresentam as maiores taxas de YLD e de DALY do mundo31. Esses resultados são condizentes com os estudo14,15,17,20,21 utilizados pelos pesquisadores do GBD para realizar tais estimativas. Um desses estudos21 encontrou maiores proporções de prevalência de transtornos de ansiedade no Brasil, em comparação com outros 23 países. As possíveis explicações para a elevada prevalência no país seriam: violência urbana generalizada; condições socioeconômicas adversas; poluição; alto nível de ruído; a falta de áreas de lazer nas cidades brasileiras.

Nas regiões em desenvolvimento, como no Brasil, há um número maior de pessoas nas faixas etárias em que os TM são mais prevalentes. Essa transição demográfica e epidemiológica contribui para o aumento da carga absoluta desses transtornos na população8. Porém, para grande parte dos TM, o aumento do número absoluto de DALY não foi acompanhado pelo aumento das taxas de DALY padronizadas por idade, o que significa que as mudanças no DALY, entre 1990 e 2015, foram quase inteiramente atribuíveis ao crescimento e envelhecimento da população. Apesar disso, a estabilidade na taxa padronizada por idade demonstra a necessidade de o país se preparar para o embate desse problema, que tende a crescer com a transição demográfica.

É importante considerar que os transtornos decorrentes do uso de drogas apresentaram a maior elevação das taxas de DALY entre 1990 e 2015 (37,1%) e atingem principalmente homens jovens. Abdalla et al. (2014)33 destacam que a taxa de prevalência, em 2012, de consumo de crack-cocaína entre brasileiros com 14 anos ou mais foi de 2,2% nos últimos 12 meses, e sugerem que o país está entre as nações com maiores taxas de consumo anual, sendo um dos maiores mercados consumidores de cocaína no mundo.

Os resultados do GBD 2015 refletem a realidade de estudos epidemiológicos brasileiros12,13,14,16,18,19,21,22 em que mulheres são mais acometidas pelos transtornos depressivos e pelos transtornos de ansiedade, enquanto nos homens prevalece a esquizofrenia, os transtornos decorrentes do uso de álcool e de drogas e o TDAH na infância e na vida adulta. Esses resultados coincidem, também, com os resultados da maioria dos estudos realizados em países ocidentais16.

Outro importante resultado dos dados brasileiros do GBD 2015 foi a alta carga dos transtornos mentais que ocorrem na infância e adolescência, como os transtornos do espectro autista, TDAH e transtorno de conduta. Esses resultados reforçam a necessidade de serviços de prevenção e tratamento voltados para crianças e adolescentes, atualmente pouco disponíveis no Brasil34.

Nesse contexto, os resultados deste estudo evidenciam o desafio que os TM representam para o sistema de saúde do país. No Brasil, a implantação da rede comunitária de serviços de saúde mental teve início na década de 1990 e, apesar de estar em constante crescimento, ainda não há serviços suficientes para atendimento eficaz de toda a população35. Além disso, existem as barreiras culturais, financeiras e estruturais que impedem que as pessoas busquem atendimento psiquiátrico, tais como o estigma, o pouco conhecimento da doença, o preconceito, a descrença do tratamento, a falta de treinamento das equipes da atenção básica para a identificação dos casos, entre outros18.

Há ainda a especificidade do território brasileiro que é marcado por importantes diferenças na disponibilidade de serviços de saúde mental, a depender da região do país. A pesquisa nacional de base populacional (PNS), realizada em 2013, apresentou estimativas de acesso ao tratamento para depressão e constatou que na região Norte está a maior proporção de indivíduos não tratados (90,2%) e, na região Sul, a menor proporção (67,5%)6. Apesar disso, os resultados do GBD 2015 para as UFs do Brasil foram praticamente homogêneos. Isso aconteceu porque as estimativas de carga de doença foram geradas com base nos dados disponíveis das UFs, que tradicionalmente tendem a ser realizados em áreas urbanizadas e majoritariamente em UFs das regiões Sudeste e Sul, que certamente não refletem a realidade do país. É importante destacar que os resultados do GBD dão oportunidade ao país de fazer uma avaliação crítica da qualidade dos seus dados, de modo que as limitações na sua disponibilidade precisam ser levadas em conta quando se fazem interpretações sobre regiões específicas.

