RESUMO:
Objetivo: Apresentar um estudo de prevalência em presídios e estimar o percentual de pessoas privadas de liberdade, profissionais de saúde e agentes penitenciários infectados com o SARS-CoV-2 no Espírito Santo (ES).
Métodos: Tratou-se de um estudo de prevalência com amostragem realizada em 34 unidades prisionais no ES, estratificadas entre os dias 31 de agosto e 4 de setembro de 2020, com base no Population-based age-stratified seroepidemiological investigation protocol for COVID-19 virus infection. Realizaram-se entrevistas e testes rápidos para detecção de imunoglobina G e M nos grupos citados.
Resultados: Entre os 1.830 indivíduos (311 profissionais de saúde, 675 agentes penitenciários e 844 pessoas privadas de liberdade - PPL), as prevalências de infecção por COVID-19 foram 11,89% para os profissionais de saúde, 22,07% para os agentes penitenciários e 31,64% para as PPL. A maioria era do sexo masculino, com idade entre 21 a 40 anos, ensino fundamental e superior e cor parda, e os entrevistados concentravam-se na Região Metropolitana de Vitória.
Conclusão: Observou-se que a prevalência foi maior entre as pessoas privadas de liberdade em todas as regiões no regime fechado e para os agentes penitenciários no regime semiaberto, com destaque para a Região Norte. Quanto à comparação entre os regimes e região, observaram-se distinções entre os grupos das PPL com testes positivos. Para que se alcance a eficácia no combate à COVID-19 no sistema prisional, são necessárias ações de desencarceramento, testes e vacinação em massa, como também outras ações de saúde.
Palavras-chave: COVID-19; Epidemiologia; Estudos transversais; Penitenciárias
ABSTRACT:
Objective: To present a prevalence study held in prisons and estimate the percentage of persons deprived of liberty, health professionals, and prison officers infected with SARS-CoV-2 in Espírito Santo (ES).
Methods: This is a prevalence study with a sample from 34 ES prisons, stratified between August 31 and September 4, 2020, following the Population-based age-stratified seroepidemiological investigation protocol for COVID-19 virus infection. The participants were interviewed and underwent rapid tests to detect immunoglobulin G and M in the groups mentioned.
Results: Among 1,830 individuals (311 health professionals, 675 prison officers, and 844 persons deprived of liberty - PDL), the prevalence of COVID-19 infection was 11.89% for health professionals, 22.07% for prison officers, and 31.64% for PDL. Most interviewees were male, aged 21 to 40 years, had completed elementary school and higher education, were multiracial, and situated in the Metropolitan area of Vitória.
Conclusion: The prevalence was higher among persons deprived of liberty in the closed regime in all regions, as well as prison officers working in the semi-open regime, particularly in the North region. As for the comparison between regimes and regions, differences were identified between PDL groups with positive test results. Effectively combating COVID-19 within the prison system requires prison release actions, testing, and mass vaccination, as well as other health actions.
Keywords: COVID-19; Epidemiology; Cross-sectional studies; Penitentiaries
INTRODUÇÃO
Em fins do ano de 2019 a humanidade passou a enfrentar um dos maiores desafios à sua existência, o surgimento da COVID-19 (SARS-CoV-2). Sua expansão levou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a declarar o estado pandêmico no dia 11 de março de 2020, orientando as medidas de prevenção e enfrentamento a serem adotadas pelos países1. No Brasil, o primeiro caso de COVID-19 foi confirmado em 26 de fevereiro de 2020. Em um contexto político instável, com a ausência de uma coordenação nacional integrada aos estados e municípios, não foram criadas perspectivas favoráveis ao planejamento das estratégias de prevenção e de enfrentamento do avanço do vírus, tampouco foram priorizadas estratégias para populações vulneráveis2.
Em relação aos grupos mais vulneráveis, a OMS lançou recomendações específicas para a prevenção à COVID-19 e seu controle no sistema prisional. Estas consistem em: avaliar a possibilidade de liberdade condicional para as pessoas que não ofereçam perigo à sociedade e que componham o grupo de risco (“idosos; gestantes; pessoas com doenças crônicas, respiratórias ou com condições imunossupressoras”). Além disso, “políticas públicas de mitigação da desigualdade devem acompanhar as decisões judiciais de libertação dessas pessoas, uma vez que muitos egressos do sistema prisional não possuem suporte familiar e social”3. Outras instruções referem-se aos procedimentos de triagem de todos os que adentrem a instituição penal - novas pessoas privadas de liberdade (PPL), servidores, visitantes etc. -, bem como procedimentos de contenção, com a realização de quarentena por aqueles que testem positivo para o coronavírus3.
