RESUMO:
Objetivo: Investigar a associação da tentativa de suicídio (TS) com o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), a violência por parceiro íntimo (VPI) e variáveis relacionadas aos aspectos socioeconômicos e demográficos em uma coorte de mulheres cadastradas na Estratégia Saúde da Família do Recife.
Métodos: Foi realizado um estudo transversal, aninhado em um estudo de coorte prospectivo, com 644 mulheres de 18 a 49 anos, cadastradas na Estratégia Saúde da Família do Distrito Sanitário II da cidade do Recife (PE), entre julho de 2013 e dezembro de 2014. A TS foi avaliada pela pergunta “Já tentou pôr fim à sua vida?”, e o TEPT, diagnosticado por meio do Post-traumatic Stress Disorder Checklist - Civilian Version (PCL-C). Foram realizadas uma modelagem hierarquizada, a aplicação do teste χ2 e a análise de resíduos padronizados. A associação das variáveis independentes com a TS foi estimada por meio de regressão logística simples e ajustada.
Resultados: A prevalência da TS foi de 10,9%, e a frequência de TEPT, de 16%. As mulheres que tinham TEPT e também as que não possuíam religião tiveram maior chance de tentar o suicídio (odds ratio - OR = 5,11, intervalo de confiança de 95% - IC95% 2,9 - 8,7; OR = 1,76, IC95% 1,0 - 2,9, respectivamente).
Conclusões: Houve maior risco de TS nas mulheres que tiveram TEPT e baixa adesão a uma religião. Sendo assim, compreendeu-se que o enfrentamento do TEPT se dá prevenindo esse transtorno, tratando dele e promovendo mais conhecimentos sobre ele, além do efeito agregador e protetor social que a religiosidade promove, que também podem ser estratégias de redução e prevenção da TS.
Palavras-chave: Transtornos de estresse pós-traumáticos; Tentativa de suicídio; Violência por parceiro íntimo
ABSTRACT:
Objective: To investigate the association of suicide attempt (SA) with Post-Traumatic Stress Disorder (PSTD), Intimate Partner Violence (IPV) and variables related to socioeconomic and demographic aspects in a cohort of women enrolled in the Family Health Strategy in Recife.
Methods: A cross-sectional study was carried out, nested in a prospective cohort study with 644 women aged 18 to 49 enrolled in the Family Health Strategy of the Sanitary District II of Recife, PE, between July 2013 and December 2014. The SA was evaluated by the question “Have you ever tried to end your life?” PTSD was diagnosed through the Post-traumatic Stress Disorder Checklist - Civilian Version (PCL-C). A hierarchical modeling was performed, applying the χ2 test and Standardized Waste Analysis. The association of the independent variables with SA was estimated through simple and adjusted Logistic Regression.
Results: The prevalence of SA was 10.9%, and the frequency of PSTD was 16%. Women who had PTSD and those who did not have a religion showed higher risk for suicide (odds ratio - OR = 5.11, 95%CI 2.9 - 8.7, OR = 1.76, 95%CI 1.0 - 2.9 respectively).
Conclusions: There was a higher risk of SA in women who had PTSD and low adherence to a religion. Thus, it was understood that coping with PTSD comes from preventing, treating and promoting greater knowledge about this disorder, in addition to aggregating and social protective effect promoted by religiosity, which can be a strategy for the reduction and prevention of SA.
Keywords: Post traumatic stress disorder; Suicide attempted; Intimate partner violence.
INTRODUÇÃO
O comportamento suicida é intrínseco ao ser humano e representa um importante problema de saúde pública. O espectro desse comportamento envolve o suicídio (morte autoinfligida), a tentativa de suicídio (TS) (comportamento autoagressivo sem evolução fatal) e a ideação suicida (pensar em acabar com a própria vida)1.
No mundo, em 2012, foram registradas 804 mil mortes por suicídio, representando taxa anual, ajustada por idade, de 11,4 por 100 mil habitantes (15 óbitos por suicídio em homens para cada 100 mil habitantes e oito para mulheres)2.