Como perspectiva futura, a utilização de fonte de dados de base populacional, tal como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)36 é atraente, pois trata-se de um inquérito representativo a nível nacional e urbano-rural que cobre cerca de 150 mil domicílios e mais de 350 mil pessoas nas 27 UFs do Brasil. A PNS, realizada a partir da base de dados da PNAD, diferentemente do GBD 2015, encontrou diferenças importantes entre as UFs brasileiras quanto à presença de sintomas depressivos na população37.

Uma especificidade da metodologia do GBD, que impactou no baixo número de YLL gerado pela categoria dos TM, consiste na atribuição da mortalidade a uma única doença/causa, bem como no fato dos YLL terem sido estimados apenas para a esquizofrenia, transtornos alimentares e para os transtornos decorrentes do uso de álcool e drogas, considerados pelo CID-1026 como causa direta de morte28. É por essa razão que, para a maioria dos TM, os DALY são basicamente YLD.

Em nível mundial, os TM representaram, em 2015, segundo o GBD, apenas 0,5% das mortes por todas as causas32. Tal dado contrasta com um estudo de revisão sistemática recente que, ao considerar o excesso de mortalidade associado aos transtornos mentais, estimou que 14,3% das mortes em todo o mundo são atribuíveis a esses transtornos. De acordo com esse estudo38, pessoas com transtornos mentais têm uma taxa de mortalidade 2,2 vezes maior do que a população geral. A redução na expectativa de vida de quem tem transtorno mental seria, em média, de 10,1 YLL, seja qual for a causa da morte. Esses dados sugerem que a carga dos transtornos mentais associados à mortalidade é muito grande e está subestimada.

Considerando-se que muitos dos TM são frequentemente comórbidos com outras doenças altamente prevalentes e incapacitantes, como, por exemplo, as doenças cardiovasculares e o diabetes35 bem como um importante fator de risco para o suicídio (cerca de 80% das mortes por suicídio são atribuíveis aos TM8), sugere-se que abordagens alternativas de metodologia sejam exploradas, como a quantificação da proporção de morte atribuível aos TM como fatores de risco para outros resultados de saúde8,39. Um estudo que se dedicou a estimar os DALY do suicídio atribuídos à categoria dos TM no GBD 2010 concluiu que a inclusão de DALY atribuíveis ao suicídio teria aumentado a carga global desses transtornos de 7,4% para 8,3%; isso acarretaria em uma mudança da categoria na classificação global, da quinta para a terceira causa de carga de doença39.

Finalmente, é importante destacar que a metodologia padronizada de análise do GBD viabiliza a produção de indicadores que permitem comparar os dados entre diferentes regiões e países do mundo. Além disso, as estimativas de tendência temporal fornecem informações mais consistentes para o planejamento de saúde, em médio e longo prazos, quando comparadas às estimativas pontuais40.

CONCLUSÃO

Os resultados apresentados mostram os TM entre os principais problemas de saúde no Brasil, atingindo ambos os sexos e todas as faixas etárias. São ainda uma importante fonte de perda de qualidade de vida em vez de mortalidade, o que geralmente é invisível aos olhos dos gestores de saúde. Esses dados devem ser debatidos prioritariamente, no âmbito da atenção primária, no qual os transtornos mentais são muito comuns e os profissionais não estão preparados para oferecer o cuidado adequado aos usuários. O treinamento dos profissionais para prevenir e identificar problemas de saúde mental, fornecendo o atendimento integral, que vai além do diagnóstico e da gestão da medicação, poderia melhorar a equidade no sistema de saúde brasileiro.

Há necessidade de ampliar a realização de estudos para outras regiões, além da exploração de populações minoritárias, como indígenas e ribeirinhas. Esse conhecimento é necessário para subsidiar a implementação de políticas de saúde mental que promovam o aumento dos anos de vida vividos com saúde e independência funcional para toda a população.

AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Christian Costa Kieling (Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul) pelas importantes contribuições na discussão deste artigo.

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Disponibilidade de dados

Citações de dados

Institute for Health Metrics and Evaluation. Data visualization. 2016. Disponível em: http://www.healthdata.org/results/data-visualizations (Acessado em: 29 de novembro de 2016).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Maio 2017

Histórico

  • Recebido
    19 Jan 2017
  • Aceito
    20 Fev 2017
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