A Recomendação 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça4 (CNJ) brasileiro acatou as medidas propostas pela OMS e reforçou ações sanitárias, como restringir visitas e dar orientações para a limpeza das celas e dos espaços comuns com maior frequência. Cabe ressaltar que as necessidades de saúde das PPL são de responsabilidade do Estado, conforme a Lei de Execução Penal (LEP)5 e a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Pessoa Privada de Liberdade (PNAISP)6, esta última com ações em todos os níveis de complexidade, organizadas pelas equipes de saúde prisional.
De acordo com os dados da Diretoria de Administração Geral dos Estabelecimentos Penais (DIRAGESP), em 31 de agosto de 2020, o Sistema Penitenciário capixaba custodiava 21.970 PPL. Os estabelecimentos penais estão distribuídos em 17 penitenciárias, uma casa de custódia, um centro de ressocialização, três centros prisionais femininos, dez centros de detenção provisória, um centro de triagem, uma unidade de custódia e tratamento psiquiátrico (UCTP) e uma unidade de saúde do sistema penal (USSP). Essas 33 unidades prisionais, além da UCTP e da USSP, estão distribuídas da seguinte forma:
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Região Norte: Centro de Detenção Provisória de Colatina, Centro Prisional Feminino de Colatina, Penitenciária Semiaberta Masculina de Colatina, Penitenciária de Segurança Média de Colatina, Penitenciária Regional de Barra de São Francisco, Centro de Detenção Provisória de São Domingos do Norte, Centro de Detenção Provisória de São Mateus (CDPSM), Penitenciária Regional de São Mateus, Centro de Detenção e Ressocialização de Linhares, Penitenciária Regional de Linhares e Centro de Detenção Provisória de Aracruz;
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Região Metropolitana: Unidade de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, Centro Prisional Feminino de Cariacica, Penitenciária Semiaberta de Cariacica. O complexo de Viana é composto da Unidade de Saúde do Sistema Penal, Centro de Triagem de Viana, Centro de Detenção Provisória de Viana II, Penitenciária de Segurança Média II, Penitenciária Agrícola do Espírito Santo, Penitenciária de Segurança Máxima I, Penitenciária de Segurança Máxima II e Penitenciária de Segurança Média I. Em Vila Velha está a Casa de Custódia de Vila Velha e o complexo de Xuri, com as seguintes unidades: Centro de Detenção Provisória de Vila Velha, Penitenciária Estadual de Vila Velha I, Penitenciária Estadual de Vila Velha II, Penitenciária Estadual de Vila Velha III, Penitenciária Semiaberta de Vila Velha, Penitenciária Estadual de Vila Velha V. Na região também há o Centro de Detenção Provisória de Guarapari e o Centro de Detenção Provisória de Serra;
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Região Sul: Centro de Detenção Provisória de Cachoeiro de Itapemirim, Centro Prisional Feminino de Cachoeiro de Itapemirim, Penitenciária Regional de Cachoeiro de Itapemirim e Centro de Detenção Provisória de Marataízes.
Populações institucionalizadas merecem atenção diferenciada em razão da susceptibilidade de disseminação de infecção, especialmente a população carcerária. Conhecer a extensão da doença e seu real impacto na morbimortalidade é essencial para que seja possível prever as demandas do serviço de saúde e para que se possa traçar um planejamento adequado.
A Secretaria de Estado da Justiça (SEJUS) do Espírito Santo elaborou um protocolo e plano de contingência contra a COVID-19, validados pela Secretaria de Saúde, a serem seguidos em todos os presídios. Além das diretrizes de cuidado com a higiene e a saúde, foram adotadas medidas como aferição de temperatura, identificação de PPL com sintomas gripais, adiamento e reagendamento de visitas familiares e atendimentos como atividades laborais externas.