A TS é um fenômeno complexo e multidimensional, que pode ser resultado da interação de diferentes fatores (sociais, econômicos, demográficos), e ainda estar relacionado à violência pelo parceiro íntimo (VPI) e ao transtorno de estresse pós-traumático (TEPT)3.
Segundo Durkheim4, o suicídio e as TS não são apenas atos individuais que dependem exclusivamente de fatores pessoais que se situam unicamente no campo da psicologia. Ou seja, o estudo conjunto do comportamento suicida cometido em determinada sociedade, em dada unidade de tempo, tem natureza própria e é eminentemente social.
Durkheim afirma que fatores sociais como a família, a renda, a educação, os grupos de que participam, os amigos e a sociedade influenciam fortemente na produção de um episódio suicida, tanto para que ocorra quanto para evitá-lo. Segundo o autor, a maior proteção contra o suicídio é a estreita convivência entre religião, família e sociedade4.
O TEPT representa um dos principais fatores desencadeantes do comportamento suicida, e sua ocorrência está condicionada a eventos estressores, que são apontados como precursores para o desenvolvimento de situações traumáticas5. Trata-se de um transtorno de ansiedade caracterizado por um conjunto de sinais e sintomas físicos, psíquicos e emocionais em decorrência de o portador ter sido vítima ou testemunha de atos violentos ou de situações traumáticas que representaram ameaça à sua vida ou à vida de terceiro6. Esse transtorno é mais prevalente no sexo feminino. Apesar de as mulheres estarem menos expostas a eventos traumáticos ao longo da vida, elas apresentam risco duas vezes maior do que os homens de desenvolver o TEPT7.
Na Irlanda do Norte, um estudo identificou que a probabilidade de pessoas com TEPT desenvolverem um plano suicida é mais elevada do que de pessoas sem TEPT. Esse risco é ainda maior no sexo feminino (4,3%) quando comparado com o masculino (2,3%)8.
Nas mulheres, um importante precursor do TEPT é a violência, particularmente a VPI, que faz parte do universo de fatores e eventos estressores e/ou traumáticos que podem aumentar as chances de TS9.
A VPI conceitua-se como uma relação de poder entre homens e mulheres. Ocorre pela aceitação de papéis impostos historicamente a ambos, levando o homem a ter o papel de poder, de dominador, de disciplinador contra a mulher10. É mais prevalente entre mulheres em idade reprodutiva, podendo ocorrer no período gravídico / puerperal, o que se torna ainda mais preocupante por causa dos danos e efeitos adversos para a saúde da mãe, do feto e da criança11.No Recife, constatou-se que a prevalência de VPI foi de 32,4% antes, 31,0% ao longo e 22,6% depois da gestação12.
O TEPT pode ser uma consequência psicopatológica comum da VPI, porém não a única. O comportamento suicida, também associado ao TEPT e à VPI, pode ter como desfecho uma consequência ainda mais trágica para a mulher e sua família13.
Os estudos de Kubany et al.14 com mulheres violentadas no Havaí e de Bargai et al.15 com mulheres residentes em Israel, porém de origem soviética, árabe, europeia, norte-americana, sul-americana e etíope, encontraram que o TEPT afetou entre 33 e 83% das mulheres em situação de VPI.
Em Ribeirão Preto (SP), foi estudada uma amostra de mulheres gestantes a partir da 36a semana gestacional que sofriam VPI.As prevalências de TEPT e de ideação suicida foram 17,0 e 7,8%, respectivamente. A gestação possivelmente explica a disparidade da prevalência de TEPT entre as populações do Havaí e de Israel, comparadas à de Ribeirão Preto16.
Sendo assim, o processo de adoecimento da mulher em virtude da rotinização dos traumas parece ter suas consequências no estado de saúde. A experiência do trauma destrói a autoestima, expondo a mulher a um risco mais elevado de sofrer problemas mentais17.
Nesse sentido, o objetivo deste artigo foi investigar a associação da TS com o TEPT, a VPI e variáveis relacionadas aos aspectos socioeconômicos e demográficos em uma coorte de mulheres cadastradas na Estratégia Saúde da Família do Recife (PE).