Nesse cenário, tornou-se importante a realização de inquéritos de soroprevalência, visando estimar os casos de infecção pela COVID-19 e sua expansão em determinada região sob a gestão de serviços de vigilância em saúde, para melhor conhecer o perfil da doença nessa região, bem como favorecer a tomada de decisões para o enfrentamento da pandemia intramuros. Além disso, no decorrer do monitoramento dos dados, foi identificado maior número de casos no CDPSM, que espelhou o cenário extramuros. Desse modo, tornou-se importante a realização do inquérito para validar o funcionamento das medidas adotadas pela SEJUS.
Nessa perspectiva, o presente artigo propõe-se a apresentar um inquérito de análise da prevalência de COVID-19 em 34 presídios, de modo a estimar o percentual de PPL, profissionais de saúde e agentes penitenciários infectados com o SARS-CoV-2 no ES.
MÉTODOS
TIPO DE ESTUDO
Foi realizado um estudo de prevalência, que teve como unidade a população do sistema prisional do Espírito Santo (PPL, profissionais de saúde e agentes penitenciários). Esse desenho de pesquisa foi baseado no Population-based age-stratified seroepidemiological investigation protocol for COVID-19 virus infection7, conforme detalhamento a seguir.
POPULAÇÃO E AMOSTRA
Efetuou-se um inquérito de base populacional, com amostragem realizada em todas as unidades prisionais no ES, estratificada para PPL (n=21.970), profissionais de saúde (n=441) e agentes penitenciários (n=3.101). O período de realização foi entre os dias 31 de agosto e 4 de setembro de 2020.
Para o cálculo do tamanho de amostra, foram consideradas as populações acima descritas, as prevalências esperadas de 10%, erros amostrais de 2% e nível de significância de 5%. Realizaram-se exames em todos os presídios do estado do Espírito Santo, chegando ao total de 34 estabelecimentos. As amostras foram calculadas proporcionalmente ao número de pessoas nos três estratos na população em cada presídio. A Tabela 1 apresenta a população geral e o número de pessoas estudadas em cada estrato.
Cálculo do tamanho das amostras, nos três grupos estudados, considerando-se o tamanho da população N, a prevalência esperada e o erro amostral.
ETAPAS DO TRABALHO DE CAMPO
Escolha dos participantes da pesquisa
Com base em uma listagem fornecida pela SEJUS, foi realizado um sorteio aleatório dos nomes que fariam parte da pesquisa. Considerando-se as características de rotatividade desse sistema, a logística de transferência entre unidades prisionais, o quadro de servidores em gozo de férias ou afastamento por questões diversas, bem como as recusas durante o período de execução do inquérito epidemiológico, foi necessário aumentar o alcance das amostras por meio de novos sorteios, os quais corresponderam a 20% de novos participantes da pesquisa. Decidiu-se realizar a pesquisa durante uma semana (cinco dias úteis) para que todos os servidores tivessem a chance de participar, mesmo aqueles que trabalham em regime de escala.
Cabe ressaltar que a população do estudo compreendeu a população prisional sem distinção de sexo, sob qualquer regime de sentença prisional, além dos profissionais que atuam diretamente na saúde do sistema penitenciário, incluindo os agentes penitenciários.
Utilização de aplicativo e monitoramento da coleta de dados
Utilizou-se o software ArcGIS, mais especificamente a ferramenta colaborativa Survey123 da Plataforma ArcGIS Enterprise, que permite a elaboração de formulários colaborativos previamente formatados. Também foi empregada a ferramenta Microsoft Office Pro Excel 2016 para a formulação das perguntas.
O formulário foi instalado em aparelhos celulares, com uso completamente off-line (as varáveis estão descritas no item d abaixo) para que pudesse ser aplicado dentro das unidades prisionais. Ao término de cada dia de aplicação, os aparelhos eram conectados à internet e a equipe técnica recebia imediatamente o pacote de dados coletado naquele dia.
Para otimizar as atividades em campo, foi desenvolvido um painel interativo de acompanhamento do andamento da pesquisa para cada uma das unidades prisionais. Para a construção do painel interativo e a apresentação clara e objetiva dos dados coletados por meio dos questionários, adotou-se o Operations Dashboard, disponível no ArcGIS Enterprise. Essa ferramenta utiliza-se de mapas, gráficos e outros elementos visuais para exibir os dados recebidos do questionário. Integrados ao Survey123, os dados são atualizados em tempo real e, com base neles, é possível executar ações (análises) com filtros pré-configurados.
Desse modo, à medida que a pesquisa era realizada, era possível monitorar quais unidades estavam próximas ou já haviam atingido as metas para cada um dos perfis abrangidos pelo inquérito (internos, agentes penitenciários e profissionais de saúde).
Realização do teste para COVID-19
Os entrevistadores foram treinados na execução do exame, realizado com amostra de sangue obtida por punção digital. Foi utilizado o teste rápido imunocromatográfico de anticorpos imunoglobina M (IgM) e imunoglobina G (IgG) da marca MedLevensohn, com registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) no 80.560.310.056. Ele possui sensibilidade de 97,4% e especificidade de 99,3% no que diz respeito ao IgG e sensibilidade de 86,8% e especificidade de 98,6% no que diz respeito às referências de IgM.
A equipe de entrevistadores recebeu todos os equipamentos de proteção individual (EPI) recomendados pela ANVISA para a situação de possível contato com pessoas com a COVID-19, além de celulares e álcool.
Aplicação de um questionário
Além da testagem para COVID-19, foram coletadas as seguintes informações sobre os participantes: sexo, idade, escolaridade, cor da pele autorreferida, sintomas de COVID-19 (tosse, febre, cansaço, dores no corpo, dificuldade para respirar, alterações no paladar e olfato) nos 15 dias anteriores à entrevista e outros sintomas não relacionados. Ainda, foram pesquisados fatores específicos de cada trabalhador, como: carga horária de trabalho, se trabalha em outra instituição, variáveis de deslocamento ao presídio (agente penitenciário e profissional da saúde). Para todos os três segmentos perguntou-se sobre as comorbidades existentes. Para os profissionais de saúde e agentes penitenciários, foram coletadas informações relativas ao trabalho e ao deslocamento.
ANÁLISE ESTATÍSTICA DOS DADOS
Os dados foram coletados com a utilização do aplicativo citado acima. Essas informações formaram um banco de dados e foram analisadas estatisticamente pelo programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 20.0. Foram realizadas tabelas de frequência e foram estimados a prevalência e os intervalos de confiança. Os resultados do teste foram associados com as variáveis do estudo. O nível de significância adotado foi de 5%.
ÉTICA
Este estudo respeitou as Resoluções Brasileiras 466/2012 e 510/2016, sendo aprovado pelo comitê de ética do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Espírito sob o número de parecer 4.209.127. Todos os indivíduos selecionados foram informados sobre os objetivos do estudo, bem como sobre seus riscos e vantagens, e os materiais e informações foram coletados apenas após a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. Todos os indivíduos testados receberam o resultado por meio da SEJUS e dos profissionais de saúde. Os casos positivos foram notificados para o serviço municipal de saúde para as providências necessárias. As medidas de segurança biológica cabíveis foram tomadas, de forma a garantir a saúde dos trabalhadores que atuaram na coleta dos dados e do material.
Durante a realização do inquérito epidemiológico, medidas de controle foram tomadas para os casos ativos da doença. Os internos foram encaminhados às áreas específicas de isolamento e receberam todo o atendimento necessário pelas equipes de saúde. Já os servidores foram afastados e orientados a buscar o serviço de saúde mais próximo.
RESULTADOS
Foram pesquisados 1.830 indivíduos, dos quais 311 profissionais de saúde, 675 agentes penitenciários e 844 PPL. Deles, respectivamente 37, 149 e 265 testaram positivo para a COVID-19. De acordo com a Tabela 2, observou-se que o maior número de entrevistados se concentrou nos presídios na Região Metropolitana de Vitória (PPL 65,2%; saúde 61,7%; agentes 59,4%) e no regime fechado (PPL 88,6%; saúde 90,7%; agentes 89,5%), sendo a maioria das PPL e dos agentes penitenciários do sexo masculino, com 95 e 76,3%, respectivamente, e a maioria dos profissionais de saúde do sexo feminino, com 76,8%.