MÉTODOS
É um estudo transversal realizado no Distrito Sanitário II do Recife, entre julho de 2013 e dezembro de 2014, com mulheres participantes da terceira etapa de um estudo de coorte delineado para investigar as consequências da VPI contra a mulher antes e ao longo da gravidez, no pós-parto e nos últimos sete anos, para a sua saúde mental. A ocupação do Distrito Sanitário II é predominantemente residencial, voltada para o segmento de média e baixa rendas12.
No estudo de coorte, foram conduzidas três etapas de coleta de dados. As duas primeiras ocorreram nos anos de 2005 e 2006. Na primeira etapa, todas as grávidas (n = 1.133), com idades de 18 a 49 anos, com 31 semanas ou mais de gestação, cadastradas na Estratégia Saúde da Família do Distrito Sanitário II do Recife foram consideradas elegíveis. Os contatos com as gestantes que não faziam o pré-natal na Unidade de Saúde da Família (USF) e com aquelas que não o realizavam com regularidade foram feitos no domicílio. Essas gestantes foram identificadas por meio dos registros dos agentes comunitários de saúde e incluídas no estudo.
Das 1.133 mulheres elegíveis, 1.121 (98,9%) foram entrevistadas e, destas, 1.057 foram reentrevistadas no pós-parto (segunda etapa). Na terceira etapa da coorte, foram entrevistadas 644 (61,5%) mulheres que participaram da segunda etapa. Entre a segunda e a terceira etapa, cinco mulheres foram a óbito, 391 não foram encontradas, por mudança de endereço, e 17 recusaram-se a permanecer na pesquisa.
Os dados foram coletados por profissionais de nível superior treinadas e com experiência em pesquisa sobre saúde da mulher e violência. No treinamento, enfatizaram-se questões éticas e a necessidade de coleta de informações precisas. Fizeram-se entrevistas simuladas, sendo também realizado estudo piloto no Distrito Sanitário VI do Recife. As entrevistas deram-se, em sua maioria, nas residências das participantes de maneira reservada, ou em outro local conveniente para elas.
Como instrumento de coleta, utilizou-se um questionário que contemplava perguntas referentes à identificação e a características socioeconômicas e demográficas da mulher e do parceiro.
As questões relacionadas à VPI foram elaboradas tendo como referência o questionário do Estudo Multipaíses sobre Saúde da Mulher e Violência Doméstica, conduzido pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Para identificar a violência, as questões caracterizavam como violência física as agressões físicas ou o uso de objetos para produzir lesões; como violência psicológica, os comportamentos ameaçadores, as humilhações e os insultos; e como violência sexual, as relações sexuais por meio da força física ou ameaças e imposição de atos considerados humilhantes. A mulher que respondeu “sim” a pelo menos uma das questões que compõem cada tipo de violência foi considerada como caso positivo.
Foi definido como parceiro íntimo o companheiro ou ex-companheiro com o qual as mulheres vivem ou viveram, independentemente de união formal, incluindo os namorados atuais, desde que elas mantivessem relações sexuais com eles.
O Post-traumatic Stress Disorder Checklist - Civilian Version (PCL-C), instrumento desenvolvido em 1993 por Weathers, Litz, Huska e Keane, do National Center for PTSD (Estados Unidos), para avaliar as consequências de diversos tipos de experiências traumáticas na população civil18, foi utilizado neste estudo para a identificação de sinais e sintomas sugestivos de TEPT. O PCL-C avalia 17 sintomas para o diagnóstico do TEPT, que contemplam os critérios diagnósticos do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV).
A TS foi investigada pela pergunta “Já tentou pôr fim à sua vida?”.
Os dados da terceira entrevista foram digitados no programa Epi Info versão (3.5.2), com dupla entrada de dados e por digitadores diferentes. Posteriormente, o aplicativo Validate foi utilizado para checar os erros de digitação.
Realizou-se modelagem hierarquizada com base em modelos teóricos para as variáveis explicativas da TS19. Esses modelos foram fundamentados nas teorias da determinação social da saúde (DSS)20.