Entre as PPL entrevistadas, a faixa etária concentrou-se entre 21 e 30 anos (51,5%), o maior nível de escolaridade foi o ensino fundamental (66,1%), e a maioria autodeclarou-se como de cor parda (57,7%) e preta (21%).
Os profissionais da saúde apresentam-se com idade entre 31 e 40 anos (41,3%), ensino superior completo (43,6%) e autodeclaração de cor parda (44,8%) e branca (41%). Nessa direção, também foi observado que os agentes penitenciários estão na faixa etária entre 31 e 40 anos (54,8%), com ensino superior completo (45,6%) e cor autodeclarada parda (49,9%) e branca (33,2%).
A Tabela 3 apresenta os resultados das prevalências, com os respectivos intervalos de confiança, bem como a população estimada como positiva em cada categoria. Observa-se que as prevalências foram 11,89% para os profissionais de saúde, 22,07% para os agentes penitenciários e 31,64% para as PPL.
A Figura 1 apresenta as prevalências por região do Espírito Santo separadas por grupos. Observa-se que a Região Norte apresenta as maiores prevalências para as três categorias - 19,8% para profissionais de saúde, 25,9% para os agentes penitenciários e 43,7% para as PPL.
A Tabela 4 apresenta as prevalências por região e por regime, bem como para as três categorias estudadas. Foi observada uma diferença entre as prevalências para regime fechado ou semiaberto do presídio nas regiões Norte e Metropolitana. Destacam-se, na Região Norte, as prevalências de 0% no semiaberto e 20,5% no fechado (profissionais de saúde) e de 24,2% no fechado e 54,5% no semiaberto (agentes penitenciários). Na Região Metropolitana, encontraram-se 31,1% no regime fechado e 16,1% no semiaberto (categoria PPL) e 24,0% no fechado e 6,7% no semiaberto (agentes penitenciários).
No que se refere à prevalência por região, regime e categoria, observou-se que a Região Norte concentrou as maiores prevalências em todas as categorias no sistema fechado: PPL 44,1%, agentes penitenciários 24,2% e profissionais de saúde 20,5%. Essa região e o regime fechado, em comparação com os demais, equiparam-se quanto à prevalência dos agentes penitenciários positivos da SEJUS (24%) na Região Metropolitana, e muito se aproximam dos profissionais de saúde positivados (17,9%) da Região Sul.
No regime semiaberto, a Região Norte apresentou prevalência de infecção por COVID-19 de 54,5%, ou seja, cerca de oito vezes a mais de agentes penitenciários em comparação com a Região Metropolitana e o dobro das PPL positivadas.
Quanto à análise por grupos e regimes, observou-se que para as PPL as maiores prevalências de COVID-19 foram no regime fechado, independentemente da região, com variações da magnitude de 31,1 a 44,1%. Com relação aos agentes penitenciários, houve distinção por região: na Região Norte, a maior prevalência foi observada no regime fechado (24% contra 6,7% no regime semiaberto); situação que se inverte na Região Metropolitana (54,5% no semiaberto contra 24,2% no fechado) (Tabela 4).
DISCUSSÃO
Este inquérito de análise de prevalência de COVID-19 no sistema prisional do Espírito Santo demonstrou sua importância para a discussão e a tomada de decisão do poder público. É possível avaliar e operacionalizar ações para o enfrentamento da COVID-19 nos presídios considerando-se os dados analisados, entre os quais se destacam a prevalência maior entre as PPL em todas as regiões no regime fechado e entre os agentes penitenciários no regime semiaberto, com destaque para a Região Norte, mesmo estando a concentração maior dos entrevistados na Região Metropolitana de Vitória.
O resultado da prevalência de 31,64% demonstra que as PPL, dadas as suas condições de encarceramento e a dinâmica epidemiológica do novo coronavírus, são mais vulneráveis à rápida transmissão e, por esse motivo, consideradas de maior gravidade em comparação à população geral, principalmente se comparadas com a população do ES no mesmo período8.
Estudos internacionais também apresentaram resultados nessa direção, como por exemplo a pesquisa realizada por Hagan et al.9, em que a prevalência de SARS-CoV-2 foi em média de 42,6% entre as PPL de 16 prisões dos Estados Unidos. E, somente no estado da Califórnia10, das 96.440 PPL, 15.162 testaram positivo.