A variável dependente foi a TS, estratificada em duas categorias: sim ou não. As variáveis independentes foram divididas em quatro blocos hierarquizados, de organização de dados de maneira distal (primeiro bloco) para proximal (quarto bloco) ao desfecho19. O primeiro bloco (aspectos sociodemográficos relacionados com o parceiro da mulher) foi composto das variáveis: idade (20-30; 31-59; 60 anos ou mais), saber ler e escrever (sim; não), anos de estudo (0-4; 5 ou mais), renda (nenhuma; menos de R$ 678; R$ 678 ou mais), uso de álcool (sim; não) e uso de drogas (sim; não). No bloco 2 (aspectos sociodemográficos ligados à mulher), as variáveis englobaram: idade (20-30; 31-59 anos), religião (sim; não), raça/cor (branca; negra; outras), saber ler e escrever (sim; não), anos de estudo (0-4; 5 anos ou mais), renda (nenhuma; menos de R$ 678; R$ 678 ou mais), inserção produtiva (sim; não), quantas vezes foi casada (nenhuma; apenas uma; duas ou mais), idade com que casou (não casou; 10-19; 20-59 anos), estado civil (não casada; casada), quantidade de amigos íntimos (nenhum; apenas 1; 2-10), fumante (sim; não) e uso de álcool (sim; não). No bloco 3 (VPI), utilizou-se: VPI antes da gravidez (sim; não), VPI na gravidez (sim; não), VPI no pós-parto (sim; não), e VPI sete anos após o parto (sim; não). No bloco 4 (TEPT), analisou-se a frequência de TEPT (sim; não).
A análise dos dados foi efetuada com o auxílio do programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) para Windows (versão 20), abrangendo a utilização de procedimentos descritivos e analíticos. A distribuição de frequência da TS e das variáveis independentes foi estimada. Efetuou-se a análise de associação entre as variáveis independentes e dependente pela aplicação do teste χ2 e da análise de resíduos padronizados.
O teste χ2 esclarece se a distribuição da TS, segundo as variáveis independentes dos quatro blocos do modelo hierarquizado, é aleatória ou se há um padrão determinado por dependência entre essas variáveis. Foi utilizado o nível de significância de 5% para esse teste. Procedeu-se à análise de resíduos padronizados para a associação entre os pares de categorias da variável dependente e das independentes, que possibilitou a comparação dos padrões característicos de cada categoria. Os resíduos (diferença padronizada entre as contagens observadas e esperadas) resultaram em excesso ou falta de ocorrência, sendo reconhecidos os valores com contagem de excesso positivo superior a 1,96, com nível de significância de 2,5% unicaudal, por se tratar apenas da observação dos excessos (Tabela 1).
O efeito da associação das variáveis independentes com TS foi estimado por meio de modelos hierarquizados de regressão logística simples e múltipla, visando como medida de efeito à razão de chances (odds ratio - OR). Iniciou-se a análise simples em cada bloco de associação (Tabela 2). Em cada bloco hierarquizado, testaram-se as variáveis com p < 0,25 em modelos múltiplos. Ao final, as variáveis que se associaram de maneira estatisticamente significante (p < 0,05) permaneceram no modelo final de cada bloco e foram consideradas fatores de ajuste para os blocos subsequentes (Tabela 3).
As etapas anteriores da pesquisa foram aprovadas pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Centro de Ciências da Saúde (CCS) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) (protocolo de pesquisa número 303/2004-CEP/CCS). A terceira etapa foi submetida e aprovada pelo CEP da UFPE (Parecer nº 194.672), emitido em 6 de fevereiro de 2013.
Todas as participantes assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido, lido no início da entrevista, momento em que foram informadas sobre o local e a coordenação da pesquisa, o seu caráter voluntário e sigiloso e a natureza delicada e pessoal de algumas questões.
RESULTADOS
A maior parte dos parceiros dessas mulheres tinha idade entre 31 e 59 anos (76,3%), sabia ler e escrever (95,1%), estudou cinco anos ou mais (89,6%), tinha renda maior que 678 reais (72%), usava álcool (66,9%) e não usava drogas ilícitas (94,4%). Entre as mulheres, a maioria tinha idade entre 31 e 59 anos (64,8%), possuía alguma religião (68,8%), era da raça/cor negra (79%), sabia ler e escrever (93,5%), estudou cinco anos ou mais (83,7%), ganhava menos de 678 reais (58,2%), não trabalhava (51,7%), era casada (81,2%), casou-se apenas uma vez (55,9%), casou-se entre 10 e 19 anos (56,1%), não tinha amigos íntimos (39%), não fumava (82,8%) e não usava álcool (57,5%) (Tabela 1).
A frequência da VPI foi de 32,1% antes da gravidez; 33,9% na gravidez; 22,2% no pós-parto; e 33,1% sete anos após o parto. A frequência de sintomas sugestivos de TEPT presente nessas mulheres foi de 16%, e a prevalência de TS, de 10,9% (Tabela 1).
Os resultados da análise da associação das variáveis com a TS mostraram que a TS foi mais frequente nas mulheres cujo parceiro não tinha renda, nas mulheres que não tinham religião, naquelas que foram casadas duas ou mais vezes e nas que tiveram sintomas sugestivos de TEPT (Tabela 1).
Nas mulheres que tinham sintomas sugestivos de TEPT, a chance de tentar o suicídio foi aproximadamente cinco vezes maior (OR = 4,77) do que nas mulheres que não tinham o TEPT (Tabela 2). As mulheres que não possuíam religião tiveram maior chance de tentar suicídio (OR = 1,76) em comparação com as que eram adeptas a uma religião.
A análise de regressão logística binomial múltipla foi realizada incluindo todas as variáveis que apresentaram associação com a TS na análise não ajustada. No modelo ajustado, as variáveis religião e TEPT permaneceram associadas à TS. Os resultados mostraram que as mulheres que não eram adeptas a nenhuma religião tiveram maior chance de TS (OR = 1,76) em relação às que eram adeptas, e as mulheres que tinham sintomas sugestivos de TEPT tiveram cinco vezes mais chances (OR = 5,11) de tentar acabar com a própria vida do que as mulheres que não tinham TEPT (Tabela 3).
DISCUSSÃO
Pesquisas afirmam que, entre os fatores de risco para as TS, sobressaem variáveis sociodemográficas e clínico-epidemiológicas, tentativa pregressa de suicídio e transtornos mentais21.
A prevalência de TS foi considerada alta no presente estudo, quando comparada a de um estudo realizado sob o auspício da OMS na área urbana do município de Campinas, em 2003. Lá, com base em listagens de domicílios feitas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 515 pessoas foram sorteadas e entrevistadas face a face por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e apurou-se que, ao longo da vida, 2,8% delas efetivamente tentaram o suicídio22.
Por outro lado, o estudo de Stevens encontrou prevalência de TS quase três vezes maior do que a deste estudo, 28%23.
Segundo a OMS2, 78% dos suicídios ocorrem em países de renda média e baixa. Portanto, o alto percentual de TS pode ser resultado da baixa renda da população estudada. Nesse estudo, a prevalência e a chance de TS foram maiores nas mulheres que tiveram sintomas sugestivos de TEPT e naquelas que não eram afiliadas a uma religião.
Na Irlanda do Norte, uma pesquisa encontrou maiores riscos para TS em pessoas com algum transtorno mental, no entanto os riscos foram maiores para as pessoas com TEPT8.
O TEPT pode interferir na qualidade de vida do portador, tal como na de seus familiares. Ressalta-se que as respostas aos eventos estressores evoluem como um processo adaptativo. Quando essas respostas são dadas de modo severo e prolongado, poderão levar a algum dano, transtorno ou doença24.
Vários fatores podem influenciar na duração e prevalência do TEPT, tais como tipo de trauma, duração do trauma, cronicidade do transtorno, desenvolvimento socioeconômico do país, busca por ajuda profissional e apoio social. Além desses fatores, destaca-se também a capacidade de resiliência, constatada no fato de que algumas pessoas, por motivos ainda não muito bem elucidados, como traços de personalidade, momento atual de vida, história particular de desenvolvimento psicológico, mesmo expostas ao agente traumático, apresentem apenas certas alterações iniciais em seu estado psíquico ou não manifestem nenhuma reação ao estresse25.