Há um consenso na literatura de que as prisões são mais vulneráveis à rápida disseminação da COVID-19 por sua densidade populacional e pela inviabilidade das medidas de distanciamento padrão; logo, os resultados de saúde relacionados ao SARS-CoV-2 apresentam-se piores entre PPL do que na população em geral11,12.
Isso ressalta a necessidade de se medir e controlar a densidade de toda interação social, tanto nos contatos com familiares, advogados e profissionais de saúde quanto com agentes penitenciários. Ou seja, a organização do fluxo e da triagem para a entrada e a saída das pessoas nos presídios, bem como o trânsito no ambiente interno, devem observar as normas de biossegurança dos protocolos de enfrentamento da COVID-19.
Além disso, é preciso realizar estudos das medidas de proteção como desencarceramento, teste e vacinação em massa, uma vez que as prisões continuam a se caracterizar como locais de risco e potencializam a disseminação, agregada aos fatores de superlotação, ausência de EPI e condições precárias de higiene12. Assim, a melhoria da infraestrutura quanto às condições sanitárias dos prédios e sua reorganização são essenciais para manter o distanciamento ou isolamento social, considerando-se o número de celas, salas de atendimento, áreas de convivência, recepção e triagem, refeitórios, salas de oficinas e trabalhos manuais, entre outros.
A não mitigação de uma onda dentro de uma instituição penal poderia exigir mais hospitalização e levar a mais óbitos3. Isso porque, segundo estudos de modelagem matemática, infecções no sistema prisional ocorrem de maneira mais precoce, ou seja, em média 63 dias mais cedo do que o pico de infecções na comunidade geral3. Adiar a detenção de 90% das pessoas de grupos de risco para a COVID-19 reduziria a mortalidade nas penitenciárias em 56,1%3.
Em suma, o encarceramento impacta a saúde das pessoas, deixando-as mais vulneráveis à infecção, o que, somado a fatores individuais, pode levar ao agravamento da doença. O encarceramento é uma contínua ameaça de infecção e reinfecção pelo novo coronavírus com quadro grave, principalmente porque o vírus pode ser disseminado por pessoas assintomáticas. Estudos comprovam que PPL têm prevalência aumentada de HIV, hepatite B, hepatite C e sífilis. E, no que se refere às doenças respiratórias, as prisões apresentam ambientes propícios para a propagação de infecções respiratórias como gripe e tuberculose e, por ora, também de COVID-19.
Ao realizar este estudo no sistema prisional do Espírito Santo, observa-se que sua potencialidade se apresenta não só em sua aplicabilidade a outros sistemas prisionais (nacionais ou internacionais), mas também na hipótese de uma tendência mundial, em comparação com outros estudos: quando o assunto é o encarceramento ou a privação da liberdade de pessoas, enfrentam-se os mesmos problemas e desafios, acirrados pela pandemia de COVID-19. Entretanto, nosso estudo teve algumas limitações: a ausência do controle diário da permanência ou rotatividade das PPL e da escala de trabalho dos agentes penitenciários e dos profissionais de saúde, o que ocasionou a necessidade de reamostras, com os novos sorteios.
À guisa de conclusão, para que se alcance a eficácia no combate à COVID-19 no sistema prisional, além das ações de desencarceramento, testes e vacinação, há a necessidade de ações intersetoriais, com o trabalho conjunto das instituições jurídicas, da saúde pública, da assistência psicossocial e do sistema prisional para a defesa do direito à saúde e a mitigação do coronavírus nas penitenciárias. Isso deve ser concomitante ao desenvolvimento de ações em parceria com a sociedade civil organizada, familiares e advogados, com vistas a diminuir a superlotação nas celas, promover melhorias nos sistemas de ventilação, realizar testagem em massa de COVID-19, rastrear casos e prover acesso adequado de serviços de saúde e psicossociais.
REFERÊNCIAS
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6 Brasil. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria Interministerial no 1, de 2 de janeiro de 2014. Institui a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2014/pri0001_02_01_2014.html
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Dez 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
-
Recebido
18 Abr 2021 -
Revisado
06 Ago 2021 -
Aceito
18 Ago 2021 -
Preprint postado em
01 Set 2021