Sendo assim, a resiliência pode explicar por que para algumas pessoas o evento estressor produz crescimento pessoal e reformulações positivas do modo de vida. Essa informação possivelmente explicaria o fato de 71,8% das mulheres que tiveram TEPT neste estudo não ter tentado o suicídio, porém o TEPT incrementa e somatiza o risco e a gravidade das TS.
Os seres humanos participam de uma trama interpessoal que os molda, desde o nascimento até a morte. Essa trama está constituída no início de sua família, mas poucos anos depois já se expande, para incluir amigos, colegas de estudo, de trabalho e relações baseadas em atividades sociais, culturais, esportivas, de cuidados de saúde e religiosas26.
Corroborando os achados deste estudo e dando sustentação a eles, a teoria de Durkheim4 argumenta que a fraca religiosidade está associada a um nível mais elevado de suicídio por embutir no indivíduo um sentimento maior de independência. Portanto, a menor ocorrência de TS entre as mulheres pode estar relacionada à adesão à religiosidade, que causa efeito benéfico de coesão social, criando-se redes de apoio, em que elas podem reconhecer precocemente sinais de risco para transtornos mentais, entre eles a TS.
No Brasil, observou-se que a religiosidade foi associada com menos TS anteriores27.Na Ucrânia, um estudo avaliou o impacto complexo de fatores de risco e proteção na mortalidade por suicídio na população geral, e a religiosidade foi o fator de proteção mais fortemente associado à mortalidade por suicídio28.
Considerando que a maioria dos estudos apoia a hipótese de que as características psicológicas resilientes podem ser influenciadas pelos efeitos positivos da religiosidade, são necessárias a valorização e a observância da proteção e coesão social, do sentimento de pertencimento do indivíduo à sua comunidade, o que a adesão a um grupo religioso pode proporcionar ao ser humano29.
Outro fator de risco para TS estudado aqui foi a VPI, que em outros estudos teve grande importância em sua associação com a TS30. Neste trabalho, nos três momentos em que as mulheres sofreram VPI (antes da gravidez, na gravidez e sete anos após o parto), a chance de tentar o suicídio foi superior a quem não foi violentada (OR > 1), porém não houve associação estatisticamente significante. A perda da significância estatística poderia ser explicada de forma hipotética pela estratificação da variável VPI em quatro momentos.
A VPI, o TEPT e a TS são temas complexos, delicados e íntimos. Então, os recursos psíquicos da mulher para enfrentar o trauma sofrido e suas dificuldades e seus bloqueios decorrentes dessa experiência podem interferir na sua disponibilidade para falar sobre esse assunto. Em algumas situações, as mulheres podem não reconhecer a experiência de VPI quando questionadas ou minimizar a importância da VPI, por considerá-la natural, o que possivelmente contribui para a subestimação da sua seriedade. Além desses fatores, que são intrínsecos da mulher, outros podem causar a subestimação dos temas, como: a relação não empática entre entrevistadora e entrevistada, o local da entrevista, a insegurança da mulher acerca da confidencialidade do seu relato, a relação atual com o parceiro agressor, o sentimento de medo em relação ao parceiro-agressor e a proteção que a mulher dá ao parceiro pelo desejo de manter a relação, especialmente se ele é o pai da criança, fora tantos outros fatores, o estigma e a vergonha de ser agredida e de ter tentado suicídio.
CONCLUSÃO
Os achados deste estudo sugerem que a prevenção do suicídio precisa ser direcionada principalmente a dois segmentos. Em primeiro lugar, é preciso promover mais conhecimento sobre o TEPT, novas pesquisas e estratégias de prevenção e tratamento desse transtorno, considerando todo o potencial letal e mórbido que pode causar à população. Em segundo lugar, deve-se ponderar acerca da importância do efeito agregador e protetor social que a religiosidade é capaz de promover nas pessoas, pois grupos mais coesos socialmente são mais resilientes à TS.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos a colaboração e o empenho de todos os envolvidos na confecção de um produto tão importante para a saúde pública e que impactará positivamente na saúde reprodutiva e mental brasileira.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
09 Mar 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
-
Recebido
21 Fev 2018 -
Revisado
15 Out 2018 -
Aceito
13 Out 2018